Cidade-empresa, crise urbana e luta pela moradia após as jornadas de junho de 2013 - Joviano Mayer Joviano Mayer Advogado, membro do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Jurídica Popular, militante das Brigadas Populares e mestrando em arquitetura e urbanismo pela UFMG Este artigo compõe a Revista Conexão Geraes do CRESS-MG nº 4/2013. Ninguém poderia prever os fatos que se sucederam no Brasil a partir de junho de 2013, após a violenta repressão policial contra as mobilizações do MPL (Movimento Passe Livre), em São Paulo. O aumento da tarifa paga pelos usuários do transporte público, em vinte centavos de reais, foi o estopim para os protestos ganharem as ruas. A desproporcional resposta das forças policiais militares, ao invés de sufocar o movimento, fez espalhar pelo território nacional, como um rastilho de pólvora, as grandes revoltas em uma nova escala, não mais restritas à pauta da mobilidade urbana como direito constitucionalmente assegurado. Em verdade, as manifestações que abalaram as estruturas do poder instituído e criaram uma inflexão na história democrática do Brasil tiveram como pano de fundo a crise urbana, marcada nas últimas décadas pelo aprofundamento da segregação sócio-espacial das cidades brasileiras, cada vez mais reféns da lógica de gerenciamento empresarial em proveito do capital imobiliário. Quase a totalidade das reivindicações transcritas em bandeiras, cartazes ou mesmo nos corpos dos manifestantes se comunicava de forma direta ou indireta com o agravamento dessa crise urbana. “As vozes que vêm das ruas” pugnavam exigências que tocam às cidades, tais como mobilidade, megaeventos, moradia, privatização do espaço público, criminalização da pobreza, desmilitarização das polícias etc. A principal exceção, também presente nos gritos de protestos e muito bem forjada por setores de oposição ao governo federal desde o escândalo do “mensalão”, foi a pauta geral contra a corrupção e suas reivindicações conexas. Nesse campo polimorfo da luta contra a corrupção, a maior “conquista” das manifestações foi a rejeição do Projeto de Emenda Constitucional nº. 37 que subtraía do Ministério Público o poder de investigação. Apesar da abundância de pautas aparentemente desconexas, podemos considerar que a cidade foi palco, mas também principal objeto das grandes manifestações. As principais questões colocadas pelos movimentos sociais no período anterior à eclosão dos grandes protestos, tais como a luta contra Belo Monte, a causa indígena Guarani Kaiowá ou a reforma do Código Florestal não vieram à tona ou não ganharam a mesma notoriedade durante as chamadas “jornadas” de junho. Compreender as contradições próprias da lógica de apropriação do espaço, sob os marcos do neoliberalismo, do planejamento estratégico e da cidade-empresa, é pressuposto para a compreensão da crise urbana, razão última das mobilizações. Cabe assim, aprofundar a análise crítica e apreender certas categorias que caracterizam a cidade neoliberal, marcada por um modelo de gestão empresarial do espaço e do planejamento urbano, tais como: cidade global, planejamento estratégico, cidade de exceção, cidade-mercadoria, urbanismo ad hoc, grande projeto urbano, market-friendly, gentrificação/revitalização, etc “(...) o neoliberalismo transformou as regras do jogo político. A governança substituiu o governo; os direitos e as liberdades têm prioridade sobre a democracia; a lei e as parcerias públicoprivadas, feitas sem transparência, substituíram as instituições democráticas; a anarquia do mercado e do empreendedorismo competitivo substituíram as capacidades deliberativas baseadas em solidariedades sociais.” (HARVEY, 2013: 32) Sob a lógica do chamado “empreendedorismo urbano” (HARVEY, 2006), as cidades são governadas como se fossem empresas, em permanente competição umas com as outras para atrair capitais e investimentos na economia global. Estando as cidades submetidas aos mesmos desafios colocados às empresas, caberia aos governos municipais adotarem um “planejamento estratégico” inspirado em conceitos e técnicas que são próprias do planejamento empresarial. Daí a pertinência do conceito de cidade-empresa para caracterizar esse padrão de “desenvolvimento” urbano sob a égide do neoliberalismo e da globalização financeira. A produção do espaço urbano, dentro do “planejamento estratégico”, é, sobretudo, orientada pelos imperativos da eficiência, metas, resultados, autonomia local, vantagens econômicas, marketing de cidade, parceria público-privada etc. Este modelo de gestão, que sucedeu ao planejamento moderno racionalista, funcionalista e rígido, corresponde ao ditame neoliberal de fortalecimento do poder local em oposição à ação centralizada e normativa do Estado nacional. Nessa esteira, David Harvey (2006) relacionou “a capacidade declinante do Estado-Nação de controlar os fluxos financeiros das empresas multinacionais” com o fortalecimento do poder local, o que, a um só tempo, dilui a centralidade do Estado e permite a negociação direta entre o capital financeiro internacional e os governos locais, aquilo que Carlos Vainer (2012) posteriormente vai propagar como sendo a “democracia direta do capital” e, por consequência, o “banimento da política”. Desse arranjo, decorre o papel central das parcerias público-privadas que sustentam esse novo “empreendedorismo urbano”, garantindo a oferta de infra-estrutura e a assunção dos riscos dos investimentos pelo setor público. A parceria público-privada é, por assim dizer, a coluna vertebral do “planejamento estratégico”. É a parceria do poder público com os agentes privados que irá resguardar o atendimento dos interesses do mercado na formulação do planejamento e na tomada de decisões que dizem respeito às intervenções estruturantes no espaço urbano. Sob o império do “planejamento estratégico”, não há mais lei urbana que se sustente frente aos interesses econômicos dos parceiros privados envolvidos na produção da cidade. Tudo é passível de ser flexibilizado, excepcionado, ou mesmo violado (e depois compensado), sejam áreas ambientalmente protegidas, ou zonas destinadas apenas ao uso residencial, todas as regras urbanísticas podem ser transpostas, paradoxalmente, dentro da estrita legalidade – como na hipótese das operações urbanas consorciadas. Esse é o pano de fundo que subjaz a cidadeempresa, em que o excepcional é instituído como regra na produção do espaço urbano para assegurar flexibilidade e agilidade aos processos decisórios que afetem os interesses do capital. Possivelmente, as operações urbanas consorciadas, modalidade de parceria público-privada aplicada ao planejamento urbano, tão recorrente na atualidade – em especial nos grandes empreendimentos relacionados à realização dos megaeventos esportivos – sejam o instrumento de política urbana que melhor traduzam o paradigma da cidade de exceção, na qual toda e qualquer norma urbanística pode ser flexibilizada em proveito dos interesses da indústria imobiliária e em prejuízo do direito à cidade. É nesse cenário de aprofundamento da matriz neoliberal de produção do espaço urbano e, via de consequência, agravamento da crise urbana, que eclodiram as manifestações em junho de 2013 2 . No entanto, as medidas apresentadas pelos governos federal, estaduais e municipais não enfrentaram as principais questões colocadas em pauta pelas multidões que tomaram as ruas durante as chamadas jornadas de junho. Até mesmo a suposta reforma política prometida pelo governo federal e anunciada em cadeia nacional pela presidente que, na prática, não implicava em mudanças nos mecanismos de controle e participação direta da população, restou negligenciada e em nada avançou. As vozes que vem das ruas, não foram ouvidas... Ao contrário, os governos agravam o caos nas cidades e a segregação sócio-espacial, pois persistem no caminho da contrarreforma urbana em curso com a ratificação do padrão de mobilidade rodoviarista centrado na hegemonia do automóvel sobre o transporte público, a remoção sistemática de assentamentos informais 3 , a conivência com a especulação imobiliária nas cidades, a realização de grandes projetos urbanos por meio de parcerias público-privadas e a não efetivação dos instrumentos de política urbana do Estatuto da Cidade (Lei nº. 10.257/2001) voltados ao cumprimento da função social. Em suma, não se vislumbra no horizonte próximo a superação da crise urbana que deu substrato às manifestações de 2013. No contexto dessa crise urbana, a questão habitacional ganha grande relevância, sobretudo considerando o papel da moradia quanto ao acesso a bens e serviços que a cidade oferece. A questão habitacional é uma sequela direta da contradição capital x trabalho: a escravidão assalariada conferida à população mais pobre, especialmente aquela com rendimento familiar mensal inferior a 3 salários mínimos, não lhe permite aceder à compra de uma habitação no mercado imobiliário, tampouco acessar programas de subsídio público para o financiamento habitacional, ou pagar o aluguel de uma habitação de qualidade, localizada próxima aos bens de consumo coletivo e ao local de trabalho. Resta aos trabalhadores(as) sobreviver como podem, morando de favor ou sacrificando a alimentação e a saúde para pagar o aluguel ou, ainda, (auto)construindo suas moradias, durante seu tempo livre, em áreas periféricas de alto risco. O programa federal Minha Casa, Minha Vida, por sua vez, não se configura de modo algum como política pública tendente a estancar o aumento do deficit habitacional. A propósito, tal programa sequer pode ser considerado como uma política habitacional propriamente dita, vez que, operacionalizado e gerido por um banco (Caixa Econômica Federal), mostra-se mais coerente como uma política econômica em proveito da indústria da construção civil e da própria especulação imobiliária. Ora, o programa Minha Casa, Minha Vida fez os preços dos imóveis disparem nas grandes cidades brasileiras: as ações das construtoras, principais financiadoras de campanhas eleitorais, tiveram os maiores ganhos nas bolsas de valores desde o lançamento do programa em 2008, tendo várias delas passado a operar nas bolsas como empresas de capital aberto. Às construtoras também não interessam produzir para as famílias da faixa de renda 1 que integram 90% do déficit habitacional, quais sejam aquelas com renda familiar mensal de até três salários mínimos, o que se comprova ao verificar os números irrisórios de unidades construídas nas metrópoles destinadas à população dentro dessa faixa de renda . Assim, no Brasil, a luta pela moradia não deixou de ter centralidade na atuação dos movimentos populares que empunham a bandeira da Reforma Urbana, os quais recorrentemente utilizam as ocupações de imóveis ociosos como método de pressão política e organização popular. Somente na cidade de São Paulo, como desdobramento das mobilizações de junho de 2013, já ocorreram desde então cerca de 90 ocupações por famílias sem teto, com destaque para a ocupação Nova Palestina, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a qual reúne atualmente sete mil famílias em situação de insegurança da posse. Em Belo Horizonte, desde junho de 2013, mais de duas mil famílias vivem em situação de ameaça de desalojamento na região do Isidoro, nas ocupações Rosa Leão, Vitória e esperança. O movimento social organizado busca, por meio das ocupações, em síntese, oferecer um lar para as famílias necessitadas, mesmo que provisoriamente; fazer uma denúncia da situação dos “sem-casa”, da inoperância da política habitacional, da concentração fundiária e da especulação imobiliária; fortalecer a pauta do movimento urbano exigindo o atendimento das suas reivindicações; fazer cumprir o princípio da função social da propriedade constante da Constituição brasileira. Mais do que estes objetivos imediatos, busca-se com as ocupações construir novas formas de convivência, com valores de coletividade, cooperação, solidariedade, democracia direta. Tomar posse de um imóvel em situação de completo abandono não é apenas uma resposta ao “mau governo”. As ocupações devem ser laboratórios de um mundo melhor, em que as famílias experimentam realizar hoje o projeto de mundo que querem para seus filhos, expurgando individualismos, egoísmos, despotismos. Desse modo, deve-se fomentar nesses territórios de resistência e luta a formação político-pedagógica dos moradores, a realização de atividades culturais, a elaboração de regras de convivência aptas a solucionar os conflitos internos e fortalecer os vínculos pessoais, a constituição de espaços de democracia e participação direta, como ocorre nas assembleias em que são deliberadas as questões políticas atinentes à comunidade. Nesse ponto referente às ocupações, vale observar que a Constituição da República de 1988 garante a todos(as) o direito à moradia (art. 6º) e determina que toda propriedade deve cumprir sua função social (art. 5º, inc. XXIII), em consonância com as “exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (art. 182, § 2º). Em verdade, o princípio da função social integra a própria noção de propriedade, figurando-se como componente ontológico da propriedade, de modo que não há que se falar em propriedade quando não há observância da função social. Assim, uma propriedade urbana abandonada para fins estritamente especulativos, sem nenhuma destinação econômica ou residencial, viola o texto constitucional e perde o próprio status de propriedade, desmerecendo a proteção do Estado. No entanto, quando famílias sem casa ocupam organizadamente um imóvel ocioso que descumpre sua função social, com objetivo de efetivar o direito de morar dignamente, o poder instituído assume a proteção da propriedade a qualquer custo, como no episódio do violento desalojamento da ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos (SP) em janeiro de 2012. O Poder Judiciário, extremamente conservador e fundado na noção de propriedade como bem absoluto, ainda não incorporou o marco constitucional que flexibilizou o instituto da propriedade em homenagem a sua função social. Assim, são recorrentes as decisões em caráter liminar para deferir ordem de reintegração de posse contra comunidades que surgiram de ocupações urbanas organizadas ou espontâneas. Por outro lado, os governos contam com a complacência dos juízes quando a violação da propriedade ocorre em desproveito de vilas e favelas arbitrariamente removidas, frequentemente sem a garantia de reassentamento digno das famílias atingidas. Além da função social da propriedade, outro princípio de índole constitucional apto a ancorar a legitimidade das ocupações de imóveis ociosos como forma de efetivar o direito de morar sonegado pelo Estado brasileiro é o princípio democrático, segundo o qual “todo o poder emana do povo”. Evidentemente, não há democracia sem conflito. Portanto, a efetivação do direito à moradia também passa pela luta social organizada, bem quista em qualquer regime que se reivindica democrático, o que também confere legitimidade às ocupações de imóveis ociosos que descumprem sua função social. Não sem razão, várias ocupações organizadas se consolidaram em Belo Horizonte com forte apoio social, a exemplo da comunidade Dandara, localizada no bairro Céu Azul, onde moram dignamente cerca de duas mil famílias, desde o ano 2009, a qual foi retratada por um longa-metragem dirigido pelo cineasta argentino Carlos Pronzato. As mobilizações do inesquecível ano 2013 fizeram consignar definitivamente no imaginário do povo brasileiro o entendimento de que a luta social é indispensável à defesa e à conquista de direitos. Nunca antes na história do Brasil as abusivas tarifas de ônibus haviam sido reduzidas em tantas cidades. Formou-se um campo fértil à ampliação das ocupações como ferramenta legítima de defesa do direito humano à cidade. Neste texto, foi dada ênfase às ocupações de imóveis ociosos realizadas por famílias sem-teto organizadas pelos movimentos populares, as quais também refletem a completa incapacidade do Estado em lidar com a crise habitacional, desdobramento direto da crise urbana. Entretanto, outras experiências de ocupação do espaço público em Belo Horizonte, tal como a ocupação da Câmara Municipal no contexto das jornadas de junho, a ocupação do Viaduto Santa Tereza, a ocupação do imóvel tombado à Rua Manaus, nº. 348, que deu origem ao Espaço Comum Luiz Estrela , a tomada das ruas pelos blocos de carnaval, a Praia da Estação e várias outras iniciativas de apropriação criativa do espaço, são manifestações de uma vontade coletiva, cada vez maior, de confrontar o paradigma da cidade-empresa e apontar para a construção de uma nova sociabilidade urbana que tenha como horizonte a construção do comum. NOTAS 1 - Na capital mineira, a Prefeitura pretende a todo custo, sem qualquer abertura à participação popular, viabilizar o mega projeto “Nova BH” que consistirá na maior operação urbana consorciada da história da cidade. A “Nova BH” implicará em intervenções urbanísticas em 58 bairros que juntos representam cerca de 7% do território do município (25 km²), o que afeta diretamente um montante de 170 mil moradores. No processo de elaboração do plano urbanístico da “Nova BH”, a equipe administrativa da prefeitura trabalhou diretamente com as consultorias contratadas pelas construtoras Odebrecht, Barbosa Melo e Andrade Gutierrez que opinaram sobre diretrizes, parâmetros urbanísticos, área de abrangência, dentre outros aspectos da operação urbana, com acesso privilegiado a dados e informações que não foram divulgados à população. Dessa forma, o plano urbanístico da operação urbana consorciada, bem como o seu EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança) e EVEF (Estudo de Viabilidade Econômica e Financeira), foram preparados sem qualquer participação da sociedade, em ofensa frontal violação ao princípio da gestão democrática da cidade. 2 - Para uma reflexão maior sobre a relação entre a crise urbana e as jornadas junho, recomendo a obra Cidades Rebeldes, lançada ainda em 2013 pela Boitempo. 3 - Nunca se removeu tantos pobres no país quanto agora. A Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP) estima que, ao final, serão removidas cerca de 200 mil famílias em razão dos megaeventos esportivos no Brasil. Ver a este respeito: www.portalpopulardacopa. org.br. 4 - Em Belo Horizonte, o primeiro empreendimento destinado a famílias com faixa de renda até três salários mínimos foi entregue somente no segundo semestre de 2013, no Bairro Jardim Vitória, onde foram construídas 1470 unidades para essa faixa de renda. 5 - Versão completa de “Dandara - Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito” disponível no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=5fjza-hZ4B0 6 - Centro cultural autogestionado nascido da ocupação de um casarão tombado que estava abandonado desde 1994. A ocupação foi realizada em 26 de outubro de 2013 por artistas, produtores culturais e ativistas políticos, e se encontra atualmente regularizada por meio de contrato de cessão de uso concedido pelo Governo do Estado após forte pressão social REFERÊNCIAS HARVEY, David. A liberdade da cidade. In.: MARICATO, Ermínia et al.. Cidades Rebeldes. São Paulo: Boitempo, 2013. HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. 2ª Ed. São Paulo: Annablume, 2006. VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In.: ARANTES, Otília et al. A cidade do pensamento único – Desmanchando consensos. 7ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2012