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A MÃE DE DEUS NA ICONOGRAFIA
BIZANTINA
The mohter of god in byzantine iconography
Neomir Doopiat Gasperin *
RESUMO: A existência e veneração dos ícones na Igreja Bizantina, expressa uma rica e bela
compreensão teológica que o Oriente Cristão comunga sobre a economia da salvação operada
por Jesus Cristo, dedicando nesta, um relevante espaço a Santíssima Virgem Maria, venerada
como corredentora da salvação – pensamento teológico, intensamente rezado na liturgia:
“Santíssima Mãe de Deus – Salvai-nos!” A mariologia oriental não é autônoma, mas inserida na
cristologia, eclesiologia e escatologia. O consentimento da Theotokos foi condição indispensável
para a Encarnação, para que Deus se fizesse visível e representável na pessoa de Jesus Cristo.
Toda a excelência atribuída aos ícones da Mãe de Deus deve-se a sua participação nos mistérios
de Jesus Cristo, por isso, os templos sagrados, a liturgia, hinologia e a espiritualidade dos fiéis
são influenciadas pela iconografia. Os ícones marianos conseguem exprimir harmoniosamente
o indizível nexo das naturezas do Verbo que se vislumbram na Theotokos. São imagens que nos
ajudam a rezar, que assumem a economia divina, que convidam à transfiguração e à divinização
– meta da vida humana
PALAVRAS CHAVE: Tradição Oriental; iconografia; Virgem Maria; liturgia.
Abstract**: The existence and veneration of Icons in the Byzantine Church demonstrate a very
rich Theological comprehension which is placed on the One Economy of Salvation realized by
Jesus Christ. The Byzantine Iconography reserves a very relevant place for the Blessed Mother of
God. She is venerated as a co-redemptress in the plans of Salvation which is a Theological Dogma
and intensely remembered during Liturgies: “Blessed Mother of God – save us!” The Oriental
Mariology is not self-sufficient; but rather a part of the Christology, Ecclesiology and Escathology.
The Blessed Mother’s FIAT was essential in the Incarnation Plans so that God would be made visible
and represented in the person of Jesus Christ.. Mary’s participation in the mysteries of Christ is
always depicted in Iconography; thus, temples and churches, the Liturgy, Hymns and Spirituality
are influenced by the Icons. The Marian Icons harmoniously display the undivided links in both
Natures of the Word of God which are discerned indistinctly in the Theotokos. They are images
that help us pray better, play a part in the Economy of Salvation, invite all to the Transfiguration
and deification - the goal of human life. KEY WORDS: Oriental Tradition; Iconography; Blessed Mother of God; Liturgy.
*
Neomir Doopiat Gasperin é Mestrando em Direito Canônico pela Faculdade de Direito Canônico
São Paulo Apóstolo – PUC Ipiranga, São Paulo; e sacerdote do clero diocesano da Metropolia Greco
Católica Ucraniana São João Batista em Curitiba, Paraná.
** O abstract foi preparado pelo Pe. Januário Lucavei, OSBM – residente em New York State (EUA).
149
INTRODUÇÃO
Observaremos neste artigo que a Virgem Maria está explícita e
implicitamente presente na história da Encarnação e salvação da humanidade
operada por Jesus Cristo. A primeira vista, poderá parecer estranho a nós cristãos
formados pela cultura, teologia e tradição ocidental; acostumados a entender a
mariologia separadamente da cristologia e assim, compreender que a liturgia
oriental reza: Santíssima Mãe de Deus – Salvai-nos! Para a tradição bizantina,
a Theotokos faz parte deste evento salvífico, por isso, a teologia proclama-a:
corredentora da salvação .
De acordo com Servera, a teologia mariana no oriente nunca foi autônoma,
é parte da cristologia e da eclesiologia1. Alguns autores como Palamás e Cabasilas
também inserem-na como parte da escatologia.
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Para o oriente cristão, não há separação rigorosa e sistemática que aloca
Jesus Cristo em um plano e a Virgem Maria em outro. A veneração à Mãe de Deus
está estreitamente ligada a sua maternidade divina e à união com a pessoa e obra
do Filho, por isso pode-se dizer que a iconografia mariana é também cristológica2.
O título Theotokos, segundo Spidlik, já indica a dupla origem de Cristo: de Deus e
de Maria3.
A Mãe de Deus está dentro de um plano cristológico e salvífico, o qual
pretendemos apresentar neste artigo através da teologia e representação
iconográfica. Veremos também como se da à presença da Santíssima Virgem nos
templos bizantinos e na iconografia; o papel do ícone na liturgia e sua veneração;
a teologia iconográfica e o lugar da Virgem Maria na economia da salvação.
1. A MÃE DO VERBO ENCARNADO É QUE POSSIBILITA O ÍCONE DO
SEU FILHO
Segundo Sáenz, o instrumento pelo qual o invisível se fez visível, não é
outro senão a Virgem Maria. “É ela que deu a abreviação ao Verbo. São Teodoro
Studita, maravilhado diz: Se é ilimitado aquele que procede do Pai ilimitado, será
por certo limitado quem procede de uma mãe limitada”4. Se a consubstancialidade
1cf. CERVERA, Jesús Castellano. El mistério de María en la Iglesia ortodoxa: Doctrina y testimonio de
Pablo Evdokimov.(artigo) Revista de espiritualidade, 1977, p. 259.
2 KNIAZEFF, Alexis. La Madre di Dio nella Chiesa ortodossa. Milano: San Paolo, 1993. p. 23.
3cf. SPIDLÍK, Tomás. Alle Fonti dell’Europa: in principio era l’arte. Roma: Lipa, 2006, p. 195.
4 SÁENZ, Alfredo. El Icono: Splendor de lo Sagrado. Buenos Aires: Glaudius, 1991, pp. 77-78.
com o Pai o faz ilimitado, a consubstancialidade com sua mãe o envolve de
limitação.
A Encarnação do Verbo é o dogma fundamental do cristianismo. A
admissão desse mistério é incompleto se não se professa a Virgem Maria como
verdadeira Mãe de Deus. O culto do ícone de Jesus Cristo presume o papel da
Theotokos, cujo consentimento foi condição indispensável para a Encarnação,
para que Deus se fizesse visível e representável. Segundo os Padres da Igreja, o que
permite que o Verbo Encarnado seja representado em um ícone é a humanidade
herdada de sua Mãe, pois, se não pudesse ser representado significaria que nasceu
somente do Pai e não se encarnou. Isto seria contrário a toda o plano da salvação5.
Desta forma, a Theotokos se apresenta envolvida no grande mistério
cristológico, constituindo a resposta viva contra os iconoclastas, pois, se o Verbo de
Deus se revestiu da carne da Santíssima Virgem, então nada podia negar o direito
de representá-lo em imagens e ícones. Em Jesus não faltava nada do que havia na
natureza de sua mãe. Se negasse a sua representação no ícone, automaticamente
se estava, mesmo que de forma implícita, afirmando que seu corpo não vinha
da Virgem Maria, mas de algum outro, talvez de um corpo celeste. Mas, se assim
o fosse, Jesus Cristo não teria sido visto e nem tocado, não teria morrido. Então
como se desenvolveria a economia da salvação?
A Theotokos ocupa um lugar de proeminência na Igreja bizantina: na
liturgia, na teologia, na espiritualidade, na hinologia e, sem duvida alguma na
iconografia, onde sua expressão é bastante visível. Poucos são os ícones em que
a Mãe de Deus aparece sozinha. A maioria a traz acompanhada de seu Filho. A
Liturgia canta: “Aquele que era ilimitável no seio do Pai, está agora sentado,
limitado, em teu seio, ó Puríssima, revestido de teu aspecto”6. Essa relevância da
Virgem é visível em todos os âmbitos da Igreja bizantina.
2. A VIRGEM MARIA NO TEMPLO BIZANTINO
A espiritualidade oriental oferece uma interpretação especialmente
simbólica dos seus espaços sagrados. O templo sagrado é simultaneamente
uma representação divina, uma imagem do mundo ideal, uma representação do
homem e um símbolo do seu profundo estado de espírito.
5cf. SÁENZ, Alfredo, op.cit. pp. 172-173.
6 Hino da 7 ode do cânon tom 6. in SAENS, Alfredo. op.cit. p. 79.
151
De acordo com Sáenz, no âmbito bizantino as igrejas se caracterizam
por um definido caráter sacramental, reproduzindo em forma sensível, uma
experiência que escapa à percepção experimental. As igrejas aparecem como
lugar inteiramente reservado para Deus. O ritual de consagração reporta-se a
um determinado terreno escolhido, o qual é separado do espaço profano (de
uso comum) e purificado através das invocações epicléticas, ou seja, invocase a descida do Espírito Santo para que o transforme em um recinto sagrado7.
Evdokimov classifica a consagração desse espaço como “um lugar exato da
teofania, a montanha santa, um centro cósmico, símbolo do céu (...)”8.
De acordo com Hanicz:
152
A representação arquitetônica é construída a partir do
simbolismo cósmico. “A igreja é concebida como imitação da
Jerusalém Celeste, reproduzindo o paraíso e o mundo celeste”.
A “Igreja é imago e axis mundi”. “É um arquétipo celestial”, a
forma, as medidas e o modelo refletem o domínio sagrado.
É uma presença imanente–transcendente, na qual o culto à
divindade é atualizado9.
Para os Santos Padres, a Igreja é o novo céu, a antecipação, prefiguração do
céu; porém, também é a nova terra, o mundo transfigurado, a serenidade futura,
onde todas as criaturas se reúnem hierarquicamente em torno a seu Criador10.
Segundo Morozowich, esta relação da Igreja com o céu, a tradição bizantina
expressa de forma mais clara na iconografia, procurando ajudar os orantes
a entender o fato maravilhoso da união com Deus no céu durante a oração.
Descobrindo diante de nós este dom inestimável, somos convidados a acender
espiritualmente, lembrando-nos que somos parte do corpo de Cristo11.
O que mais chama a atenção na igreja bizantina é o seu iconostáse (parede
de ícones) que separa a nave dos fiéis do Santo dos Santos. Os ícones na iconostáse
representam a presença invisível de Jesus Cristo e dos santos. No iconostáse há
três portas: a central, chamada de porta real, régia ou santa, conduz diretamente
7 EVDOKIMOV, Pavel. Teologia della Bellezza: L’arte dell’icona. Roma, 1981, pp. 154-155; SÁENZ,
Alfredo,op.cit. pp. 255 e 262. vide para melhor compreender a consagração dos Espaços Sagrados,
a obra: ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Lisboa: Edição livros do Brasil, coleção vida e
cultura, sd. p. 40 ss.
8EVDOKIMOV, Pavel, 1981, op.cit. p. 154.
9 ELIADE, Mircea. apud. HANICZ, Teodoro. Último andar. Caderno de pesquisa em ciências da
religião. São Paulo: EDUC, 1998, p. 86.
10SÁENZ, Alfredo, op.cit. p. 263.
11 MOROZOWICH, Mark. O Ofício Divino como fonte da formação litúrgica e espiritual das pessoas
consagradas. in. VIDA CONSAGRADA NA IGREJA GRECO-CATÓLICA UCRANIANA: Material da V
sessão do Sobor Patriarcal. Prudentópolis: 2011, p. 237.
ao altar e por meio dela o celebrante comunica-se com a assembleia. Nas laterais
há as portas norte e sul, também chamadas de diaconais. Estas portas simbolizam
o vinculo entre o céu e a terra. Na porta real encontra-se o ícone da Anunciação
e dos quatro evangelistas. Nas portas laterais estão os ícones de arcanjos ou
diáconos. Esses ícones representam o fato de que a Boa Nova sobre a vinda do
messias foi dirigida em primeiro lugar à virgem Maria e que o seu assentimento
à maternidade divina abriu as portas do paraíso, antes fechadas pelo pecado. Os
ícones dos evangelistas na porta real e o ícone da última ceia acima deles, indicam
que entramos no Reino de Deus pelo acolhimento da mensagem evangélica e
participando da santa Eucaristia12.
3. A CENTRALIDADE DA VIRGEM MARIA NA ICONOGRAFIA
A porta santa ou real é ladeada por dois grandes ícones. O primeiro
lugar de honra, localizado a direita é ocupado pelo ícone de Cristo Pantocrator,
o Todo Poderoso, vestido com túnica e manto, segurando na mão esquerda um
globo terrestre e com a mão direita abençoando. O ícone Pantocrator, às vezes
é substituído pelo Cristo Mestre que em vez de um globo, segura o livro dos
evangelhos. O segundo lugar de honra e realce está à esquerda da porta santa e
é dedicado a Mãe de Deus, representada na maioria das vezes segundo o modelo
iconográfico da Odiguitria (a Guia). Nesse ícone, a Theotokos com uma das mãos
segura o menino Jesus e com a outra aponta para Ele como se estivesse indicando
o caminho da salvação13. Em seguida vêm os ícones dos apóstolos, profetas, santos
e mártires, todos circundando Jesus Cristo e a Virgem Maria, transmitindo a ideia
de como deve ser a morada de Deus e de seus anjos e santos.
Em conjunto, os ícones de Jesus Cristo e da Virgem Maria, de ambos os lados
da porta real ou santa do iconostáse, propagam todo o plano da salvação: o Filho
de Deus tornou-se homem (o Cristo vestido na túnica púrpura, coberta do manto
azul) para tornar a nós, homens, representados pela Mãe de Deus, partícipes de
sua Divindade. A Theotokos está vestida com uma túnica azul, coberta com uma
capa de cor púrpura. A cor púrpura simboliza a divindade e o azul a humanidade14.
,op.cit. p. 190, n. 600-602. vide esquema
de iconostáse em:
2003, стор. 62. Tradução e transliteração da referência: HOHOLH, Nicolau. Reflexão sobre a
Divina Liturgia. Lviv: Svitchado, 2003, p. 92.
13
,op.cit. p. 191, n. 604 e ARBEX, Pedro.
Teologia Orante na Liturgia do Oriente. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 18.
14
, op.cit. p. 191, n. 604.
12
153
Os ícones marianos, querem, portanto explicitar que a natureza humana da
Theotokos fora revestida da graça plena de Deus.
Segundo Arbex, a Virgem Maria foi sempre o motivo predileto dos pintores
bizantinos, por causa de seu papel eminente na economia da salvação e também
como réplica às heresias cristológicas cuja consequência era negar a sua maternidade divina. Os iconógrafos se esforçavam para dar à Mãe de Deus os traços
mais perfeitos e sugestivos, eliminando a menor possibilidade de diminuir sua
dignidade e o respeito que lhe é devido. Jamais encontraremos um ícone com
traços sensuais, ao contrário, a Virgem é representada como uma dama nobre,
uma rainha poderosa, mas, ao mesmo tempo, majestosa e modesta15.
4. O ÍCONE NA LITURGIA
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Segundo Evdokimov, as formas arquitetônicas do templo bizantino, os
afrescos, os objetos de culto e os ícones, não estão juntos simplesmente como
elementos de um museu, mas, como componentes de um corpo que vivem de
uma mesma vida mistérica, estão integrados no mistério litúrgico. Portanto, não
se pode compreender um ícone fora desta integração16.
A função do ícone na liturgia é auxiliar na contemplação orante. Um fiel
ao entrar na igreja, se inclina diante do ícone, se persigna, beija-o; primeiramente
o de Jesus Cristo, depois da Mãe de Deus e da festa do período litúrgico que se
celebra ou aquele a quem a Igreja foi dedicada. Junto com os ícones geralmente
há velas acesas, que os fieis acendem como expressão externa de sua invocação
interior.
Para Evdokimov, “a função litúrgica do ícone é ser simbiose dos sentidos
e da presença, consagrar os tempos e lugares; de uma habitação neutra fazer
uma igreja doméstica da vida de um fiel, uma vida orante, liturgia interiorizada e
continuada”17.
Quando se celebra um ofício, os textos litúrgicos se estruturam em torno
ao acontecimento celebrado e os comentam. O mistério litúrgico se faz presente
e transmite esse conteúdo vivo ao ícone da festa litúrgica. Praticamente, sem
os ícones, os ritos litúrgicos bizantinos não são celebrados adequadamente, a
15 ARBEX, Pedro, 1998, op.cit. pp. 60-61.
16 cf. EVDOKIMOV, Pavel, 1981, op.cit. p. 179.
17 id.
proclamação do mistério celebrado pela Igreja mediante os textos litúrgicos
lidos e cantados, ficaria truncada. Não se trata de uma simples adição como se
adicionássemos a imagem à palavra, e sim de uma presença enriquecedora da
Palavra de Deus. Daí o costume do incensamento não só dos livros sagrados e fiéis
presentes, mas também sobre os ícones, como se fosse destacada a unidade da
Igreja terrestre, concretizada nos fiéis que ali se encontram, com a Igreja celeste,
figurada nos diversos ícones.
De acordo com Sáenz, “convém honrar sempre as imagens na oração e
durante as vigílias (...) confessando as faltas e pedindo perdão dos pecados”18.
No hino aos Querubins: “Representando misticamente os Querubins, e cantando
o hino de louvor à Santíssima e vivificante Trindade, afastemos de nós todas as
preocupações deste mundo”19, expressa-se a nossa participação misteriosa na
liturgia eterna celebrada por Jesus Cristo.
De acordo com Evdokimov, no ícone da liturgia eterna a assembléia de
anjos circunda o Cristo Sacerdote. Os fiéis representam misteriosamente os anjos,
são ícones vivos, angelofanias, lugar humano do mistério angélico de adoração
e oração. Nessa grandiosa sinfonia, o fiel que contempla os ícones, vê neles os
seus companheiros maiores: patriarcas, apóstolos, mártires e santos, como seres
bem presentes e com eles participa no Mistério20. Um hino aos anjos canta: “Em
teus santos ícones, contemplamos os tabernáculos celestes e exultamos de uma
puríssima alegria”21.
Os ícones não estão para a decoração dos templos ou igrejas, mas para a
oração. O oriente considera-os como um de seus sacramentais. Todo ícone passa
por um ritual de consagração antes de exercer sua função litúrgica na Igreja e ser
revestido do seu mistério teofânico. O que o evangelho nos comunica com as
palavras, o ícone nos anuncia através de suas cores e traços. Às vezes em uma cena
iconográfica é possível averiguar certa sinopse do Antigo e Novo Testamento no
que se refere às ideias principais.
João Damasceno assim confessa:
Quando meus pensamentos me atormentam e me impedem
de saborear a leitura, vou à Igreja... Minha vista é cativada e
incita minha alma a louvar a Deus. Considerando a valentia
do mártir... seu ardor me abrasa... Caio por terra e me volto ao
18cf. SÁENZ, Alfredo, op.cit.p. 298.
19 MISSAL BIZANTINO. Divina Liturgia de São João Crisóstomo. Curitiba: 1999, p. 47.
20 cf. EVDOKIMOV, Pavel, 1981, op.cit. p. 180.
21vide,original: Nelle Tue sante ícone noi contempliamo i tabernacoli celesti ed esultiamo di una
gioia puríssima (...). id.p. 180.
155
céu para adorar e rogar a Deus mediante a intercessão de um
mártir22.
A teologia litúrgica da presença, afirmada no ritual de consagração é que
distingue o ícone de um quadro de tema religioso. É uma imagem sacra, cujo
lugar próprio é o culto. À semelhança da palavra, o ícone é parte integrante da
liturgia.
Segundo Sáenz, o ícone se integra na liturgia e esta se condensa na
Palavra e na Eucaristia. “O evangelho, a Eucaristia e o ícone são as três principais
vias pelas quais Deus chega até nós e nós chegamos até Deus”23. . O ícone apóiase na palavra e ambos aproximam os fiéis ao espaço e tempo a ser comemorado
e os fazem contemporâneos de Cristo e de seus mistérios. O ícone vem ser para a
Igreja do Oriente, uma poderosa forma de predicação e expressão dos dogmas e
está submetido às regras transcendentes da visão eclesial.
156
Na liturgia os ícones não contém uma significação meramente didática,
mas principalmente mistérica, ou seja, mistagógica; introduzem o fiel nos
mistérios de Cristo, principalmente no da Encarnação. O ícone é o espelho no qual
se reflete o pensamento, o louvor e o dogma da Igreja.
Particularmente, o culto e os ícones da Mãe de Deus se expandiram após
o Concílio de Éfeso (431), o qual proclamou o dogma da Maternidade divina da
Virgem Maria. Desde então, as Igrejas orientais bizantinas, ortodoxas ou católicas
multiplicam suas representações marianas: na arquitetura dos templos, na arte,
na teologia, nos hinos e, principalmente na liturgia24.
4.1. A Veneração do ícone da Mãe de Deus na Liturgia Bizantina
Sabe-se que desde a infância e, principalmente, durante a Paixão e morte
de Jesus Cristo, a Virgem Maria sempre esteve ao lado do Filho amado. Suportou
tudo calada. É também, por este lugar relevante que a Santíssima Virgem ocupou
na vida de Jesus25, que a liturgia oferece-lhe um lugar de relevo. Arbex concorda
com Kniazeff e defende que, se a celebração da Divina Liturgia faz memória
do sofrimento de Jesus no Calvário e sua mãe esteve presente nele de forma
22 vide original: Quando i miei pensieri mi torturano e m’impediscono di gustare la lettura, vado
in chiesa... La mia vista è atratta e porta la mia anima a lodare Dio. Contemplo il coraggio del
martire... il suo ardore m’infiamma... Cado a terra per adorare e pregare Dio per l’intercessione
del martire. DAMASCENO, João, apud. EVDOKIMOV, Pavel, 1981, op.cit. pp.182-183.
23SÁENZ, Alfredo, op.cit.p. 305.
24cf. DUARTE, Adélio Damasceno, op. cit. pp. 201-203.
25 KNIAZEFF, Alexis. La Madre di Dio nella Chiesa ortodossa. Milano: San Paolo, 1993. p. 32.
explicita, então convém que ela ocupe na Liturgia um lugar protuberante igual
àquele que foi o lugar dela ao pé da Cruz26. Por isso encontramos nos iconostáses
das igrejas, a Virgem Maria ocupando o lado esquerdo da porta central e Cristo, o
lado direito. Toda a excelência atribuída à Mãe de Deus deve-se a sua participação
nos mistérios de Jesus Cristo.
Em todos os ofícios litúrgicos bizantinos a Virgem Maria é venerada como a
Theotokos – Mãe de Deus. Ela é a cheia de graça antes e após a aparição e anunciação
do anjo. Maria é a toda santa27. Para expressar esta ideia da plena santificação da
Mãe de Deus, a Igreja bizantina utiliza a palavra grega panaghia, cuja etimologia
significa: pan (todo) e aghia (santa) que resulta no título: Toda Santa.
Segundo Cervera, na liturgia ortodoxa, a Virgem Maria está presente tanto
nas orações da liturgia das horas quanto na celebração eucarística e nas festas do
ano litúrgico. Presença que se reveste de uma riqueza teológica e uma harmonia
doutrinal, mesmo que muitas vezes careça de uma sistematização esclarecedora28.
O calendário litúrgico bizantino também é marcado pela forte presença
mariana. O calendário inicia e conclui com uma festa dedicada à Mãe de Deus. Inicia
com a festa da Natividade da Virgem Maria (08 de setembro) e termina com a festa
da Dormição29 (15 de agosto). Ao todo são doze festas presentes no calendário
bizantino, todas com seus significados teológicos manifestos nos ícones. Destas
festas, cinco são marianas30. Além das festas do calendário geral, as festas marianas
mais conhecidas são aquelas em que se veneram determinados ícones, que podem
ser locais ou mesmo conhecidos em toda a Igreja. Geralmente estão ligados a
aparições ou milagres alcançados pelo povo pela intercessão da Virgem31.
Os hinos litúrgicos também são influenciados pela iconografia. Neles, a
Virgem Santíssima é venerada com altos graus de dignidade.
Na verdade é justo proclamar-vos bem-aventurada, ó gloriosa
e puríssima Mãe de Deus. Nós vos aclamamos porque a
vossa dignidade excede à dos Querubins e a vossa glória é
incomparavelmente maior que a dos Serafins. Porque Vós,
Imaculada, gerastes o Verbo e sois verdadeiramente a Mãe de
Deus32.
26cf.ARBEX, Pedro, 1998, op.cit. p. 34.
27 cf. KNIAZEFF, Alexis, op.cit. p. 104 ss.
28 CERVERA CASTELLANO, Jesús. El mistério de María en la Iglesia ortodoxa: Doctrina y testimonio
de Pablo Evdokimov.(artigo) Revista de espiritualidade, 1977, p. 264.
29 Na tradição ocidental, denomina-se Assunção.
30 KNIAZEFF, Alexis, op.cit. p. 25.
31ibid. p. 26.
32 MISSAL BIZANTINO. Divina Liturgia de São João Crisóstomo. Curitiba: 1999, p. 65.
157
Para os cristãos orientais, a fé na soberania da Virgem Maria é absoluta
sobre os seres humanos, o universo e demais seres celestes. Na liturgia, o hino
à Theotokos proclama: vossa dignidade excede a dos Querubins, ou seja, é mais
venerada que os querubins. Isto é mencionado por celebrar a santidade da Virgem
Maria, a sua maternidade divina, seu parto virginal e a sua exaltação no reino da
glória. Toda a igreja reunida canta este hino em louvor as perenes intercessões da
Santíssima Virgem diante de Deus em beneficio dos cristãos33. Esta onipresença da
Mãe de Deus, assim como a sua glorificação por parte da Igreja, que supera muito
aquela glorificação que a Igreja atribui aos santos e anjos, deve ser considerada
pela mariologia oriental como um fato dogmático34.
Mesmo na hinologia, a iconografia exerce sua influência, pois nada pode
ser entendido individualmente, mas tudo em intima relação; sem o ícone ficaria
truncada a proclamação do mistério comemorado pela Igreja. Entenda-se, que,
de certa forma, os ícones também compõem os hinos litúrgicos. O ícone está para
o canto, assim como o canto está para o ícone.
158
Segundo Kniazeff, a liturgia mariana bizantina utiliza-se muito da rica
iconografia poética do salmo 44 (45). A Igreja oriental se serve de versos e imagens
isoladas deste salmo para falar do posto da Virgem Maria no reino da glória, da
sua obediência à palavra de Deus, da sua veneração por todas as gerações que lhe
proclamam bem aventurada35.
O ícone é mais do que uma imagem religiosa, é verdadeiramente arte
sagrada, que tem um lugar bem determinado no culto litúrgico e na devoção
privada. É uma confissão de verdades religiosas e não apenas uma arte que ilustra
a Sagrada Escritura. É uma linguagem equivalente àquela que corresponde à
pregação evangélica, assim como os textos litúrgicos36.
O conteúdo da Sagrada Escritura é transmitido ao ícone não
sob a forma de um ensino teórico, mas de maneira litúrgica,
isto é, de modo vivo, dirigindo-se a todas as faculdades do
homem. A verdade contida na Escritura nos é transmitida à luz
de toda a experiência espiritual da Igreja e da sua Tradição37.
De acordo com Donadeo, a iconografia é uma forma de expressão fácil e mais
direta, que nos sensibiliza, podendo mostrar de maneira concisa todo o conjunto da
liturgia de uma festa ou fixar a atenção sobre o conjunto de um mistério38.
33
op.cit. p. 62.
34 KNIAZEFF, Alexis, op.cit. p. 27.
35cf. KNIAZEFF, Alexis,op.cit. p. 167.
36cf. DONADEO, Maria. Ícones da Mãe de Deus. São Paulo: Paulinas, 1997. pp. 11-12.
37 OUSPENSKY, L. apud. DONADEO, Maria, 1997, op.cit. p. 12.
38 id. p. 12.
Os ícones marianos são de uma beleza esplendida. Conseguem exprimir
harmoniosamente o indizível nexo das naturezas do Verbo que se vislumbram na
Theotokos. São imagens que nos ajudam a rezar, que assumem a economia divina,
que convidam à transfiguração, até mesmo à divinização, meta da vida humana
que a teologia oriental recorda com insistência39.
Os ícones da Virgem Maria são especiais para todos os fieis que rezam diante
dela, louvando-a pelos seus esplendorosos privilégios, e suplicando-a em todas
as necessidades, confiantes da sua eficaz mediação junto ao único Mediador – seu
Filho Jesus Cristo.
5. A TEOLOGIA ICONOGRÁFICA MARIANA
A teologia oriental parte sempre de uma antropologia cristã: o homem
é imagem de Deus; a santidade é o processo que tende a converter a imagem
em absoluta semelhança. Se o cristão é semelhante a Deus e os santos lhe são
muito mais semelhantes, a Mãe de Deus o é acima de todos. Desde os primórdios
da antropologia cristã, a Virgem Maria aparece como o esplendor da natureza
humana e o arquétipo feminino: virgem, mãe e esposa40.
Para Cervera, a liturgia identifica a Virgem como o lugar da Sabedoria
de Deus e glorifica nela o objeto mesmo da criação divina. Maria se converte na
figura arquetipica do feminino com sua função especifica na história humana e
no processo de salvação como órgão receptivo espiritual da natureza humana.
Na Virgem conflui o mistério da receptividade da salvação. Revestida de sol, é
figura da Igreja e da Jerusalém celeste. É a mulher que dá sua própria carne e
sangue para engendrar o Filho de Deus41. Expressa ainda a absoluta liberdade que
a humanidade pode ter com Deus: dizer sim ou não. Cervera cita que Evdokimov
inspirando-se em Bulgakov articula que é Deus quem pergunta à humanidade
se tem sede de salvação. Em nome de todos, a Virgem consente e diz seu sim,
condição objetiva indispensável para o mistério da Encarnação que Deus realiza
sem forçar a liberdade humana. A Virgem é o modelo e a expressão cabal da
santidade humana e feminina. Cervera observa que, se o Espírito é a expressão
da santidade divina, a Theotokos, receptáculo da sua presença é a síntese da
santidade humana42.
39ibid. p. 14.
40 EVDOKIMOV, Pablo. apud. CERVERA, Jesús Castellano, op.cit.p. 255.
41 CERVERA, Jesús Castellano, op.cit.pp. 255-256.
42ibid. pp. 256-257.
159
Quando tratamos da teologia mariana oriental, a grande dificuldade é
a falta de sistematização semelhante à que se tem na mariologia ocidental. A
teologia oriental despreza a excessiva curiosidade e explicação. No entanto não
se pode negar que há uma sobriedade dogmática a respeito do mistério da
Virgem na teologia dos Padres da Igreja e na liturgia. Segundo Cervera, a falta de
uma precisão dogmática está compensada pela tradição patrística e litúrgica que
chama a atenção pela riqueza extraordinária da doxologia mariana:
A veneração litúrgica da Mãe de Deus destaca o aspecto
íntimo, misterioso, escondido. A escassez de referências da
Escritura explica sua ausência na pregação apostólica. A
origem “apócrifa” da Apresentação no templo e da Assunção é
análoga à iconografia que por cima do naturalismo histórico,
designa o mistério que só a contemplação apostólica é capaz
de descobrir43.
160
Como já foi observado, há uma conexão entre a teologia e a iconografia.
Para Evdokimov, a teologia é refletida na iconografia. A ortodoxia plasma em
seus ícones a figura da Mãe de Deus sempre acompanhada de seu Filho. Para
Evdokimov, só o título Theotokos já contém toda a economia da salvação44. De
acordo com este autor, a Virgem Maria é o modelo da Igreja: “O ícone da Theotokos
é uma expressão do mistério da Igreja, da comunhão entre Deus e o homem, do
divino com o humano”45.
Segundo Spidlik, o culto aos ícones marianos na tradição das Igrejas Orientais
é um fato que não precisa de provas. Na Rússia, antes da revolução, eram venerados
cerca de 1000 ícones marianos. Ao menos 230 dias no ano eram oficialmente
consagrados ao seu culto por todo o vasto território. Aproximadamente um terço
destes ícones eram considerados milagrosos46.
De acordo com Koren, o próprio nome dado aos ícones já revela a teologia
existente que o oriente atribui, ou seja, o pensamento teológico manifesto no
sentimento religioso do povo. Alguns títulos: Novo Céu; Doadora de Deus; Sarça
Ardente; Muro Indestrutível, Fonte Restauradora e Vivificante, etc47.
Do ponto de vista teológico, para Spidlik, duas questões se apresentam
fortemente ao culto mariano: a intensidade do culto e a justificação do culto aos
43 ibid. p. 259.
44 cf. EVDOKIMOV, Paul. Panagion et Panagia. (Art) in:Coletânea de artigos: Mariologia Oriental. (sc),
1970, p. 66; também CERVERA, Jesús Castellano, op. cit. p. 260.
45 id.
46 SPIDLÍK, Tomás, op.cit. p. 186.
47 KOREN, Antonio. apud. SPIDLIK, Tomas; GUAITA, Giovanni; CAMPATELLI, Maria. Testi Mariani del
Secondo Millennio: Autori dell’area russa, secc XI-XX. Roma: Città Nuova, 2000, p. 529.
ícones milagrosos, pois para Spídlik há uma incógnita: é compreensível que uma
determinada imagem, por razões psicológicas, seja mais cara a um grupo de fé,
facilite mais a devoção, mas, por outro lado, segundo o autor, poder-se-ia perceber
como forçar uma ilusão, atribuir a uma imagem particular uma força milagrosa
superior àquela de outra imagem48. Este seria um problema que traz uma duvida
precisamente pelo motivo de os ícones serem produzidos praticamente do
mesmo material e haver distinções entre eles, um ser mais eficaz que o outro,
poder-se-ia dizer. No entanto, posiciona-se Spidlik, precisamos afrontar com
serenidade este problema para entender como se formou esta concepção na
longa tradição da Igreja Oriental. Nisto notaremos que o que está por detrás
é a necessidade de ver a divina humanidade de Cristo na sua plena dimensão
cósmica. É o que vai resultar no caractere escatológico do ícone49. De acordo com
Spidlik, como na pessoa humana a imagem de Deus não é perfeita e conserva
sempre uma abertura escatológica, a mesma coisa acontece no ícone, pintado
sobre a madeira, não pode mais ser considerado como feito, (acabado). Seu ser é
dinâmico, deve continuamente crescer50.
A arte iconográfica é uma atividade natural do homem, corresponde a sua
vocação cósmica. O homem é chamado a conduzir o mundo a sua perfeição.
Criado pela palavra criadora do Verbo, o mundo, na sua parusia deverá exprimi-la
em um modo todo explícito, deverá falar, anunciar claramente o seu sinal divino.
Em todas as formas visíveis deverá aparecer envolto de Cristo51.
Para Florenskij, “a iconografia é uma imagem do mundo futuro, pois
permite ao homem saltar sobre o tempo e ver, embora hesitante, as imagens
como um enigma no espelho do mundo futuro”52. Eleva a mente do homem a
Deus; um trânsito humano para a realidade divina, ou seja, possuem um caráter
dinâmico. O que santifica ou faz um ícone ser milagroso é a oração que o povo e
o iconógrafo lhe atribuem. O ícone está para ajudar o povo sobre tudo na difícil
passagem, do conteúdo visível e inteligível à autêntica visão espiritual, isto é, ao
contato com Deus53.
48 SPIDLÍK, Tomás,op.cit. p.187.
49ibid. p. 188.
50vide,original: Come la persona umana l’immagine di Dio non è mai perfetta e conserva sempre
un’apertura escatologica, così anche l’icona, dipinta sul legno, non può essere considerata come
“fatta”. Il suo essere è dinamico, deve continuamente “crescere”. SPIDLÍK, Tomás, op.cit. pp. 188189.
51id. p. 189.
52vide,original: L’icona è un’immagine del mondo venturo; essa... consente di saltare sopra il tempo
e di vedere, sia pur vacillanti, le immagini – come in enigmi nello specchio – del mondo venturo.
FLORENSKIJ, Pavel. Le porte regali: Saggio sull’icona. Milano, Adelphi,1981, p. 129.
53 SPIDLÍK, Tomás, op.cit. pp.190-191.
161
Para Spidlik, a força da oração faz com que a madeira pintada torne-se
um órgão vivo, um lugar de encontro entre Deus e os homens. A força milagrosa
do ícone depende da intensidade deste encontro e da oração da Igreja, portanto,
os ícones são santificados por meio do culto54. A função do ícone é no senso
espiritual, restituir aos cegos à capacidade de ver, isto é, o deve oferecer aos olhos
a visão espiritual por meio de suas formas visíveis55.
A principal função do ícone da Mãe de Deus é conduzir o cristão ao
conhecimento do Filho de Deus. A Theotokos é a Virgem da Revelação, o protótipo
da Igreja que gera e mostra a todos o Cristo que veio ao mundo para nos trazer a
salvação56.
6. O PAPEL DA VIRGEM MARIA NA ECONOMIA DA SALVAÇÃO
162
Mencionamos anteriormente que para Evdokimov: “só o nome Theotokos,
já contém em si toda a economia da salvação”57. De acordo com Cervera: “sua
proteção [da Virgem] que cobria o menino Jesus, cobre agora todo o universo e
todos os homens”58. Também já aludimos que os ícones marianos estão sempre
subordinados aos temas cristológicos e que a iconografia da Virgem Maria
depende dos ícones de Jesus Cristo. Por isso, ao referir-se à participação da Mãe
de Deus na economia da salvação, quer-se expressar sua participação pela carne
doada ao Filho. Jesus Cristo assim como carregava consigo a natureza divina,
simultaneamente carregava a natureza humana herdada da Virgem Maria. Neste
sentido entendemos a sua participação na obra salvífica de Cristo. Maria participa
na medida em que se torna a Theotokos, por isso é concebida como “corredentora”.
Segundo Damasceno, a incondicional centralidade de Jesus Cristo na
economia da salvação e a total dependência da Mãe de Deus em relação a Ele,
são princípios teológicos inequivocamente professados pela Igreja indivisa desde
as primeiras horas do cristianismo59. Quando, em Éfeso, os padres conciliares
estavam reunidos para definir contra Nestório que na única pessoa de Jesus
Cristo, subsistem em perfeita harmonia, sem se confundirem e sem se anularem,
as duas naturezas de Cristo, definiram também a maternidade divina da Virgem
Maria60. De acordo com Duarte, a recepção da decisão do Concílio de Éfeso e da
54ibid. p. 192.
55ibid. p. 198.
56 DUARTE DAMASCENO, Adélio. Ícones. Belo Horizonte: FUMARC, 2003. p. 205.
57 CERVERA, Jesús Castellano, op.cit. p. 260.
58id.
59cf. DUARTE, Adélio Damasceno, op.cit. p. 200.
60 ibid. p. 201.
declaração da Virgem como Theotokos foi de muito júbilo por parte dos fieis:
“Ergueram-se gritos de alegria. Os padres foram acompanhados às suas casas à luz
de tochas, através das ruas faiscantes de luzes. A cidade de Diana Efésia se tornava
agora a cidade de Maria”61. Para a teologia e a piedade popular bizantina, estes
privilégios da Theotokos fazem-na ocupar um lugar de relevo na economia da
salvação. Damasceno ressalta que, na introdução da Encíclica Redemptoris Mater,
sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria na vida Igreja que está a caminho, evoca a
Constituição Dogmática Lumem Gentium 52, para justificar o lugar especial que a
Mãe de Deus ocupa na história da salvação:
A Mãe do Redentor tem um lugar bem preciso no plano da
salvação, porque, ao chegar a plenitude dos tempos, Deus
enviou o seu Filho, nascido duma mulher, nascido sob a Lei.
A fim de resgatar os que estavam sujeitos à Lei e para que nós
recebêssemos a adoção de filhos. E porque vós sóis filhos,
Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que
clama: Abbá! Pai! (Gl 4, 4-6)62.
De modo peculiar, a iconografia mariana procura explicitar este lugar
que a Mãe de Deus ocupa no projeto de Deus para a salvação da humanidade,
inscrevendo em cada ícone o título – Theotokos. A participação da Virgem Maria na
economia da salvação não é somente atestada pelos autores orientais. O próprio
Concílio Vaticano II na Constituição Dogmática Lumen Gentium 56, confirma que
tanto o Antigo quanto o Novo Testamento e a venerada Tradição mostram o
múnus da Mãe do Salvador no projeto salvífico de Deus e a apresentam como
digna de nossa consideração:
[...] Por isso é com razão que os Santos Padres julgam que
Deus não se serviu de Maria como de instrumento meramente
passivo, mas julgam-na cooperando para a salvação humana
com livre fé e obediência. Pois ela, como diz Santo Irineu,
obedecendo, se fez causa de salvação tanto para si como para
todo o gênero humano63.
O lugar que a Virgem Maria ocupa imediatamente após Jesus Cristo, traduz
coerentemente a relação existente entre o Senhor e a Senhora acima de todos
os santos e sua qualidade de superbendita e gloriosa sobre todas as criaturas,
mesmo as angélicas. A missão da Mãe de Deus na economia da salvação é
61ibid. p. 202.
62 JOÃO PAULO II. Redemptoris Mater. Carta Encíclica sobre a Bem Aventurada Virgem Maria na vida
da Igreja que está a caminho (25/03/1987). São Paulo: Paulinas, 1987.
63 PAULO VI. Lumen Gentium: Constituição Dogmática sobre a luz dos Povos (21/11/1964). in.
COMPÊNDIO DO VATICANO II. Petrópolis: Vozes, 1983, pp. 105-106.
163
manifesto no hino Akáthistos 09: “Salve, Senhora do mundo; Salve Maria a nós
todos; Salve, ó única imaculada e bela entre as mulheres (...)”64.Na verdade, se pode
dizer que todo o hino Akáthistos não é outra coisa se não um louvor a Maria mãe
do Salvador: “Salve tu, pela qual resplandece a glória, Salve tu, pela qual cessa a
maldição; Salve ó reabilitação do Adão decaído; Salve ó redenção das lagrimas
de Eva (...)”65.
Segundo Spiteris, a mariologia bizantina é parte orgânica da cristologia
e da soteriologia. A salvação na sua globalidade, não é concebível na tradição
oriental sem a contribuição pessoal da Virgem Maria. Esta é vista sempre,
inseparavelmente ligada com o Verbo encarnado da qual foi à mãe. Eis porque,
nos Padres da Igreja, na liturgia e na teologia, o tema de Maria colaboradora na
salvação (corredentora) se confunde com o título Theotokos. A Virgem Maria é
depois do mediador (Jesus Cristo) a mediadora de todo o mundo66.
164
O papel essencial que a Mãe de Deus ocupa na obra da salvação deriva
do significado que a tradição oriental confere ao termo salvação. O axioma último
do destino do homem, da sua vida espiritual, da sua relação com Deus não está
no prêmio do merecimento, mas no fato que Deus torna-se homem para que o
homem se torne deus. O homem torna-se deus porque Deus se fez homem. Neste
tornar-se é que se põe a mediação ontológica da Mãe de Deus. É a Virgem Maria
que introduz Deus na humanidade. A Theotokos é a mediadora de comunhão do
homem com Deus67.
Na festa da Anunciação, a liturgia bizantina canta: “Hoje teve início a nossa
salvação, e a manifestação do eterno no mistério: o Filho de Deus torna-se Filho
da Virgem e Gabriel anuncia a graça. Com ele aclamamos a Mãe de Deus: Ave
cheia de graça, o Senhor está contigo”68. Em outra ocasião, a liturgia canta: “Ó Mãe
de Deus que gerou na carne o Filho e Verbo de Deus, e o tornou conhecido. Por
isso, ó Mãe de Deus, nós somos divinizados por tua intercessão, nós te aclamamos
: Salve o esperança dos cristãos”69.
A grandeza de Maria, segundo Spiteris, não incide no fato dela ter
exercido todas as virtudes, mas, sobretudo na sua colaboração com Deus. O seu
consentimento à Encarnação do Verbo foi determinante para que este evento
64vide, original: Gioisci, Sovrana del mondo; gioisci, Maria, Signora di noi tutti; gioisci, o unica
immacolata e bella tra le donne (...). cf. HINO AKÁTHISTOS, Ode 09. ARTIOLI, Maria Benedetta
(Trad.), op.cit. p. 1484.
65cf. Todo o hino Akathistos. ARTIOLI, Maria Benedetta (Trad.), op.cit. p. 1476 ss.
66 SPITERIS, Yannis. Salvezza e Peccato nella tradizione orientale. Bologna: Dehoniane, 2006, p. 200.
67 ibid. pp. 200-201.
68 DONADEO, Maria. Preghiere bizantina ala Madre di Dio. Brescia: Morceliana, 1980, p. 58.
69 SPITERIS, Yannis, op. cit. p. 201.
pudesse acontecer70. De acordo com Cabasilas, a Virgem é justiça de Deus realizada.
A justificação é própria de Cristo, mas Maria está totalmente unida a ele. O que se
pode aplicar à Theotokos é o que se afirma de Jesus Cristo71. Cabasilas sintetiza
sua reflexão teológica sobre o posto da Virgem Maria na economia da salvação,
ressaltando Jesus Cristo como causa e sua Mãe co-causa da nossa salvação72.
Para Palamás, a Mãe de Deus, junto com seu Filho, representa o escopo final
dos desígnios de Deus, porque, aquilo que Jesus Cristo é por natureza, a Virgem
Maria é por graça73. Segundo Spiteris, para Palamás como para Cabasilas, Jesus
Cristo é o salvador de todos os criados visíveis e invisíveis. Tudo deriva dele na
ordem de ser e da santificação, isto é, na comunhão transfigurante com Deus74.
A Virgem Maria é inseparável do Filho, porque, o que se alude a Cristo se
aplica a sua mãe. Maria é totalmente cristificada por se tornar uma só coisa com
o Filho Jesus.
CONCLUSÃO
O presente artigo buscou apresentar aos leitores e estudantes da teologia
a concepção cristã oriental acerca da Santíssima Virgem Maria e seu papel na
economia da salvação representado em uma das suas expressões mais bela e
visível: a iconografia. Os ícones revelam para nós a teologia que se esconde por
trás de suas cores, símbolos e traços.
A mariologia oriental não é autônoma, mas profundamente cristológicaa,
eclesiológica e escatológica. O “sim” da Theotokos foi condição indispensável para
a Encarnação, para que Deus armasse sua tenda e habitasse no meio de nós.
Desde os primórdios deste evento salvífico, o coração dos primeiros cristãos já
fora tomado pelo desejo de expressar, representar o tamanho mistério que os
envolvia e enchia de temor. No Oriente cristão, uma das formas de expressão
deste temor a Deus, manifestou-se pelos sagrados ícones.
A função do ícone é auxiliar na contemplação orante, santificar os fiéis pela
vista, ajudá-los a fixarem visivelmente o conteúdo manifesto verbalmente nos
textos litúrgicos. Os ícones não foram objetivados para a decoração dos templos
ou igrejas, mas para a oração.
70 ibid.p. 208.
71 ibid. p. 210.
72 ibid. pp. 212.
73 ibid.pp. 216-218.
74 ibid. p.221.
165
A honra atribuída aos ícones da Mãe de Deus deve-se a sua participação
nos mistérios de Jesus Cristo, por isso, os templos sagrados, a liturgia, a hinologia
e a espiritualidade dos fiéis são influenciadas pela iconografia. Os ícones ajudam
os fiéis a rezar.
Quando se fala da participação da Mãe de Deus na economia da salvação,
quer-se expressar sua participação pela carne doada ao Filho. Jesus Cristo
assim como carregava consigo a natureza divina, também carregava a natureza
humana herdada da Virgem Maria. Neste sentido que a teologia oriental entende
a participação da Virgem Maria na obra salvífica de Cristo; participa na medida em
que se torna a Theotokos, por isso é concebida como “corredentora da salvação”.
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Fontes Cirílicas
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