Pensamento do Dia Economistas analisam a Economia, o Brasil e o mundo, mundo, na mídia diária 25 08 2010 ------------------------------------------------------------------Valor Econômico - 25/08/2010 Que agricultura familiar? Antônio M. Buainain, Alberto Di Sabbato e Carlos Guanziroli Agricultura familiar refere-se ao agricultor que não é necessariamente pequeno, mas onde a família realiza a gestão do empreendimento A criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1996, foi resultado de luta política liderada pela Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura (Contag) em favor da inclusão dos pequenos produtores nas políticas agrícolas. De fato, em que pesem as disposições especiais em favor dos micro e pequenos, definidos pela área e nível de renda, vários estudos confirmavam as dificuldades de acesso desse segmento às políticas de crédito rural, de garantia de preços mínimos e de promoção da inovação tecnológica. O desenho e a operacionalização de um programa especial voltado para a agricultura familiar, como o Pronaf, exigiam uma definição clara tanto dos beneficiários como dos critérios objetivos para identificálos. Aos poucos o termo agricultura familiar foi se afirmando e passou a expressar, genericamente, o pequeno produtor, com todos os equívocos empíricos e conceituais associados a essa classificação, entre os quais destacamos alguns: 1) a identificação de pequeno com a área do estabelecimento, sem referência à capacidade de produção e ao fato de que em várias atividades é possível ser até muito grande em termos de produção e capital empregado e utilizar uma área de terra pequena; 2) a identificação do pequeno com a produção de alimentos básicos para o mercado interno, reproduzindo a segmentação equivocada entre mercado doméstico e externo, sem levar em conta a participação dos ditos pequenos na produção de vários produtos de exportação, como a própria soja, e de produtos não alimentares, como o tabaco, ambos no Sul do país; ademais, tampouco se considerava as então já evidentes mudanças na cesta de consumo alimentar do brasileiro; e 3) identificação do agricultor familiar com uma lógica produtiva dominada pela produção para subsistência e venda ocasional de excedentes. Em 2000, participamos da realização do estudo "Novo Retrato da Agricultura Familiar", que mostrou a importância da contribuição da agricultura familiar para o desenvolvimento do país. O conceito e a delimitação da agricultura familiar então adotado procuravam aliar a ideia de uma agricultura sob gestão da própria família - que nos parece o traço essencial, talvez único, que a distingue da empresa capitalista - com a disponibilidade de informações do IBGE que permitisse fazer os cortes empíricos necessários para a focalização e operacionalização do Pronaf. Naquela concepção, a agricultura familiar aproxima-se da "family farm" dos EUA e do agricultor familiar europeu, que não são necessariamente pequenos, mas onde a família realiza a gestão do empreendimento e não administradores contratados. Independentemente das intenções dos formuladores da política e das polêmicas, sempre intensas, sobre o conceito de agricultura familiar e sobre a melhor maneira para identificá-la, o fato é que a agricultura familiar adquiriu um status político próprio que se refletiu no recorte do que seria o universo da agricultura familiar. Na prática, abandonou-se a tentativa de identificar categorias consistentes de agricultores a partir da forma e particularidades de organização da produção em favor de uma agricultura familiar construída politicamente. É nesse contexto que emerge a oposição entre agricultura familiar e agronegócio, bastante difundida nos últimos anos, e que chegou a ser objeto até mesmo de polêmicas entre os ministros da agricultura e do desenvolvimento agrário. Nada melhor que um inimigo externo, ainda que inventado, para criar coesão interna e fortalecer politicamente um grupo que é marcado por profunda diferenciação. Temos insistido que essa falsa dicotomia de fundo maniqueísta, que procura difundir a imagem de um agricultor do bem e outro do mal, de um pequeno e cuidadoso com o ambiente em oposição a outro latifundiário, escravocrata e destruidor da natureza, não corresponde à realidade e em nada contribui para promover o desenvolvimento rural sustentável. Ao contrário, tem prejudicado em particular os resultados das políticas fundiárias precisamente por isolar os assentados das cadeias produtivas mais dinâmicas e dificultado a aplicação de políticas de transformação produtiva e integração comercial que são a base da experiência desenvolvimentista bem sucedida, no Brasil e em qualquer outro país. O estudo "Novo Retrato da Agricultura Familiar" mostrava que a gestão familiar e a predominância do trabalho familiar são os traços unificadores de um universo extremamente heterogêneo - dividido nos grupos A, B, C e D, segundo o nível de renda , que incluía desde milhões de produtores minifundiários muito pobres e pobres (Grupo D), até um grupo de produtores capitalizados (Grupo A), produzindo de forma integrada às cadeias produtivas mais dinâmicas, com produtividade elevada e nível de renda sustentável. Segundo aquela metodologia, a agricultura familiar era responsável por 37,9% do Valor Bruto da Produção (VBP) da agricultura e o grupo A por 50% da produção familiar. A reaplicação dessa mesma metodologia para o Censo de 2006 revela um aumento da participação da agricultura familiar no VBP agropecuário, de 37,9% para 40% entre 1996-2006, e a elevação da participação do Grupo A- que está integrado às cadeias dinâmicas da agricultura brasileira - de 50% para 67% do VBP da agricultura familiar. Confirma, portanto, sua heterogeneidade e a artificialidade da tentativa de dividir politicamente os agricultores brasileiros em dois grupos antagônicos. Antônio M. Buainain é professor livre docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultor do convênio NEAD/IICA/UFF. ([email protected]) Alberto Di Sabbato é professor associado I da Faculdade de Economia/UFF e consultor do convênio NEAD/IICA/UFF. ([email protected]) Carlos E. Guanziroli é professor associado II da Faculdade de Economia/UFF e consultor do convênio NEAD/IICA/UFF. ([email protected]) ------------------------------- Correio Braziliense - 25/08/2010 Momento latino-americano Armando Castelar No último par de meses, o debate sobre a economia mundial se concentrou no risco de nova contração das economias do G3 Estados Unidos, Japão e área do euro. Associado a isso, há uma preocupação com a possibilidade de que Europa e EUA entrem numa deflação semelhante à que aflige o Japão há mais de uma década: se isso acontecer, vai complicar a digestão das elevadas dívidas de famílias e governos e atrasar a volta à normalidade nesses países. Um quadro que acentuaria a perda de centralidade econômica do G3, até aqui vista como transitória. O fraco desempenho do G3 contrasta com o dinamismo da Ásia emergente. O FMI prevê que em 2010-2015 a região responderá por metade da expansão do PIB mundial. China e Índia, com altas médias no PIB de 9,8% e 8,2%, respectivamente, vão liderar esse processo, numa avant première de como deve ser a economia mundial em um par de décadas. A ascensão da Ásia à situação de principal eixo econômico global pode não ser inexorável, mas é o cenário mais provável visto de hoje. Em um quadro de importantes transformações globais, menos atenção tem sido dada ao bom momento da economia latinoamericana. A região se recuperou com rapidez da crise financeira internacional e deve experimentar alta de 4% ao ano do PIB em 2010-2011, essencialmente a mesma taxa projetada pelo fundo para o próximo sexênio. Ainda que seja menos da metade do previsto para a Ásia emergente, essa taxa é bem superior à observada em 1980-2003 (2,4% ao ano), antes do boom que precedeu a atual crise. Portanto, em que pese o fraco desempenho antevisto para a economia mundial na primeira metade desta década, a América Latina deverá apresentar indicadores relativamente positivos, beneficiando-se das reformas realizadas nos anos 1990 controle da inflação, abertura comercial, privatização, saneamento do sistema financeiro etc. e da migração do polo de dinamismo econômico para a Ásia emergente, cujo crescimento é mais intensivo em commodities do que nos países ricos. Dentro desse quadro, destacamse tanto elementos comuns aos países da região como aspectos que os diferenciam. Entre os primeiros, merecem destaque a melhoria dos termos de troca e a atração de investimento estrangeiro, ambos tendo por trás o superciclo de commodities. O custo de financiamento externo de governos e empresas locais deve ficar bem abaixo da média histórica, em função dos juros anormalmente baixos nos países ricos, estimulando as captações externas, pelo menos dos países com acesso ao mercado internacional. Isso se traduzirá na abundância de divisas, relaxando a restrição cambial ao crescimento, mas também fortalecendo as moedas locais e estimulando a expansão monetária, contra o que devem se mobilizar os governos locais. A contrapartida desse processo será a manutenção de deficits relativamente altos em conta-corrente, o que ajudará no controle da inflação, junto com o câmbio mais valorizado. O desafio, nesse caso, será dosar o tamanho desse deficit, algo não trivial em um mundo em que a capacidade de oferta deve superar a demanda por alguns anos, assim como garantir que o aumento da poupança externa não desloque a poupança doméstica vale dizer, que a contrapartida do deficit externo seja uma alta do investimento, não do consumo. Na mesma toada, é crítico que os investimentos não se destinem apenas à produção de commodities, mas também a melhorar a infraestrutura e a habitação. O México é, entre os maiores países da região, o que terá mais dificuldade em aproveitar esse quadro favorável. Sua estreita relação com os EUA faz com que os problemas no vizinho do norte contaminem a economia local. Além disso, o país enfrenta uma crise de segurança pública, tem um poder político fragmentado, uma economia doméstica concentrada nas mãos de poucos grandes grupos e vai sofrer com a produção cadente de petróleo, fruto da falta de investimentos e de um quadro regulatório anacrônico. A América do Sul está dividida em dois grupos. De um lado estão Chile, Peru e Colômbia, países que crescem com inflação baixa e pouca intervenção estatal na economia. Na outra ponta estão Argentina e Venezuela. Ainda que a primeira cresça bem mais que a segunda, ambas apresentam taxas elevadas de inflação e intensa intervenção estatal na economia, sinalizando o acúmulo de desequilíbrios. O Brasil está numa posição intermediária, ainda que mais próxima do primeiro grupo. O quadro externo favorável vai agudizar essas diferenças entre países, fazendo com que a região vá bem, mas relativamente dividida. -------------------------Folha de S.Paulo - 25/08/2010 Segundo mergulho? Mario Mesquita NO QUE se refere à análise de conjuntura, o debate recente tem se concentrado, tanto no exterior como no país, na questão da probabilidade de um segundo mergulho, ou seja, o retorno à recessão, no G3 (Estados Unidos, Europa e Japão). Cabe observar inicialmente que o cenário básico, compartilhado por organismos multilaterais e áreas de pesquisa de grandes instituições financeiras, é de recuperação lenta da economia mundial. As projeções mais recentes do FMI, divulgadas em julho, são de crescimentos de 4,6% em 2010 e de 4,3% em 2011, sendo 2,6% e 2,4% nas economias avançadas e 6,8% e 6,4% nas emergentes, respectivamente. Na verdade, em julho o Fundo revisou para cima, ainda que modestamente, sua projeção para o crescimento do PIB mundial, ante os números divulgados em abril -alta de 0,4 ponto percentual. As preocupações mais recentes têm sido centradas onde tudo começou, na economia americana, com taxa de desemprego próxima a 10% e pedidos de seguro-desemprego que chegaram recentemente à marca dos 500 mil. Essa economia parece viver um ciclo vicioso que assegura o crescimento baixo: mercado de trabalho fraco deprime o consumo das famílias, o que restringe a atividade e aumenta a inadimplência, levando à persistência das condições creditícias restritivas, o que contribui para desestimular a criação de vagas, e assim por diante. A propósito, as dificuldades do mercado imobiliário residencial têm contribuído para aumentar a persistência do desemprego nos Estados Unidos. Famílias com hipotecas que valem mais do que o imóvel e sem acesso ao crédito experimentam dificuldades inéditas em se deslocar de um lado a outro do país, o que tem reduzido a mobilidade da mão de obra -foi-se o tempo em que os efeitos de uma crise no setor automotivo em Michigan eram superados com o aumento da migração para a Califórnia. As autoridades americanas têm como reagir. Do lado monetário, o Fed pode comprar títulos públicos de médio e longo prazos para reduzir os custos do crédito. Pode também reduzir a remuneração ou mesmo punir depósitos de instituições financeiras em suas contas. As perspectivas para ação fiscal, via novo pacote de estímulo, são mais limitadas, seja porque a crise já levou a um expressivo aumento da dívida pública, seja porque o Congresso, onde os republicanos devem ter maior influência a partir das eleições, ficará mais resistente. Tais iniciativas, se adotadas tempestivamente, podem limitar o risco de um segundo mergulho, mas não farão os EUA voltarem a crescer rapidamente. Há abundantes evidências empíricas de que a convalescença de grandes crises financeiras é prolongada e se caracteriza por vários anos de crescimento reduzido; os EUA não devem ser exceção. Na Europa, as perspectivas também são de crescimento lento, ainda que com pontos de esperança, como a economia alemã. De fato, na semana passada o Bundesbank (Banco Central alemão) elevou de 2% para 3% sua projeção de crescimento para 2010. A recuperação alemã, inicialmente liderada pelas exportações, parece estar se tornando mais generalizada, com aceleração do consumo, o que é boa notícia para as demais economias do continente. Vale notar que, com exceção das economias periféricas, os programas de ajuste fiscal recentemente anunciados na Europa são geralmente graduais, e podem ser ajustados à luz da evolução da conjuntura. A retomada alemã, uma economia aberta, foi certamente beneficiada pela depreciação do euro. O oposto tem ocorrido com o Japão, cuja moeda tem apreciado tanto em relação ao dólar como ante o euro. A relativa falta de dinamismo do setor exportador tem, por sua vez, levado ao esmorecimento da confiança na economia, contribuindo para sua falta de dinamismo. Trata-se, em resumo, de um quadro delicado, no qual, apesar de algumas notícias positivas, o risco de um segundo mergulho persiste, ainda que o cenário com que aparentemente trabalham as autoridades seja de crescimento lento, mas sem nova recessão. MARIO MESQUITA, 44, doutor em economia pela Universidade de Oxford, escreve quinzenalmente, às quartas-feiras, neste espaço. ------------------------------- Estadão Online – 24/08/2010 Teoria da ressaca no Fed Paul Krugman A matéria de Jon Hilsenrath sobre o Fed é uma peça de reportagem impressionante. Ao que parece, alguém está falando do que não sabe. E como diz Tim Duy, isso é deprimente também para quem acredita, como eu, que estamos escorregando consistentemente para uma armadilha de baixo crescimento prolongado e desemprego alto, e que é urgente uma ação agressiva do Fed. Uma outra coisa me chocou, contudo: pelo menos alguns membros do Fomc (Comitê Federal do Mercado Aberto) compraram a teoria da ressaca - a versão moderna de liquidacionismo em que um desemprego em massa às vezes é necessário depois de um estouro de bolha: Narayana Kocherlakota, presidente do Fed de Minneapolis, argumentou que uma grande parte do problema atual do desemprego é causada por questões que o Fed não pode resolver, como o descompasso entre as competências dos trabalhadores desempregados e as competências que os empregadores desejam. Eis o que Kocherlakota disse num pronunciamento após a reunião: Seja qual for a fonte, porém, é difícil ver como o Fed pode fazer muito para solucionar o problema. O estímulo monetário forneceu condições para que as empresas manufatureiras contratassem novos trabalhadores. Mas o Fed não tem meios para transformar trabalhadores da construção civil em trabalhadores manufatureiros. Eu tentei explicar, naquele antiga matéria sobre teóricos da ressaca, o que está errado nessa visão em geral. Entre outras coisas, essa história tem pouca semelhança com o que realmente ocorre numa recessão, quando cada setor – e não apenas o setor de investimento – normalmente se contrai. E isso está nitidamente se passando desta vez. Kocherlakota gostaria de nos fazer acreditar que há um grande problema de descompasso porque o setor manufatureiro está tentando contratar, enquanto o da construção está em recessão. Mas eis a realidade do emprego: O emprego na indústria manufatureira despencou, e não cresceu – aliás, ele caiu mais que o emprego na construção civil. O problema é de falta de demanda geral, e não de descompasso do trabalhadores. Infelizmente, não estamos fazendo uma discussão acadêmica aqui: neste momento, uma má teoria – uma teoria complemente discrepante da experiência real – está tendo um efeito real de bloquear a ação. ----------------------------Folha de S.Paulo - 25/08/2010 Economia e história Antonio Delfim Netto Infelizmente, um número ainda muito grande de analistas financeiros e importantes membros da academia continua a discutir nossos problemas com enorme viés ideológico e sem sentir remorso pelo seu profundo desconhecimento da história do Brasil e da evolução da economia mundial. Ainda agora, um deles, à custa de torturar preconceitos e acumular falsos silogismos, "quase" concluiu que a crise que se abateu sobre o Brasil e o mundo em 1979 foi produzida porque o governo brasileiro terminou com a independência legal do seu Banco Central em 1967! É como se ela não tivesse destruído as finanças públicas de dezenas de países e também promovido, de fato, a desintegração dos satélites da finada URSS. O que esquece é que o magnífico trabalho de arrumação da economia brasileira produzido por Octávio Gouveia de Bulhões e Roberto de Oliveira Campos nunca poderia ter sido aproveitado se a política monetária "independente" (apoiada num fundamentalismo monetário inconsequente) continuasse impedindo o desenvolvimento sem reduzir a inflação. O BC apoiava a teoria governamental: era preciso, mesmo à custa de uma profunda recessão se necessária, educar o mercado com uma nova expectativa sobre a evolução da taxa inflacionária. O pequeno problema é que quem pagava a conta (a sociedade) mostrava uma resistência crescente a aprender a lição. Entre 1967 e 1973, o PIB cresceu à taxa média anual de 10%, e a taxa de inflação caiu de 46% para 14%. Em 1973, nossa dívida externa líquida era de US$ 8,5 bilhões, e as exportações (que cresceram à taxa de 20% ao ano) eram de US$ 6,2 bilhões, com uma saudável relação dívida líquida/exportação de 1,4. Os problemas a partir de 1974 tiveram muito mais a ver com as duas crises do petróleo do que com as pressões criadas pelas tentativas equivocadas de substituir importações com um aumento generalizado de tarifas e o congelamento dissimulado da taxa cambial real (aproveitando o aumento das relações de troca) para controlar a inflação. Mais importante do que tudo foi o fato que, entre 1954 e 1980, a Petrobras produzia apenas 20% do petróleo que consumíamos. Quando seu preço foi multiplicado por seis, em 1975, e depois por mais sete, em 1979, só restava ao Brasil a alternativa de endividar-se (como fizeram todos os países emergentes não produtores de petróleo). Outra saída (felizmente abandonada num ataque de lucidez em 1978) seria um racionamento, que teria transformado o Brasil em Bangladesh... ANTONIO DELFIM NETTO escreve às quartas-feiras nesta coluna. ----------------------------Valor Econômico - 25/08/2010 Requiescat in pace José Luís Fiori Hoje em dia, na Europa ou nos Estados Unidos, ninguém mais fala ou lembra do projeto da "terceira via" Foi no dia 5 de fevereiro de 1998, que o ex-primeiro-ministro inglês, Tony Blair, anunciou, em Washington, junto com o presidente Bill Clinton, a decisão de convocar uma reunião internacional para discutir e atualizar a social-democracia, criando um movimento que foi chamado de "terceira via" ou "governança progressiva". Naquele momento, brilhava a estrela do novo líder inglês, que recém havia sido empossado e conseguiu reunir, sucessivamente, em Florença, Washington e Londres, Bill Clinton, Lionel Jospin, Gerhard Schröder, Massimo D´Alema, Fernando Henrique Cardoso e Ricardo Lagos entre outros governantes e intelectuais ligados de uma forma ou outra à social-democracia europeia, ou ao partido democrata americano. O projeto comum era construir um novo programa que adequasse a velha social-democracia às novas ideias e políticas neoliberais, hegemônicas nas últimas décadas do século XX. O resultado foi uma geleia ideológica, com propostas extremamente vagas e imprecisas, que mal encobriam o seu núcleo duro voltado para a abertura, desregulação e desestatização das economias nacionais, e para um "prologement vaguement social de la révolution thatcheriste", como caracterizou na época, a revista francesa, "Nouvelle Observateur". Goste-se ou não, as ideias e os partidos socialistas e social-democratas deram uma contribuição decisiva à história do século XX, em particular à criação do "estado do bemestar social", depois da II Guerra Mundial. Mas, na década de 80, a social-democracia perdeu fôlego político e acabou perdendo a sua própria identidade ideológica, asfixiada pela grande "restauração" liberal conservadora de Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Isso aconteceu na Espanha, de Felipe Gonzalez, na França, de François Mitterand, na Itália, de Bettino Craxi, e também na Grécia, de Andreas Papandreu. Nos anos 90, entretanto, esse movimento adquiriu outra densidade e importância, com a vitória democrata de Bill Clinton, nos EUA, e do trabalhismo de Tony Blair, na Inglaterra. Na América Latina, a história foi um pouco diferente, porque as novas políticas neoliberais apareceram - nos anos 80 - associadas à renegociação da dívida externa do continente, como se fossem apenas um problema de política econômica. E foi só no Chile e no Brasil, que a proposta da "terceira via" teve uma repercussão importante durante a década de 90. No caso do Chile, com a formação da aliança entre socialistas e democrata-cristãos e, em particular, durante o governo de Ricardo Lagos (1990-1996), que aderiu pessoalmente ao projeto liderado pelos anglo-saxões. E, no caso do Brasil, com a formação do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e com a participação ativa do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), na formulação das ideias e reuniões do movimento, ao lado de Tony Blair e Bill Clinton. A "terceira via" teve uma vida muito curta. Talvez por causa da superficialidade e artificialidade das suas ideias, talvez porque seus líderes mais importantes acabaram sendo derrotados nas urnas ou passaram para a história como grandes fracassos ou blefes político-ideológicos. Como no caso do iniciador do movimento, o ex-primeiroministro Tony Blair, que foi afastado da liderança trabalhista em 2007 e se transformou no inimigo número um da imprensa e da maioria da opinião pública inglesa, sob acusação de ter mentido para justificar a entrada do seu país na Guerra do Iraque, além de ter acobertado casos de tortura, por parte de suas tropas. Tony Blair foi substituído por Gordon Brown, outro ideólogo da "terceira via" que acabou sofrendo uma das derrotas eleitorais mais arrasadoras da história do trabalhismo inglês. Bill Clinton também não conseguiu fazer seu sucessor e passou para a história como símbolo do expansionismo imperial americano da década de 1990, a despeito de sua retórica "globalista" e democrática. Os demais participantes europeus do movimento também tiveram finais inglórios, como foi o caso de Lionel Jospin, Massimo D'Alema e Gerhard Schröder, e hoje ninguém mais fala ou lembra, na Europa ou nos Estados Unidos, do projeto da "terceira via". Mas esse factóide anglo-americano teve uma sobrevida, e só será enterrado definitivamente, em 2010, na América Latina. Primeiro, no Chile, depois da derrota eleitoral da "Concertación" de Ricardo Lagos. E depois, no Brasil, com a provável derrota do partido social-democrata, de Fernando Henrique Cardoso, nas eleições presidenciais deste ano. Nos dois casos, o que mais chama a atenção não é a derrota em si mesma, é a anorexia ideológica dos dois últimos herdeiros da "terceira via". Não se trata de incompetência pessoal, nem de um problema de imagem, se trata do colapso final de um projeto político-ideológico eclético e anódino que acabou de maneira inglória: o projeto do neoliberalismo social-democrata. Que repouse em paz ! José Luís Fiori é professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007. --------------------------------O Estado de S.Paulo - 25/08/2010 Equação complicada Celso Ming As discussões sobre a capitalização da Petrobrás tal como expostas pela imprensa estão centradas sobre a questão do "preço justo" do barril do petróleo de propriedade da União que será transferido (em cessão onerosa) para a Petrobrás, a título de subscrição da parcela correspondente ao Tesouro no capital. Mas há outras questões tão ou ainda mais relevantes a equacionar. As informações não oficiais são de que as duas certificadoras internacionais - uma contratada pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) e outra, pela Petrobrás - chegaram a avaliações muito diferentes. A primeira teria sugerido alguma coisa entre US$ 10 e US$ 12 por barril e a segunda, entre US$ 5 e US$ 6. Existe outro poderoso limitador. O aumento de capital autorizado é de R$ 150 bilhões, o que a câmbio de hoje dá algo em torno de US$ 85 bilhões. Se fosse definido o preço de US$ 10 por barril, como quer a ANP, apenas a parcela da União corresponderia a US$ 50 bilhões, muito perto do limite dos US$ 85 bilhões. A subscrição será feita em duas etapas. A primeira será reservada aos atuais acionistas: a União (com 32,1% de participação no capital) e os demais minoritários (67,9%). A segunda etapa corresponderá à subscrição das sobras em regime de oferta pública. Ou seja, qualquer um poderá participar da operação. Se todos os atuais acionistas exercerem seu direito de subscrição, a parcela correspondente à União não poderia passar dos US$ 27 bilhões, que são os tais 32,1% de US$ 85 bilhões. Assim, dependendo do valor atribuído a cada barril integrante da cessão onerosa, a União não conseguiria utilizar todos os 5 bilhões de barris. O governo já avisou que vai usar seu cacife para comprar o máximo das sobras em ações ordinárias (ON, as que dão direito a voto). Na hipótese em que a União não usasse na operação todos os 5 bilhões de barris, como acima indicado, uma série de outros problemas teriam de ser previamente resolvidos. Uma coisa seria a Petrobrás fazer os investimentos necessários para produzir os tais 5 bilhões de barris da reserva e outra, bem diferente (em custos e infraestrutura), se a produção não pudesse passar, por exemplo, de 3 bilhões de barris. E essas quebras teriam de entrar no cálculo do preço do barril da cessão onerosa. Outras questões à espera de resposta: que destino dar a esse possível excedente, no caso, de 2 bilhões de barris? A Petrobrás ou outra empresa poderia ser contratada para extrair esse petróleo? Utilizaria os poços, gasodutos e o restante da estrutura que teria sido instalada pela Petrobrás? Em que condições? A Petrobrás poderia convocar nova assembleia extraordinária para aumentar o limite da subscrição autorizada de capital, agora de R$ 150 bilhões (US$ 85 bilhões). Mas isso exigiria mais prazo e, consequentemente, novo adiamento da subscrição propriamente dita. No entanto, tanto Guido Mantega, que, além de ministro da Fazenda, é presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, como Márcio Zimmermann, ministro de Minas e Energia, asseguram que o prazo de capitalização da Petrobrás está mantido para 30 de setembro. Falta saber como o governo vai montar essa equação cada vez mais complicada pelo crescente número de incógnitas de que vai ser composta. E, enquanto não montá-la, a Petrobrás vai sangrando e raspando o tacho. Ontem, foi buscar R$ 2 bilhões no Banco do Brasil. Novo avanço As operações de crédito do sistema bancário continuam em expansão. Em julho, chegaram a 45,9% do PIB (estavam a 45,7% em junho). Em 12 meses, avançaram 18,4%. Efeito BNDES O Banco Central foi contundente a respeito dos efeitos da atuação do BNDES na distribuição de crédito. O chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Altamir Lopes, atribuiu a alta do spread bancário no financiamento às empresas ao avanço do BNDES sobre o segmento dos empreendimentos de menor risco. ---------------------------------- Correio Braziliense - 25/08/2010 Ansiedade total Antônio Machado O vazamento de notícias sobre intenções de política econômica do futuro governo petista e o bocado que caberá ao PMDB no consórcio espelha dois movimentos no entorno de Dilma Rousseff, derivados do clima do já ganhou que se vai disseminando em sua campanha. Ambos são expressões de ansiedade de grupos do PT e sobretudo dos aliados do PMDB, aflitos em ficarem de fora das mudanças que virão mesmo sendo o provável governo Dilma a continuidade do de Lula , sem terem sido ouvidos e chamados a negociar. O tempo não é para isso, pois estão todos, inclusive Dilma, imersos nas eleições. Eles pressentem, contudo, que já há a formulação de mudanças, não de propostas, e que questões chaves poderão ser encaminhadas antes do anúncio do novo ministério. A desconfiança é que integrantes do governo Lula desejam permanecer no primeiro escalão e trabalham e operam para 2011 como se a relação de forças no interior do PT e entre os partidos aliados não vá mudar, nem que sejam só os nomes. A vontade do presidente Lula de seguir mais que à frente do barco - o que lhe é legítimo -, mas tomando decisões até 31 de dezembro, poderá revelar-se uma fonte potencial de conflitos com os aliados, se envolver assuntos substantivos para 2011 em diante. A hipótese é real, já que facilita a qualquer futuro governo que o de saída antecipe algumas providências. Lula, por exemplo, foi consultado em 2002, antes de estar eleito, pelo então presidente Fernando Henrique sobre a extensão do acordo stand-by com o FMI, para assegurar um colchão de proteção às reservas de divisas. É normal, e civilizado. Mas pode ser tomado como intrusivo, não havendo nenhuma emergência à vista, como havia em 2002, sobre a formação do Congresso que vai emergir em 3 de outubro. É com ela que o futuro presidente terá de negociar para governar. O que pega? Está implícito ao PMDB que, aliado ao PT, será mais que um coadjuvante de luxo, seu status no segundo mandato de Lula. O partido espera formar as maiores bancadas no Congresso, indicou o deputado Michael Temer para vice de Dilma e cedeu o maior tempo de sua propaganda de TV. As lideranças do multifacetado PMDB se veem com o mesmo destaque do PT, vencendo Dilma a eleição, e o que puderem abiscoitar, se outro vencer. Mas essa é a sua história. Vai faltar ministério O PMDB vai avançar além do que conseguiu no governo Lula, no qual detém seis ministérios, embora seus caciques contabilizem quatro, atribuindo a Saúde, com José Gomes Temporão, e Defesa, com Nelson Jobim, a escolhas de Lula. Para crescer no novo governo, outros partidos da coligação como PSB e PDT, ou neolulistas, como PTB, que hoje está coligado ao PSDB, e PP, que ficou neutro terão de aceitar um quinhão menor. E mesmo as bordas mais à esquerda do PT, contempladas por Lula com pastas menores, mas que, em situação de congestionamento das ambições, vão tornar-se disputadíssimas. Discussão precipitada Parece precipitado antecipar tal discussão, mas poderá ser tarde em outubro, refletem políticos práticos, se Dilma vencer e, como tende a acontecer em mudanças de paradigma, o mercado financeiro se mostrar irrequieto. O governo com Dilma será petista em termos, pois partilhado com o PMDB, não importa se tanto ou menos do que os peemedebistas almejam, mas certamente mais do que têm hoje. Mas não será só isso. Lula é um político intuitivo como poucos, um gênio, segundo o consenso, e Dilma, ainda que possa surpreender como articuladora política, está mais para a tecnocrata com ideias fortes e apreço à hierarquia. Em tal cenário, avaliam os políticos de partidos aliados, mas também do PT, ela tenderia a se cercar de pessoas com visão de mundo assemelhado, além de discutir menos do que impõe um governo de coalizão com dois partidos fortes. PMDB como moderador? As disputas à sombra da coalizão lulista repercutem tais jogos de interesses, o que é normal em qualquer grupo político tão variado quanto o que Dilma vai herdar, se vencer a sucessão. É um conflito que passa pela aposentadoria de Lula. Mal conduzido, sugere dois cenários: ou o impulso para ajudar a arbitrar as querelas e, se o fizer, criará um pólo paralelo, com as sequelas que ele, com o traquejo acumulado, sabe o que implica ou o PMDB, contrariado, falará no Congresso, como fez no governo FHC e no atual. Por ora o PMDB fala por sinais. Michael Temer atribuiu ao partido o papel de moderador num governo Dilma, o que foi interpretado por empresários como fiel da balança. As emoções serão intensas. A pressa que embaraça O presidente Lula ouviu o clamor sobre o mal avaliado, embora crescente, movimento de compra de terras rurais por estrangeiros, sobretudo empresas estatais da China, e aceitou parecer da AGU, a Advocacia-Geral da União, que restabelece restrições firmadas por lei de 1971. O parecer revoga outro da AGU, de 1994, que liberava a restrição, sob o juízo de que a Constituição equiparou empresas estrangeiras às nacionais, se constituídas no país. A medida acauteladora se fazia necessária, como diz o exministro Delfim Netto, pois mais tarde seria difícil negociar com empresas que são, na prática, braços soberanos de um país. A questão é se parecer da AGU tem força legal. Ou o Congresso devesse ser ouvido. É outro caso em que a pressa pode embaraçar a boa intenção. -------------------------------O Globo - 25/08/2010 Onda latina Miriam Leitão A América Latina está passando por um excelente momento econômico e, em alguns países, um perigoso momento político com aumento do intervencionismo e de autoritarismo. A Venezuela enfrenta má fase política e econômica e está fora da festa do crescimento este ano. Há uma onda latina de PIB forte: a Cepal está prevendo que a região vai crescer 5,2% em 2010. O gráfico mostra a temporada de crescimento em vários países. Sobre a Argentina, há controvérsias. O FMI acha que ela vai crescer 3% e 3,5%. Mas no segundo trimestre ela cresceu em termos anualizados 10%. O Banco Central aposta em 7% no ano, consultorias privadas preveem um pouco menos, e a Cepal estima 6,8%. O Brasil vai reduzir o ritmo no próximo ano, mas continuará crescendo. O Peru está com previsões em torno de 6% em 2010 e 2011. O Chile deve crescer ainda mais no ano que vem. A Colômbia, que tem um resultado menor este ano porque sentiu o impacto da queda do comércio com a Venezuela, deve ir a 4% em 2011. Fora do compasso está a Venezuela de Hugo Chávez, que teve recessão de 3% em 2009 e retração de 5,8% no primeiro trimestre. No segundo tri, os números do PIB foram um pouco melhores, pelo forte aumento de gastos do governo com o objetivo de influenciar o resultado eleitoral. O Datanálisis disse que o governo vai perder pelo menos 30 cadeiras no Congresso, e só não perde mais porque mudou as regras para favorecê-lo. A inflação está alta e deve ficar em 35%. Como o maior produtor de petróleo da região enfrentou uma crise energética, teve que racionar consumo, e está com PIB em queda? Chávez é um mau administrador e seu autoritarismo tem inibido investimentos. O país tem tido fortes recessões. As recuperações são mais determinadas pelos surtos de alta do preço do petróleo. A violência inibe investimentos. O país de Chávez teve em 2009 mais homicídios do que no Iraque. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes chega a 200 em Caracas, contra 22 em Bogotá. A Argentina encolheu 2,2% em 2009, mas retomou o crescimento puxado por alguns fatores favoráveis, como a alta de preço das commodities e o aumento da demanda por produtos agrícolas pela China e industriais, pelo Brasil. As divergências entre os números oficiais e os calculados pelo mercado decorrem da falta de credibilidade das estatísticas desde a intervenção no Indec. Dois pontos negativos na área econômica argentina: primeiro, a inflação continua alta; segundo, quase uma década depois de dar um calote na dívida, o país ainda sofre as consequências. Tem baixo acesso ao crédito internacional. Na área política, o assustador é a adoção da mesma estratégia chavista de controle da imprensa e da intimidação dos grandes veículos de comunicação. Neste fim de semana, dois dos maiores jornalistas argentinos, Joaquín Morales Solá e Eduardo Van Der Kooy, escreveram artigos contundentes. Van Der Kooy contou que um empresário do setor, que não é do "Clarín", foi chantageado por um integrante do governo porque teria criticado indiretamente uma política pública. "A pior derrota da liberdade é quando ela se apaga paulatinamente em módicas e quase imperceptíveis cotas", escreveu Solá. O casal Kirchner tenta assumir o controle do Papel Prensa, fornecedora de matéria-prima. Em 2011, haverá eleição presidencial. O México divulgou um número de fortes vendas de carros em junho. Esse é um dos indicadores que mostram que o país está se recuperando do ano passado, quando teve a pior queda do PIB em 30 anos. O México é muito dependente das exportações, principalmente para os EUA. Como a economia americana cresceu forte no começo do ano, os mexicanos deram um salto e chegaram a crescer 8% em taxas anualizadas. O desempenho pode ser menor no resto do ano por causa dos próprios americanos. A América Latina tem uma nova chance. O risco vem dos flertes com modelos políticos autoritários e do intervencionismo econômico que rondam, em maior ou menor grau, vários países da região. No gráfico, se vê que o mau comportamento não compensa. O país de Chávez, onde o modelo autoritário-intervencionista é mais forte, é o único que não cresce. ----------------------------Valor Econômico - 25/08/2010 O debate da desindustrialização Cristiano Romero Vários dados desmentem a tese de desindustrialização, mas é importante ficar atento à indústria do pós-crise Há sinais de que a indústria brasileira vem perdendo competitividade no pós-crise. Aparentemente, as exportações subsidiadas da China, principalmente para mercados tradicionais do Brasil na América Latina, e a valorização do real frente ao dólar explicam parte do problema. É cedo, no entanto, para falar em desindustrialização e, portanto, na necessidade de adoção de medidas anacrônicas, como o fechamento do mercado nacional sugerido pelo presidente da Fiesp, Benjamin Steinbruch. Dados compilados pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) mostram que, depois de gerar superávits comerciais por cinco anos consecutivos, a indústria começou a acumular déficits em 2008. No primeiro semestre daquele ano, o resultado negativo foi de US$ 997 milhões. No mesmo período de 2009, o déficit ampliou-se para US$ 2,1 bilhões e, entre janeiro e junho deste ano, saltou para US$ 14,3 bilhões, o maior desde 1989. Estudiosos do assunto, os economistas Régis Bonelli e Samuel Pessoa, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas, afirmam que não dá para falar em desindustrialização no período que vai até 2008, ano em que o país sofreu os efeitos da crise financeira internacional. O processo de redução da participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) resultou, nos últimos 40 anos, de fatores conjunturais e, especialmente, das transformações estruturais ocorridas na economia - aqui e no mundo. Em 1947, a indústria de transformação respondia por 20% do PIB no Brasil. Em 1985, essa participação chegou ao pico - 36%. Em 2008, caiu para 16% do PIB. Para entender o contexto dessa mudança, Bonelli e Pessoa estudaram, de forma meticulosa, as experiências brasileira e internacional e constataram que o encolhimento da indústria é um fenômeno global. Considerando um grupo de 185 países, portanto, quase a totalidade das nações, observa-se que, em 1970, o produto industrial era responsável por 25% do PIB mundial. Em 2007, a participação caiu para pouco menos de 17%. Ao analisar o que ocorreu em 16 países semelhantes ao Brasil, Bonelli e Pessoa concluíram que o país estava "sobreindustrializado" no início dos anos 70 do século passado, ou seja, tinha uma participação da indústria no PIB bem superior, na média, à das outras economias. Um das razões para isso foi o aprofundamento do modelo de substituição de importações nos anos 70 e 80. No período 1970-1972, a indústria representava 25,3% do PIB brasileiro, face a uma média de 20,4% nos 16 países avaliados. Já em 2005-2007, os percentuais caíram, respectivamente, para 15,7% e 14,6% do PIB. É verdade que o recuo da indústria foi mais intenso no Brasil, mas o que Bonelli e Pessoa sustentam é que, enquanto esteve acima da média nos anos 70 e 80, o Brasil voltou à "normalidade" em termos de produção industrial nos anos 90, levando-se em conta suas características socioeconômicas e tecnológicas. Quando se observa o comportamento recente, vê-se que o emprego industrial cresceu de 12,8% do total em 1992 para 14,4% em 2008, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). A Pesquisa Industrial Anual (PIA), feita também pelo IBGE, revela, por sua vez, que o emprego na indústria aumentou de 7,44% da população ocupada total em 1996 para 8,35% em 2008. No mesmo período, a participação do investimento da indústria na Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) pulou de 14,4% para 18,5%. Tudo isso desmente a tese da desindustrialização. Bonelli e Pessoa, que tratam do tema na Carta do Ibre que será divulgada nos próximos dias, reconhecem que é preciso examinar de forma rigorosa a tendência daqui em diante, ou seja, do pós-crise de 2008. No ciclo de crescimento iniciado em 2003 e interrompido em 2008 pela turbulência mundial, a economia brasileira acelerou puxada principalmente pela demanda externa. No ciclo atual, é o mercado interno que está liderando a alta do PIB. Nesse contexto, o déficit em transações correntes está crescendo de forma acelerada de 1,72% do PIB em 2008 para 2,5% do PIB em 2010, segundo projeção do Banco Central. Com déficits externos crescentes e com a valorização do câmbio, que permite o financiamento internacional do excesso de consumo e investimento, é "natural", assinalam os dois economistas da FGV, "que ressurjam preocupações sobre o impacto da moeda forte no setor industrial". Bonelli e Pessoa lembram que, no pós-crise, a exportação brasileira de produtos manufaturados não retornou ao padrão de 2008, "o que é preocupante". "Como se sabe, a China reagiu à crise mantendo o nível do seu câmbio nominal, tanto no momento inicial de desvalorização das moedas em geral em relação ao dólar, quanto na subsequente reapreciação. À medida que os efeitos da turbulência foram se dissipando, processo particularmente rápido no mundo emergente, as moedas desses países - e, especialmente a daqueles, como o Brasil, que se beneficiam da alta das commodities valorizaram-se ante o dólar, e, consequentemente, diante do yuan", explicam os economistas. "Por outro lado, com a retração do consumo nos países ricos, cujo tecido econômico foi danificado de forma mais duradoura pela crise, a China tende naturalmente a voltar suas baterias exportadoras para países emergentes." O "efeito China" pode estar por trás da "primarização" da pauta de exportações do Brasil. A perda de competitividade, medida pelo déficit comercial no primeiro semestre, é maior nos bens de média-alta tecnologia e naqueles fabricados por atividades consideradas de alta intensidade. É prematuro, no entanto, afirmar que o Brasil sofre de desindustrialização. "Não se trata de uma sangria desatada, e reações precipitadas especialmente no sentido de alterar o regime macroeconômico e o cambial - seriam certamente equivocadas", comentam Bonelli e Pessoa. O câmbio, como se sabe, é mais um sintoma do que a causa dos problemas estruturais da economia brasileira. ---------------------- Folha de S.Paulo - 25/08/2010 Quem te viu, quem te vê, PSDB Vinicius Torres Freire "DÁ PARA arrumar, mas não precisa de um freio na economia. Não acredito nisso", disse José Serra (PSDB) a respeito do embrião de política econômica para o início de um governo Dilma Rousseff (PT). Bidu. Os contornos desse programa, vagos como toda ultrassonografia precoce, foram publicados na segunda-feira por esta Folha. Em suma, trata-se de conter gastos do governo, reduzir a dívida e baixar a meta de inflação de modo a fazer com que os juros caiam. De início, tais medidas tendem a reduzir o ritmo de crescimento econômico. Em quanto? Depende da intensidade e da duração do "aperto" e da situação da economia mundial. Mas, posto assim, sem mais, parece um plano sensato, se não inevitável. O sufoco dura pouco. Os benefícios aparecem no médio prazo e duram. Dilma desmentiu os "estudos" econômicos do comando de sua campanha, como era de esperar. Não quer ser pintada pelos adversários como a "candidata do arrocho". Ainda que pianinho, Serra bateu nessa tecla previsível: bidu. Porém, a não ser que as ideias econômicas de Serra tenham passado por mutações teratológicas de um ano para cá, a crítica do candidato tucano aos petistas traveste seu pensamento para o teatro da campanha. Na sua carreira de economista e administrador, Serra defendeu, quando não praticou, controle de gastos públicos. Até o ano passado, pelo menos considerava que a carga de impostos tinha chegado ao limite. Achava também que as taxas de juros e de câmbio estão fora do lugar, assim como os juros; que o deficit externo cresce rápido demais. No entanto, a fim de limitar a fatia de impostos no PIB, é preciso conter gastos. A fim de conter excessos no deficit externo, também. Qualquer medida responsável para lidar com o câmbio valorizado demais, se Serra imaginar alguma, depende de controle de gastos. O mesmo se pode dizer da taxa de juros. PSDB, quem te viu, quem te vê. "Cortar gastos" não significa necessariamente gastar menos do que agora, em termos absolutos, mas reduzir o gasto como parcela do PIB. O gasto pode até crescer, mas menos que a economia. Mas não é possível fazer tal contenção limitando o cafezinho ou as passagens aéreas. As despesas grandes são aquelas com a folha dos servidores, suas aposentadorias, aposentadorias do INSS. Compreende-se, é óbvio, que tratar do assunto é encrenca eleitoral. Serra, ao menos, poderia se dispensar do vexame da crítica oportunista. Serra ainda tem o que dizer, e tem algum tempo para fazê-lo. Sua candidatura está em coma, mas não morta, como querem fazer crer as prematuras discussões sobre a montagem do governo Dilma. Se tirar quatro pontos da petista, conseguirá ao menos um segundo turno, tudo o mais constante. Se perder fazendo boas críticas, ao menos terá prestado um serviço que seu partido não fez, o de ser oposição. Dilma apoia disparates de dezenas de bilhões de reais, como o trem-bala, projeto que só fica de pé com subsídio do governo, dinheiro de impostos. O governo de que fez parte toca a cada vez mais escabrosa capitalização da Petrobras, que politiza do modo mais deletério, se não vier mesmo a ser ilegal, o preço das ações de uma empresa aberta e o quanto cada acionista terá de seu capital. Bons motivos para chutar a candidatura adversária não faltam. ---------------------------Valor Econômico - 25/08/2010 O que faz do real essa fortaleza? Eduardo Campos O real segue firme mesmo com quedas nas bolsas, nas commodities e maior aversão ao risco. Petrobras e fatores externos explicam A formação da taxa de câmbio continua descolada de qualquer correlação histórica. O real segue firme mesmo com quedas nas bolsas, nas commodities e aumento na aversão ao risco. O pregão de ontem foi mais um claro exemplo disso. O dólar comercial chegou a subir a R$ 1,783, mas não sustentou alta apesar do forte pessimismo que pautou os negócios e fechou com baixa de 0,11%, a R$ 1,765. Segundo o economista-chefe do Banco Safra de Investimento, Cristiano Oliveira, o câmbio local tem que ser analisado sob dois vetores. Começando pelo curto prazo, o que explica essa fortaleza do câmbio local é a expectativa de ingresso de recursos como resultado da capitalização da Petrobras, estimada para o final de setembro. Fora isso, há um aumento no apetite relativo dos investidores por algumas moedas. Segundo Oliveira, o fato de a liquidez estar abundante e os juros zero nas economias maduras faz com que os gestores aportem recursos em países com melhores fundamentos. E o Brasil é um deles. Temos taxas de juro real atrativa, mas declinante, lembra o economista. Então, esse parece ser um bom momento para aproveitar essa oportunidade de rendimento. O segundo vetor, diz Oliveira é mais relevante quando se considera o real isoladamente. O ponto em questão são os termos de troca, que continuam benéficos. O economista explica que o preço dos bens que o Brasil exporta vem subindo - exemplo o minério de ferro. Já o preço dos produtos que o Brasil importa, como bens de capital e bens intermediários, mostra queda ou até deflação. Resumindo, existe um ganho nos termos de troca e isso tem relação direta com a taxa de câmbio. "Quando melhora o termo de troca, o câmbio real aprecia. Isso é verdadeiro desde o começo do ano e continua valendo", diz Oliveira. Junto com essa vantagem do real, diz o economista, há uma tendência global de enfraquecimento do dólar ante outras moedas. O que se sabe é que os Estados Unidos estão com crescimento baixo e a perspectiva é que esse quadro não mude muito no ano que vem. Isso seria um não evento se não fosse a taxa de juro zero desde dezembro de 2008 e um monumental estímulo fiscal que não tira a atividade da mesmice. Ainda no capítulo câmbio, mas de volta ao mercado local, um ponto sensível do debate é o comportamento das contas externas. Na segunda-feira, o Banco Central mostrou um déficit em conta corrente de US$ 28,26 bilhões no acumulado de janeiro a julho. O que equivale a 2,51% do PIB. Tal montante já supera todo o déficit registrado em 2009, de US$ 24,30 bilhões. Oliveira, que trabalha com déficit de US$ 46,5 bilhões em 2010, acredita que a conta vai piorar em 2011, com déficit chegando a US$ 60 bilhões. No entanto, isso não é motivo de grande preocupação. "O que é relevante é que o financiamento para esse déficit não vai ser tão difícil assim dada às condições atuais", explica Oliveira. Além da atração de recursos via investimento direto ou em carteira, Oliveira lembra que é bastante provável que o Brasil receba uma elevação de rating soberano no ano que vem. Não só as condições macroeconômicas sugerem isso, mas, na crise, o país foi testado e se saiu muito bem. "Na cabeça do estrangeiro existe essa perspectiva", diz. Partindo dessas premissas, o especialista revisou sua estimativa para a taxa de câmbio. De R$ 1,74 para R$ 1,70 agora em 2010. E de R$ 1,80 para R$ 1,65 em 2011. Eduardo Campos é repórter -----------------------------------