UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Programa de Pós-Graduação em Educação TESE DOCÊNCIA EM ARTES VISUAIS: CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES NA (RE) CONSTRUÇÃO DA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL CARMEN LÚCIA ABADIE BIASOLI PELOTAS, setembro de 2009 CARMEN LÚCIA ABADIE BIASOLI DOCÊNCIA EM ARTES VISUAIS: CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES NA (RE) CONSTRUÇÃO DA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Educação. Orientadora: Profª Drª Márcia Ondina Vieira Ferreira PELOTAS, setembro de 2009 Dados de catalogação na fonte: Aydê Andrade de Oliveira CRB - 10/864 B579d Tavares Santos Silva. – Pelotas, 2008 . Biasoli, Carmen Lúcia Abadie. 124f. Docência em artes visuais : continuidades e Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade descontinuidades na (re)construção da trajetória de Educação. Universidade Federal de Pelotas. profissional / Carmen Lúcia Abadie Biasoli ; Orienta- dora: Márcia Ondina Vieira Ferreira. - Pelotas, 2009. 1. Professor leigo. 2. Educação em escolas ru311f. : il. ; color. rais. 3. Trajetória de vida profissional. I. Zanchet , Beatriz Tese (Doutorado Maria Boéssio emAtrib, Educação) orient.– II. Faculdade Título. de Educação. Universidade Federal de Pelotas. CDD 371.3 1.Trabalho docente. 2. Metodologia biográficonarrativa. 3. Ciclos de vida profissional. 4. Docência em Artes Visuais. I. Ferreira, Márcia Ondina Vieira, orient. II. Título. CDD 370.71 Banca examinadora: Prof.ª Dr.ª Eliane Terezinha Peres Prof.ª Dr.ª Ilma Passos Alencastro Veiga Prof.ª Dr.ª Lúcia Maria Vaz Peres Prof.ª Dr.ª Maria Isabel da Cunha AGRADECIMENTOS Aos professores pelas suas narrativas, porque sem elas eu não teria o que contar. À Márcia Ondina pela delicadeza da presença e competência profissional. À Ilma, Mabel. Lúcia, Eliane, pela segurança que me deram na banca de qualificação e por continuarem comigo. Aos colegas do Instituto de Artes e Design pelo incentivo e apoio. Aos professores do Curso de Cinema e Animação pela parceria e compreensão da minha ausência. Ao Paulo pela fase de companheirismo e por me fazer compreender que uma “puxada de tapete” não significa queda, mas salto. À Fernanda, Silvana, Margareth, Isabel Larissa, Aceves, Bolivar, Igor, amigos daquela hora difícil e dos momentos de desabafo e descontração. À Margareth, novamente, só que agora pelo precioso auxílio na elaboração das biovias. A todos que estão sempre muito próximos, mesmo estando longe. RESUMO BIASOLI, Carmen Lúcia Abadie. Docência em Artes Visuais: continuidades e descontinuidades na (re) construção da trajetória profissional. 2009. 307f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. Esta pesquisa discute a problemática da profissão docente em Artes Visuais a partir do estudo do ciclo de vida profissional, ou seja, do ciclo vital pelo qual passam os professores. Assim, teve como objetivo investigar as continuidades e descontinuidades na (re) construção da trajetória profissional de docentes de Artes Visuais, defendendo a idéia de que aspectos significativos da vida pessoal e profissional e o momento docente em que se encontram os professores interferem tanto na construção dessa trajetória quanto para uma melhor compreensão da pessoa do professor e, como conseqüência, da sua atuação docente. No campo do ensino das Artes Visuais, esta tese igualmente reconstrói a história das instituições responsáveis pelo ensino da Arte em nosso país, enfocando mais precisamente o caso do atual Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), cuja criação remonta a 1949. A tese está assentada em diferentes pesquisas sobre trajetórias biográficas, incluindo as que abordam as fases da carreira do professor (centradas nos anos de experiência profissional), e os ciclos de vida, indicando a dimensão pessoal como fundamental no processo pelos quais os professores se constroem e dinamizam seu trabalho, deixando claro que o aperfeiçoamento profissional está associado ao desenvolvimento pessoal, ou faz parte dele. Ademais, são trazidas contribuições de autores que investigam o trabalho docente, especialmente os que tratam da profissionalização, do desenvolvimento profissional e dos saberes docentes, bem como de investigadores que analisam a escola como produtora de cultura. A abordagem metodológica é a biográfico-narrativa, que possibilita aos professores falarem sobre o que conhecem e fazem, o que faziam ou o que poderiam ou deveriam fazer, ou seja, permite a explicitação das dimensões do passado que pesam sobre as situações atuais e sua projeção em formas desejáveis de ação. Os professores que participaram da pesquisa exercem a docência na rede municipal de Pelotas e atuam na área de Artes Visuais, todos formados pelo IAD. O estudo assume um caráter quantiqualitativo, ao combinar questionário com entrevista. O questionário envolveu 40 professores e possibilitou conhecer características e expectativas formativas comuns no coletivo. A entrevista foi realizada com 7 professores, formados em diferentes etapas do curso de formação docente (conforme as mudanças da legislação educacional) e com distintos tempos de atuação no magistério, permitindo compreender aspectos relativos à escolarização; escolha da profissão com seus fatores determinantes e expectativas; trajetória acadêmica com suas influências; lembranças e formação prática de ensino; carreira docente, com seus primeiros anos; se o fato de ser mulher/homem afetou a carreira; exercício da docência, anterior e atual. Para melhor compreensão da trajetória docente, a partir da análise das entrevistas foram criados os caminhos biográficos, aqui denominados de biovias. Outro elemento usado para complementar as entrevistas e análise de dados biográficos foram Imagens Viajantes de obras de Arte solicitadas aos professores, escolhidas por eles para significar o momento atual em que estão vivendo. Para a elaboração das fases partiu-se do princípio de que os anos de carreira são significativos para definir o início da primeira fase, denominada de impacto (1-6 anos), mas não foram balizadores do seu término, porque os acontecimentos vividos pelos professores, tanto na escola quanto na vida pessoal, foram determinantes para uma mudança de fase. Já a aproximação da segunda fase, a de personalização (7-12 anos), justificou–se porque os professores definiram um estilo pessoal de ensinar Artes Visuais para turmas de níveis diversificados e escolas com realidades diferentes, o que requer tempo e maturidade, sem descartar uma mudança mais rápida provocada por um ou outro tipo de acontecimento, um momento crítico enfrentado pelo professor. A fase de alternância (13-18 anos) correspondeu a um período no qual o tempo de atuação possibilitou ao professor uma maior compreensão do sistema educacional e da docência, do que pode ou não, do que quer ou não fazer, o professor permitiu-se optar. Já a proximidade com o final da carreira determinou a fase de individualização (19-25 anos), responsável pelo distanciamento do professor dos problemas educacionais e pela busca de satisfação pessoal. Deste modo, os anos de docência são considerados significativos na trajetória profissional, mas não são definidores das fases, pois as narrativas dos professores comprovam que as fases se mesclam constantemente - ou não - e uma não afasta nem elimina a possibilidade de outra. Portanto, as modificações nas fases da vida dos professores são ocasionadas pelas condições de tempo e lugar determinados, ocorreram pelas oportunidades e limitações vividas por cada um deles; o entrecruzamento das histórias pessoais e das trajetórias profissionais nesses diferentes espaços e tempos configuram uma singularidade na prática docente desses professores. Embora todos tenham passado, de um modo geral, por fases similares da carreira docente, ficou evidente que cada um tem uma história de vida e trajetória profissional singular, cada um tem uma trajetória subjetiva específica, cada um deles é único. Por fim, pode-se dizer que a compreensão dos ciclos de vida, através das fases da carreira docente, entrecruzando histórias pessoais e trajetórias profissionais em diferentes espaços e tempos da prática docente, possibilita pensar alternativas e incentivar propostas de inovação para a formação docente inicial e continuada. Palavras-chave: Trabalho docente. Metodologia biográfico-narrativa. Ciclos de vida profissional. Docência em Artes Visuais. BIASOLI, Carmen Lúcia Abadie. Teaching Visual Arts: continuities and discontinuities in the (re) construction of the professional career. 2009. 307f. Thesis (PhD program) – Post Graduation Program in Education. Education College. Federal University of Pelotas, Pelotas. The present research discusses the problematic of the teaching career in Visual Arts based on the study of professional life cycle, that is, the vital cycle through which the teachers face. Thus, it aimed at investigating the continuities and discontinuities in the (re) construction of teachers’ professional careers in Visual Arts, defending the idea that significant aspects of both personal and professional life and the teaching moment lived by the teachers interfere both in the construction of this career as well as in a better understanding of the role of the teacher and, consequently, his / her teaching performance. In the field of Visual Arts teaching, this thesis equally reconstructs the history of institutions responsible for the teaching of Arts in our country, focusing more specifically the present situation of the Instituto de Artes e Design (Arts and Design Institute) from the Federal University of Pelotas (UFPel), which was opened back in 1949. The thesis is based in different researches about biographical data, including the ones which concern the different teacher’s career phases (centered in the years of professional experience), and the life cycles, indicating the personal dimension as fundamental in the process by which the teachers build their careers and make their work dynamic, making it clear that the professional improvement is associated to the personal improvement, or is also part of it. Besides this, there are contributions from authors who investigate the teaching activity, specially the ones involved with the professionalization, the professional development and the teacher’s knowledge, as well as investigators who analyze the school as a culture producer. The methodological approach is biographic-narrative, which enables the teachers to talk about what they know and do, what they did or what they could or should do, that is, it makes possible to make explicit the past dimensions which have an influence on the present situations and its projection into expected action forms. The teachers who participated in the research teach in city public schools in Pelotas in the area of Visual Arts, all having graduated at IAD. The study takes a quanti-qualitative character, as it combines the questionnaire with interviews. The questionnaire involved 40 teachers and enabled to know characteristics and expectations common to the people as a whole. The interviewed was made with 7 teachers, graduated in different phases of the teaching course (according to changes in the educational legislation) and with distinct teaching experience, permitting to understand aspects related to school history; the choice of the career with their determinant factors and expectations; academic history and their influences; remembrances and teaching practical education; teaching career, within its initial years; whether the fact of being a man / woman affected his / her career; the teaching experience, previous and present. For a better understanding of the teaching career, biographical paths were created based on the analysis of the interviews, here so-called biopaths. Another element used to complement the interviews and the analysis of the biographical data were “Travelling Images” of Art pieces asked by the teachers, chosen by them in order to express the present moment which they have been facing. For the elaboration of phases, the starting point was the principle that the years of career are meaningful to define the beginning of the first phase, called impact (1-6 years), but they were not standards for its end, because the events faced by the teachers, both at schools as well as in their personal lives, were significant for a change of phase. The closeness to the second phase, the personalization one (7-12 years), was justified because the teachers defined a personal teaching style to teach Visual Arts for groups of different levels and schools with different realities, which demands time and maturity, without discharging a faster change provoked by one or another type of event, a critical moment faced by the teacher. The phase of alternation (13-18 years) corresponded to a period in which the teaching experience enabled the teacher to better understand the educational and the teaching system, what he / she can or cannot do, what he / she wants to do or not, the teacher gave him /herself the chance to choose. Finally the fact of being close to the end of the career determined the so-called individualization phase (19-25 years), responsible for the distance between the teacher and the educational problems and the search for personal satisfaction. Therefore, the teaching years are considered meaningful in the professional career, but they are not the ones which define the phases, as the narratives from the teachers prove that the phases constantly mix - or not – and one does not place away nor eliminates the possibility of another. Finally, the modifications in the life phases of teachers are caused by the conditions of determined time and places, having occurred due to the opportunities and limitations dealt by each one of them; the crisscrossing of personal histories and the professional careers in these different moments and places configure a singularity in the teaching practice of these teachers. Although all have gone through, in a general way, similar phases in their teaching careers, it was evident that each one have their own and unique life experience and professional career, each with a specific subjective experience, each one of them is unique. To end, it can be said that the understanding of the life cycles, through the phases of the teaching career, crisscrossing personal histories and professional careers in different places and moments of the teaching practice, enables thinking about alternatives and motivating innovation proposals for the initial and continuing teacher’s education. Key words: Teaching work. Biographical-narrative methodology. Professional life cycles. Visual Arts teaching. LISTA DE FIGURAS E QUADROS Figura 1 - Articulação entre os diferentes instrumentos da pesquisa 35 Quadro 1 – Formação do Professor de Arte no IAD/UFPel 33 Quadro 2 – Professores entrevistados por curso, ano de conclusão e tempo de docência 36 Quadro 3 – Fases por ano de carreira 124 Quadro 4 – Fases da carreira por aproximação dos anos de docência 203 Quadro 5 – Professores entrevistados por anos de docência 205 Quadro 6 – Mutações coloridas da trajetória profissional dos docentes 219 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Professores formados no curso de Licenciatura de 1º Grau em Educação Artística – IAD/UFPel (1975-1990) 48 Tabela 2 – Professores formados no curso de Licenciatura Plena em Educação Artística com habilitação em Música – IAD/UFPel (1975-1979) 49 Tabela 3 – Professores formados, segundo habilitação, no curso de Licenciatura Plena em Educação Artística – IAD/UFPel (1978-1992) 49 Tabela 4 – Professores formados, segundo habilitação, no curso de Licenciatura Plena em Educação Artística – IAD/UFPel (1994/1998)) 50 Tabela 5 – Professores formados, segundo habilitação, no curso de Licenciatura em Artes – IAD/UFPel (1999/2007) 51 Tabela 6 – Professores formados, por curso e habilitação – IAD/UFPel (1994-2007) 52 Tabela 7 – Professores formados, por curso e habilitação - Licenciatura – IAD/UFPel (1975/2007) 52 Tabela 8 – Professor por formação: curso e habilitação 131 Tabela 9 – Professor por tempo de docência 133 Tabela 10 – Alternativas para o exercício da docência 136 Tabela 11 – Espaço físico para as aulas de Artes Visuais 139 Tabela 12 – Freqüência no planejamento das aulas pelos professores 139 Tabela 13 – Instrumentos avaliativos utilizados pelos professores 141 Tabela 14 – Recursos materiais utilizados pelos professores 143 Tabela 15 – Tipos de reunião promovida pela escola que os professores participam 146 Tabela 16 – Freqüência na participação em reuniões por áreas de estudo 146 Tabela 17 – Fatores de impedimento para formação continuada 148 LISTA DE BIOVIAS Biovias 1 Professora Ana - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência 212 Biovias 2 Professora Sílvia - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência 213 Biovias 3 Professora Maria - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência 214 Biovias 4 Professora Diva - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência 215 Biovias 5 Professora Eduarda - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência 216 Biovias 6 Professor Paulo - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência 217 Biovias 7 Professora Jenice - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência 218 SUMÁRIO TRADUZIR-ME 1 1. EU NO ESPELHO: A PESSOA, A PROFESSORA A memória Uma relação delicada Uma decisão saborosa Uma opção decisiva Uma mudança geográfica Uma caminhada de re-configuração Um exercício de escrita de si Um discurso assumido Um caminho para novas pisadas 7 8 9 10 10 11 13 15 17 2. O CAMINHO SE FAZ CAMINHANDO Achados no caminho Inquietações e objetivos da caminhante O traçado do caminho Os caminhantes 20 26 30 33 3. LUGAR DE FORMAÇÃO: A CASA E O CORPO A casa e o corpo: alicerces fundacionais A casa: Instituto de Artes e Design/UFPel O corpo: Professor de Arte 38 43 46 4. PINCELADAS QUE MUDARAM A HISTÓRIA Ensino da Arte: rupturas na concepção Cultura Visual no ensino das Artes Visuais Leitura de imagens no ensino das Artes Visuais Professor de Artes Visuais: desafios na atuação 55 61 64 69 5. OLHARES TEÓRICOS SOB PERCEPÇÃO Escola em questão A escola como lugar de cultura A escola como espaço da produção de vozes Trabalho docente em foco Saberes docentes em discussão Trajetória biográfica em voga 75 77 85 88 100 114 Professor em ciclos Professor em fases 119 123 6. IMPRESSÕES PRIMEIRAS Imagens delineadas Imagens percebidas 130 152 7. DE ONDE VÊM? QUEM SÃO? PARA ONDE VÂO? Ciclos de vida dos professores A escolarização A escolha da profissão A trajetória acadêmica A carreira docente A escola Fases da carreira docente 157 158 161 165 175 190 194 201 8. OS PROFESSORES PELAS SUAS TRAJETÓRIAS 210 9. OS PROFESSORES PELAS SUAS IMAGENS VIAJANTES 220 A VOZ: IMPRESSÕES FINAIS Imagens delineadas pelo gesto Imagens construídas pela voz Imagens (in)concluídas 228 231 235 REFERÊNCIAS 238 APÊNDICES Protocolos de Registro de Narrativas Protocolo nº 1 Protocolo nº 2 Protocolo nº 3 Protocolo nº 4 Protocolo nº 5 Protocolo nº 6 Protocolo nº 7 247 257 263 272 278 286 294 TRADUZIR (ME) Se uma imagem presente não faz pensar uma imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Gaston Bachelard Ao iniciar a apresentação deste trabalho, entendo ser necessário traduzir (me). Buscar significados para a palavra traduzir foi o começo. Ferreira Gullar diz: “Uma parte de mim pesa, pondera. Outra parte delira”, eu digo: “Uma parte de mim é pessoa, outra professora e ambas pesam, ponderam e deliram”. Nesse misto de ser, o sentido do meu traduzir é manifestar, explanar, explicar. Manifestar minha eterna preocupação com o professor, explanar razões para realizar esta pesquisa e explicar porque a construí assim como está e não de outra forma. O foco central da pesquisa foi, mais uma vez, e como não poderia deixar de ser, a formação e atuação do professor de artes visuais. A formação do professor, não só de arte, mas de todas as áreas do conhecimento humano e para todos os níveis de ensino, tem sido amplamente discutida nas agendas educacionais de hoje. Centrar o foco nesta questão indica que a função do 2 professor, no processo de ensinar e aprender, ganha contornos mais precisos. Isto aponta para a existência de um processo de revisão tanto na atuação do professor quanto na sua história de vida e, ainda, de retomada de uma identidade profissional, pois pela análise de Nóvoa (1995b) “nos últimos 30 anos, depois de ter sido ignorado, esmagado e controlado pelo próprio sistema educacional”, o professor passou a ser objeto de inúmeras pesquisas em produções acadêmicas, provocando reflexões sobre a sua formação e a prática pedagógica na busca de um maior domínio das ações educativas. Fui, então, em busca de uma nova forma ou outra maneira de olhar e entender o professor, que não apenas aquela tentativa de encontrar um melhor método para o ensino, ou aquele destaque dado à análise do ensino no cotidiano da sala de aula, ou ainda, pela busca de características intrínsecas ao “bom” professor. Desta vez, a idéia inicial foi motivada pelo texto de Nóvoa (1995b): “Diz-me como ensina, que dir-te-ei quem és, ou vice versa”, lido algum tempo atrás, que me fez entender que a profissão docente é uma profissão de interações humanas e um professor sempre se apresenta inteiro, com toda a sua personalidade. Pensando, então, que o professor na relação pedagógica apresenta-se com toda a sua história e personalidade, pelo menos nas formas de ensino que implicam uma interação presencial entre professor e estudantes, tomei como ponto de partida analisar a problemática da profissão docente a partir do estudo dos ciclos de vida com base nas fases da carreira do professor, centradas nos anos de experiência profissional. Queria identificar aspectos significativos da vida pessoal e profissional que interferem na construção dessa trajetória para uma melhor compreensão da pessoa do professor e, como conseqüência, sua atuação docente. A história pessoal, a trajetória pré-profissional, e, especialmente, a trajetória como aluno, tem uma influência decisiva no estilo de ensino de um professor. Acredito que tendemos a reproduzir, ou a excluir, formas de trabalho ou atitudes de professores que marcaram nossa vida escolar quando alunos. Entendo que os professores exercem uma profissão em instituições que são muito semelhantes àquelas nas quais passaram longos anos de suas trajetórias 3 escolares. Essas experiências marcam profundamente a escolha do magistério como carreira profissional, a prática docente e as mentalidades dos professores. Por isso - e devido a isso – voltei meu olhar sobre a vida pessoal do professor, considerando que a maneira como cada professor ensina está diretamente dependente daquilo que ele é como pessoa quando exerce seu ensino Para estruturar este trabalho, enredei meus pensamentos na busca de uma solução agravável para mim que o escrevo e sedutora para quem o lê. Talvez querer seduzir o leitor seja muita pretensão, mas pensei assim e por isso me motivei na busca de organizar uma seqüência com um pouco de imaginação para apresentar os resultados desse trabalho. Inspirada em Bachelard (2001), destaco que a imaginação é a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é, sobretudo, a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação. Assim, fui buscar na memória imagens cristalizadas. As imagens de artistas em diferentes espaços e tempos foram, então, utilizadas na abertura de cada capítulo deste trabalho e por mim denominadas de “viajantes”, porque me inspiraram um exercício de pensamento estético visual, combinado com reflexões, múltiplas, aspiradas, respiradas e transpiradas nas especificidades dos conteúdos de cada um dos textos que compõem todo trabalho. O primeiro capítulo, Eu no espelho: a pessoa, a professora, estrutura-se com base em um exercício de pensamento que narra minha trajetória de vida. Busco, através do espelho, um olhar profundo sobre mim e a partir da minha memória trazer fatos do passado que contribuíram na minha construção pessoal e profissional. O segundo capítulo, O caminho se faz caminhando, apresenta a origem do estudo: as razões e motivações, problemática de pesquisa e objetivos, destacando investigações realizadas anteriormente como o contexto gerador deste estudo. O caminho traçado para entender a trajetória profissional também se faz presente nesse capítulo, cujo enfoque foi a metodologia biográficonarrativa, uma abordagem quanti-qualitativa, que possibilitou aos professores 4 explicitarem as dimensões do passado que pesam sobre as situações atuais e sua projeção em formas desejáveis de ação. Lugar de formação: a casa e o corpo caracteriza-se como o terceiro capítulo, tendo por objetivo apresentar a casa da Arte, que também gradua profissionais nessa área, os professores formados nessa casa, narrando um pouco da história das instituições de ensino de arte no país que, de certa forma, influenciou o ensino da arte e, como conseqüência, a formação dos professores do Instituto de Artes e Design /UFPel. O quarto capítulo, Pinceladas que mudaram a história, discute as mudanças nas concepções de Arte e de ensino de Arte ocorridas a partir do início do século XX e suas implicações acerca do lugar da arte na escola, da formação do professor e do trabalho docente em artes visuais. Olhares teóricos sob percepção, o quinto capítulo, trabalha olhares de alguns teóricos para a compreensão de questões relativas à escola, ao trabalho docente, aos saberes docentes, aos ciclos de vida e as fases da carreira pelas quais passam os professores. No sexto capítulo, Impressões primeiras, são apresentadas as características dos professores comuns no coletivo. A partir do questionário com questões, subdivididas em questões fechadas e de alternativa múltiplas, agrupadas em torno das seguintes dimensões: dados de identificação, escolaridade, carreira e expectativas profissionais, processo de trabalho. Por fim, solicito aos professores informações sobre as dificuldades encontradas para ensinar arte e sugestões para a melhoria desse ensino. O sétimo capítulo, De onde vêm? Quem são? Para onde vão? apresenta a voz dos professores através de suas narrativas, destacando os eventos e experiências, passados e presentes, que configuram a vida e a carreira e suas expectativas acerca do futuro, ou seja, acontecimentos histórico-sociais que fazem desse professor uma pessoa total. O estudo dos ciclos de vida, através da trajetória biográfico-narrativa dos professores compreendeu aspectos relativos à escolarização; à escolha da profissão, com seus fatores determinantes e expectativas; à trajetória acadêmica, com suas influências, lembranças e formação prática de ensino; à carreira docente com seus primeiros anos de docência; ao exercício da profissão e, se o fato de ser mulher/homem afetou ou 5 não a carreira; ao exercício da docência e, por fim, os professores falaram da escola onde exercem a docência, destacando a história pessoal vivida na instituição, bem como o grau de satisfação com essa escola e o momento profissional em que se encontram. Os professores pelas suas trajetórias docentes e Os professores pelas suas imagens viajantes, correspondem ao oitavo e nono capítulos, respectivamente, são dois capítulos visuais onde no primeiro aparecem as biovias, os caminhos individuais de cada professor, determinados pelos acontecimentos vividos - momentos críticos – que marcaram a trajetória docente em artes visuais. Já no outro capítulo visual é possível ver os professores pelas cores e formas de suas próprias imagens refletidas nas imagens de artistas por eles selecionadas. A Voz: Impressões finais configura-se como apreciação, à guisa de (in) conclusão, sobre as continuidades e descontinuidades na (re) construção da trajetória profissional do docente em Artes Visuais, conclusão sobre a importância – e necessidade – de compreender que é impossível separar o eu pessoal do eu profissional; (in) conclusão porque é preciso visualizar outros caminhos, ainda pouco conhecidos, que possam contribuir mais efetivamente para e na formação inicial e continuada do docente em artes visuais e, assim, quem sabe, incentivar propostas de inovação. EU NO ESPELHO: A PESSOA, A PROFESSORA Eis-nos de novo face à pessoa e ao profissional, ao ser e ao ensinar. Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem que fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar, e que desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser. Antônio Nóvoa A Imagem Viajante nº1, “Moça em frente do espelho” de Picasso1, leva-me a passear no tempo e no espaço, um tempo que é só meu e um espaço que retrata minha realidade ordenada. Na imagem refletida no espelho o artista mostra como é possível construir um rosto com poucos elementos e com a ausência de relevo. A solidez e a profundidade da imagem são motivadoras da escrita dessa primeira parte do projeto; destina-se a um exercício de pensamento que narra minha trajetória de vida. Busco, através do espelho, um olhar profundo sobre mim e a partir da minha memória trazer fatos do passado que contribuíram na minha construção pessoal e profissional. Pablo Picasso (1881-1973), pintor espanhol, sua pintura é um “gesto de revolta com que se abre o processo revolucionário do Cubismo” (ARGAN, 1992, p.426). Cubismo: corrente estilística que apresenta duas tendências distintas: o cubismo analítico (1908-1911) e o cubismo sintético (19111914). O cubismo analítico trabalha com a decomposição da estrutura do objeto, uma verdadeira fragmentação, já o sintético decompõe sumariamente as formas, desintelectualizando as cores, utilizando a colagem de outros elementos na pintura. (CAVALCANTI, 1978, p.317). 1 7 A memória O processo de lembrar, ou melhor, a memória é sempre uma interpretação do passado à luz do presente, uma avaliação com os olhos de hoje. Na lembrança, o passado se torna presente e se transforma, contaminado e influenciado pela percepção atual de quem lembra, do aqui e agora. Sem memória, somos de alguma forma conduzidos por registros do passado, contidos em nosso inconsciente, que vão influenciar, sem o crivo da crítica, nosso comportamento. Daí a importância de, não somente nos deixarmos levar ao sabor e prazer (ou desprazer) de memórias ocasionais, mas, essencialmente, de recuperarmos como mecanismo de uma ação lúcida e consciente, conteúdos de nosso passado mais ou menos recente e, identificando sua influência em nosso pensamento, conduta, ação. Na obra “Memória e sociedade: lembrança de velhos” de Ecléia Bosi (1983, p.17), eu encontro a concepção de Halbwachs (1990) acerca da memória que diz que “na maior parte das vezes, lembrar não é refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho”. É dessa concepção de memória, presente nas palavras do autor, que aqui compartilho. É, então, através da lembrança das experiências vividas que destaco eventos significativos que me produziram e fizeram produzir-me como sujeito, mulher, professora. E, assim inicio minha narrativa. Bem, mas antes, devo dizer que narrativa sobre o que sei daquilo que vivi enquanto forma de conhecimento é um exercício de reflexão que envolve não só o fazer, mas também o escrever. Para Ferrer (1994, p.166) "a narrativa do conhecimento confere compreensão à realidade, o escrito explica a vida”. E mais, para a autora a diferença entre o pensamento e a escrita é a de que o que está escrito, escrito está, ou seja, complemento isso dizendo que para o bem e para o mal registrado e, de alguma forma, definido e definitivo posto está. 8 Uma relação delicada A paisagem onde constituí meu imaginário geográfico primeiro localizavase em Porto Alegre. Aos cinco anos de idade posso dizer que minha relação com a arte iniciava, pois começavam meus estudos de ballet. No ano seguinte fazia minha estréia acadêmica num renomado colégio de freiras para cursar a primeira série do curso primário. Alguns meses depois, enfrentei o primeiro preconceito institucionalizado contra a arte. Na época eu ensaiava euforicamente um espetáculo de dança que seria a minha estréia no palco, até que um dia a professora de religião chamou-me ao púlpito para reproduzir oralmente uma lição que deveria ser decorada, como não tinha estudado, argumentei prontamente que havia sido por pura falta de tempo porque os ensaios para o espetáculo estavam sendo excessivos. Quando terminei minha singela justificativa fui retirada abruptamente da sala de aula e depositada no gabinete da direção à espera de meu pai. É claro que nunca mais pisei na tal escola. Recomecei meus estudos imediatamente em outra escola de freiras. Só que desta vez foi tudo diferente. Era uma escola pequena e muito alegre. Eu pude até contar para a Madre Superiora, uma grande amiga por muito tempo, meu sonho de ser, além de bailarina, uma artista de circo. Sonho acalentado por muito tempo, quando das minhas fugidas ao circo em frente a minha casa, sempre tinha um circo saindo e outro chegando. Assim, começava a minha paixão pelo palco e pelo picadeiro; a pelo palco continua até hoje e o picadeiro daquele circo de lona colorida ficou na lembrança. Tudo na minha vida ia muito bem, até que por decisão familiar, fui para um colégio de Cônegas Francesas em regime de semi-internato. É evidente que elas foram avisadas sobre as minhas aulas de ballet. O cenário da escola era belíssimo, ficava num local afastado da cidade, a disciplina extremamente rígida era a tônica da escola, o corpo docente mais parecia um grupo japonês de Teatro Kabuc, pela seriedade e pela falta de humor. Estudava, além das disciplinas curriculares, Latim, Francês, Inglês e ainda tinham as aulas de polidez. Até hoje lembro o horror de almoçar com uma freira ao lado, em pé como uma coluna grega, falando, cutucando freqüentemente. Não sei como não fiquei com um trauma gástrico. No entanto, não é dos melhores o meu relacionamento com 9 alguns alimentos, ainda hoje. O que mais me agradava nesta escola era o intervalo do almoço. Fiz amizade com uma freirinha que escutava um radinho de pilha e que me ensinou a jogar bolinha de “gude”. Assim, após o almoço, escutávamos rádio, jogávamos bolinhas e, por vezes, eu a ensinava a dançar. Ela era diferente das outras, estava sempre sorrindo e todas as tardes, na hora do lanche, ela carregava uma enorme cesta com pãezinhos bem quentinhos. Eu pensava que ela não era professora, e sim a responsável pela padaria da congregação. Muito tempo depois, a escola já não existia mais, encontrei a freirinha no Colégio Anchieta, como professora de Ciências. Aí nessa escola, eu iniciava minha trajetória de professora de arte, e eu e a freirinha alegre trabalhamos juntas em várias atividades integradas. Por motivos político-familiares saí do Colégio das Cônegas e fui para outra escola, também de freiras, para concluir o ginasial. O que mais me fascinava nesta escola era o Núcleo de Artes e Cultura, eu fazia tudo o que era possível, teatro, dança, pintura, escultura, canto. Foi neste clima que concluí, tranqüilamente, meus estudos ginasiais. E, a partir daí, a minha relação com a arte se solidificou e o ser professora de arte irreversível. Uma decisão saborosa Criou-se, então um impasse familiar: de um lado meus pais achavam que eu deveria cursar o 2º Grau, pela manhã, em outro renomado colégio de freiras; por outro lado eu queria estudar, à tarde, em uma escola normal pública e pela manhã lecionar ballet para crianças. O convite para lecionar surgiu logo após minha formatura em dança clássica, era irrecusável. O resultado deste impasse foi a minha derrota temporária. Matricularam-me, então no tal colégio para fazer o “Clássico”. Eu saía de casa, todas as manhãs bem cedo, para ir à escola, carregada de livros, só que eu ia dar minhas aulas de ballet. Nunca entrei no renomado colégio. Sustentei esta situação insuportável por quase dois meses, até que fui prestar exame de seleção para o tão desejado Curso Normal e ao receber o resultado de aprovação pude chegar em casa e reverter a pseudo-vitória familiar. Com certeza a minha carreira teatral definiu-se aí. E aí, também a minha carreira no magistério, logo que formada comecei a lecionar, na rede escolar do 10 município, em uma escola de periferia com uma classe de 3ª série. Uma opção decisiva O que eu queria mesmo era ser professora de arte, então ao concluir meu curso Normal prestei vestibular para o curso de Licenciatura em Artes Plásticas do Instituto de Artes e para o Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UFRGS. Passei nos dois. Porém, mergulhei no mundo da arte e o que me agradava era o ambiente artístico e cultural daquela casa de ensino. Respirava arte por todos os poros. Minha vida universitária foi de fundamental importância tanto na aquisição do meu conhecimento teórico da arte quanto na minha produção artística. Meus cursos universitários foram, sem dúvida, grandes performances. Era tempo de atuar, o estágio obrigatório levou-me ao Colégio Anchieta para ser a professora de arte e encontrar a freirinha minha amiga. O estágio acabou e eu continuei lecionando, como professora contratada. Uma mudança geográfica A paisagem onde constituí meu imaginário geográfico segundo, localizavase em Pelotas. Minha vinda para Pelotas, apenas uma mudança geográfica, em nada interferiu nos meus ideais profissionais, pelo contrário, oportunizou-me meios para concretizá-los ainda mais. Aqui retornei a minha grande paixão, o palco – só que desta vez através do teatro. E o picadeiro? Este, eu não tive a oportunidade de experimentar, mas não perco nenhum circo que apareça na cidade, do mais simples ao mais sofisticado. Isso não importa, o que importa mesmo é estar sentada, comendo pipoca, ouvindo aquela música de circo e aquela voz dizendo: “Respeitável público”. É a glória! Meu contato com a Universidade Federal de Pelotas deu-se através da Pós Graduação em Artes do Instituto de Letras e Artes, onde concluí o curso de Especialização em História da Arte. Nesta época conheci os integrantes do grupo Teatro Universitário e por dois anos consecutivos atuei como atriz e figurinista. Foi, então, que eu recebi meu primeiro prêmio de melhor atriz, outros se seguiram, em outro grupo, a Cia. Teatro Frio, como atriz profissional, já 11 devidamente sindicalizada, com carteirinha e tudo. Em 1989 ingressei no quadro docente da UFPEL, através de concurso público, no Departamento de Artes e Comunicação do Instituto de Arte e Design, para lecionar Expressão Cênica, Expressão Corporal e Fundamentos da ArteEducação, no curso de formação de professores. Durante este período inicial desenvolvi Projetos de Extensão que me permitiram contato com professores em serviço nas redes municipal, estadual e particular de ensino da Pelotas e região. Experiência marcante na minha trajetória docente. Uma caminhada de re-configuração Na tentativa de organizar uma seqüência de lembranças dessa experiência, relembro Comparato (1983, p.45) quando diz que "a memória é a cristalização de fatos”, e complemento que não só de fatos, mas também de gestos, de falas que formam um acervo de imagens e pensamentos. E na profusão desses, procuro organizar tal seqüência com um pouco de imaginação, isto é, buscar a maneira de fazer a leitura de acontecimentos tão marcantes. Surgem, imediatamente, três cenas em "flash back” 2: um grupo de professores sentados no chão; um grupo de alunos ao redor de uma mesa e eu lendo questionários preenchidos por professores e alunos. Essas cenas são absolutamente necessárias para a ação narrativa, só que assim reordenadas: Flash Back nº 1: Leitura de questionários Uma pilha de questionários, já preenchida, descansava sobre uma mesa num dia cansativo de janeiro de 1992. Há algum tempo que eles estavam ali esperando por mim. Naquele tal dia, quente e abafado, iniciei a leitura dos "ditos" para, posterior, tabulação e análise. Um trabalho artesanal. Na medida em que ia lendo questão por questão, anotava as respostas em seus respectivos lugares nas grades primitivamente elaboradas. Essa atividade foi à tônica das minhas tardes daquele abafado janeiro. O trabalho representava uma tentativa de fazer um diagnóstico das condições dos docentes e da docência em Artes nas escolas da cidade de Pelotas, que possibilitassem a obtenção de dados capazes de permitir uma análise mais Cena que revela algo passado. É uma técnica usada para mostrar algo que aconteceu no passado da personagem. (COMPARATO, 1983, p.121). 2 12 fundamentada das questões relativas ao ensino da arte e à formação do futuro professor. E assim, através das respostas, tanto dos professores como dos alunos, iam surgindo os contornos do perfil do professor e da situação do ensino da arte. Daí configurou-se uma imagem problemática do ensino da arte, cujo cerne da questão - concluí - tinha relação com a formação do professor de arte e com sua prática pedagógica. Flash Back nº 2: Professores sentados no chão No início do 2º semestre letivo de 1993, eu e um grupo de alunos - a "Gang" da Carmen, como era conhecida - partimos para a realização de mais um projeto de extensão denominado "Arte-Educação: vivenciar, integrar e agir". Desta vez o local foi o município de Piratini e a clientela formada por professores do Ensino Fundamental e de Educação Artística das escolas estaduais, municipais e da zona rural. Assim, na manhã do dia 6 de agosto rumamos para mais uma experiência de ensino da arte. Lá chegando, dirigimo-nos à sede do Banco do Brasil, onde seria realizado o curso, Para espanto de todos nós, o espaço físico era o ideal: um salão muito grande, bem iluminado, com todos os recursos materiais possíveis e imagináveis. É claro que estranhamos, pois nós que ensinamos Arte não estamos acostumados com tanta coisa assim. Mas o que realmente marcou foi à cena com que nos deparamos: eram 64 professores sentados no chão olhando para nós com muita curiosidade e expectativa. Nunca tínhamos ministrado um curso com tantos professores juntos e com um grupo tão heterogêneo. Nosso objetivo com o projeto era o de vivenciar e de integrar as linguagens artísticas (plástica, cênica, música) como forma de aprendizagem refletida no agir, visto que todas as atividades artísticas estão ligadas à cognição, pois fazer arte é produzir conhecimento. Fomos, então, ao longo de todo o semestre vivenciando e integrando linguagens artísticas, aplicando nosso conhecimento com os professores e estes com seus alunos em suas escolas. Fato este que nos levou a concluir que é possível aliar saber artístico com fazer artístico, ou seja, a teoria com a prática. Flash Back nº 3: Alunos ao redor da mesa Num final de tarde de agosto de 1995, quando cheguei no Instituto de Letras e Artes, ainda na rua olhei, pela porta de vidro, a sala da Biblioteca e vi um grupo de alunos sentados ao redor de uma mesa. Entrei, fui direto para onde eles estavam, eram todos conhecidos, eram os companheiros de extensão, era a minha "Gang". Partilhei com eles as novidades e as reflexões no e em decorrência do Curso de Mestrado que eu estava realizando. E foi deles mesmo a idéia inicial do que viria a concretizar-se numa experiência de ensino da arte na perspectiva da produção do conhecimento. Com esse projeto de extensão para alunos da própria instituição, nosso objetivo era discutir a questão dos paradigmas predominante e emergente de Educação, de Arte e de Ensino da Arte, refletindo sobre suas influências na prática pedagógica e suas conseqüências na formação de professores de arte. E, por meses, assim foi feito. Muito 13 discutimos, muito estudamos, muito refletimos e concluímos, ao final da experiência, que não é impossível aproximar a Arte da Educação para um efetivo ensino da arte na perspectiva da produção do conhecimento. A utilização do "flash back" serviu para mostrar fatos e ações de três cenas absolutamente fundamentais e marcantes na minha trajetória profissional, todas elas concretizadas através de projetos de extensão. Um "flash back" tem que integrar uma história, tem que ter um significado para uma ação, e estas cenas narradas foram, sem dúvida, as "molas propulsoras" das minhas ações subseqüentes, uma após a outra. A reflexão sobre tais cenas apontou para questões básicas do ensino da arte: a formação do professor, a relação saber / fazer artístico (teoria e prática) e a produção do conhecimento em arte. Estas questões, teoricamente fundamentadas e praticamente vivenciadas à luz do meu "olhar", levaram-me a re-configurar meu conhecimento e a investir em novas propostas de trabalho de ensino de arte, quer com alunos da nossa instituição, quer com professores da nossa comunidade. Um exercício de escrita de si As ações educativas aplicadas em aula baseiam-se em teorias de educação. A atuação do professor está impregnada dos pressupostos e diretrizes de uma concepção de mundo que, por sua vez, nutre tal teoria. É claro que isso ocorre, também, com o ensino de arte. As concepções de mundo do professor embasam as relações que ele estabelece entre as aulas de arte e a sociedade. A ação do professor em sala de aula possui sempre uma teoria de educação. Uma ação impregnada de pressupostos teóricos de uma determinada concepção de mundo. Minhas ações também foram e continuam impregnadas de teorias educacionais. Lembro de ouvir, certa vez, uma frase de Leonardo Boff que dizia: “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”, e a minha cabeça pensou e pensa pelos caminhos que pisei e piso. Pisei em teorias que pregavam o ensino da arte como livre expressão, ensinei arte privilegiando a técnica do fazer artístico. Hoje, 14 procuro pisar de forma mais reflexiva no caminho que considera a arte uma área de conhecimento e seu ensino a possibilidade de uma alfabetização visual. Procuro compreender os estudos da imagem e da cultura visual como principal exemplo de um mundo inventado pela visualidade que apresenta novos rumos para o campo da arte, principalmente, das artes visuais contemporâneas e também para o ensino da arte. As preocupações com a formação e a prática do professor de arte têm origem na minha própria prática como professora num centro de formação docente. Pensar na formação de professores, outros que não eu, levou-me a reconstruir meu próprio percurso, ou seja, caminhos que percorri para ser hoje a professora que sou e assumir hoje o lugar que ocupo profissionalmente. Minha primeira experiência em sala de aula, como professora de crianças, sofria na época, de um grande entusiasmo profissional. Eu acreditava que a escola era a solução para todos os tipos de problemas sociais e que a educação era a responsável pelas ações transformadoras do homem na sociedade. Eu sorria muito, eu era muito feliz ao ver meus alunos expressarem-se através da arte revelando as suas mais puras emoções. Nessa época, eu acreditava piamente que essas crianças seriam amanhã os adultos capazes de transformar realidades. Por um longo tempo pensei assim. Ao ensinar jovens adolescentes descobri-me uma professora diferente, todos diziam que era preciso ter pulso forte, ter domínio da classe. Foi assim que, com disciplina na repetição dos conteúdos oficiais, no exercício da memória, eu trabalhava a pedagogia da ordem e, também, a conhecida “pedagogia da nuca”, alunos quietos, sentados um atrás do outro com os olhos fixos na nuca do colega. Sofri a influência da visão psicologista do ensino, encaminhava sempre que possível, minha relação com os alunos numa perspectiva afetiva, mas eu não sorria muito. Nessa época eu me achava “o máximo” como professora. Registro, ainda, a minha vivência em uma instituição marcada pelo autoritarismo estrutural, era preciso formar o aluno para o mercado de trabalho. A regra era ensinar numa perspectiva marcadamente tecnicista. O lema era obediência e competência - os melhores sempre vencerão. Num determinado momento, um fato novo surgiu: o movimento da crítica à educação eclodiu nacionalmente, derrubando o caráter de reprodução do ensino, 15 repensando o papel da escola na sociedade e definindo a educação como um ato político. Pensar nesse sentido mudou tudo. Iniciei um caminho de descobertas e ambigüidades. Passei a ter outro compromisso, o compromisso da professora que forma professores. Segui um caminho sem volta: continuar estudando aquilo que tanto gosto, a formação de professores. Hoje, procuro, numa perspectiva mais reflexiva da minha prática, produzir uma mudança, fazer surgir uma nova realidade material e humana qualitativamente diferente; quero, através de uma prática docente mais reflexiva, estabelecer uma ação recíproca com meus alunos e com nossas realidades, propor uma atividade criadora em oposição à atividade mecânica e repetitiva, vincular teoria à prática tanto no saber e fazer artístico como no saber e fazer pedagógico. Um discurso assumido Minha intenção, aqui, é pensar o discurso como resultado da prática, considerando a fala não como um simples ato de comunicação ou de dizer, mas uma construção de significados que transcendem a uma situação imediata e na qual estão implicadas determinadas relações históricas, culturais, sociais, políticas, econômicas que marcam a forma e o conteúdo do que é dito. O discurso assume, desta maneira, a função de representação externa da experiência interna. E, na medida em que se reconstrói a experiência através da narrativa, reconstrói-se o discurso. Conforme afirma Cherryholmes (1987, p. 23), baseado em Foucault, os discursos "não são simplesmente construções idealistas. As práticas discursivas não podem ser desligadas de seu contexto histórico". Se assim é, o que entendo e digo daquilo que fiz e faço representa a minha prática discursiva, os meus saberes. Bem, mas qual é então o discurso que assumi? A reflexão sobre minha trajetória docente aponta para questões atuais - e básicas - do ensino da arte: a formação de professores, a relação saber e fazer artístico e a produção de conhecimento. Acredito - e mesmo afirmo – que é a partir da reflexão sobre a própria experiência que surgem os referenciais necessários ao processo de construção do novo, um novo saber, uma nova 16 prática. E, ainda, reforço que esse processo acontece também no interior do espaço de vivência da situação de ensino, formal ou não formal, pelas relações que o professor mantém com seus alunos. Ao longo desse tempo venho, através de estudos, lendo vários autores, buscando - ou melhor, tentando buscar - algumas respostas aos meus questionamentos e indícios de outros caminhos que eu possa percorrer para encontrar tais respostas, ou, pelo menos, compreendê-las melhor. Hoje encontro possibilidades de um novo "olhar", um "olhar para" novas perspectivas de análise para as minhas inquietações. Em Zeichner (1993) está à alternativa para pensar a formação de professores que aponta para o professor como um prático reflexivo, um agente ativo responsável por seu desempenho docente, um produtor do seu saber teórico, prático e teórico-prático. A concepção de reflexão na ação e sobre a ação envolve um saber que vai sendo acumulado ao longo do tempo, visto que o professor está sempre criando o seu saber. Encontro, aí, a base para falar da formação dos professores, da relação teoria e prática, ou seja, saber e fazer artístico. Em Penin (1994) encontro a compreensão sobre a diferenciação entre o saber cultural, cotidiano, leigo ou empírico, e o conhecimento sistematizado, numa ação de interação entre professores e alunos num espaço de conhecimento, num lugar de cultura como uma situação de ensino formal ou não formal. O professor no exercício de sua função na escola depara-se com a "cultura escolar", que compreende o ideário pedagógico resultante de discursos pedagógicos já realizados sobre questões relativas à educação, à escola, e o conhecimento das disciplinas escolares, embora apresente níveis diferentes de sistematização. E, ao mesmo tempo em que o professor vai construindo um conhecimento sobre o ensino, vai partilhando com os alunos o resultado de sua elaboração a respeito dos saberes e conhecimentos culturais a que tem acesso. Isto implica em pensar que o processo de construção do conhecimento é orientado por duas suposições: uma de representação que o professor vive; a outra por um espaço constituído, de um lado, pelas concepções que o professor vai acumulando sobre o ensino com base no conhecimento sistematizado e por 17 outro lado pela experiência da situação de ensino e pelas relações que mantém com seus alunos. Identifico aí a situação de ensino como o espaço de produção do conhecimento. Encontro nos Estudos Culturais à resposta para uma velha crença: "Por que não, no ensino da arte, a colcha da vovó”?”, “Por que não ensinar a arte popular?” Isto porque acredito que a experiência estética já é desfrutada pelo indivíduo antes de ele entrar para a escola. Se pensarmos bem, nós os professores de arte, não introduzimos a experiência estética, apenas a incrementamos a partir de algo que já existe, ampliando o âmbito e a qualidade da experiência visual e estética. E mais, os Estudos Culturais estão preocupados com a cultura popular, com a cultura da mídia, com o terreno cotidiano das pessoas, e com todas as formas pelas quais as práticas culturais chegam a essas pessoas ou fazem parte da vida dessas pessoas. Os Estudos Culturais - lembro aqui Giroux (1992) oferecem algumas possibilidades para os professores repensarem a natureza da teoria e da prática educacionais. A Cultura Visual de Hernandez (2000) destaca a importância da imagem e a necessidade do professor de arte ser aquele que vai possibilitar a construção de um olhar atento frente a este mundo de imagens coloridas. A docência em arte, na contemporaneidade, tem dado grande ênfase às questões da imagem e sua interpretação, estabelecendo, assim, o uso tanto de imagens da arte como de imagens da mídia. Encontro aí os caminhos para pensar que o professor deve ensinar num contexto mais amplo de currículo, considerando também, um cenário educacional e cultural bem mais amplo, fora do sistema formal de escolarização. Um caminho para novas pisadas Penso que não há um ponto de chegada, definitivo, quando se trabalha em educação, há apenas mais um ponto de partida. E, com este trabalho, fui buscar mais um ponto de partida, trilhar um novo caminho para pensar e pisar diferente. 18 Meu encontro com Nóvoa (1995b) foi decisivo para vislumbrar outras possibilidades para pensar o professor, principalmente, quando li o texto “Diz-me como ensinas, dir-te-ei quem és e vice versa”. Nesse texto, o autor aponta uma realidade recente no modo de pensar os professores e sua profissão e mais, pensar a pessoa e o profissional que habitam cada professor. Isto aponta para a compreensão de que é impossível separar o eu pessoal do eu profissional. Minha motivação para a realização deste trabalho foi a necessidade de buscar uma compreensão mais articulada e elaborada sobre continuidades e descontinuidades na (re) construção da trajetória profissional do docente em Artes Visuais, para que mais ciente de suas implicações, visualizasse alguns caminhos que pudessem contribuir mais efetivamente para e na formação docente. Um grande desafio para mim. Pisei, pisei. Confesso que pisei. Pisei firme. Pisei fraco. Pisei em falso. Torci o pé. Pisei com medo. Pisei sem medo. Pisei feliz. Pisei errado. Parei e não pisei. Pisei novamente. Pisei firme. Pisei forte. Pisei distraída. Pisei na lama. Pisei consciente. Pisei diferente por diferentes caminhos e descobri novas pisadas. O CAMINHO SE FAZ CAMINHANDO Não, não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar. Thiago de Melo Em ”Os Valores Pessoais”, a Imagem Viajante nº2, Magritte3 transforma as proporções dos objetos e ressalta o arbitrário da relação entre as coisas e os nomes que lhes damos. Na imagem, uma cama acolhe um pente, um guarda roupa acolhe um pincel de barba e o espelho é uma parede ao fundo, é o céu, é o finito no infinito. Um ambiente inteiro que transcende a si mesmo, pente é, ao mesmo tempo, pente e não pente, cama é cama e não cama. O olhar de Magritte para muitos pode parecer absurdo, mas é só dele. O que é absurdo para uns, não é, necessariamente, absurdo para outros. A imagem escolhida leva-me a pensar nos meus valores pessoais, normas, princípios, padrões aceitos ou mantidos, inscritos num caminho que é só meu. Um caminho próprio, traçado por valores pessoais e eventos profissionais, um René Magritte (1898-1967), pintor belga, foi um dos principais artistas surrealistas, ele “se declarava empenhado acima de tudo em explicar aquilo que chamava o mistério do mundo”. (PIERRE, 1991, p. 96). Surrealismo: termo inventado por Guilherme Apollinaire (1880-1918) em 1917, mas usado pelo movimento fundado por André Breton (1896-1966) em 1924. Movimento que pretende libertar o patrimônio do inconsciente, através da supremacia do sonho e a suspensão do controle consciente (CUNHA, 2005, p. 276). 3 20 caminho que hoje transcende ao vivido e busca não um caminho novo, mas uma nova forma de caminhar e que dá origem a este estudo. Achados no caminho A preocupação com a formação do professor de Arte e a conseqüente melhoria na qualidade do ensino da Arte emerge de minha própria prática pedagógica no centro formador do professor de Artes - o Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Ao longo de minha experiência - como professora e como coordenadora, por quatro gestões, do Curso de Artes Visuais, Modalidade: Licenciatura percebo a necessidade, mais uma vez, de profunda revisão no ensino nesta área e, paralelamente e como parte do mesmo, na formação do futuro professor de Arte. Agora, através de uma investigação com professores de Artes Visuais em exercício nas escolas públicas da rede municipal da cidade de Pelotas. Isto porque documentos oficiais como a Lei de Diretrizes e Bases, os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Diretrizes Curriculares têm gerado novas posturas pedagógicas e mudanças tanto políticas quanto conceituais no ensino da Arte. Durante minhas atividades no curso, ora como coordenadora e professora, ora como palestrante e supervisora de estágios, o contato com professores de Arte e com a realidade escolar das escolas públicas e particulares do município de Pelotas e região fez com que eu passasse a refletir sobre a seguinte situação: de um lado, a atuação desestimulada de um número muito significativo de professores e, por vezes, um sentimento de impotência diante da necessidade de intervir na realidade escolar; de outro, estagiários questionando a formação acadêmica, que segundo eles, não fornece uma instrumentalização básica e necessária para ações educativas nas aulas de Arte. Na busca de compreensão dessas situações três investigações foram realizadas anteriormente. Na primeira, parti para a elaboração de um diagnóstico das condições docentes e da docência em Arte nas escolas da cidade de Pelotas, o que possibilitou a obtenção de dados capazes de permitir uma análise mais fundamentada das questões relativas ao ensino e à formação do professor. A 21 segunda aconteceu no centro formador do professor de Arte e procurou saber quais os compromissos do professor que forma professores, identificando o tipo de prática pedagógica predominante. E, retornando aos professores em exercício, a terceira pesquisa teve como objetivo indagar a respeito das teorias educacionais que participam das escolhas pedagógicas e estéticas do professor. O levantamento dos dados, no primeiro trabalho, foi realizado durante o ano letivo de 1991, através da aplicação de questionários a professores e alunos de quinze escolas - dez estaduais e cinco municipais - da cidade de Pelotas. De um total de cento e sessenta e oito professores de Educação Artística (termo extinto e substituído por Arte pela LDB 9394/96) - distribuídos em cerca de oitenta e quatro escolas de educação básica4 da cidade, das quais cerca de cinqüenta e seis de âmbito municipal, foi sorteada uma amostra de cinqüenta professores, sendo que 98% egressos do IAD-UFPel. Cem foi o número total de alunos envolvidos na pesquisa. A média de alunos das turmas consideradas foi de trinta e cinco alunos por turma. Este trabalho permitiu-me identificar dados referentes aos professores que apontam para os seguintes problemas: (a) atuação polivalente, atuação em sala de aula com diversas linguagens artísticas (artes plásticas, música, teatro); (b) desconhecimento da concepção de Arte como forma de construção de conhecimento; (c) concepção do ensino da Arte como sendo somente expressão pessoal através do fazer artístico; (d) deficiência de domínio do conhecimento e na apreensão das estruturas básicas desse conhecimento para possibilitar o trabalho dos conteúdos da educação básica, tanto com crianças como com adolescentes e adultos, em cursos diurnos e noturnos e (e) dissociação do conhecimento de Arte com a realidade concreta do aluno e da escola. Outros problemas mais diretamente relacionados à prática da Arte em si mesma estão relacionados à concepção do ensino com ênfase no fazer artístico e ao fato de não existir uma compreensão generalizada de que a Arte, como qualquer outra área do domínio específico do conhecimento humano, possui conteúdos próprios, capazes de produzir situações adequadas e viáveis à construção do conhecimento aliada à produção artística, por parte do aluno. Educação básica formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Cap. I, Art. 21, I, da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional “LDB” - Lei Darcy Ribeiro - nº 9.394 de 20.12.1996, publicada no Diário Oficial da União em 23.12.1996, Seção I. 4 22 Registro, ainda, como conseqüência, problemas relativos a critérios utilizados para elaboração de programas de ensino e definição de objetivos pretendidos; dificuldades para diferenciar conteúdos de técnicas e para avaliar o desempenho dos alunos; dúvidas na utilização de recursos materiais e bibliográficos e na aplicação das linguagens artísticas em sala de aula. A visão dos alunos, por outro lado, revelou que: (a) a identificação com a aula de Arte era com a simples realização de atividades que envolviam o fazer artístico; (b) não priorizam a aquisição de conhecimentos e apreensão de conteúdos de Arte e (c) não manifestam nenhuma mudança no comportamento a partir das aulas de Arte. A segunda investigação, “Prática Pedagógica em Arte: os compromissos do professor que forma professores”5, foi realizada no centro formador do professor de Arte, o Curso de Licenciatura em Artes do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Pelotas, no período de setembro de 1996 a janeiro de 1997. A questão norteadora do trabalho estava relacionada à prática pedagógica em Arte, procurando compreender e analisar essa prática e os indícios de avanços necessários à construção do conhecimento em Arte e ao comprometimento com a formação dos profissionais da área. Era de fundamental importância compreender, ainda, se essa prática exercia um papel contraditório, sendo ela reiterativa ou reflexiva. Participaram da pesquisa professores efetivos que ministravam disciplinas teóricas do núcleo básico do 2º semestre e os que atuavam nas disciplinas práticas da parte diversificada do 8º semestre de cada habilitação (Artes Plásticas, Desenho, Música) do curso de Licenciatura Plena em Educação Artística, perfazendo um total de sete (07) disciplinas e de sete (7) professores interlocutores. A participação dos alunos, como interlocutores desta investigação, foi de fundamental importância para a minha análise da prática pedagógica em Arte. Os alunos selecionados foram aqueles do 2º semestre do curso matriculados em duas disciplinas do núcleo comum às três habilitações - perfazendo um total de trinta e dois (32) interlocutores - e os alunos do 8º semestre estavam matriculados Dissertação de Mestrado que resultou na publicação do livro “A formação do professor de Arte: do ensaio... à encenação” pela editora Papirus de Campinas, São Paulo -1ª ed.: 1999; 2ª ed.: 2004; 3ª ed.: 2007. 5 23 em disciplinas da parte diversificada de cada habilitação, coincidentemente o mesmo total de alunos do 2º semestre. Os resultados obtidos foram reveladores para a compreensão da prática pedagógica em Arte quanto a sua concepção e seu significado, em suas relações com os que dela participam e em seu comprometimento com a formação dos profissionais da área. Considerando a prática pedagógica como atividade teórico-prática, que pressupõe uma concepção de conhecimento que orienta uma relação de reciprocidade entre sujeitos e, ainda, uma ação entre um sujeito sobre outros sujeitos; delimitei-a como local de reiteração e/ou de reflexão do saber e do fazer artístico o que, por sua vez, aponta para duas perspectivas de prática pedagógica: a reiterativa e a reflexiva. Duas perspectivas que envolvem diferentes concepções de Arte e de ensino da Arte. A primeira, a prática pedagógica reiterativa, envolve a concepção de conhecimento como produto6, seja do saber artístico, seja do fazer artístico. Já na prática pedagógica reflexiva, a concepção de conhecimento vai além do produto, envolve o processo do saber e do fazer artístico. Nessa prática, o conhecimento é concebido como processo. A concepção predominante de prática pedagógica em Arte, identificada na investigação, tanto por parte dos professores quanto dos alunos, evidencia que: (a) não há unicidade entre o saber e o fazer artístico, entre teoria e prática; (b) o conhecimento da Arte nos diferentes contextos históricos é enfatizado como produto realizado, privilegiando a repetição desse conhecimento; (c) o fazer artístico é utilizado através de técnicas da Arte; (d) há pouca preocupação em mudar a realidade; (e) o professor é ainda a fonte principal da informação; (f) há certa relação de hierarquia entre professor e aluno; (g) o aluno é avaliado pela sua produção artística mais do ponto de vista prático, como produto, (h) o professor apresenta dificuldades em se reconhecer na atividade pedagógica enquanto educador. A partir dessas evidências, constatei que há, ainda, uma forte tendência para uma prática pedagógica reiterativa, com possibilidades visíveis e desejáveis de mudanças nessa prática, uma prática tão contraditória como a própria Arte. Os termos produto e processo, utilizados para definir tipos de conhecimento, foram tomados do estudo de Leite (1994, p. 15) sobre concepções de conhecimento. 6 24 O tempo passou e o ensino da Arte adquiriu novos contornos frente às propostas advindas da LDB (Lei 9.394/96) e a conseqüente divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais - Arte7, que ratificam a presença da Arte, suas diversas linguagens artísticas nas escolas – música, teatro, dança e artes visuais, respeitando as suas especificidades e a formação docente em uma linguagem específica. O terceiro estudo, realizado em 2004/20058, pretendeu resgatar aspectos da história das políticas educacionais e os enfoques filosóficos, pedagógicos e estéticos que influenciam a formação e a atuação do docente na área de Arte, verificando, ainda, as relações existentes entre as teorias educacionais que caracterizam o século XX e o início do século XXI com as transformações ocorridas no ensino da Arte para, por fim, compreender como essas teorias influenciaram a formação do professor e a atuação docente. Os dados obtidos foram relativos: (a) à caracterização do professor quanto à formação acadêmica e profissional; (b) à percepção do professor sobre Arte, ensino da Arte, conteúdos da Arte, metodologia, avaliação, figura do professor e aluno; (c) às mudanças no ensino da Arte percebidas pelo professor e as dificuldades encontradas para implementação dessas mudanças; (d) às teorias educacionais predominantes nas aulas de Arte apontadas pelo professor e, por fim, (e) à compreensão de como essas teorias influenciaram e influenciam o professor e se, na prática, essas se mesclam e se a definição de uma concepção predominante não descarta a possibilidade de outras formas de manifestações consideradas próximas entre si. Participaram da primeira parte da pesquisa 54 professores cujo objetivo era fazer uma caracterização geral dos professores e identificar a concepção de Arte trabalhada em sala de aula. Nas fases posteriores foram realizadas observações em sala de aula e entrevistas semi-estruturadas com quatro professores que A nomenclatura Artes Visuais consta do documento “Proposta de Diretrizes Curriculares sistematizada pela Comissão de Especialistas de Ensino de Artes Visuais da SESu/MEC-1998”, compreende as artes plásticas, desenho, fotografia, vídeo, cinema etc. Os PCN-ARTE (1998, p. 63) incluem, além das formas tradicionais (pintura, escultura, desenho, gravura, arquitetura, objetos, cerâmica, cestaria, entalhe), outras modalidades que resultam dos avanços tecnológicos e transformações estéticas do século XX: fotografia, moda, artes gráficas, cinema, televisão, vídeo, computação, performance, holografia, desenho industrial, Arte em computador. 8 Pesquisa que resultou na publicação do livro “Professor de Arte: onde pisam seus pés?”, pela Editora Gráfica Universitária da Universidade Federal de Pelotas/UFPEL, Pelotas. 2005. 7 25 representassem diferentes momentos da trajetória de formação docente do IAD, ou seja: (a) um professor com Licenciatura Curta em Educação Artística; (b) um professor com Licenciatura Plena em Educação Artística/Habilitação em Artes Plásticas; (c) um professor com Licenciatura em Educação Artística/Habilitação em Artes Plásticas, com a eliminação do caráter polivalente na formação e (d) um professor com Licenciatura em Artes com Habilitações em Artes Visuais. As observações9 foram realizadas no 2º semestre letivo de 2005, perfazendo um total de 42 horas/aula. As turmas observadas foram as seguintes: da Professora A uma 5ª série de uma escola estadual; da Professora B uma 8ª séria de uma escola municipal; da Professora C uma 3ª série de uma escola municipal e da Professora D uma turma noturna da E.J.A. de uma escola estadual. Os objetivos das observações em sala de aula foram: (a) acompanhar o desenvolvimento de um determinado conteúdo da Arte; (b) identificar as etapas utilizadas pelo professor para estruturação de seu ensino como: preparação, introdução, consolidação, verificação e avaliação do conteúdo e (c) identificar a forma de interação professor - alunos no dia-a-dia da sala de aula. Cabe, aqui, ressaltar como resultado desse estudo o predomínio da concepção de Arte como área de conhecimento, uma concepção atual de ensino da Arte. Entretanto, é bastante significativa a indicação da concepção de Arte ora com ênfase na livre-expressão do aluno, ora como técnica artística, tanto para os professores municipais como para os estaduais. Isto, talvez, deva-se ao fato de que os cursos de licenciatura (a princípio curta e depois plena), criados na década de 70, por exigência da Lei 5692/71, permaneçam, ainda, com sua estrutura curricular voltada para a concepção de Educação Artística como uma mera atividade expressiva com ênfase no fazer artístico. É preciso também, lembrar que, na época, os cursos tinham na sua estrutura um caráter polivalente (artes plásticas, música, teatro). A partir das falas das professoras ficou claro que todas reconhecem e identificam as mudanças ocorridas no ensino da Arte, mas manifestaram que sentem dificuldades em implementar essas mudanças. É possível destacar, As observações e, também, as entrevistas, foram realizadas pelas acadêmicas do Curso de Artes Visuais/Modalidade: Licenciatura – IAD/UFPel, Sabrine Schoenell, Kátia Helena Rodrigues Dias, Kelen Rodrigues Dias, Carla Rosana Czermaing Gonçalves e Patrícia Maria Macedo Alves. 9 26 também, que apesar da obrigatoriedade do ensino da Arte em todos os níveis da educação básica pela legislação, prevalece na escola o espírito educacional hierárquico da importância suprema da linguagem escrita e verbal e conseqüente desprezo pela linguagem visual. E como resposta à questão central dessa pesquisa: Quais as teorias educacionais que participam das escolhas pedagógicas e estéticas do professor de Arte? Tem-se que o professor identifica claramente o processo de construção de sua trajetória docente, ele sabe que nessa caminhada pisa em diferentes teorias educacionais, é capaz de identificar as que o influenciaram e influenciam na sua prática e as que participaram e participam de suas escolhas pedagógicas e estéticas. Este fato confirma que as teorias se mesclam na prática e que uma concepção predominante não descarta a possibilidade de existirem outras formas de manifestações consideradas próximas entre si. A teoria apresentada no discurso do professor na prática é, na maioria das vezes, completamente diferente. Se por um lado, o professor identifica suas escolhas pedagógicas e estéticas e percebe que sua caminhada não é nada fácil, ora pisando firme, ora pisando fraco, mas sempre pisando diferente por diferentes caminhos, por outro lado percebe-se impotente frente à necessidade de mudanças e, por vezes, não se reconhece como sendo capaz de protagonizar essas mudanças. O professor aponta fatores externos como os responsáveis pela implementação das mudanças necessárias a um ensino da Arte de melhor qualidade. Inquietações e objetivos da caminhante Ao entrecruzar os pontos comuns das pesquisas realizadas, é possível identificar, pelo menos, duas das quatro visões apregoadas por Barbosa (2005, p. 12) sobre o ensino da Arte: a expressão criadora e a solução de problema pela técnica. As outras visões também dizem respeito à nossa história e aos nossos dias e podem ser assim identificadas: a cognição e a cultura visual. A cognição, ainda, se faz presente nas falas de algumas da professoras, entendendo que a Arte é uma área de conhecimento e seu ensino uma forma de construir esse conhecimento. 27 Cabe, aqui, esclarecer que a expressão criadora envolve a livre expressão e a solução de problema se vale do desenho livre ou do formalismo da técnica do desenho e ambas as visões têm relação direta com a história desse ensino, e porque não dizer tão em voga atualmente nas aulas de Arte. Isto pode ser comprovado na primeira investigação, realizada em 1991, com professores da rede pública cujo ensino privilegiava a expressão pessoal do aluno através do fazer artístico, destacando-se a atuação dos professores em mais de uma linguagem da Arte (artes plásticas, música e teatro), ou seja, uma atuação polivalente. Tanto na visão dos professores quanto na dos alunos prevaleceu a relação do ensino da Arte com atividades de expressão, lazer ou simples recreação. A pesquisa, realizada no período de 2004/2005, quase 14 anos após a primeira, aponta para uma mudança significativa na fala das professoras, ou seja, evidencia-se a compreensão da Arte como área de conhecimento. No entanto, a partir das observações realizadas em sala de aula, percebeu-se que o ensino da Arte enfatizava, ainda, o fazer artístico, ora como livre expressão, ora como técnica artística. Fica evidente que houve uma mudança na fala das professoras sobre a concepção de Arte e seu ensino, embora a prática dessas professoras em nada se diferenciou da prática daquelas da primeira investigação. Na investigação realizada com professores que formam professores, realizada em 1996, os dados coletados evidenciaram a existência de uma dicotomia entre a teoria e a prática da Arte, um fazer artístico que, em sua maioria, enfatiza a técnica artística. Os resultados apresentados inquietam-me, levam-me a pensar que, em parte, por um lado os professores ensinam Arte nas suas escolas de forma semelhante a dos seus professores e, por outro, criam soluções próprias para o seu ensino. Digo isso, porque surge outro fator nitidamente marcante: a diferença existente de professor para professor na sua forma de trabalhar a Arte com seus alunos, apesar de concepções semelhantes. E aí eu pergunto: O que leva um professor a ser diferente de outro se basicamente a formação profissional foi a mesma? O que leva um professor a ensinar artes visuais igual ao outro se a formação acadêmica foi diferente? Quais os fatores que determinam as diferenças? Por que alguns professores resistem tanto às mudanças? Lembro 28 neste momento, uma questão formulada por Hargreaves (1998, p. 11) quando fala sobre o processo de mudança dos professores, que diz o seguinte: “O que faz os professores aceitarem a mudança e o que é que os faz cerrar os dentes e resistir?”. Retomando aqui Nóvoa (1995b, p. 30), compartilho com ele a idéia de que é preciso pensar os professores e sua profissão a partir da compreensão sobre a “pessoa e o profissional que habitam cada professor”. Nessa perspectiva, considero a carreira profissional como um todo, incluindo as experiências escolares da infância, passando pela escolha profissional - entrada no magistério – até o afastamento ou aposentadoria, ou seja, a trajetória profissional e também a trajetória pessoal. E é a partir dessa concepção que entendo este estudo como a possibilidade de obter uma compreensão mais ampla – ou pelo menos mais complementar – de como ocorrem as continuidades e descontinuidades na (re) construção da trajetória profissional de docentes de Artes Visuais da rede municipal de ensino da cidade de Pelotas, a partir de um estudo sobre os ciclos de vida profissional com base nas fases da carreira docente. A partir desta indagação, buscarei possíveis respostas aos seguintes questionamentos: Quais as lembranças do período de escolarização e de formação acadêmica? Quais as contribuições da universidade para o exercício profissional? Quais as influências mais significativas? Como se deu a escolha da profissão com seus fatores determinantes e expectativas? Quais as razões dessa opção? Por que na área de Arte? Como foram os primeiros anos de docência? Como tem sido o exercício profissional? Quais os acontecimentos da vida profissional que influíram no seu ensino ou no transcorrer da sua carreira? O fato de ser mulher/homem afetou ou não a carreira? Qual a percepção dos professores sobre a escola onde exercem a docência? Como é percebido o momento profissional em que se encontram? A realização de um trabalho desta natureza implicou em estabelecer objetivos que assegurassem a chegada ao final do estudo. Para que tal pudesse acontecer com segurança, me propus a investigar, então, as continuidades e descontinuidades na (re) construção da trajetória profissional de docentes de Artes Visuais, por considerar que aspectos significativos da vida pessoal e 29 profissional e o momento docente em que se encontram esses professores interferem tanto na construção dessa trajetória quanto para uma melhor compreensão da pessoa do professor e, como conseqüência, da sua atuação docente. E os objetivos específicos foram assim definidos: identificar as características e expectativas formativas comuns no coletivo; identificar as razões pela opção da carreira docente; analisar a trajetória profissional, destacando as razões da opção pela docência na área de Arte, os primeiros anos de docência os acontecimentos da vida profissional ou que influíram no ensino ou no transcorrer da carreira; compreender o momento profissional do professor e seu grau de satisfação com a escola atual e contribuir para a compreensão da dimensão pessoal e profissional no processo pelo qual o professor se constrói e dinamiza seu trabalho, viabilizando avanços no processo formativo dos profissionais da área. Para mim o grande desafio – hoje – é pensar a dimensão pessoal como fundamental no processo pelos quais os professores se constroem e dinamizam seu trabalho, deixando claro que o aperfeiçoamento profissional está associado ao desenvolvimento pessoal, ou faz parte dele. Destaco, aqui, a importância de tal conhecimento para posteriores propostas de inovação, o que evitaria a seguinte, e tão usual, pergunta: “Quem sabe o problema é do professor e não da proposta de inovação?” Culpar o professor pelo fracasso da mudança é desprezar o momento da carreira em que se encontra esse professor. Primeiro procurei conhecer as características e expectativas formativas comuns no coletivo, a partir de um grupo de professores, para depois ouvir a voz do professor e dela extrair as considerações que me permitiram compreender o entrelaçamento de suas histórias e trajetórias em diferentes espaços e tempos de sua vida pessoal e de sua prática docente. É essa escuta que considerei antes de qualquer julgamento, pois o relato de vida, ao transpor a voz do professor, revelou suas reais necessidades, revelou quem ele é. Para tal apresento a trajetória metodológica escolhida para conhecer os professores de artes visuais, ou melhor, para concretizar minha escuta. 30 O traçado do caminho Pelo que foi argumentado até o momento, posso dizer que o caminho traçado para entender a trajetória profissional tomou por base o estudo dos ciclos de vida, apontando para uma metodologia que privilegia os aspectos qualitativos, porque o foco de interesse era compreender os modos como os professores dão sentido ao seu trabalho e atuam em seus contextos profissionais. Isto não envolve apenas aspectos da atuação do professor na instituição escolar, mas também fatos relacionados ao desenvolvimento de sua vida profissional, levando em conta as etapas da carreira, as experiências vitais e os fatores histórico-sociais que configuram esse professor como uma pessoa total. Levantando, ainda, os indicadores dos processos formativos dos e nos professores que determinam as práticas cotidianas em sala de aula e das experiências decorrentes dos percursos individuais de cada professor, o que implicou em ouvir professores. Esta abordagem, no entanto, não descartou a busca de dados quantitativos relativos à caracterização geral dos professores envolvidos na investigação. Dados que enfocaram aspectos pessoais, profissionais e do centro de ensino. Para o estudo dos ciclos de vida dos professores a abordagem foi a biográfico-narrativa, que possibilitou aos professores falarem sobre o que conhecem e fazem, o que faziam ou o que poderiam ou deveriam fazer, ou seja, permitiu a explicitação das dimensões do passado que pesam sobre as situações atuais e sua projeção em formas desejáveis de ação. Isto porque os professores, como pessoas, realizam um ensino com um conjunto de habilidades e conhecimentos pessoais adquiridos ao longo da sua história de vida. Assim, o conhecimento do professor tem um caráter biográfico, que é fruto da interação da pessoa e do contexto. Bolívar (2002, p. 176) diz que a metodologia biográfico-narrativa possibilita “diagnosticar o ciclo de vida, a trajetória profissional, a tomada de consciência do processo de formação, a auto-percepção de cada grupo de professores segundo o ciclo de vida profissional“. Assim, o relato biográfico permitiu a construção dos percursos dos professores, sendo que pude, através dele, identificar as experiências, os momentos, os reencontros significativos para a formação e para a escolha da 31 profissão de educador. O enfoque biográfico, como observa Dominicê (apud BOLÍVAR, 2002, p. 137.), “introduz uma dimensão literária no campo científico”. Ao que Bolívar (2002, p. 137) complementa dizendo que “a palavra registrada merece atenção que não a mera redução a algumas categorias de análise. O texto requer amiúde ser citado tal qual para que seu sentido seja legitimamente restituído”. Os relatos de vida possibilitaram desenvolver uma descrição da trajetória profissional e pessoal de experiências passadas e atuais e foram significativos na medida em que, através da narração das lembranças, manifestaram segmentos da vida que podem explicar hábitos atuais. Por outro lado, destaco o fato de que o próprio relato formativo da vida é educativo e reconhece e valida o adquirido e o que se deseja adquirir. Em qualquer um dos casos, em todo o processo Dominicê (apud BOLÍVAR, 2002, p. 206) diz que é importante “deixar os adultos falarem de sua formação na densidade de sua vida para entender melhor os conceitos que permitem compreender a dinâmica dessa formação”. Desta forma, o relato de experiência, situado devidamente no curso da vida, expressou ao mesmo tempo o peso das determinações pessoais, institucionais e sociais nas trajetórias individuais e as relações dos próprios professores com essas determinações. O estudo sobre a trajetória profissional a partir do ciclo de vida dos professores assumiu um caráter quanti-qualitativo, porque combinou questionário com entrevista. O questionário permitiu conhecer características e expectativas formativas comuns no coletivo, já as entrevistas possibilitaram obter uma visão longitudinal e pessoal dos processos de desenvolvimento que particularizam aspectos gerais indicados nos questionários. As entrevistas biográficas foram semi-estruturadas, baseadas na proposta de Huberman (1995) que indica um conjunto de questões abertas que convidam o interlocutor a estruturar inteiramente ao seu gosto a resposta das questões. A entrevista biográfica compreendeu a história familiar, a história da formação inicial e contínua e a história sócio-profissional. Para Bolívar (2002, p. 189), no relato o sujeito “reinventa sua vida, tomando consciência dos fatos e, portanto, podendo imaginar possibilidades de atuação futuras diferentes”. 32 O estudo dos ciclos de vida tomou por base as fases da carreira docente dos professores. A idéia de trabalhar as fases da carreira tem sua origem em Huberman (1995), que acredita que esse estudo, verificado através da metodologia biográfico-narrativa, possibilita a compreensão de que: (a) não é possível dissociar o desenvolvimento pessoal do profissional; (b) os processos de inovação na escola devem levar em conta a dimensão pessoal da mudança (atitude, compromisso ou capacitação) para identificar que fatores de evolução profissional (fase do ciclo de vida) vão condicionar a disposição para a mudança e (c) qualquer proposta de formação do professorado deve – ou deveria – começar por recuperar biográfico-narrativamente o sujeito a formar. Neste estudo, as fases da carreira docente, diferentemente do modelo proposto por Huberman (1995), foram criadas e definidas a partir das narrativas dos professores, considerando a realidade dos professores entrevistados. O autor sugere, como complemento da análise dos dados coletados através do questionário e da entrevista biográfico-narrativa, a elaboração de biogramas que definem linhas esquemáticas dos principais fatos ou acontecimentos, assim como incidentes críticos, que são interligados para receber um sentido de conjunto. O biograma, nessa concepção, é dividido em três colunas indicando a cronologia, os acontecimentos e os incidentes críticos10, proporcionando os elementos-chave na estrutura da vida de um professor. Com base nos biogramas, pensei numa possibilidade, que não essa, de tornar visíveis acontecimentos marcantes – momentos críticos - da trajetória profissional dos professores. Mas como isso seria possível? Cheguei, então, à idéia de criar biovias, caminhos biograficamente construídos, para, assim, dar visibilidade ao percurso docente, destacando os fatos significativos que marcaram as continuidades e descontinuidades dessa trajetória. Através das biovias, foi possível elaborar um perfil profissional de cada professor, entendendo que a trajetória de cada docente compõe-se de vários momentos críticos, por isso a denominação plural de biovias. Utilizei o termo momentos críticos - e não incidentes críticos – para situar numa seqüência mais ou menos temporal, indicadas nas narrativas dos 10 Numa perspectiva biográfico-narrativa, os incidentes críticos “manifestam aqueles eventos na vida individual, normalmente, imersos num contexto institucional ou social, que são selecionados em função da atribuição de um impacto em direções particulares” (BOLÍVAR, 2002, p. 189). 33 professores, os acontecimentos significativos do percurso docente de cada entrevistado, incorporando-os a uma seqüência personalizada. O relato de cada professor transformou os fatos que escolheu em acontecimentos, que ele isolou e organizou segundo o que lhe pareceu mais relevante, recriando sua história, o que me permitiu compreender o curso que as coisas e os acontecimentos tomaram em suas vidas. A classificação, a comparação e a ordenação das biovias permitiram a elaboração de certo perfil profissional de um grupo de professores. Assim, as similitudes apresentadas na carreira, agrupadas em subgrupos, deram como elemento diagnóstico, a trajetória biográfica dos professores. Outro elemento usado para complementar as entrevistas e análise de dados biográficos foram Imagens Viajantes de obras de Arte solicitadas aos professores, imagens essas escolhidas por eles para significar o momento atual em que estão vivendo. Os caminhantes A formação de professores no Instituto de Artes e Design/UFPel obedeceu às exigências da legislação educacional e das diferentes concepções de ensino da Arte ao longo de sua trajetória histórica, como se pode ver a seguir: Quadro 1 – Formação do Professor de Arte no IAD/UFPel • Em 1970 o MEC, pelo decreto nº 66064 do Presidente da República, autoriza o curso de Professorado de Desenho, cuja exigência era cursar um ano de Didática na Universidade Católica. • Em 1973 é criado o curso se Licenciatura Curta em Educação Artística, reconhecido pelo Decreto Lei nº 76849 de 17 de dezembro de 1975. • Em 1978 esse curso passa para Licenciatura Plena em Educação Artística com três Habilitações: Artes Plásticas, Desenho e Música, pelo Decreto Lei nº 81606 de 27 de abril. • Em 1994 o curso passa por uma alteração eliminando seu caráter polivalente na grade curricular de cada uma das três habilitações. • Em 1999 passa para Licenciatura em Artes com as Habilitações de Artes Visuais, Música e Desenho e Computação Gráfica (LDB 9.394/96 e Parâmetros Curriculares Nacionais – Arte, 1997). • Em 2004 a alteração define o Curso de Artes Visuais – Modalidade Licenciatura e Curso de Música – Modalidade Licenciatura (Diretrizes Curriculares Nacionais). 34 O número de professores formados nos cursos de licenciatura do IAD, no período de 1975 a 2007 (32 anos), é de 1267 docentes da área de Arte. No período de 12 anos (1994 a 2007) o curso sofre três alterações significativas: (1ª) a eliminação do caráter polivalente na formação docente em Arte em 1994; (2ª) a adequação à LDB 9394/96 em 1999 e (3ª) a adequação às novas exigências das Diretrizes Curriculares Nacionais em 2004. O número de alunos formados a partir dessas mudanças é de 427. Os professores que participaram da pesquisa exercem a docência na rede municipal de Pelotas e atuam na área de Artes Visuais, todos formados pelo IAD. No primeiro momento da investigação foram aplicados questionários11 para 40 professores12 em exercício na área de Artes Visuais, para traçar a imagem geral do professorado atual, permitindo conhecer características e expectativas formativas comuns no coletivo. Posteriormente, foram realizadas as entrevistas biográficas13 semiestruturadas que possibilitaram a obtenção de uma visão longitudinal e pessoal dos processos de desenvolvimento que particularizam aspectos gerais indicados nos questionários e, por fim, aconteceu a elaboração de biovias para traçar a trajetória ou perfil profissional de cada professor, analisando verticalmente os suportes de cada relato sobre os acontecimentos que marcaram a trajetória docente. O esquema a seguir permite visualizar os instrumentos que foram utilizados para a coleta e posterior análise de dados. 11 Algumas questões deste instrumento tiveram como base o Questionário do Projeto Perfil Socioeconômico e Cultural do Professorado da Educação Fundamental da Rede de Ensino de Pelotas/RS, coordenado pelo Prof. Dr. Jarbas Santos Vieira. Tal projeto faz parte das atividades do Grupo de Pesquisa Processo de Trabalho Docente/FaE/UFPel. 12 O número de docentes que participaram dessa primeira fase da coleta de dados resultou de contatos telefônicos, cujos números foram fornecidos pelo colegiado do curso, através de visitas a quatro escolas e, ainda, pela indicação dos próprios professores. Os questionários foram aplicados a 30 docentes entre os meses de outubro e novembro de 2007 e para mais 10 professores no mês de maio de 2008. Os professores pertencem a 54 escolas municipais – 35 na zona urbana, 17 na periferia, uma no Laranjal e uma na zona rural. 13 As entrevistas foram realizadas entre os meses de março e agosto de 2008, perfazendo um total de 13 horas. 35 Figura 1 - Articulação entre os diferentes instrumentos da pesquisa A escolha dos professores entrevistados14 obedeceu aos seguintes critérios: (a) representar cada uma das etapas de transformação do curso de licenciatura, indicadas no Quadro1, ou seja, professores com Licenciatura Plena em Educação Artística – Habilitação em Artes Plásticas ou Desenho – com formação polivalente, Licenciatura Plena em Educação Artística – Habilitação em Artes Plásticas ou Desenho – sem formação polivalente, Licenciatura em Artes – Habilitação em Artes Visuais ou Desenho e Computação Gráfica; (b) representar diferentes fases da carreira, segundo o tempo de docência (Quadro 2). Uma vez definidos os participantes da pesquisa, faz-se necessário falar da instituição que formou esses professores. Faz-se necessário uma volta ao passado, um passado determinante que, de certa forma, influenciou o ensino da Arte no país e, como conseqüência, a formação do docente e na docência em Artes Visuais do grupo de professores pesquisados. 14 Dos quarenta professores que participaram da primeira fase da coleta dos dados apenas 07 se dispuseram a participar das entrevistas, obedecendo aos critérios estabelecidos para seleção dos participantes desta etapa. Todos os 40 professores foram contactados por telefone ou por e-mail. 36 Quadro 2 – Professores entrevistados por curso, ano de conclusão e tempo de docência. CURSO Lic. Curta. EA 1973 Lic. Plena EA 1978 AP D Lic. Plena EA 1994 AP Nº 1 Nº 2 D Lic. em Artes 1999 AV DCG X X Nº 3 X Nº 4 X Curso de Artes Visuais 2004 ANO DE CONCLUSÂO DO CURSO TEMPO DE DOCÊNCIA 1999 9 anos 1988 20 anos 2002 5 anos 1995 12 anos 8 anos Licenciatura Nº 5 X 1999 Nº 6 X 2002 5 anos 1985 21 anos Nº 7 X 15 Esta professora pediu exoneração do município em 1992 e foi morar na Espanha por dois anos; ao retornar em 1994 prestou novamente concurso. 15 LUGAR DE FORMAÇÃO: A CASA E O CORPO O espectador é jogado dentro da obra, para sentir, atuar sobre ela, o espaço proposto já não é mais um espaço contemplativo, mas um espaço circundante. Lygia Clark O Corpo é a Casa de Lygia Clark16, minha Imagem Viajante nº 3, é uma obra que me inspira pensar numa estrutura, um grande espaço, onde o homem encontra seu próprio corpo através de sensações com objetos exteriores a si mesmo, ele se torna objeto de sua própria sensação e transcende a si mesmo. Para a artista a obra elimina a contemplação por parte do espectador, que se vê direto, integral e organicamente dentro da obra. Essa imagem conduz meu olhar para o Instituto de Artes e Design: a casa que forma o professor, que é casa e corpo de seus conhecimentos e de suas sensações. O corpo do professor está nessa casa por inteiro? As construções em e sobre Artes são conhecimentos ampliados? Lygia Clark (1920-1988), pintora e escultora mineira que se intitulou não-artista. Destacou-se como representante da Artes Concreta e do Neoconcretismo. O Concretismo foi um movimento vanguardista que surgiu em 1950, inicialmente na música e depois passando para a poesia e artes plásticas. Os artistas se denominaram concretos em oposição ao abstracionismo. No Neoconcretismo os artistas procuraram novos caminhos, dizendo que a Artes não era um mero objeto, ele tem sensibilidade expressiva que vai além do puro geometrismo (GULLAR; PEDROSA, 1980). 16 38 A casa e o corpo: alicerces fundacionais Para falar de uma instituição de ensino das Artes, que também gradua profissionais nessa área, faz-se necessário uma volta ao passado. Um passado que, de certa forma, influenciou esse ensino no país e, como conseqüência, a formação de artistas e professores. A primeira instituição desse tipo no país foi a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, criada por um decreto de D. João VI em 12 de agosto de 1816, ficando essa sob a orientação da Missão Artística Francesa. Essa denominação permaneceu até o fim do período colonial brasileiro, e com a Independência do Brasil em 1822 passou a ser conhecida como Academia Imperial das Belas Artes17 e, mais tarde, Academia Imperial de Belas Artes. A instituição foi devidamente instalada por D. Pedro I em 1826, exatamente um ano após a vinda da Missão Francesa. Com a chegada do período republicano, mais precisamente em 1890, ocorreu outra vez mudança de nome, agora passando para Escola Nacional de Belas Artes. Em 1931, essa dá origem à Escola de Belas Artes, hoje uma unidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Até o início do século XIX o ensino de Artes ocorria no Brasil de modo informal, nas oficinas dos artistas e seus discípulos, havendo apenas uma modestíssima escola subvencionada pelo Estado, a Aula Régia de Desenho e Figura, dirigida por Manuel Dias de Oliveira no Rio de Janeiro. Sobre esse tipo de aula, Briquet (1949, p. 15) diz que: as aulas régias que se constituíam no primeiro tipo de ensino público eram classes esparsas e avulsas dadas por professores pagos pelo Governo que não obedeciam a nenhum plano estabelecido. Através das aulas régias foi, também, introduzido o desenho de modelo vivo. Cabe aqui ressaltar que, nessas aulas, a figura era apenas apoio para a observação e que a imagem desenhada obedecia, rigorosamente, aos padrões de Denominação associada às criações, principalmente como uma expressão estética, para serem contempladas ou fruídas pelo seu próprio valor, constituídas pela pintura, desenho escultura, gravura e arquitetura. Elas também são conhecidas como Artes Maiores, aquelas criadas por artistas com uma formação intelectual, em contraste com as chamadas Artes Menores, elaborada por artesãos apenas habilidosos (CUNHA, 2005, p. 233). 17 39 beleza europeus com os quais o professor regente entrou em contato, durante seus estudos no exterior. Foi, realmente, com a criação da Academia Imperial das Belas Artes que se instaurou o ensino da Arte no Brasil, uma instituição que atendeu a diversas necessidades práticas e culturais. A transferência da Corte Portuguesa para o Brasil,em 1808, gerou profundas modificações sociais e institucionais no país, até então uma colônia de economia extrativa e agrária. Foram reorganizadas as instituições, os serviços públicos, a administração em geral, e sentia-se a necessidade de atualizar o Brasil com as correntes culturais mais avançadas que se desenvolviam na Europa da época; ao mesmo tempo, havia séria carência de profissionais preparados para atender às crescentes demandas. Faziam-se necessários artífices e mestres em várias especialidades técnicas, como a arquitetura, o urbanismo e a engenharia, especialidades, no sistema da época, mal delimitadas, e que seriam de utilidade para a industrialização e modernização da colônia, logo elevada à condição de Reino Unido a Portugal. Diante desse cenário em rápida transformação, aconteceu a criação de uma escola de Arte, inspirada no modelo da academia européia, ou seja, num ensino segundo o paradigma do academismo18 – o estilo neoclássico19 francês. Esse novo estilo expressava os interesses, a mentalidade e os hábitos da classe dominante mercantilista e manufatureira que assume a direção da sociedade européia com a Revolução Francesa e o Império de Napoleão. Aqui no Brasil, essa Arte de acesso a uma minoria significou símbolo de distinção e refinamento e seu ensino, por sua vez, a possibilidade de desenvolver esse refinamento nos jovens da sociedade brasileira. Barbosa é categórica quando afirma que essa Arte foi dirigida a um grupo privilegiado de pessoas, pois para ela Corrente artística orientada pelos princípios ensinados nas Academias. O termo é associado à Arte tradicional do século XIX com sentido pejorativo. No entanto, todas as correntes modernas, cujos conceitos já são ensinados nas academias, ao contrário da vanguarda, podem, a grosso modo, serem chamadas acadêmicas (CUNHA, 2005, p. 225). 19 Estilo artístico baseado nos modelos clássicos da Arte da Grécia e de Roma antigas (CUNHA, 2005, p. 260). Neoclassicismo é a retomada dos princípios estéticos das formas do classicismo greco-romano, transformados em métodos e processos didáticos para serem adotados nas academias de artes oficiais da Europa e do Brasil (CAVALCANTI, 1978, p. 122). 18 40 sua contribuição para a laicização da Arte foi importante, mas não o foi para a sua democratização. Baseando-se no culto à beleza, na crença acerca do dom e em árduos exercícios de cópia, tornou-se a Arte acessível somente a alguns “poucos felizes”. Os aristocratas eram incumbidos de apenas apreciar e comprar, deixando aos artistas estrangeiros o monopólio da criação e a conquista do artista nativo (1978, p. 41). Isto significa que ao chegar aqui, a Missão Artística Francesa encontrou uma Arte com traços originais – o barroco brasileiro, produzida por artistas nativos de origem popular, mestiços em sua maioria, considerados como simples artesãos pelas camadas superiores e cuja Arte foi rechaçada pela classe dirigente. Há com isso uma interrupção no desenvolvimento da Arte barroca20, que já era uma Arte brasileira pelo fato de que a emotividade e o sensualismo mestiço brasileiro encontraram no barroco as formas mais próprias de expressão, suscetíveis de autenticidade (CAVALCANTI, 1968). É, exatamente, a impulsividade do sentimento, mais a emoção do que a reflexão intelectual do barroco que conquista a alma do artista brasileiro. No caso do Brasil, o estilo barroco é transplantado, em parte, pelos portugueses, não chegando a produzir formas novas, o novo espírito não penetra na arquitetura da Igreja, que conserva sua forma clássica. A tradição decorativa portuguesa barroca destaca-se, aqui no Brasil, principalmente na escultura em madeira, pedra, mármore e bronze, ensinada em ateliês criados à sombra dos conventos. Campofiorito diz que: a essa condição eram submetidos os artista nativos, com uma formação profissional mínima, que lhes facultava recursos de aprendizado capazes de prescindir os esforços individuais em que consistia seu autodidatismo (1983, p. 19). Desta forma, então, e diante dessa situação da Arte produzida aqui, a classe dirigente impõe o estilo neoclássico, oficializando-o como a base do ensino O termo barroco é utilizado para definir o estilo de arte predominante no século XVII (de 1580 ao início do século XVIII) na Europa ocidental, sendo essa expressão artística essencialmente extravagante e ornada demais. O Barroco contrapõe-se ao intelectualismo e a frieza emocional, serve, também, ao impulso religioso da Contra-Reforma. Caracteriza-se pela criação de modelos religiosos que são acessíveis às massas e, ainda, pelo interesse no movimento dinâmico e nos efeitos teatrais (CUNHA, 2005, p. 233). 20 41 das Belas Artes, o que acarreta o distanciamento entre a Arte produzida na academia e aquela produzida pelo povo, encontrando seus poucos alunos na aristocracia. O projeto da escola envolvia a criação de cursos graduados de formação tanto para futuros artistas como para técnicos em atividades auxiliares como a modelagem, a decoração, a carpintaria e outras. Joachim Lebreton, o líder da Missão e idealizador do projeto, nele sistematizava o processo e critérios de avaliação e aprovação dos alunos, o cronograma e currículo de aulas, sugeria formas de aproveitamento público dos alunos formados pela Escola e projetava a ampliação de coleções oficiais com suas obras, discriminava os recursos humanos e materiais necessários para o bom funcionamento da Escola, que não os produzidos pela instituição. No entanto, Lebreton previa a educação de artífices auxiliares com a introdução de cursos técnicos. Seu plano era extensivamente detalhado, tratando dos cronogramas e currículo, do funcionamento das aulas, do aproveitamento dos formados e da criação de uma Pinacoteca. O ensino do desenho era básico, sem ele nada era possível. Para seu domínio havia curso de desenho geométrico, desenho de ornamentos, desenho de estátuas, de elementos da natureza, de elementos arquitetônicos, e por fim, o desenho de modelo vivo, capacitando o aluno a representar as cenas, grupos e panoramas complexos que se esperavam dele no futuro, na pintura, gravura e escultura. Para um melhor aprendizado existiam diversas coleções de itens auxiliares: desenhos e estampas de mestres europeus, moldes de partes do corpo humano, desenhos de corpos nus, completos, nas mais diversas posições, cópias de telas ou estátuas célebres, e boa bibliografia especializada. O gênero mais apreciado era da pintura histórica, reservada aos mais talentosos, exigindo grande cultura geral, além de perfeito domínio técnico. Esse tipo de pintura apelava ao lado heróico ou devocional do homem, convidando-o a uma meditação sobre as virtudes superiores que o autor quis expressar, e almejando exercer um poder positivamente educativo sobre o público. Floresceram, também, a paisagem, o retrato oficial e a cena/retrato religioso. Mais para o fim do século os gêneros de paisagem do natural, naturezamorta e cena doméstica passaram a ter grande aceitação, prefigurando as 42 renovações burguesas do século vindouro, e a paisagem já mostrava personagens caracteristicamente regionais em estilo realista21, como os gaúchos, imigrantes, caipiras e caboclos. Na estatuária os modelos clássicos foram tratados com um pouco mais de liberdade, embora os temas continuassem a ser elevados, buscados nos mitos e alegorias antigos. A madeira foi abandonada em favor do mármore e do bronze, que exigiam um trabalho bem mais árduo e demorado, mas eram considerados mais nobres. A escultura teve um grande mercado na construção de vários monumentos e na decoração de edifícios públicos, associada à sua contraparte "menor", dos ornatos em relevo. Outro aspecto do seu funcionamento que merece atenção é o fato de que, paralelo ao ensino das Artes em si (pintura, escultura, etc.), foram oferecidos cursos técnicos auxiliares, tais como os ofícios mecânicos, a fundição, a cerâmica, a modelagem de relevos e ornamentos arquitetônicos, etc. A formação de um corpo de artesãos era imprescindível para a realização da Arte acadêmica, muitas vezes monumental, e também era tido como útil para a industrialização e modernização do país, que estava em curso. Essas especificidades, às vezes, foram referidas como as artes menores, ou artes aplicadas, embora a história da Arte testemunhe sua real importância. Os próprios integrantes da Missão eram, de uma forma ou outra, familiarizados com várias destas artes menores, pois um pouco deste conhecimento técnico era considerado parte da educação integral acadêmica e necessário para uma perfeita integração entre os vários artesãos e o artista criador, eles eram recrutados para a realização de uma grande obra como um edifício público. Essas ditas artes menores foram previstas para serem ensinados já por Lebreton, na primeira idéia da Academia, esses ramos artesanais de início foram, porém, negligenciados, alegando-se medida de economia, mas foram reintroduzidos somente na metade do século, sob o impacto da industrialização européia. Com a estabilidade política e social do segundo reinado, e com o constante apoio do imperador D. Pedro II, a Academia Imperial iniciou um ciclo de Corrente estética que tem por finalidade a reprodução da realidade de maneira mais ou menos exata. Como movimento artístico do sáculo XIX, visava o uso de uma temática baseada no cotidiano, em termos de sociedade e experiência sensorial (CUNHA, 2005, p. 270). 21 43 prosperidade, recebendo enorme volume de encomendas oficiais e formando várias gerações de alunos brilhantes, instituindo, na década de 1840, prêmios de viagem com bolsas de aperfeiçoamento no exterior. A instituição prosperou e se fez cada vez mais presente na cena artística carioca e, por extensão, brasileira, uma vez que a Academia Imperial passou a ter um papel central na direção dos rumos da Arte brasileira até o século seguinte, quando já era a Escola Nacional de Belas Artes, influenciando, sobremaneira, a criação de outras escolas de Artes pelo país. Este foi o caso do Instituto de Artes e Design, criado a partir do desejo da Escola de Artes de Pelotas. A Casa: Instituto de Artes e Design A instituição que hoje tem o nome de Instituto de Artes e Design, segundo documentos em posse da Profa. Ângela Maria Sinotti Gonzales, diretora dessa casa no período de 1988 a 199122, inicia suas atividades em 19 de março de 1949, com a denominação de Escola de Belas Artes - EBA, cuja finalidade era o ensino da pintura, modelagem e desenho geométrico através de um Curso Preparatório para as Belas Artes, concretizando-se o sonho de Marina de Morais Pires, a idealizadora e fundadora da Escola23. A inauguração da Escola de Belas Artes ocorreu em sessão solene no salão de honra da Biblioteca Pública Pelotense, com a presença de autoridades civis, militares e eclesiásticas, entre eles alunos estudantes e professores locais24. Cabe aqui destacar que em fins de 1948, Aldo Locatelli, artista italiano, vem ao Brasil a convite de Dom Antônio Zattera para pintar os murais da Catedral São Francisco de Paula, daí o convite da Profª Marina, na época também professora de desenho no Instituto de Educação Assis Brasil, para que este renomado pintor integrasse o corpo docente, passando ele a ser o primeiro mestre de pintura da Escola. Outros artistas de destaque passam posteriormente, Tais documentos não estão especificados neste trabalho por tratar-se de cópias xerox de parte dos mesmos, sem identificação de tipo e/ou data, o material cedido pela referida professora serviu como fonte fidedigna das informações aqui relatadas. 23 Os estatutos da EBA foram levados a Porto Alegre pela Profª. Marina em fevereiro de 1950 para serem publicados no Diário Oficial. Nota divulgada no Diário Popular, 19.02.1950, p. 4. 24 Ata da Sessão Inaugural - Livro de Atas do acervo do Museu Leopoldo Gotuzzo. 22 44 a integrar o quadro de professores da EBA, dentre eles Antônio Caringi, Nestor Marques Rodrigues - Nesmaro - e Bruno Vicentin. A escola tem início em uma sala cedida pelo Instituto Assis Brasil, com o curso de desenho ministrado pela própria Dona Marina e pela professora Osmânia Vinhas de Campos. Entretanto, surge de imediato a necessidade de mais espaço físico para as aulas de pintura e para as aulas teóricas. Assim as aulas passam a ser ministradas num antigo sobrado da Rua Félix da Cunha25. Mais tarde a escola começa novamente a enfrentar problemas com a falta de espaço para outros alunos e muda-se para a Biblioteca Pública de Pelotas, onde é cedido o Salão Nobre, no primeiro andar do prédio. A EBA percorre outros locais alugados na cidade até conseguir uma sede própria. Antes, porém, é feita a doação do prédio da antiga Escola de Agronomia, na Praça 7 de Julho, ao lado da Prefeitura Municipal, doação essa que não chega a se concretizar. A escola passa, então, a funcionar em um prédio alugado na Rua Andrade Neves. O ensino na escola, nos primeiros anos de funcionamento, está voltado para Cursos de Modelagem, Modelo Vivo, Anatomia, Arquitetura Analítica, Geometria Descritiva, Perspectiva e Sombras, Desenho e Pintura. O Governo da União, pelo Decreto n° 37690, de 4 de dezembro de 1955, autoriza o funcionamento dos cursos de Pintura, Gravura e Escultura; sendo estes somente reconhecidos em 27 de agosto de 1960, pelo Decreto Federal n° 48903. Ainda, em 1955 o Governo do Estado, através da Portaria nº 5313, autoriza a cedência de cinco professores da rede estadual, para ministrar disciplinas no curso, conforme convênio firmado e publicado no Diário Oficial em 25 de dezembro do mesmo ano. O Governo Municipal também cede uma professora para o cargo de funcionária administrativa. Em 1963, é assinada a escritura de um prédio doado por D. Carmen Trápaga Simões e três anos após acontece à mudança para a nova sede (própria), sito à Rua Marechal Floriano no 179. No ano de 1967 altera-se o nome da Escola de Belas Artes para Escola de Belas Artes D. Carmen Trápaga Simões. De acordo com Silva; Loreto (1996, p. 75) em pesquisa realizada nos arquivos do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo - MALG -, este sobrado mais tarde serviu de Sede da Cruz Vermelha Brasileira, segundo o depoimento do artista Luiz Notari no texto “Pequena História da minha formação profissional em Pelotas”. 25 45 Na época os professores da EBA eram aqueles formados pela própria escola, ou pelo curso de Desenho da Universidade Católica de Pelotas, ou ainda, por profissionais de outras áreas que tivessem pendor artístico, ou seja, experiências nas Artes, julgadas pelos títulos que possuíam. A nomeação desses professores é decidida pelo antigo Conselho Nacional de Educação, através do Parecer no 841 de 5 de novembro de 1969. A Escola de Belas Artes em 1969 deixa de ser uma instituição particular que também recebia verbas do Estado e do Município - e passa a pertencer à Universidade Federal de Pelotas, cuja criação é oficializada pelo Decreto Lei no 73.088-69. Há neste momento uma agregação simultânea, não só da EBA, mas também da Escola de Medicina e do Conservatório de Música. A Universidade Federal de Pelotas em 1971 cria o Instituto de Artes, que a partir de então passa a ser o responsável pelas matérias básicas, e as profissionalizantes ficando a cargo da EBA. Neste mesmo ano começa a ser estudada a possibilidade de fusão do Instituto de Artes com a EBA e, em 22 de maio de 1972 extingue-se a Escola de Belas Artes, integrando-se definitivamente à UFPel como Instituto de Artes. Em 1979, com a criação do Curso de Letras, vinculado ao Instituto de Artes, este passa a ser Instituto de Letras e Artes - ILA. Em 2005, cria-se a Faculdade de Letras e o ILA passa a denominar-se Instituto de Artes e Design IAD. A área de Artes oferece hoje dois Cursos de Artes Visuais, nas modalidades de Bacharelado em Artes Visuais nas terminalidades de Pintura, Escultura, Gravura, Design Gráfico; e a Licenciatura em Artes Visuais. Possui, também, o Curso de Música, modalidade Licenciatura. Mais recentemente o Curso de Cinema e Animação, Design Digital e Curso de Teatro, na modalidade Licenciatura. O IAD oferece, ainda, o Curso de Pós-Graduação em Artes, especialização em Patrimônio Cultural: Conservação de Artefatos. O IAD – desde 1975, quando era, ainda, EBA - é o responsável pela formação da maioria dos professores de Arte que atua nas escolas de educação básica da rede estadual, municipal e particular, tanto do município de Pelotas e de 46 alguns dos municípios26 que formam o 36o Distrito Geo-Educacional do Estado do Rio Grande do Sul, como de outros estados do país. O Corpo: Professor de Arte A formação de professores no atualmente chamado IAD/UFPel tem início em 1969 quando é enviada ao Ministério da Educação e Cultura documentação para o reconhecimento do curso de Professorado de Desenho, já em funcionamento desde 1o de março de 1968. Esse curso tem como exigência, para a titulação de professor, cursar um ano de Didática na Universidade Católica de Pelotas. A autorização para o funcionamento do curso de Professorado de Desenho, entretanto, só vem a acontecer em 1970, através do Decreto Lei no 66064, do Presidente da República. A reforma da educação proposta pela LDB/61, n° 4.024, é antecipada por amplo debate de que participa a sociedade civil, fato que não acontece com as Leis n° 5.540/68, que propõe a reforma universitária, e a n° 5.692/71, que propõe a reforma de 1° e 2° graus. Estas últimas são impostas, de forma autoritária, por militares e tecnocratas que imprimem à educação uma tendência fortemente tecnicista. É assim que se concretiza, em parte, a luta pela obrigatoriedade da Arte na escola, começada na década de 20, regulamentada agora pela Lei n° 5.692/71, implantada pelo governo militar. E através do acordo oficial MEC-USAID (Ministério da Educação e Cultura, United States Agency for International Development) o Brasil passa a receber assistência técnica e cooperação financeira para a implantação da reforma da Educação Brasileira. O ensino da Arte em 1971 passa, então, a fazer parte do currículo escolar. É a Lei n° 5.692 que, no seu Artigo 7°, determina a obrigatoriedade da Educação Artística nas escolas de 1° e 2° graus: Área de abrangência da UFPel: Municípios de Capão do Leão, Morro Redondo, Arroio do Padre, Pedro Osório, Cerrito, Arroio Grande, Herval do Sul, Jaguarão, Pinheiro Machado, Piratini, Canguçú, Amaral Ferrador, Turuçu, São Lourenço do Sul, Cristal, Encruzilhada do Sul e Lavras do Sul. 26 47 “Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1° e 2° graus, observado quanto à primeira o dispositivo no decreto-lei n° 869, de 1° de setembro de 1969”. Lei esta que em seu Art. 30 do Capítulo V, sobre a Formação do Professor de Educação Artística, determina que a exigência como formação mínima, para o exercício do magistério, deve: (a) no ensino de 1° grau, da 1a à 4a séries, ter um professor com habilitação específica de 2° grau; (b) da 5a a 8a séries do 1° grau, um professor com habilitação específica de grau superior, em nível de graduação, representada por uma licenciatura de 1° grau, obtida em curso de curta duração, e (c) em todo ensino de 1° e 2° graus, um professor com habilitação específica, obtida em curso superior de graduação correspondente à licenciatura plena. O curso estabelecido objetiva a formação em Educação Artística de professores de nível de Licenciatura Curta, Plena ou Plena e Curta. A Resolução n° 23 de 23 de outubro de 1973, do Conselho Federal de Educação, diz em seu Art. 1° que o curso de Licenciatura em Educação Artística tem por objetivo formar professores para as atividades, áreas de estudo e disciplinas do ensino de 1° e 2° graus relacionados com o setor da Arte. Já o Art. 2°, define que o curso de Educação Artística é estruturado como licenciatura de 1° grau, de curta duração, ou como licenciatura plena, ou ainda abrangendo simultaneamente ambas as modalidades, de acordo com os planos das instituições que o ministrem. Há, entretanto, o Parágrafo Único que aponta para uma diferenciação entre as licenciaturas, uma vez que a licenciatura de 1° grau, no caso a de curta duração, deve proporcionar habilitação geral em Educação Artística e a licenciatura plena, além dessa habilitação geral, deve conduzir a habilitações específicas em Artes Plásticas, Artes Cênicas, Música e Desenho. O citado documento ainda afirma: ... o professor do ensino de 1° grau não tem de ser um especialista em determinadas divisões de Arte. Conquanto sem desconhecer essas divisões, cabe-lhe apresentar globalmente os recursos artísticos de expressão e comunicação, dentre as quais venham os estudantes a selecionar as que mais se ajustem às variáveis do seu mundo interior. O processo, no caso, é incomparavelmente mais importante que os resultados estéticos a obter. 48 Surge assim, no IAD em 1974, o curso de Licenciatura Curta na área, reconhecido pelo Decreto Lei nº 76849 de 17/12/1975 e publicado no Diário Oficial de 18/12/1975, com duração de dois anos, que compreende um currículo básico, aplicado em todo o país, pretendendo preparar, em apenas dois anos, um professor de Arte capaz de lecionar música, artes plásticas e teatro, tudo ao mesmo tempo, da 5a a 8a séries do 1° grau e, em alguns casos, até o 2° grau. A instituição formou 357 professores no curso de Licenciatura de 1º Grau em Educação Artística (Tabela1). Cabe destacar que todos os dados relativos ao número de professores formados pelo IAD foram coletados junto às secretarias do Curso de Artes Visuais-Licenciatura e da própria Instituição, no 2º semestre de 2006. Tabela 1 – Professores formados no curso de Licenciatura de 1º Grau em Educação Artística - IAD/UFPel (1975-1990) Ano 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 Total Número de Professores 15 28 75 41 39 89 38 13 08 06 Não houve colação de grau 04 Não houve colação de grau Não houve colação de grau Não houve colação de grau 01 357 Fonte: elaboração própria. Ainda na década de 70, mais precisamente em 1978, através do Parecer n° 781/78 do CFE, começam a surgir no país os Cursos de Licenciatura Plena em Educação Artística, em substituição à Licenciatura Curta, com duração de quatro anos, seguindo um currículo mínimo já estabelecido por lei, apenas com o acréscimo de novas disciplinas e a mesma antiga proposta de polivalência, ou seja, uma formação em artes plásticas, teatro e música. 49 O curso de Licenciatura Plena em Educação Artística do IAD oferece, na época, três habilitações: Artes Plásticas, Desenho e Música. Ele é reconhecido pelo Decreto Lei nº81606 de 27/04/1978 e publicado no Diário Oficial de 28/04/1978. Sendo que a complementação curricular do Curso de Licenciatura Curta para Plena ocorreu primeiramente na habilitação em Música, graduando 24 alunos (Tabela 2). Tabela 2 – Professores formados no curso de Licenciatura Plena em Educação Artística com habilitação em Música - IAD/UFPel (1975/1979) Ano 1975 1976 1977 1978 1979 Total Número de Professores 11 07 Não houve colação de grau 02 04 24 Fonte: elaboração própria. O curso de Licenciatura Plena em Educação Artística gradua, durante quinze anos, 277 alunos habilitados em Artes Plásticas, 95 em Desenho e 66 em Música, perfazendo um total de 438 professores (Tabela 3). Tabela 3 – Professores formados, segundo habilitação, no curso de Licenciatura Plena em Educação Artística – IAD/UFPel (1978-1992) Professores e Habilitações Ano 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 Total Total Artes Plásticas 48 13 27 29 22 19 19 04 31 Não houve colação de grau 14 09 35 01 06 277 Desenho 03 06 03 10 10 08 09 04 09 01 03 10 08 11 Não houve colação de grau 95 Fonte: elaboração própria Música 12 04 02 08 08 01 04 Não houve colação de grau 14 Não houve colação de grau 01 02 06 Não houve colação de grau 04 66 63 23 32 47 40 28 32 08 54 01 18 21 49 12 10 438 50 O Conselho Federal de Educação, através da Resolução n° 6, de novembro de 1986, reformula o núcleo comum para os currículos das escolas de 1° e 2° graus. Fica determinado em seu Art. 1° as seguintes matérias básicas: Português, Estudos Sociais, Ciências e Matemática. É assim eliminada do currículo a área de Comunicação e Expressão e a Educação Artística pertencendo a essa área - deixa de ser matéria básica, mas passa a constar do Parágrafo 2° nos seguintes termos: “Exigem-se também Educação Física, Educação Artística, Educação Moral e Cívica, Programas de Saúde e Ensino Religioso, este obrigatório para os estabelecimentos oficiais e facultativo para os alunos”. Este fato leva à redefinição das especificidades para formação do professor de Educação Artística, agora em artes plásticas, desenho, artes cênicas e música. Somente em 1994 o curso de Licenciatura Plena em Educação Artística sofre essa alteração curricular, eliminando definitivamente a formação polivalente. No período de 1994 a 1998, a instituição gradua 97 alunos nas três habilitações do curso, distribuídos conforme Tabela 4: Tabela 4 – Professores formados, segundo habilitação, no curso de Licenciatura Plena em Educação Artística – IAD/UFPel (1994/1998) Professores e Habilitações Ano Total 1994 1995 1996 1997 1998 Total Artes Plásticas 08 15 05 13 18 59 Desenho Música Não houve colação de grau Não houve colação de grau 06 04 07 05 22 Fonte: elaboração própria. 04 03 03 06 16 08 25 12 23 29 97 A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) - Lei Darcy Ribeiro – nº 9.394/96 no Capítulo II, Da Educação Básica - Seção I - Das Disciplinas Gerais, Art. 26, § 2º diz que “o ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos 51 alunos”. Este fato leva a mudanças tanto na área de formação docente quanto nas especificidades do curso, extinguindo a terminologia Educação Artística. O curso de licenciatura do IAD, em 1999, passa a ser denominado de Licenciatura em Artes com as seguintes habilitações: Artes Visuais27, Desenho e Computação Gráfica e Música, diplomando. 330 alunos até 2007 (Tabela 5). Tabela 5 – Professores formados, segundo habilitação, no curso de Licenciatura em Artes IAD/UFPel (1999/2007) Professores e Habilitações Ano 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Total Total Artes Visuais 10 14 10 18 16 36 25 28 23 180 Desenho e Computação Gráfica 01 05 01 09 15 12 16 03 02 64 Fonte: elaboração própria. Música 01 06 08 18 09 06 12 17 09 86 12 25 19 45 40 54 53 48 34 330 No período de 13 anos - 1994/2007 - o curso sofre três alterações significativas: (1ª) a eliminação do caráter polivalente na formação docente em Arte em 1994; (2ª) a adequação às exigências a LDB nº 9.394/96 e (3ª) adequação às Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de licenciatura em 2004. Essa última reformulação na estrutura curricular do curso elimina a habilitação em Desenho e Computação Gráfica, uma vez que por determinação legal as sub-áreas da Arte para a formação de professores são Artes Visuais, Música, Teatro e Dança. O número de alunos formados a partir dessas mudanças é de 427 (Tabela 6). A nomenclatura Artes Visuais consta do documento “Proposta de Diretrizes Curriculares sistematizada pela Comissão de Especialistas de Ensino de Artes Visuais da SESu/MEC-1998”, compreende as artes plásticas, desenho, fotografia, vídeo, cinema etc. Os PCN-ARTES (1997, p. 63) incluem, além das formas tradicionais – pintura, escultura, desenho, gravura, arquitetura, objetos, cerâmica, cestaria, entalhe – outras modalidades que resultam dos avanços tecnológicos e transformações estéticas do século XX: fotografia, moda, artes gráficas, cinema, televisão, vídeo, computação, performance, holografia, desenho industrial, arte em computador. 27 52 Tabela 6 – Professores formados, por curso e habilitação – IAD/UFPel (1994/2007) Professores por Habilitações Curso Lic. P. Ed. Art. Lic. em Artes Curso de Artes Visuais/Lic. Curso de Música /Lic. Total AP* 59 AV D 22 DCG 104 76 M 16 48 06 25 72 43 21 59 157 22 Fonte: elaboração própria. Total 62 97 195 103 25 372 * Legenda: AP – Artes Plásticas; AV - Artes Visuais; D - Desenho; DCG – Desenho e Computação Gráfica; M - Música. Em 2004 o curso de formação docente do IAD passa para a seguinte denominação: Curso de Artes Visuais: modalidade Licenciatura e Curso de Música: modalidade Licenciatura, seguindo a Resolução CNE/CP 2/2002 que redefine a carga horária dos cursos de licenciatura e propõe a inclusão de préestágios ao longo do curso de formação. Neste momento foi eliminada a terminalidade de Desenho e Computação Gráfica. Como se vê, a formação de professores de Arte do IAD obedeceu às exigências das diferentes Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, adequando-se, também, às determinações das Resoluções do Conselho Nacional de Educação e às diferentes concepções de ensino da Arte ao longo de sua trajetória histórica. O número de professores formados nos cursos de licenciatura do IAD, no período de 1975 a 2007 (32 anos), é de 1267 docentes da área de Arte (Tabela 7). Tabela 7 - Professores formados, por curso e habilitação - Licenciatura – IAD/UFPel (1975/2007) Professores por Habilitações CURSO FP* Lic. C. Ed. Art. Lic. P. Ed. Art. Lic. em Artes Curso de Artes Visuais/Lic. Curso de Música /Lic. TOTAL AP AV D DCG TOTAL M 357 346 125 104 76 357 346 180 125 Fonte: elaboração própria. 43 21 64 116 48 06 25 195 357 587 195 103 25 1267 * Legenda: FP – Formação Polivalente; AP – Artes Plásticas; AV - Artes Visuais; D - Desenho; DCG – Desenho e Computação Gráfica; M - Música. 53 O número de professores de Arte formados pelo IAD/UFPel que se encontram em exercício na rede pública municipal de Pelotas28 é de 118, 102 com formação em Artes Plásticas ou Visuais, Desenho ou Desenho e Computação Gráfica e 16 de Música, distribuídos em 96 escolas, 38 na zona urbana, 34 na zona rural, 23 de educação infantil e uma (01) denominada Escola Artes-Infância. A 5ª Coordenadoria Regional de Educação29 abrange 17 municípios da região sul e possui um total de 144 escolas, sendo que 52 na cidade de Pelotas. O número de professores que atuam na área de Arte é de 91, destes 64 possuem habilitação específica na área e os restantes – 27 professores - com formação em outras áreas do conhecimento. Em síntese, os professores de Arte atualmente em exercício, formados pelo IAD, perfazem um total de 182, sendo que 118 no município e 64 distribuídos em escolas dos 17 municípios da 5ª CRE. Conhecer como se constituiu a história da instituição que forma professores de Arte e, como conseqüência, a trajetória de formação desses professores, é entender que apesar da instituição ter uma história bastante peculiar, adequou-se sempre às políticas educacionais implantadas no país. Houve, nessa instituição, um esforço de conjugar essas exigências às diferentes concepções de Arte e de ensino de Arte dos professores que por lá passaram - e os que lá estão -, em diferentes momentos e tempos, desde aquelas dadas e herdadas da antiga Escola de Belas Artes. Quero crer que as mudanças, legais e conceituais, realizadas durante a trajetória do curso de licenciatura, não tenham sido apenas mudanças de rótulos, que, necessariamente, não refletem mudanças na essência dos currículos, das disciplinas, enfim na formação dos nossos professores de Arte. A compreensão das mudanças nas concepções de Arte e de ensino de Arte ocorridas a partir do início do século XX é indispensável para propor, sem dúvida, uma reflexão acerca do lugar da Arte na escola, na formação do professor e no trabalho docente em artes visuais. É isso que veremos a seguir. Dados obtidos em abril de 2006 através da Coordenadora da área de Arte, Rejane Correa Santos, da Secretaria Municipal de Educação. 29 Dados fornecidos em março de 2006 pela própria 5ª CRE, destacando-se que na rede estadual ainda é usada a antiga terminologia: Educação Artística. 28 PINCELADAS QUE MUDARAM A HISTÓRIA Para algo existir mesmoum Deus, um bicho, um universo, um anjoÉ preciso que alguém tenha consciência dele, Ou simplesmente que o tenha inventado. Mário Quintana A Imagem Viajante nº 4, “Campo de trigo com corvos” de Van Gogh30, conduz meus pensamentos para as mudanças que as pinceladas desse artista causaram na História da Arte. O artista contribuiu, no início do século XX, para uma ruptura da pintura com a natureza. O pintor moderno recorre à linguagem simbólica, vale-se da deformação ou recusa o realismo da sensação visual na representação da imagem. Um fato que separa nitidamente toda a Arte do passado daquela produzida nesse início de século, pelo menos na área da cultura ocidental. Isto nos faz compreender que os artistas não se satisfizeram em representar simplesmente “o que viam”. Se existe algo que marca este século XX é justamente a liberdade de expressão com toda a espécie de idéias e meios. O artista percebe a natureza como exterior a si e toma consciência de seu próprio Vincent Willen Van Gogh (1853-1890), pintor holandês, sua marca inconfundível era o uso expressivo da cor, suas cores eram fortes e assentadas com extrema sensibilidade em grossas camadas de tinta, suas pinceladas marcaram uma revolução no mundo da pintura. As várias soluções de sua pintura tornaram-se o ideal de um movimento chamado expressionismo. (GOMBRICH, 1981, p. 441). Expressionismo: corrente estilística que surgiu na Alemanha em 1904-1905, caracteriza-se pelo predomínio do sentimento sobre a sensação visual. Os expressionistas expressavam interrogações espirituais sobre o destino do homem e a intimidade das coisas do mundo (CAVALCANTI, 1978, p. 312). 30 55 ser como sujeito, sua representação rompe com um processo de secularização da Arte. Se nas pinturas pré-históricas de Lascaux ou de Altamira já está presente o poder humano de, pela imagem, se apropriar do real; foram necessários mais de trinta mil anos até que esse poder se definisse como uma linguagem específica e se concebesse a arte como um modo autônomo de expressão e conhecimento. O artista passou a atuar sobre a imagem do mundo e, metaforicamente, transformála, recriá-la e: ao fazer isso, constrói a si mesmo, objetiva seu mundo imaginário e o torna socialmente atuante. Ensino da Arte: rupturas na concepção A arte muda no início do século XX e, conseqüentemente, transformações começam a esboçar mudanças, também, no ensino da Arte, só que muito lentamente. É, mais precisamente, no final do século XX, que esse ensino rompe com o seu passado. O início do século XXI é marcado por transformações tanto na concepção de Arte quanto de ensino da mesma. Mudanças que enfocam um maior compromisso com a cultura e com a história. Até o início dos anos 80 o compromisso da Arte na escola era baseado em valores de uma elite cultural, ora enfatizando o desenvolvimento da expressão pessoal, ora trabalhando com os princípios do desenho, o formalismo. Já no início dos anos 90, a Arte é assim entendida por Barbosa (1991, p. XIV): “na pós-modernidade o conceito de arte está ligado à cognição; o conceito de fazer arte está ligado à construção e o conceito de pensamento visual está ligado à construção do pensamento a partir da imagem”. A relação Arte/cognição é, também, enfatizada por Eisner (2002), pois para o autor o trabalho com Arte refina e alarga a imaginação e potencializa a cognição. A cognição, aqui, é entendida como o processo pelo qual o organismo torna-se consciente de seu meio ambiente. Essas concepções apontam para o significado da Arte, como qualquer outra área do conhecimento, com um domínio, uma linguagem e uma história. É 56 por isso mesmo, um campo de estudo específico e não apenas uma mera atividade auxiliar e/ou recreativa. Destaco que nos anos 60, pregava-se no ensino da Arte a não intervenção do professor e o rompimento com a imitação de modelos – imagens - o que limitava a criatividade na produção artística do aluno, a Arte sai do aluno e não entra. A Lei 5692/71 não alterou essa prática no ensino e o Parecer CFE 540/77, embora mencionasse que a Educação Artística deveria o aguçar a sensibilidade, que instrumentaliza a apreciação - ensinar a ver como se ensina a ler -, o ensino da Arte reforçou a livre expressão individual do aluno. À livre expressão, a Arte hoje acrescenta a livre interpretação da obra de Arte como objetivo de ensino. O slogan modernista de que todos somos artistas era utópico e foi substituído pela idéia de que todos nós podemos compreender e usufruir Arte. Não mais se pretende desenvolver apenas uma vaga sensibilidade nos alunos, mas também se aspira influir positivamente no desenvolvimento cultural dos estudantes pelo ensino/aprendizagem da Arte. Não podemos entender a cultura de um país sem conhecer sua Arte (BARBOSA, 2002, p. 17). Assim, o ensino da Arte, nos últimos vinte anos, vem sendo marcado por mudanças conceituais e metodológicas, que têm desafiado as práticas docentes e a compreensão do papel da Arte no desenvolvimento do aluno e da escola. Tais mudanças abrem uma ampla discussão que passa pelos processos educativos artísticos em todos os níveis de escolaridade. É preciso, atualmente, como diz Martins (2002, p. 31), “ganhar distância para ver melhor e ter ouvidos atentos” para perceber as diferenças sutis dos discursos teóricos existentes. É necessário perceber, também, que as mudanças propostas pela lei exigem a construção de “novos” conceitos que fundamentam a área de conhecimento em Arte (BARBOSA, 1997, 1998, 2002, 2005; FUSARI; FERRAZ, 1992, 1993; FRANGE, 1995; MARTINS at al, 1998; e PILAR, 1999). Uma aprendizagem em Arte não descarta o passado, mas é preciso estar atento às recentes discussões sobre o processo de ensinar e aprender tanto na área da Arte como em outras áreas. Faz-se imprescindível para isso um posicionamento profissional comprometido com as transformações. Com isso – e devido a isso – penso que se faz necessário entender os vários contextos da Arte e suas relações com a multiculturalidade e com a cultura 57 visual. Essas questões provocam, sem dúvida, uma reflexão acerca do lugar da Arte na escola, da formação do professor e do trabalho com as linguagens artísticas. Primeiramente, é preciso pensar no lugar que o ensino da Arte ocupa no currículo da escola. Partindo do ponto de vista legal, sua aprendizagem é obrigatória pela LDB 9.394/96, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio. No caso do ensino médio, algumas escolas, para Barbosa (2002, p. 13), “estão incluindo a arte apenas numa das séries de cada um desses níveis, porque a LDB não explicitou que esse ensino é obrigatório em todas as séries”. E mais, algumas Secretarias de Educação estão usando o subterfúgio da interdisciplinaridade, e incluem todas as Artes na disciplina de Literatura, ficando tudo a cargo do professor de Língua e Literatura. Essa é uma forma de eliminar as outras linguagens da Arte, fazendo prevalecer o espírito educacional hierárquico da importância suprema da linguagem verbal e conseqüente desprezo pela linguagem visual. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), outro documento oficial, também dão à Arte um lugar de destaque no currículo, ela tem a mesma importância que as outras disciplinas. No entanto, na percepção de Barbosa (2002, p. 14) “os PCN’s estão resultando muito pouco”, ela se posiciona contra a implantação de currículos nacionais. Tourinho (2002, p. 28), por sua vez, faz algumas considerações aos PCN’s no que se refere às orientações e propostas contidas no referido documento, enfatizando que “é muito possível que poucas saiam da página impressa”. Para a autora, as propostas são histórica e socialmente conservadoras, pedagogicamente megalômanas e culturalmente demagógicas - porque descontextualizadas – um grande número de propostas que ali estão, fazem efeito, mas não levam a efeito aquilo a que se propõem. Não pretendo, aqui, negar o valor dos PCN’s, eles realmente sinalizam algumas mudanças significativas para o ensino da Arte, quero sim ressaltar a necessidade de o professor analisar, criticar e selecionar o que é relevante para a sua cultura e, principalmente, para as crianças com quem convive. Digo isto com base nos Parâmetros em Ação, um material que determina as imagens que devem ser trabalhadas pelos alunos e, até mesmo, quanto tempo deve-se discutir 58 cada imagem. Está é uma contradição interna dos PCN’s, que por um lado recomenda a pluralidade e por outro prega a homogeneização de imagens. Fato esse muito bem exemplificado por Barbosa (2002, p.1 6) quando diz que, no caso da escolha das imagens, “os PCN’s em Ação começam receitando a Santa Ceia de Leonardo da Vinci, num país de enorme diversidade cultural. Onde está o respeito ao pluralismo?” Apesar da obrigatoriedade, parece-me que os documentos oficiais não são suficientes para garantir a existência da Arte no currículo, porque, ao que tudo indica, prevalece o espírito hierárquico da supremacia da linguagem escrita e verbal e o conseqüente desprezo pela linguagem visual, como já comentado. Entretanto, essa hierarquia do conhecimento na escola, explícita ou implícita, “ainda mantém o ensino da arte num escalão inferior da estrutura curricular, porém, felizmente, não decreta seu falecimento” (TOURINHO, 2002, p. 28). Mesmo assim, o ensino da Arte chega ao final do século XX e início do século XXI buscando adequar-se à nova LDB, aos Parâmetros Curriculares Nacionais, documentos oficiais que representam discursos e ações, apesar das dificuldades na implementação das propostas e das polêmicas que elas têm gerado. Isto não significa que não tenham ocorrido mudanças na maneira de conceber e realizar o ensino da Arte, quando ele existe na escola. As transformações foram acontecendo na medida em que profissionais da educação e especificamente das artes se mobilizaram por meio de formas de participação mais expressivas, reivindicando compromissos do Estado neste processo de implementação do ensino nas escolas brasileiras, agora numa perspectiva da construção do conhecimento na e em Arte, uma área específica do conhecimento humano, com uma história e com conteúdos próprios. Cabe salientar que, com a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais há 10 anos, a Arte ganhou nova dimensão, novo olhar e adaptações que passaram a considerar a diversidade e peculiaridades culturais de cada região do país. Para Maria Helena Ferraz, professora da USP e uma das elaboradoras desse documento, a grande contribuição dos PCN’s foi ampliar e aprofundar o foco do ensino da Arte nas escolas. Se antes a preocupação dos professores estava voltada somente para a produção dos alunos, atualmente observamos a inserção da produção cultural, tanto de âmbito nacional quanto internacional, para 59 se trabalhar a apreciação e a reflexão. Rosa Iavelberg, também professora da USP e outra elaboradora desse documento, compartilha com Ferraz a idéia de que o documento propiciou, sem dúvida, um diálogo mais aprofundado entre Arte e educação, porém enfatiza que é necessário “uma interface maior entre os sistemas da Arte e da Educação contemporânea”31. Para as professoras os PCN’s não foram criados com o intuito de ser um currículo nacional, mas um parâmetro para que as secretarias de educação estaduais e municipais elaborassem seus planos de acordo com as peculiaridades de cada região. Considero fundamental destacar que os PCN’s trouxeram a inserção da produção cultural e apontaram para o aprofundamento de quatro linguagens da Arte: Artes Visuais, Teatro, Dança e Música, sem, no entanto, exigir que o especialista em uma determinada linguagem trabalhasse com as demais. A tentativa, atualmente, de visualizar a possibilidade de outra forma de ensinar a Arte passa pela compreensão do que seja a diversidade cultural e a cultura visual. A diversidade cultural deve ser enfatizada, considerando não mais somente os códigos europeus e norte-americanos brancos, mas a diversidade de códigos em função de raças, etnias, gênero e classe social. Esse é um ensino da Arte interessado no desenvolvimento cultural, que fornece, primeiramente, um conhecimento sobre a cultura local, e depois sobre a cultura de vários grupos que caracterizam a nação e a cultura de outras nações. Um dos temas transversais propostos pelos PCN’s é o da Pluralidade Cultural, cujo objetivo é atender às múltiplas culturas presentes hoje nas sociedades. Os PCN’s apresentam o termo pluralidade cultural como sinônimo de multiculturalidade, no entanto, é a denominação multicultural que se encontra consagrada na literatura sobre ensino da Arte (RICHTER, 2002). Outra questão a destacar é o crescente interesse pelo visual, fato que tem levado historiadores, antropólogos, sociólogos, educadores, professores de artes visuais a discutirem sobre as imagens e sobre a necessidade de uma alfabetização visual32, que se expressa em diferentes designações, como cultura Boletim Arte na Escola. Rede Arte na Escola. São Paulo, junho de 2008, n. 50, p. 3-4. Entendo por Alfabetização Visual, que também denomino de alfabetização estética, a compreensão da Arte como uma linguagem de expressão e comunicação do ser humano que possui códigos e conteúdos próprios. O indivíduo inserido num contexto pós-moderno, onde proliferam os códigos estético-artísticos através dos meios de comunicação de massa (mass media), necessita ser introduzido no mundo dos códigos da Arte como forma de instrumentalizá-lo 31 32 60 visual e leitura de imagens. Fabris (1998) nos auxilia na compreensão do interesse pelo visual no mundo contemporâneo. Segundo ela, por exemplo, a imagem própria do Renascimento33 não é apenas resultado de uma ação artística, mas sim fruto de um cruzamento entre Arte e ciência. Sua perspectiva vai muito além da mera aplicação de leis geométricas e matemáticas, pois se trata de um modelo de organização e racionalização de um espaço hierárquico. É a possibilidade de estruturar o espaço a partir de um determinado ponto de vista, aquele de um sujeito onisciente, capaz de tudo dominar e determinar. A autora mostra que o lapso de tempo em que o artista do Renascimento organizava uma nova visualidade coincide com o desenvolvimento da imprensa, com um novo modo de armazenar e distribuir um conhecimento interessado na preservação do passado e na difusão do presente. Nesse período, buscava-se um novo estilo cognitivo baseado na demonstração visual. As imagens com perspectiva eram uma tentativa de tornar o mundo compreensível à poderosa figura que permanecia em pé, no centro da imagem, no único ponto a partir do qual era desenhada. Esse estilo cognitivo perdurou até a fotografia e a vídeo-eletrônica. Mas hoje, com as tecnologias disponíveis no mundo contemporâneo, que estão redefinindo os conceitos de espaço, tempo, memória, produção e distribuição do conhecimento, estamos em busca de outra epistemologia, e se necessitamos de outro modo de pensamento, conseqüentemente necessitamos também de outra visualidade. Na vida contemporânea capturamos imagens, muitas vezes sem modelo, cópias de cópias, no cruzamento de inúmeras significações. Imagens para deleitar, entreter, vender, que nos dizem o que vestir, comer, aparentar, pensar. Nessa profusão de imagens insere-se o ensino das artes visuais, um ensino preocupado com a cultura visual e a leitura de imagens. Pergunto, então, a proposta da cultura visual é a mesma da leitura de imagens? para a compreensão e reflexão dos produtos culturais que assolam nossa sociedade. Ou melhor, alfabetizar visualmente é o ato de ler o mundo através das linguagens artísticas; ação de compor e decompor movimentos, imagens e sons para posterior compreensão e apropriação. 33 Denominação usada para designar o movimento artístico italiano, baseado nos modelos clássicos da Antiguidade greco-romana e ocorrido nos séculos XV e XVI. Intelectualmente, ele foi inspirados pelos ideais do pensamento humanista e nas Artes Plásticas também pelo uso do vocabulário formal greco-romano (CUNHA, 2005, p. 271). 61 • Cultura visual no ensino das Artes Visuais No ensino da Arte, a cultura visual deve-se ao fato de se reconhecer que o conhecimento da imagem é de fundamental importância não só para o desenvolvimento da subjetividade, mas também para o desenvolvimento profissional, uma vez que muitos trabalhos e profissões estão direta ou indiretamente relacionados à Arte comercial e à propaganda. É preciso que se entenda, também, o trabalho com a cultura visual como um instrumento para promover a aceitação da diferença, o reconhecimento da alteridade em suas manifestações de gênero, sexualidade, raça e classe. A compreensão da cultura e suas diversidades embasam, justificam e direcionam o ensino da Arte. Para Hernández (2002, p. 45-46) é preciso considerar que: (...) a arte é uma manifestação cultural e os artistas realizam representações que são mediadoras de significados em cada época e cultura. A compreensão (em sua dupla dimensão de interpretação e produção) desses significados é o objetivo prioritário do ensino de arte para alguns docentes desde o início dos anos 90. Essa tendência está vinculada a alguns referenciais que, no contexto da denominada pósmodernidade cultural, revisam o atual status da arte e o papel que as imagens (reais e virtuais) exercem na construção de representações sociais. Essa forma de racionalidade se encontra também presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais quando consideram o “objeto artístico” como produção cultural (documento do imaginário humano, sua historicidade e diversidade). Para o ensino da Arte, a relação dessa com a cultura amplia a análise visual circunscrita à Arte, originando outros universos visuais como a publicidade, o cinema e o vídeo clipe. Fato como esse faz surgir nos Estados Unidos “uma preocupação com a multiculturalidade” (EISNER, 2002). Aqui no Brasil, o movimento foi inverso. Foi o multiculturalismo com base nas diferenças de todas as classes que primeiro eclodiu. Isto, segundo Barbosa (2005, p. 15), deu-se porque: Ao sairmos de uma ditadura de vinte anos, o processo de redemocratização, nos anos 1980, trouxe em seu bojo a preocupação plural com a multiculturalidade. Durante a ditadura os únicos suspiros democráticos no ensino da Arte foram os festivais, especialmente os de Ouro Preto, nos quais professores, alunos, artesãos locais e o povo em geral podiam intercambiar. 62 Isto significa que este esforço multicultural passou a reconhecer o valor das diferenças, orientando, de certa forma, políticas multiculturais, incluindo-se aí a cultura visual do povo, a Arte produzida pelo povo. Para Barbosa (2005, p. 15) a cultura visual do povo é uma Arte reconhecida em separado pelo código hegemônico. É uma Arte de alta qualidade estética, não codificada pela cultura dominante. Foi somente nos anos 90 que, aqui no Brasil, começou-se a usar o termo cultura visual (TV, internet, softwares interativos, etc.) para falar das mídias, que segundo Barbosa (2005, p. 16) “modelam a mente, ensinam sobre arte e comandam nossa educação, embora já as víssemos trabalhando criticamente como imagem e como significação”. O termo cultura visual entrou no vocabulário dos arte-educadores com o curso de Kerry Friedman34 em São Paulo, no SESC Vila Mariana, e com uma publicação sobre cultura visual de Fernando Hernández. É importantíssimo ressaltar que a cultura visual não se ocupa somente da imagem, mas com outras formas sensoriais de comunicação, e não se concentra somente nos fatos e artefatos visuais observáveis, mas também se volta para os mais diversos contextos da visão e da representação. Essa concepção que vem influenciando o ensino da Arte procura estudar a construção social da experiência visual, o que possibilita uma compreensão mais ampla do que é visual (o que nós vemos) e visualidade (nosso modo de ver). É, na realidade, bem como diz Dias (2005, p. 281), “um deslocamento no enfoque do estudo da arte da elite para incorporar na discussão aspectos culturais do cotidiano, da cultura visual”. Assim sendo, atualmente, e como afirma Barbosa (2005, p. 17), “a abordagem mais contemporânea de Arte/Educação, no qual estamos mergulhados no Brasil, é associada ao desenvolvimento cognitivo”. Assim, o movimento de Arte/Educação impõe-se no Brasil pretendendo afirmar a eficiência da Arte para desenvolver formas sutis de pensar, diferenciar, comparar, generalizar, interpretar, conceber possibilidades, construir, formular hipóteses e decifrar metáforas. O conhecimento crítico de como os conceitos formais, visuais, sociais e históricos aparecem na Arte, como eles têm sido percebidos, redefinidos, Professor de Arte/Educação da School of Art Northen, Illinois University, Estados Unidos. Em 1996 participou do X Congresso Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), oferecendo um curso intitulado “A Compreensão e o Prazer da Arte”. 34 63 redesignados, distorcidos, descartados, reapropriados, reformulados, justificados e criticados em seus processos construtivos devem, hoje, iluminar a prática e o ensino da Arte. Cabe, então, aqui, perguntar: como é possível saber quando um campo do conhecimento muda? Para Canclini (2003, p. XVII), uma forma de resposta é: “quando alguns conceitos irrompem com força, deslocam outros ou exigem reformulá-los”. E foi exatamente assim que aconteceu com a arte e seu ensino. Partindo da percepção de Canclini (2003, p. XX), pode-se diz que o século XX foi pródigo na multiplicação de hibridizações35 e que: é possível colocar sob um só termo fatos tão variados quanto os casamentos místicos, a combinação de ancestrais africanos, figuras indígenas e santos católicos na umbanda brasileira, as collages publicitárias de monumentos históricos com bebidas e carros esportivos? Algo freqüente como a fusão de melodias étnicas com música clássica e contemporânea ou com jazz e a salsa pode ocorrer em fenômenos tão diversos quanto a chicha, mistura de rítimos andinos e caribenhos, a interpretação jazística de Mozart, realizada pelo grupo afro cubano Iraquere, as reelaborações de melodias inglesas e hindus efetuadas pelos Beatles, Peter Gabriel e outros músicos. Os artistas que exacerbam esses cruzamentos e os convertem em eixos conceituais de seus trabalhos não o fazem em condições, nem com objetos semelhantes. Como se vê, a hibridização funde estruturas ou práticas para gerar novas estruturas, novas práticas. Canclini (2003) afirma, ainda, que essa hibridização surge da coletividade individual e coletiva e que isso ocorre não só nas artes, mas, também, na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. É essa hibridização, como processo de interseção e de transação, que torna possível que a multiculturalidade36 evite a segregação e se converta em interculturalidade37. Diante desses fatos é impossível dizer que a Arte não sofreu os impactos dessas transformações, uma vez que “o antropólogo leva à cena a cultura popular para o museu ou para a academia, os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos para a mídia” (CANCLINI, 2003, p. 23). Tais transformações, com certeza, provocaram – e continuam provocando – mudanças, também, na Hibridizações: processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas (CANCLINI, 2003, p. XIX). 36 Multiculturalidade: pressupõe a coexistência e mútuo entendimento de diferentes culturas numa mesma sociedade (BARBOSA, 2002, p. 19). 37 Interculturalidade: significa a interação entre as diferentes culturas ( BARBOSA, 2002, p. 19). 35 64 forma de ensinar e aprender Arte. Canclini (2003) sugere que, a respeito da Arte, é preciso “encontrar outras vias de inserção da cultura especializada na práxis cotidiana para que esta Arte não se empobreça na repetição das tradições”. Tanto Canclini (2003) quanto Hernández (2002) consideram que a cultura visual, especialmente nas artes plásticas, produz a perda da autonomia simbólica das elites, o que provoca uma distância da Arte mantida pelas belas-artes. Destaco, ainda, que tanto a cultura visual de Hernández quanto a cultura híbrida de Canclini, enfatizam as experiências diárias do visual e movem, assim, a atuação das belas-artes – ou cultura de elite – para a visualização do cotidiano. Além disso, ao negar limites entre arte de elite e formas populares de arte, a cultura visual faz de seu objeto de interesse os artefatos, tecnologias e instituições de representação visual, conceituada como lugar de produção e de circulação de sentidos, constitutivo de eventos sociais e históricos, não simplesmente uma reflexão deles (HALL, 1997). Portanto, é preciso destacar que as noções de cultura visual e de cultura híbrida apontam para mudanças na compreensão de uma Arte expandida, refletida no ensino por meio de recente proliferação e penetração das imagens visuais e artefatos e de sua importância na vida social. • Leitura de imagens no ensino das Artes Visuais Com relação à leitura de imagens pode-se dizer que o uso dessa expressão na área da comunicação e das artes, teve como marco inicial o final da década de 70, é uma tendência que foi influenciada pela Teoria da Gestalt38 ou psicologia da forma. Nessa teoria a imagem é constituída a partir de percepção, uma vez que toda a experiência estética, tanto na produção como na recepção, pressupõe um processo perceptivo, que entende a percepção como uma experiência que transforma a informação recebida. Essa proposta de tendência Gestalt: palavra alemã de significado amplo, podendo ser traduzida basicamente por forma, figura ou configuração. A psicologia da gestalt diz que as partes são determinadas pelo todo e que toda a experiência, incluindo a experiência estética, é relacionada a certas estruturas básicas que não podem ser subdivididas (CUNHA, 2005, p. 249). 38 65 formalista fundamenta-se numa racionalidade perceptiva e comunicativa que justifica o uso da imagem para facilitar a comunicação e, de acordo com a teoria gestáltica, não se pode ter conhecimento do "todo" por meio de suas partes, pois o todo é maior que a soma de suas partes, sendo a forma a que sobressai. Daí ser essa uma tendência formalista. Analisar uma imagem na tendência formalista implica em entender que ela incorpora diversos códigos e para ler essa imagem precisamos conhecer e compreender seus códigos. Assim, uma leitura formalista envolve a identificação das estruturas que configuram essa imagem, que segundo Arnhein (1989) podem ser enumeradas como as seguintes categorias visuais: equilíbrio, figura, forma, desenvolvimento, luz, espaço, cor, movimento, dinâmica e expressão. Isto significa que ao ler uma imagem precisamos identificar essas categorias visuais e descobrir a configuração dessa imagem, que por si mesma possui qualidades expressivas. Barbosa (2005, p. 17) ressalta que Arnhein foi acusado de formalista no início dos anos 80, no entanto vem sendo recuperado pelos cognitivistas, pois sua gramática visual não se envolvia apenas na forma, mas “derivava de uma negociação contextual mental e se dirigia ao contexto perceptual”. Esse modelo de leitura de imagens foi difundido, aqui no Brasil, por Ostrower (1983, 1987, 1990), através de cursos e encontros com professores. Suas idéias enfatizavam as relações entre aspectos formais e expressivos da imagem. Outra influência na leitura de imagens foi a também tendência formalista de Dondis (1991), que introduz o conceito de alfabetismo visual, através de um sistema de elementos básicos – sintaxe visual – como ponto, linha, forma, cor, luz na composição da imagem. Apoiando-se nesse sistema, proposto pela autora para uma alfabetização visual, alguns professores começaram a aplicar esse esquema da sintaxe visual de leitura de imagens. É possível, também, ler uma imagem a partir de uma abordagem estética, como propõe Parsons (1992). O autor afirma que um grupo de idéias, de aspectos estéticos (tema, expressão, aspectos formais, juízo) prevalece na imagem e que o entendimento dessa imagem do ponto de vista estético é complexo, pois depende da familiaridade com as imagens das obras de arte e isso, por sua vez, depende das experiências artísticas de cada pessoa. Em sua obra Compreender a arte, ele 66 tem por objetivo discutir o modo como as pessoas entendem a pintura, pois sempre teve curiosidade em saber como essas pessoas entendem o quadro; o que procuram nele e o que sentem ao vê-lo. Para o autor deve-se atentar para o fato de que a leitura de uma obra varia de pessoa para pessoa, dependendo das oportunidades às quais elas têm acesso e considerando autonomia do sujeito. Destaca-se, com base nos estudos de Parsons, o trabalho realizado por Rossi (2003), que defende que uma atividade de leitura de imagens deve levar em conta o desenvolvimento psicológico e a familiaridade da pessoa com as imagens a serem lidas. A autora não utiliza apenas imagens do mundo da Arte como Parsons, mas também imagens da publicidade, e critica o enfoque formalista na leitura de imagens que, em sua opinião, vem sendo priorizado por professores no ensino da Arte no Brasil. Fato que reduz a leitura a um roteiro de perguntas que não respeita a construção dos leitores. A partir dos anos 90, Barbosa sistematiza uma concepção de construção de conhecimento em Arte denominada Proposta Triangular do Ensino da Arte, Nessa proposta, a construção do conhecimento dá-se quando há a interseção da experiência com a codificação e com a informação. O ensino da Arte passa, então, a ter como base três opções: ler a obra de Arte, fazer Arte e contextualizar. A leitura de imagem – obra de Arte – nessa proposta envolve o questionamento, a busca, a descoberta e o despertar da capacidade crítica dos alunos. Barbosa (1998) enfatiza que as interpretações oriundas desse processo de leitura devem relacionar sujeito/obra/contexto e que o objeto de interpretação é a obra e não o artista, não justificando processos advinhatórios na tentativa de descobrir as intenções do artista. No entanto, Pillar (1999) alerta que, em nome da Proposta Triangular, muitos professores enfatizam o “fazer arte” e trabalham o conceito de releitura através da cópia de obras. Nessa proposta, “a leitura tem sido considerada algo mais teórico, ao passo que a releitura é relacionada com um fazer. Leitura e releitura são, no entanto criações” (PILLAR, 1999, p. 4)39. Para a autora, a leitura da imagem significa a compreensão e a interpretação de todos os elementos visuais (linhas, formas, cores, texturas, volumes, etc.) e na releitura de uma 39 “Leitura e Releitura” – Boletim Arte na Escola, Fundação Iochepe, Porto Alegre, dezembro de 1996, p. 3-4. 67 imagem há transformação, interpretação e criação de novos significados. Destaca, ainda, que a cópia é uma atividade técnica, sem transformação, sem interpretação, sem criação, é pura e simples reprodução, ao passo que a releitura é criação. Os PCN’s (BRASIL, 1997) recomendam articular o ensino da Arte em três eixos: a produção, a fruição e a reflexão40. Esses eixos mantêm seu espaço próprio, mas devem estar relacionados na prática, e seus conteúdos podem ser trabalhados em qualquer ordem, segundo decisão do professor, conforme o desenho curricular. O fazer artístico, a apreciação estética e a contextualização histórica da Arte constituem o alicerce para a construção de uma educação artística ideal, formadora da sensibilidade e do senso estético. Essa orientação tem servido de base para o trabalho com leitura de imagens. Outra abordagem é a da leitura crítica das imagens de Kellner (1995), que influenciou o trabalho de educadores que se reportam a uma pedagogia da imagem. A pedagogia da imagem situa-se no marco teórico dos Estudos Culturais, e considera que a educação não se restringe às formas legais organizadas quase sempre na instituição escolar. Em qualquer sociedade há inúmeros mecanismos educativos presentes em diferentes instâncias socioculturais. Grande parte desses mecanismos tem como função primeira educar os sujeitos para que vivam de acordo com regras estabelecidas socialmente. Por estarem inseridos na área cultural, esses mecanismos revestemse de características como prazer e diversão, mas, ao mesmo tempo, educam e produzem conhecimento. Assim, Kellner (1995), em sua pedagogia crítica da imagem, argumenta que ler criticamente uma imagem implica em aprender a apreciar, decodificar e interpretar as imagens, analisando tanto a forma como elas são construídas quanto o conteúdo que comunicam. O autor propõe, ainda, o desenvolvimento de um alfabetismo crítico em A produção refere-se ao fazer artístico e ao conjunto de questões a ele relacionadas, no âmbito do fazer do aluno e dos produtores sociais de Arte. A fruição refere-se à apreciação significativa de Arte e do universo a ela relacionado. Tal ação contempla a fruição da produção dos alunos e da produção histórico-social em sua diversidade. A reflexão refere-se à construção de conhecimento sobre o trabalho artístico pessoal, dos colegas e sobre a Arte como produto da história e da multiplicidade das culturas humanas, com ênfase na formação cultivada do cidadão (BRASIL, 1997, p. 41). 40 68 relação à mídia e de competências na leitura crítica de imagens. Kellner (1995, p.107) diz que os exemplos da mídia colocam, de forma provocativa, a necessidade de ampliar o alfabetismo e as competências cognitivas para que possamos sobreviver ao assalto das imagens, mensagens e espetáculos da mídia que inundam nossa cultura. Há certa oposição à abordagem formalista porque essa reduz a imagem a um conjunto de elementos visuais. O autor afirma que nossas experiências e nossas identidades são socialmente construídas e sobredeterminadas por uma gama variada de imagens, discursos e códigos. Para Kellner (1995), a publicidade é um texto social multidimensional, com uma riqueza de sentidos que exige um sofisticado processo de interpretação e um importante indicador de tendências sociais, modas e valores. Daí sua proposta de uma pedagogia crítica da imagem, pois ele concorda com Giroux (1995) que diz que a pedagogia deve redefinir sua relação com a cultura e servir como veículo para sua interpretação. Ao defender uma pedagogia crítica capaz de analisar imagens como textos culturais, Kellner (1995, p. 112) destaca que essa análise é ”uma riqueza de sentidos que exige um processo sofisticado de decodificação e interpretação”. Rossi (2003, p. 9) complementa dizendo que “a leitura dessas imagens é um meio para a conscientização de que somos os destinatários de mensagens e que não se deve impor valores, idéias e comportamento que não escolhemos”. Assim como a imagem molda pensamentos e comportamentos ela pode educar. É nesse sentido que a produção de imagens é considerada como um desses mecanismos educativos presentes nas instâncias socioculturais. As imagens não cumprem apenas a função de informar ou ilustrar, mas também de educar e produzir conhecimento. Pillar (2002, p. 75) destaca os diferentes processos de leitura de imagens, porque eles elucidam Os aspectos que primeiro chamam atenção ao olhar da criança e como se chega a uma compreensão contextualizada das obras. Tais investigações discutem a importância de educar o olhar para a leitura de imagens. 69 Cabe, aqui, destacar que os PCN’s definem o objeto artístico, no caso as imagens, como produção cultural, documento do imaginário humano, de sua historicidade e de sua diversidade (BRASIL, 1997, p. 45). Meu propósito, até então, foi ressaltar a importância das contribuições da cultura visual e da leitura de imagens para um ensino da Arte voltado para as questões atuais. Quero destacar que a cultura visual não se ocupa somente da imagem, ela centra-se no visual como lugar onde se criam e se discutem significados. Assim, distancia-se das obras de Arte, dos museus para focalizar sua atenção na experiência cotidiana. Do mesmo modo que os estudos culturais tratam de compreender de que maneira os sujeitos buscam dar sentido ao consumo na cultura de massas, a cultura visual dá prioridade à experiência cotidiana do visual, interessa-se pelos acontecimentos visuais nos quais o consumidor busca informação, significado e/ou prazer conectados com a tecnologia visual. A cultura visual, nessa concepção, contém uma proposta bem mais ampla que a de leitura de imagens baseada apenas no formalismo. Digo que a leitura de imagens pode ir muito mais além, pois ela também mostra a diversidade de significados e o quanto o contexto, as informações, as vivências de cada leitor estão presentes ao procurar dar sentido para uma imagem. Professor de Artes Visuais: desafios na atuação A procura de caminhos para o ensino da Arte através das discussões nacionais e locais sobre a LDB, os PCN’s, as Diretrizes Nacionais para a área de Arte, a partir de 1996, resulta em mudanças significativas na concepção desse ensino, o que, por sua vez, implica em mudanças na forma de atuação do professor e na conjugação entre a teoria e a prática na área de Artes Visuais. Essa área inclui, além das formas tradicionais das artes plásticas (pintura, escultura, gravura, arquitetura), objetos, cerâmica, cestaria, entalhe e outras modalidades que resultam dos avanços tecnológicos e das transformações estáticas do século XX, como, por exemplo, fotografia, moda, artes gráficas, cinema, televisão, vídeo, computação, performance, publicidade. Desta forma, diante de um ensino da Arte que amplia o campo de análise visual circunscrita à Arte para outros universos visuais, está o professor. Um 70 professor que tem que saber desde os conceitos fundamentais da Arte até as especificidades da linguagem que ele trabalha. Martins (2002, p. 52) especifica, a seguir, os conhecimentos que o professor necessita dominar: Temos que saber como ele se produz- seus elementos, seus códigos – e também como foi e é sua presença na cultura humana, o que implica uma visão multicultural, a valorização da diversidade cultural. É preciso ainda conhecer seu modo específico de percepção, como se estabelece o contato mais sensível, como são construídos os sentidos a partir das leituras, como aprimorar o olhar, o ouvido, o corpo. Completa-se o pensamento da autora ao destacar que é preciso, ainda, saber como mobilizar esses conhecimentos não só por parte dos professores, mas também pelos alunos, pela mídia, pelas outras pessoas e pelo entorno cultural. Então, eu pergunto: está esse professor preparado para enfrentar tais desafios? Minha intenção ao falar dos desafios do professor de artes visuais frente às significativas transformações ocorridas no campo da Arte e do seu ensino não é apresentar idéias de como esse professor deve – ou não deve – trabalhar as artes visuais em sala de aula. Pretendo, sim, pensar que a implementação dessas mudanças envolve outros fatores que vão além de sugestões de receitas metodológicas. Acredito ser esse um processo que passa pela formação, em conexão direta com as situações de trabalho, mas também, e principalmente, pela trajetória pessoal e profissional desse professor. Com relação à formação, considero importante salientar que algumas instituições formadoras de professores foram criadas a partir de 1971 e nelas trabalhada, na maioria das vezes, a concepção de Arte como “laissez-faire”, um deixar fazer “qualquer coisa”, partindo de uma sensibilização, ou trabalhos com sucatas e/ou lixo-seco e grotescas reproduções a partir da cópia, nada tendo a ver com a criação. A falta de preparação do professor para entender a Arte antes de ensiná-la, para Barbosa (2002, p. 15) é um problema crucial, preparar esse professor é fundamental. Frange (2002, p. 45) complementa dizendo que o ensino da Arte é amplamente afetado pelo modo como professor e alunos vêem o papel da Arte fora da escola. É preciso que esse professor tenha o entendimento de que a Arte 71 é, também, produzida por outras formas introduzidas pelas tecnologias e pela comunicação de massa. No entanto, há entre alguns professores uma tendência em acreditar que a livre expressão abrange todo o universo da Arte, principalmente para crianças pequenas. Soucy (2005. p. 41) afirma que muitos professores parecem mesmo acreditar que eles devem deixar as crianças se expressarem e, desta forma, seu compromisso de ensino está realizado. Porém o que eles esquecem é que, como diz o autor, “toda a expressão tem conteúdo, quem expressa deve expressar alguma coisa”. Cabe, aqui, destacar uma pesquisa realizada em 2002 por Barbosa (2005, p. 99) sobre o que pensam os professores (a autora utiliza a expressão arteeducadores para designar esses docentes) a respeito do ensino da Arte. Dos 217 professores interlocutores, 82% deles responderam que seu objetivo era o desenvolvimento da sensibilidade do aluno. Isto aponta para a percepção de Arte dos anos 60 e 70, onde a criatividade era evocada unanimemente como o “sagrado objetivo da arte na educação”, E ainda, destaca a autora, que tais professores quando perguntados sobre o que era “sensibilidade” responderam com freqüência que era “ser capaz de se emocionar”, “ser romântico”, “sofrer com o sofrimento dos outros”. Como se vê, a tendência de pensar a Arte como expressão pessoal de sentimentos ainda permanece viva. Barbosa (2005, p. 99) diz que dentre os 217 professores apenas um deles falou de sensibilidade como desenvolvimento dos sentidos, o que para a autora é “a única concepção que interessa ao ensino da arte”. Essa definição de sensibilidade, como conjunto de funções orgânicas que buscam a inteligibilidade, o prazer, a sensualidade, é que responde às condições da pós-modernidade. Barbosa (2002, p. 15) adverte que é preciso lembrar que as Artes Visuais ainda estão sendo ensinadas como desenho geométrico, seguindo a tradição positivista, ou continuam a ser utilizadas, principalmente, nas datas comemorativas, na produção de presentes muitas vezes estereotipados para o dia das mães ou dos pais. A chamada livre expressão praticada por um professor expressionista ainda é uma alternativa melhor que as anteriores, mas sabemos que o espontaneísmo apenas não basta, pois o mundo de hoje e a Arte de hoje exigem um leitor informado e um produtor consciente. 72 Para a autora, é a partir de uma compreensão do que sejam as Artes Visuais que acontecerá um ensino que permita um conhecimento em Arte, que aguce a percepção e capacite uma leitura de mundo com olhares revigorantes e revigorados. Entendo como significativo compreender que a docência em Artes Visuais passa por contextos históricos e conceituais nos quais se insere o ensino dessa área de conhecimento, sofrendo, obviamente, transformações ao longo dos tempos, já que a Arte em si mesma é uma realidade cambiante. A ação do professor em sala de aula está impregnada de conhecimentos, isto é, dos saberes, do saber-fazer Arte, das competências e das habilidades construídas ao longo da sua trajetória acadêmica, docente, e pessoal em diferentes tempos e espaços. Sobre a estrutura espacial e temporal da vida cotidiana, Cunha (1994 p. 36-37) nos diz que na primeira a vida do individuo está ligada com outros numa dimensão social e que “o existir na vida cotidiana é estar continuamente em interação e comunicação com os outros”. A segunda, a temporalidade, “é uma propriedade intrínseca da consciência", “um tempo que existiu antes da pessoa e continuará a existir depois”. Assim, o indivíduo, por um lado, “é determinante e determinado pela conjuntura social e cultural onde se desenvolve” e, por outro lado, “é dentro da estrutura temporal que a vida cotidiana conserva seu sinal de realidade”. Portanto, os projetos do indivíduo estão por sua vez condicionados a um tempo. Considerando que foi num determinado tempo e espaço de formação pessoal e profissional que o professor construiu suas concepções de Arte e que o atual ensino da mesma exige olhares revigorantes e revigorados, faz-se necessário pensar que algumas concepções de Arte e de ensino de Arte não se sustentam mais. Concordo plenamente com Barbosa e digo mais: o ensino para o professor de Artes Visuais não é apenas uma questão, mas muitas questões; não um problema, mas inúmeros desafios. Meu desafio seguinte foi buscar olhares de alguns teóricos para compreender questões relativas à escola, ao trabalho docente, aos saberes docentes e aos ciclos de vida e fases da carreira por que passam os professores. OLHARES TEÓRICOS SOB PERCEPÇÃO Só começo o trabalho, depois de muitos olhares, se me convenço de que vale a pena gastar mais um cupom da minha ração de entulhação do mundo. Marcel Duchamp Ao apresentar minha Imagem Viajante nº 5, de Duchamp41, uma escultura em mármore e bronze intitulada Marcel Duchamp-Modelo Vivo, falo da lembrança que tenho de uma comparação entre Picasso e Duchamp, em que Picasso tornou visível o mundo do século XX e Duchamp nos mostrou que todas as artes, sem excluir a dos olhos, nascem e terminam numa zona invisível. Isto quer dizer que o Marcel Duchamp (1887-1968), pintor e escultor francês, considerado um artista representante do Dadaísmo, que introduziu a idéia de ready-made como objeto de arte. Ready-made: (“já feito”) termo criado por Duchamp para designar objetos do cotidiano retirados de seu contexto normal e considerados como objetos de arte. Dadaísmo: nome atribuído ao primeiro movimento anti-arte, conhecido, também, pelo nome de como Dada (cavalinho de pau ou cavalo de carrossel). Nesse movimento os artistas usavam textos sem sentido, performances, como protesto, contra as arrogantes pretensões do mundo ocidental (CUNHA, 2005, p. 239). 41 74 primeiro transformou tudo em arte, enquanto o segundo, sem transformar nada, fez com que tudo pudesse ser arte. Esse “tudo” eram objetos do cotidiano retirados de seu contexto natural e, sob os olhares do artista, tornados arte. É, exatamente, essa forma de olhar as coisas do mundo e representá-las que me fascina. Foram os “olhares” de Duchamp os inspiradores da escrita desta seção e, mais precisamente, a imagem do artista, uma auto-representação, diante de um tabuleiro de xadrez. É esse olhar atento, focado, delimitado, que me levou a dialogar com meus “escolhidos” teóricos. Esses olhares teóricos que dão o meu rumo e o rumo para a construção da base teórica do trabalho. A intenção deste capítulo é, primeiramente, pensar a escola como um lugar de cultura, como espaço de produção de vozes e como o cenário onde acontece o trabalho docente. Em seguida, resgatar a trajetória do processo histórico da constituição da docência como profissão para compreender os problemas atuais da profissão docente. Digo isso com base em Nóvoa (1995a, p. 24), que considera a análise desse processo a possibilidade de olhar a situação com que os professores se confrontam e, ainda, que toda a mudança que se faz necessária exige uma “ruptura com os próprios alicerces fundacionais da profissão docente”. Ao fazer essa afirmativa, Nóvoa (1995a) propõe um desafio para pensar mudanças na escola, na formação e na ação dos professores ou, até mesmo, recriar a profissão docente. Olhares de outros autores, também, contribuem para o entendimento de questões relativas à proletarização e à intensificação do trabalho docente, pois a discussão em torno desses temas pode, também, ajudar na compreensão dos problemas atuais desse trabalho. Outro aspecto que merece minha atenção diz respeito aos saberes docentes: conhecimentos, competências e habilidades que servem de base para a prática docente, ou seja, entender o repertório de conhecimentos que corresponde aos saberes próprios do professor. Por fim, como a intenção centrou-se no estudo da problemática da profissão docente em Arte Visuais, considerando aspectos pessoais e profissionais levando em conta as variáveis históricas, institucionais e pedagógicas que configuram o itinerário de cada professor, apresento os ciclos de vida profissional, centrados nas fases da carreira docente, o que possibilitou a compreensão da pessoa do professor e, como conseqüência, de sua atuação docente. 75 Escola em questão A palavra escola produz imagens e lembranças. O poeta, mais do que ninguém, é capaz de escrever de forma clara, com poucas palavras, o que ela representa. E nós, se pensarmos rapidamente, podemos dizer que é nesse espaço que aprendemos os saberes do mundo. Ora, a escola é legitimada na sociedade como a principal instituição responsável pela transmissão de saberes acumulados e não se pode negar que a escola é um referencial central na vida das pessoas. Mas, será a escola apenas isso? Cora Coralina42 relembra com carinho sua passagem pela escola na poesia “A escola da Mestra Silvina”. Primeiramente, ela apresenta a rotina da escola e descreve sua mestra, através dos seguintes versos: Minha escola primária. Escola antiga de antiga mestra. Repartida em dois períodos Para a mesma meninada, Das 8 às 11, da 1 às 4. Nem recreio, nem exames. Nem notas, nem férias. Sem cânticos, sem merenda... Digo mal – sempre havia Distribuídos Alguns bolos de palmatória... A granel? Não, que a Mestra Era boa, velha, cansada, aposentada. Tinha ensinado a uma geração Antes da minha. A gente chegava ”- Bença Mestra”. Sentava em bancos compridos, Escorridos, sem encosto. Lia alto lições de rotina: O velho abecedário, Lição salteada. Aprendia a soletrar. Ana Lins dos Guimarães Peixoto (1889/1985), seu nome de batismo, nasceu no estado de Goiás (Goiás Velho) e cursou apenas as primeiras letras com mestra Silvina. Já aos 14 anos escreveu seus primeiros contos e poemas; Tragédia na Roça foi seu primeiro conto publicado. Seu primeiro livro, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias mais, publicado em 1965, levou Cora, aos 75 anos, finalmente a ser reconhecida como a grande porta-voz de uma realidade interiorana já afetada pelo avanço da modernidade. A poesia A Escola da Mestra Silvina consta desse primeiro livro às páginas 75-78. 42 76 Esses versos de Cora Coralina mostram, nesse momento, aquilo sobre o que a poetisa quis chamar a atenção. Em um determinado momento histórico, a escola, a forma de aprender, a disciplina, a professora boa ou cansada, os alunos e as alunas trabalhando sérios em suas lições de rotina. E mais ainda: na imagem da escola de Cora Coralina aparecem também os tantos sentidos daqueles que, com sua história, suas emoções e suas memórias, as vêem ao ler o texto escrito. Cora Coralina descreve, posteriormente, sua escola fisicamente; de forma minuciosa ela conta que: A casa da escola ainda é a mesma. - Quanta saudade quando passo ali! Rua Direita, n 13. Porta da rua pesada, Escorada com a mesma pedra Da nossa infância. Porta do meio, sempre fechada. Corredor de Lages E um cheirinho de rabugem Dos cachorros de Samélia. À direita – sala de aulas. Janelas de rótulas. Mesorra escura, Toda manchada de tinta Das escritas. Altos na parede dois retratos: Deodoro, Floriano. Num prego de forja, saliente na parede, Estirava-se a palmatória. Porta de dentro abrindo Numa alcova escura. Um velhíssimo armário. Canastras tacheadas. Um pote d’água. Um prato de ferro. Uma velha caneca, coletiva, Enferrujada. Minha escola da Mestra Silvina. Silvina Ermelinda Xavier de Brito. Era todo o nome dela. Em sua representação43 da escola, embora de forma muito pessoal, através de detalhes a poetisa nos fornece pistas sobre aquilo que ela quis dizer 43 A concepção de representação adotada é a de Hall (1997, p. 16), que diz o seguinte: “To represent something is to describe or depict it, to call up in the mind by description or portrayal or imagination”. 77 de sua escola. Nessas pistas encontro as possibilidades de compreender o contexto em que viveu a poetisa e, principalmente, como se deu a sua experiência naquela escola tão significativa, que ela nunca esqueceu, e que a levou a escolher esse tema e mostrá-lo em poesia. Busco nessas pistas, pensar a escola, pensar se a escola da Mestra Silvina era melhor que a escola de hoje e como é a escola de hoje. É, então, a partir dessas questões que me proponho a refletir e apresentar olhares teóricos sobre a escola e, ainda, como a cultura escolar é construída e como essa cultura é refletida na prática cotidiana dos professores, cultura essa que dá “vozes” a esses professores. • A escola como lugar de cultura O prédio descrito por Cora Coralina ganha vida quando ela comenta as atividades ali desenvolvidas. Assim, uma edificação só se transforma em escola à medida que seus ocupantes experimentam e interpretam esse espaço e dele se apropriam, atribuindo-lhe significado e valores. Assim, a produção do espaço escolar acontece através de uma linguagem decodificada a partir dos sentidos, capaz de constituir um discurso que fala sobre e com seus ocupantes. Portanto, a escola além de transmitir saberes, transmite símbolos e valores. Isso significa que “a vida interna da escola (...) reelabora, segundo a sua dinâmica interna, normas, valores, práticas comunitárias, dando-lhes uma coloração nova, mas nem por isso alheia ao encadeamento geral da sociedade” (CANDIDO, 1964, p. 128). Pode-se, então, concordar com Silva (2006, p. 2) quando ela afirma que “parece não haver inconvenientes em considerar a escola como uma instituição com uma cultura própria”. Para a autora, os elementos que desenham essa cultura são oriundos Dos atores (famílias, professores, gestores e alunos); dos discursos e linguagens (modos de conversação e comunicação, das instituições (organização escolar e sistema educativo) e das práticas (pautas de comportamento) que chegam a se consolidar durante um tempo. Define-se, assim, a escola como organização que tem em sua estrutura um corpo de princípios e valores dados pelo sistema educacional, por meio de leis, decretos e papéis formalmente estabelecidos, e outro corpo de princípios e 78 valores construídos e reelaborados no seu interior, pelos participantes do processo educacional. Esse corpo de princípios e valores é constituído na cultura da organização escolar e direciona grande parte das interações presentes nessa cultura. Os conceitos adotados no interior da escola definem uma cultura de interação entre os seus participantes e são peculiares a cada organização. Entendo que a escola é uma instituição social e tem uma função social básica, que vai muito além de prestar serviços educativos, e não deve ser entendida apenas como uma organização social burocrática. A organização, a estrutura e as decisões no cotidiano escolar são peculiares, pois as escolas são instituições diferentes das organizações sociais, conforme afirma Nóvoa (1998, p. 16): As escolas são instituições de um tipo muito particular, que não podem ser pensadas como qualquer fábrica ou oficina: a educação não tolera a simplificação do humano (...) que a cultura da racionalidade empresarial sempre transporta. A escola tem características próprias, uma cultura que perpassa todas as ações do seu cotidiano, seja na determinação de suas formas de organização e de gestão, seja na constituição dos sistemas curriculares. É, também, significativa para o entendimento dessa cultura a presença dos professores e suas práticas, incluindo a formação, a seleção e o desenvolvimento da carreira acadêmica dos mesmos. Assim, os discursos, as formas de comunicação e as linguagens presentes no cotidiano da escola constituem aspectos fundamentais de sua cultura. Cabe, aqui, fazer uma referência a algumas concepções do termo cultura, conforme literatura sobre o tema. Na visão antropológica de Lévi-Strauss (1976), todas as culturas constituem-se em linguagem e códigos. A cultura tem a função de prover os grupos ou nações de um referencial que permite à humanidade dar sentido ao mundo e às suas ações. Para chegar ao conceito de cultura, o autor parte da observação direta de indivíduos se comportando frente a outros indivíduos e em relação à natureza. Isso significa que as pessoas falam umas com as outras, movimentam-se de determinadas maneiras, ocupam determinados espaços, participam de grupos trocando idéias e participando de conflitos, ou seja, 79 desenvolvendo inúmeras atividades de subsistência. E mais, é possível detectar certas regularidades nos comportamentos e nas atividades dos indivíduos e essas variam de um grupo social para outro, pois pertencer a um grupo social implica, basicamente, em compartilhar um modo específico de comportar-se em relação aos outros homens e à natureza. Arantes (1988, p.3 4) complementa a idéia anterior dizendo que, em se tratando de vida social, a cultura (significação) está em toda a parte e, ainda, que: Todas as nossas ações, seja na esfera do trabalho, das relações conjugais, da produção econômica ou artística, do sexo, da religião, das formas de dominação e de solidariedade, tudo nas sociedades humanas é constituído segundo os códigos e as convenções simbólicas a que denominamos de ‘cultura’. Já o conceito de cultura, na perspectiva dos Estudos Culturais, é entendido Tanto como uma forma de vida – compreendendo idéias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder – quanto toda uma gama de práticas culturais: formas, textos, cânones, arquitetura, mercadorias produzidas em massa, e assim por diante (NELSON, TREICHLER, GROSZBERG, 1995, p. 14). Villa Boas (2003, p. 15) resume essa mesma visão de cultura da seguinte maneira: “um sistema de signos produzidos a partir das relações sociais”. E como diz Willis (1977, p. 185), cultura é “o próprio material de nossas vidas diárias, as pedras fundadoras de nossas compreensões mais corriqueiras”. Nesse sentido, o entendimento do conceito de cultura é bastante abrangente, e percebo, claramente, que as concepções apresentadas têm como ponto comum a construção da cultura a partir de uma rede complexa de relações dentro da sociedade. Para, assim, compreender determinada cultura, será necessário reconstituir o modo como os grupos se representam nas relações sociais que os definem como determinados grupos, em suas estruturas internas e nas relações com os outros grupos, a partir dos critérios de organização, de um conjunto de regras que articula pontos de vista desses grupos. Entendo que a cultura não atribui papéis e determina comportamentos dos quais os indivíduos não possam escapar, antes, eles estão constantemente reinterpretando os significados, códigos e linguagens nas suas ações mais 80 ordinárias. Sendo um conteúdo, um conjunto de elementos que variam de um grupo social para outro e distingue uma organização da outra, a cultura pode ser localizada, descrita, escrita e falada. Para pensar-se a organização da escola, o conceito de cultura foi transportado para a área de educação na década de 70. A principal contribuição trazida por esse referencial de análise foi a possibilidade de uma análise das organizações escolares que vai além da racionalidade técnica e da racionalidade organizacional, constituindo-se em uma racionalidade político-cultural (NÓVOA, 1995). Para compreender e elucidar questões relativas à organização da escola e aos processos de construção de uma cultura própria será necessário considerar, conforme Nóvoa (1992) o contexto da "dualidade da estrutura" e posicionarmonos teoricamente quanto ao estatuto e relevância das categorias "dentro" e "fora" na compreensão da cultura organizacional. Ou então, nas palavras de Nóvoa (1992, p. 32): A totalidade dos elementos da cultura organizacional tem de ser lida ad intra e ad extra às organizações escolares, isto é, estes elementos têm de ser equacionados na sua 'interioridade', mas também nas interrelações com a comunidade envolvente. De facto, se a cultura organizacional desempenha um importante papel de integração, é também um factor de diferenciação externa. As modalidades de interacção com o meio social envolvente constituem, sem dúvida, um dos aspectos centrais na análise da cultura organizacional das escolas. Isso significa que a cultura tem uma estrutura conceitual construída a partir da visão da realidade de cada um dos membros do grupo, isto é, uma construção das visões compartilhadas por eles. Essa concepção busca traçar uma identidade entre os símbolos, valores e princípios compartilhados pelos diferentes membros do grupo. Desse modo, as organizações escolares, por um processo constante de interação entre seus membros, estariam criando uma cultura orientadora das ações desses membros, sem, no entanto, constituir-se em um quadro estático. As diferentes visões da organização, os diferentes valores e crenças dos atores produzem uma dinâmica que se expressa na experiência concreta e nas realizações que se processam no interior da escola. Por outro lado, o entendimento dessa cultura da escola como um processo dinâmico e negociado entre os diferentes atores do processo pedagógico, permite uma compreensão 81 mais aprofundada da contribuição de tais atores na construção dos valores, crenças e princípios, assim como nas ações que se processam na realidade cotidiana. Portanto, a cultura da escola não está dissociada da cultura produzida no meio social. No entanto, Forquin (1993, p. 168) faz uma diferenciação entre cultura da escola e cultura escolar. Para o autor, a cultura da escola é descrita como “um mundo humanamente construído, mundo das instituições e dos signos no qual, desde a sua origem, se banha o indivíduo humano, e que constitui como sua segunda matriz”. Já o entendimento de cultura escolar é apresentado por Forquin (1993), como um conjunto de saberes que compõe a base de conhecimentos sobre o qual trabalham os professores e alunos. Esse conjunto de saberes envolve elementos da cultura humana, científico ou popular, erudito ou de massa. Os elementos da cultura humana são responsáveis pela instituição e determinantes nos processos pedagógicos, organizativos, de gestão e de tomada de decisões no interior da escola, ao que Forquin (1993, p. 167) chama de “mundo social” da escola, ou seja, o conjunto de “características de vida próprias, seus ritmos e ritos, sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e de transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos”. A concepção de cultura escolar de Forquin (1993) tem um caráter sociológico uma vez que considera essa cultura como representativa do mundo social fora da escola. Em Julia (2001, p. 10) encontro o entendimento da cultura escolar, dentro de uma abordagem histórica, como sendo Um conjunto de normas que definem conhecimentos de ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitam a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). A cultura escolar, como objeto histórico, procura analisar o significado imposto aos processos de transmissão de saberes e a inculcação de valores dentro da escola. Desse ponto de vista, a cultura escolar entende que a escola tem uma história que não é muito diferente das outras instituições da sociedade. Julia (2001, p. 14) enfatiza que essa cultura evidencia que a escola não é 82 somente um lugar de transmissão de conhecimentos, mas é, também e principalmente, um lugar de “inculcação de comportamentos e habitus”. Para Bourdieu e Passeron (1992) a escola é produção e reprodução das condições institucionais para a reprodução cultural e social. Isto significa que a escola tem desenvolvido um padrão cultural, repetindo não apenas comportamentos, mas um mesmo raciocínio para a solução dos diferentes problemas e para a convivência. Bourdieu (1983) considera que o sistema escolar, como força formadora de habitus, é responsável pela transmissão de um conjunto de esquemas fundamentais que permite abordagens diferenciadas no tocante às práticas e representações sociais. Bourdieu (1975) define habitus como uma estrutura internalizada pela qual o indivíduo, através de valores e de formas de percepção dominantes, percebe o mundo social. É através desse conceito que o autor resolve o problema da intermediação entre estrutura social e aquilo que o indivíduo faz ou diz, sua prática social. O habitus se refere tanto a um grupo ou a uma classe como ao elemento individual, e isto porque o processo de interiorização implica sempre internalização da objetividade, o que ocorre de modo subjetivo, mas que não pertence exclusivamente ao domínio da individualidade, assegurando que os indivíduos consomem como legítimo o que é considerado legítimo pela classe dominante. O gosto, por exemplo, para Bourdieu (1996), não é visto como simples objetividade, mas sim como “objetividade internalizada” por esquemas externos que orientam e determinam a escolha estética. Retornando a Bourdieu e Passeron (1992), destaco que os autores consideram que a escola é também uma fonte de legitimação de valores que a sociedade moderna como um todo consagra, visto que atua como uma transmissora da cultura legitimada pela classe dominante. E, ainda, que a escola tem o papel de transmitir a cultura dominante, porém não inculca valores e formas de pensamento, limita-se sim a usar o código de transmissão dessa cultura, reconhecendo como sendo “a cultura” e enfatizando seus elementos formadores como, por exemplo, as preferências estéticas e comportamentos. Isto implica dizer que toda a ação pedagógica da escola; suas práticas, formas de transmissão e de avaliação estão, também, em sintonia com os elementos dessa cultura. 83 Silva (1992), tomando por base as referências sobre a escola de Bourdieu e Passeron, faz a seguinte colocação: A contribuição da escola para a reprodução consiste na confirmação do habitus dominante, isto é, da estrutura interiorizada e que só pode ser resultado de uma imersão profunda e duradoura numa instituição (...) ou seja, o que é produzido pela vivência num determinado contexto. Isto significa, como diz Silva (1992), que a vivência num determinado contexto está inscrita não só nas idéias e nas manifestações verbais, mas são também reprodutivas, de modo bastante decisivo, nos atos, nas relações e nas práticas, fora e dentro da escola. Portanto, é inegável a contribuição desses estudos que demonstram o caráter reprodutor na educação para a compreensão da cultura escolar; no entanto é preciso associá-la também às suas características produtoras. Para Williams (1992, p. 198): Devemos, pois, estar sempre preparados para falar em produção e reprodução e não apenas em reprodução. Mesmo tendo dado total valor a tudo quanto se possa descrever como réplica, em atividades culturais e sociais, e tendo reconhecido a reprodução sistemática de certas formas profundas, ainda assim devemos insistir em que as ordens sociais e as ordens culturais devem ser encaradas como se fazendo ativamente: ativa e continuamente, ou podem muito rapidamente desmoronar. O autor enfatiza que a escola é tanto um lugar de cultura, quanto um lugar de formação e de reprodução de valores da sociedade, porém chama a atenção para que o fato da “metáfora da ‘reprodução’, se forçada em demasia, pode dissimular os processos essenciais de autonomia relativa e de mudança, mesmo enquanto insiste de maneira conveniente em um caráter geral e intrínseco”. (WILLIAMS, 1992, p. 184.). Cabe, aqui, relembrar Candido (1971), quando diz que a escola tem uma vida interna, com dinâmica própria, que lhe permite reelaborar normas, valores e práticas comunitárias, mas nem por isso distante das práticas da sociedade. Parece claro, então, que há uma especificidade na vida da escola que lhe confere uma cultura própria, mas nem por isso oposta ou desvinculada da cultura da sociedade que a produziu e que foi por ela produzida. 84 Ao analisar as concepções de cultura da escola e de cultura escolar trabalhadas até agora, percebo que esses conceitos evidenciam praticamente a mesma coisa, ou seja, a escola é uma instituição social, que pertence à sociedade, que possui suas próprias formas de ação, que são construídas ao longo de sua própria história, e que, como nos aponta Silva (2002, p. 4): tomando por base os confrontos e conflitos oriundos do choque entre as determinações externas a ela e as suas tradições, as quais se refletem na sua organização e gestão, nas suas práticas mais elementares e cotidianas, nas salas de aula e nos pátios e corredores, em todo e qualquer tempo, segmento, fracionado ou não. Resumindo as diferentes concepções e sintetizando a diversidade de elementos que compõem a cultura, vejo que a mesma é resultado de um processo interativo, em que o universo dos símbolos e significados está, constantemente, sendo reinterpretado e conectado com a realidade construída. A compreensão da cultura da escola e da cultura escolar como um processo dinâmico e negociado entre os diferentes participantes do processo pedagógico permite uma compreensão mais aprofundada da contribuição de tais pessoas na construção dos valores, crenças e princípios, assim como nas ações que se processam na realidade cotidiana da escola. Pérez-Gomez (2001), em seus estudos, procura entender como ocorre o cruzamento de culturas na escola, considerando que existe uma mediação cultural entre a comunidade escolar, incluindo sentimentos, significados e a conduta das pessoas envolvidas. Para o autor existem várias culturas que interagem no espaço escolar, quais sejam: (a) a cultura intelectual, que envolve o conhecimento acumulado ao longo da história; (b) a cultura social, composta de valores, normas, idéias, instituições, compartilhadas pelos indivíduos no âmbito social, estando, aí, incluídos os meios de comunicação de massa; (c) a cultura institucional, formada pelas tradições, costumes, ritos que a escola conserva e reproduz, reforçando os valores vigentes na sociedade; (d) a cultura experiencial, que se configura através do comportamento dos alunos, elaborados de forma particular na vida familiar e social, paralela à escola e por fim, (e) a cultura acadêmica, que abrange os conteúdos das disciplinas já definidos e selecionados, 85 pacotes didáticos oferecidos pelos livros didáticos e o próprio trabalho escolar realizado e compartilhado por docentes e alunos. O autor reforça que o conhecimento dessas culturas possibilita uma gama de possibilidades de análise da escola, seja do ponto de vista histórico ou sociológico. A importância da cultura no mundo contemporâneo tem sido enfatizada por autores de diferentes tendências e a compreensão da cultura da escola e da cultura escolar passa antes pelo entendimento do que seja cultura. No âmbito do pensamento pós-moderno, a cultura adquire cada vez mais um papel significativo na vida social: hoje, tudo chega mesmo a ser visto como cultural (BAUDRILLARD, 1997). A cultura estaria, assim, além do social, descentralizando-se, livrando-se de seus determinismos tradicionais na vida econômica, nas classes sociais, no gênero, na etnicidade e na religião. Canclini (2003) reforça essa concepção, como vimos no capítulo passado, destacando que o século XX foi pródigo na multiplicação das culturas, de hibridizações como ele chama, onde os processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Um processo que, como Canclini (2003) afirma, surge do individual e do coletivo, ocorrendo nas artes, na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Portanto, a escola é considerada como lugar de cultura, como lugar de formação, de reprodução dos valores da sociedade. No tocante especificamente a ser uma organização, ela é parte, sem dúvida, da sociedade e de sua cultura. A escola tem hoje um papel muito sério, inescapável, que é o de criar um espaço privilegiado de encontro com o diferente, um papel inevitável, de encarar o caráter multicultural das sociedades contemporâneas frente às demandas provocadas pelos processos de globalização econômica e de mundialização da cultura (ORTIZ, 1994). • A escola como espaço da produção de vozes As mudanças na história são, assim, trançadas em nosso dia-a-dia de modos não detectáveis no momento mesmo de sua ocorrência, mas em lances 86 que não prevemos, nem dos quais nos damos conta no momento em que se dão e onde se dão, mas que vão "acontecendo". Os estudos que se preocupam com a escola e com os diferentes modos culturais aí presentes partem, então, da idéia de que é neste processo que aprendemos e ensinamos a ler, a escrever, a contar, a colocar questões ao mundo que nos cerca, à natureza, à maneira como homens/mulheres se relacionam entre si e com ela. A cultura escolar está envolvida na produção e circulação de significados, de modos como as pessoas vivem permutando e produzindo significados na vida social. Os significados culturais não estão nas próprias coisas, na materialidade dos objetos; eles são construídos nas práticas que os sujeitos vivem. Os significados dependem da circulação dos sentidos produzidos nessas práticas. É nesse processo que a voz dos envolvidos ocupa uma função instituidora. As vozes não apenas descrevem os objetos, mas, nesse movimento, produzem significados, realidades. Nesse sentido, os significados que são construídos para as aprendizagens escolares são produzidos nas práticas vividas na escola e fora dela, na circulação dos sentidos que atribuímos a elas em determinado tempo e espaço. Pode-se observar, ao longo da história, certos deslocamentos na significação da escola. Ela já foi entendida como espaço para “aprendizagem de ofícios”, “templo do saber”, “lugar sagrado”, “máquina de ensinar”, e assim por diante. Encontro, mais uma vez, em Cora Coralina um pouco dessas imagens quando ela escreve que: Vinham depois: Primeiro, segundo, Terceiro e quarto livros Do erudito pedagogo Abílio César BorgesBarão de Macaúbas. E as máximas sapientes Do Marquês de Maricá. Não se usava quadro-negro. As contas se faziam Em pequenas lousas individuais Não havia chamada E sim o ritual de entradas compassadas. “- Bença, Mestra ...” 87 Banco dos meninos. Banco das meninas. Tudo muito sério. Não se brincava. Muito respeito. Leitura alta. Soletrava-se. Cobria-se o debuxo. Dava-se a lição. Tinha dia certo de argumento com a palmatória pedagógica em cena. Cantava-se em coro a velha tabuada. E, assim, foi nessa escola homogeneizante, sem espaço para as diferenças, que estudou a poetisa, um lugar onde as vozes silenciavam em respeito à autoridade da velha mestra. No entanto, Cora Coralina relembra esse lugar com carinho e saudades, um lugar sagrado, pois ao terminar sua poesia ela diz: E a Mestra?... Está no Céu. Tem nas mãos um grande livro de ouro e ensina a soletrar os anjos. A escola da Mestra Silvina pertence ao passado. Mas é importante lembrar que mostrar um espaço e um tempo educativos significa mostrar aquilo sobre o que Cora Coralina quis chamar a atenção. Em um determinado momento histórico, vale a pena mostrar a correção, a igualdade reinante, a disciplina, a calma, a professora tranqüila ou cheia de autoridade, os alunos/alunas trabalhando sérios, o silêncio, o castigo. Cabe lembrar que ao reproduzirmos o que aprendemos com as outras gerações e com as linhas sociais determinantes do poder hegemônico, vamos criando, todo dia, novas formas de ser e fazer. É, pois, assim que aprendemos a encontrar soluções para os problemas criados por soluções encontradas anteriormente. No entanto, é preciso ter, de modo permanente, a atenção desperta, porque as tentativas de "aprisionar" este processo são violentas e moralistas, sempre. Isto porque estamos no limiar de uma nova concepção de escola e de significação das aprendizagens escolares. 88 Em vez de preservar uma tradição monocultural, a escola precisa lidar com a pluralidade de culturas, reconhecer os diferentes sujeitos socioculturais presentes em seu contexto, abrir espaços para a manifestação e valorização das diferenças. É essa, a questão hoje posta. A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Ela tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença, e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que a escola está sendo chamada a enfrentar. O som que se ouve na escola não poderá ser mais uníssono. A escola deve ser um lugar de produção de vozes, com diversas modulações, timbres e emoções. Trabalho docente em foco Professor, docente, mestre, educador, orientador, instrutor são termos que designam um determinado ofício fazendo, cada um desses termos, referências a modalidades ou a formas de exercer esse ofício, uma ocupação que foi se tornando especializada ao longo do tempo, na medida em que se foi delimitando historicamente um conjunto de saberes e conhecimentos próprios a essa ocupação. Ao processo de especialização dessa atividade humana e a concomitante exigência de uma formação especializada e de certificação para exercê-la, dá-se o nome de profissionalização docente. A análise desenvolvida por Arroyo (1985a) demonstra muito bem como o trabalho docente foi sendo constituído historicamente como um trabalho que evoluiu da situação de mestre do ofício de ensinar para a de trabalhador do ensino empregado pelo Estado. O trabalhador passa a ser não só assalariado, mas também controlado pelo Estado. Nóvoa (1995a, p. 15), ao falar sobre a consolidação do trabalho docente, destaca que “o professorado constituiu-se em profissão graças à intervenção e ao enquadramento do Estado, que substituiu a Igreja como entidade de tutela do ensino”. Como se vê, esse processo contribuiu para a necessidade de especialização do trabalho de ensinar, para a 89 profissionalização docente, para os avanços na divisão social do trabalho e para a formação dos sistemas públicos de ensino, financiados pelo Estado. A profissão docente, na Europa Ocidental moderna, nasce sob a égide das instituições cristãs das quais herda a moral e a tecnologia da pastoral cristã. O exercício da função docente era um ofício não especializado, exercido por pessoas bem relacionadas com o clero e os seus objetivos eram a formação moral cristã e o disciplinamento da conduta humana. Esse caráter missionário e salvacionista tem estado no centro do projeto educacional da escola moderna, mesmo que em versões diferentes ao longo da história. Com relação à história da educação e da profissão docente, encontro em Nóvoa (1995a) um destaque significativo para a segunda metade do século XVIII, isto porque, nessa época, procurou-se na Europa traçar um perfil do professor ideal (leigo ou religioso, escolhido e nomeado). Para o autor, essa busca dá origem a um movimento de secularização e de estatização do ensino, ou seja, os modelos escolares elaborados sob a tutela da Igreja passam agora por um corpo de professores recrutados pelas autoridades estatais. Ele (1995a, p. 15) enfatiza que o: processo de estatização do ensino consiste sobretudo, na substituição de um corpo de professores religiosos (ou sob controle da Igreja) por um corpo de professores laicos (sob controle do Estado) sem que, no entanto, tenha havido mudanças significativas nas normas e nos valores originais da profissão docente. Entendo que, se por um lado, existiam preocupações que indicavam a necessidade de dar um caráter mais técnico-profissional à atividade docente, por outro lado, ainda, permanecia a preocupação da Igreja e suas corporações em incentivar tal atividade como vocação e sacerdócio. Até mesmo os professores leigos, quando convocados para exercer a função docente, deveriam fazer previamente uma profissão de fé e um juramento de fidelidade aos princípios da Igreja. Com isso, a escola laica, em nossa tradição, herdou esses aspectos da pedagogia cristã, que se traduzem hoje em crenças como a de que a escola pode salvar as sociedades e os indivíduos de suas misérias, colocando-os no rumo do progresso, do desenvolvimento, do esclarecimento, da emancipação, da 90 consciência, etc. Ainda hoje os professores, especialmente os educadores da infância, são vigiados em suas condutas e estilos de vida, são exortados a responsabilizarem-se pelo futuro e o progresso da sociedade. A escola popular, ou a escola de massas, nasce para formar cidadãos úteis e produtivos no desenvolvimento dos Estados modernos da Europa Ocidental e os professores são os artífices desse projeto. Acredito que à escola sempre coube uma tarefa definida prioritariamente em termos de suas finalidades e relevância social. A partir do pensamento de Nóvoa (1995a), posso dizer que a escola, como instituição, passa de uma organização independente, na qual o professor exerce múltiplos papéis como direção da escola, organização do ensino, processo de instrução, relação com os pais, atividades de manutenção da escola (como limpeza), atendimento de necessidades dos alunos, etc., até a situação atual, na qual os professores são empregados de empresas de ensino ou do Estado, vivendo nos tempos atuais um processo sem precedentes de precarização do trabalho docente, o que alguns autores também referem como proletarização. Destaco que os estudos sobre a proletarização do trabalho docente, mesmo com algumas diferenças entre os autores, tais como Arroyo (1980, 1985 a, b) e Apple (1987, 1989, 1991), vem contribuindo para a percepção do professor como um trabalhador assalariado, que passa por um processo de desqualificação, no qual se identifica a perda do controle sobre o processo de trabalho e a perda de prestígio social (HYPOLITO, 1997, p. 85). Para Apple (1989), por exemplo, a racionalização da educação através de procedimentos de controle técnico sobre o currículo das escolas acarreta a desqualificação do professorado e, como conseqüência, o processo de trabalho docente acaba por sofrer os efeitos da proletarização, tal como outros tantos tipos de trabalho. O processo de proletarização atinge diretamente os empregados do Estado – o professorado –, que podem ser chamados de “empregados semi-autônomos”, como diz Apple (1987, p. 5). Entendo, com isso, que o professor possui uma autonomia parcial porque como funcionário do Estado tem que se submeter a um controle ideológico e político, mesmo que, como diz Nóvoa (1991, p. 123), não renuncie à reivindicação de “um regulamento menos administrativo (no sentido burocrático) e mais profissional (no sentido liberal)”. O autor destaca, ainda, que os professores são 91 funcionários cujas ações estão impregnadas de forte intencionalidade política e, no momento em que a escola se impõe como um instrumento privilegiado da estratificação social, passam a personificar as esperanças de mobilidade – ascensão - de diversas camadas sociais da população, tornando-se tanto agentes culturais quanto agentes políticos. Pode-se dizer, também, que os professores tornaram-se funcionários e empregados de grandes instituições e sistemas de ensino, públicos ou privados, passando de uma situação em que determinavam as condições de seu trabalho, definiam o ritmo do ensino e a natureza dos currículos, a condições de trabalho em que são externamente regulados pelas burocracias e gestores das instituições escolares. Essa situação aponta para a questão da intensificação no trabalho docente. Apple (1987) diz que quanto maior o grau de racionalização do trabalho, quanto mais elevado o nível de determinação externa no trabalho, maior sua intensificação, reduzindo-se o tempo dedicado a pensar, programar e planejar, o que acarreta, no decorrer do processo, um aumento de desqualificação profissional e um elevado grau de dependência, por parte dos professores, das tecnologias educacionais e das determinações externas. Louro (1989) exemplifica essa situação citando a imposição do livro didático, com conteúdos programáticos previamente determinados e os cronogramas para serem rigorosamente cumpridos. Outro autor que discute a questão da intensificação é Hargreaves (1998), que, tal como Apple, busca a origem do conceito de intensificação nas teorias do processo de trabalho esboçadas por Larson, que o entende como uma das maneiras mais tangíveis através das quais os privilégios de trabalho dos professores sofrem uma “erosão”, ou seja, uma perda das condições de trabalho, uma vez que destrói sua sociabilidade, ao dificultar as reuniões e os encontros, e faz parte, como nos diz Apple (1989, p. 48), da dinâmica de desqualificação intelectual. Hargreaves (1998, p. 132) afirma que a intensificação “representa um quebra, muitas vezes abrupta, na organização para o lazer esperada por muitos trabalhadores não-manuais”. Daí pode-se dizer que o resultado dessa intensificação é a redução da qualidade do trabalho docente e que se dê mais valor ao “quanto” e ao “que” do que ao “como” se realiza o trabalho docente. 92 O processo de estatização do ensino, como já foi dito, substitui os professores religiosos por professores laicos, sob o controle do estado, embora o modelo de professor permaneça o mesmo, sem modificações nas normas e nos valores originais da profissão docente, Esse conjunto de normas e valores específicos, juntamente com um corpo de saberes e técnicas da profissão docente, foi configurado por religiosos ao longo dos séculos XVII e XVIII. O corpo de saberes e técnicas tratam mais de um saber técnico do que um conhecimento fundamental, organizado em forma de estratégias de ensino. Esses saberes e técnicas são, geralmente, produzidos por pessoas fora do mundo dos professores, por técnicos e especialistas. Destaca-se, aqui, que a natureza do saber pedagógico e a relação do professor com o saber são problemas que perpassam a história da profissão docente. Já o conjunto de normas e valores foi elaborado com base em crenças e atitudes morais religiosas. Esse sistema normativo religioso é adotado pelos professores, imposto a princípio pela Igreja e depois pelo Estado, instituições que como diz Nóvoa, são “mediadoras das relações internas e externas da profissão docente” (1995a, p. 16). Assim, o ideário coletivo dos professores, mesmo com a virada do século XIX para o século XX, perpetua as origens religiosas e as motivações originais não desaparecem mesmo quando a missão de educar é substituída pelo ofício docente, imperando, ainda hoje, a imagem vocacional da profissão de educar. A respeito da ação dos sistemas estatais, Nóvoa (1995a, p. 16) destaca que essa intervenção vai provocar uma homogeneização, bem como uma unificação e uma hierarquização ao grupo de indivíduos que se dedicava ao ensino, grupo esse que no início do século XVIII apresentava uma diversidade, sendo que alguns encaravam o ensino como uma ocupação principal, exercendo-a por vezes a tempo inteiro. E mais, no sentido de organizar os professores como um corpo de Estado, submetidos a uma disciplina estatal, são definidas regras uniformes de seleção e de nomeação de professores e aquela diversidade anterior não serve mais. Outra ação definida pelo Estado no final do século XVIII é a licença ou autorização para ensinar, concedida através de uma seqüência de exames requeridos pelos 93 indivíduos que preenchessem certos requisitos, como idade, comportamento moral, etc. Nóvoa (1995a) enfatiza que a criação da licença é um momento decisivo para o processo de profissionalização da atividade docente, uma espécie de aval do Estado aos professores para legitimar sua atividade. O autor considera que este fato facilita a definição de um perfil de competências técnicas e que servirá de base para o recrutamento de professores e para delinear a carreira docente. Nesse momento, a escola se impõe como instrumento privilegiado da estratificação social, os professores trilham um percurso de ascensão social, assumindo a tarefa de promover o valor da educação e com isso criam condições para valorizar as suas funções e conseqüente melhoria do seu estatuto sócioprofissional. A expansão da escola acentua-se no século XIX devido à pressão social em busca de ascensão. A “instrução foi encarada como sinônimo de superioridade social” (FURET E OZOUF, 1977 apud NÓVOA, 1995a, p. 18), o que significa que essa procura pela escola foi apenas uma conseqüência de sua projeção social protagonizada pelos professores capazes de promover educação, e pela esperança de mobilidade das diversas camadas da sociedade. Estes acontecimentos levam os professores a defender suas reivindicações, baseando-as no caráter especializado de suas atividades docentes e na realização de um trabalho da mais alta relevância social. Fato este que, para Nóvoa (1995a), é decisivo no processo de profissionalização, acrescido pela criação de instituições de formação, que ocupam um lugar de produção e reprodução do corpo de saberes e do sistema de normas da profissão docente, contribuindo para a socialização de seus membros e para a criação de uma cultura profissional. Com relação ao estatuto dos professores, Nóvoa (1995a) discute sua ambigüidade dizendo que, em meados do século XIX, surge outra imagem dos professores, uma vez que não são considerados burgueses, não são pessoas do povo, mas não devem ser intelectuais, tem que possuir um bom conhecimento, mas não são notáveis locais, tem influência na comunidade, devem manter relações com todos os grupos sociais sem, no entanto, privilegiar nenhum deles e, ainda, não podem ter uma vida miserável, mas devem evitar ostentações. Todas essas questões são acentuadas com a feminização do professorado, 94 fenômeno que se torna mais visível na virada do século, definindo-se aí um novo dilema entre as imagens masculinas e femininas da profissão. Cabe aqui, interrompendo por instantes o pensamento de Nóvoa, destacar que as mudanças que ocorrem na organização do trabalho, causando transformações no processo de trabalho docente são similares no Brasil. Segundo Louro (1989, p. 37) nas últimas décadas, há um indicador dessas mudanças, visto que a “professora normalista” foi substituída pelo termo amplo de “educadora”, depois nos anos 70 pelos “profissionais do ensino” e nos anos 80 pelos “trabalhadores da educação”. O processo de feminização, praticamente generalizado em todo o Ocidente, mudou, também aqui, o perfil do professor do ensino fundamental, pois na medida em que o sistema de ensino se expandiu passou a ser exercido, basicamente, por mulheres. Os acontecimentos gerados pela consolidação do capitalismo com o processo de industrialização e urbanização exigiram do Estado uma organização mais complexa para atender às demandas do novo modelo econômico e social, inclui-se aí um maior controle do sistema escolar. Tais acontecimentos refletem-se no Brasil, no final do século XIX e início do século XX, com a criação do sistema público de ensino. A escola tornase um aparato estatal capaz de gerenciar os diferentes interesses da sociedade moderna. A participação feminina na vida pública, a partir de 1937, ocupa espaços importantes como a conquista do direito ao voto e a ampliação da atuação no magistério, segundo Hypolito (1997, p. 54). Fatos como a feminização, o aumento do controle externo estatal que gera a diminuição da autonomia do professorado, a existência de uma estrutura patriarcal e a organização do ensino e sobre o professorado são problemáticas discutidas por autores estrangeiros que não estão muito distantes das reflexões de autores nacionais (HYPOLITO, 1997, p. 74). Outro olhar atento sobre a relação entre profissão e gênero é o de Apple (1987), pois, segundo ele, para entender a interpretação dos professores sobre seu processo de trabalho como sendo manifestação de profissionalismo, é preciso considerar que a ideologia do profissionalismo em educação opera como parte tanto de uma dinâmica de classe quanto de gênero. Primeiramente, ele fala da relação entre profissionalismo e responsabilidade e, no caso, uma professora diz que quando o trabalho é duro maior será a responsabilidade na tomada de 95 decisão, manifestando que mais responsabilidade é sinônimo de aumento de status profissional. Nessa percepção o conceito de profissionalismo está relacionado com a intensificação do trabalho. Ainda sobre a relação entre profissão e gênero, Apple (1987, p. 11) argumenta que precisamos prestar atenção porque: Primeiramente, a própria noção de profissionalização tem sido muito importante não somente para o professorado em geral, mas às mulheres em particular. Ela tem fornecido uma barreira contraditória, mas poderosa contra a interferência do Estado; e de forma igualmente crucial, na luta contra a dominação masculina, ela tem sido parte de uma tentativa complexa para obter pagamento e tratamento iguais e controle sobre o trabalho diário de uma força de trabalho amplamente feminina. Em segundo lugar, o autor afirma que o profissionalismo tem servido, também, para estabelecer defesas contra a proletarização. Considero significativo destacar a relação entre gênero e resistência realizada por Apple (1987). Para ele as professoras não têm ficado paradas aceitando tudo passivamente. Existem formas de reagir contra as pressões externas como a militância e o engajamento político e no caso das professoras ainda é possível contestar no próprio trabalho de forma sutil, ou até mesmo inconsciente. Outra forma destacada pelo autor é o fato de algumas professoras sentirem-se bastante desconfortáveis no papel de administradoras, outras não são felizes devido à ênfase dada aos programas, consideram-se aprisionadas a um sistema muito rígido. A partir dessas reações, pode surgir a resistência ao planejamento administrativo, manifestando-se, ainda, em outra instância, o desconforto com o processo que organiza a divisão sexual, tanto no trabalho, na família quanto na sociedade, isto pelo fato da mulher ter preocupação em cuidar da segurança e dos sentimentos. O autor diz que estas manifestações apontam para um ponto relevante da literatura sobre o papel da escola na reprodução da dominação de classe, sexo e raça, que é o da existência de resistências e que o efeito dessas resistências só pode ser desvelado dentro e entre as dinâmicas do processo de trabalho e de gênero. Retornando às idéias de Nóvoa, pode-se dizer que a indefinição do estatuto dos professores provoca reações de solidariedade interna no corpo docente, outra forma de resistência, que buscam uma identidade profissional 96 através da ação das associações de professores, que, por sua vez, passam a lutar pela melhoria do próprio estatuto, pelo controle da profissão e pela definição de uma carreira, apesar das controvérsias existentes sobre filiações políticas e ideológicas na escolha de um modelo de associação. Para o autor, no início do século XX, o prestígio dos professores está ligado às ações das associações. Outro fator que considero fundamental para o entendimento da profissão docente, é o indicado por Nóvoa (1995a) quando fala da crise da mesma, que se arrasta há longos anos e cuja superação não se dá em curto prazo. Mas, por outro lado, é preciso contar com a história e verificar que, apesar de tudo, o prestígio da profissão docente permanece intacto. Apesar deste paradoxo entre a visão idealizada e a realidade concreta do ensino há espaço para tomar decisões sobre os percursos de futuro dos professores. Ao resgatar a trajetória do processo histórico da profissionalização do professorado, obedecendo a uma cronologia de fatos, Nóvoa (1995a) consideraos determinantes para compreender os problemas atuais da profissão docente. É então, na aplicação de seu modelo de análise, pontuado por quatro etapas (ocupação principal, licença do estado, formação profissional e associações profissionais), que se estabelece a relação com o momento atual em que vivem os professores e as discussões em torno da profissão docente. Sobre o exercício em tempo inteiro – ocupação principal – da profissão docente, o autor enfatiza que é preciso incentivar uma maior identificação pessoal do professor com a escola para evitar a busca de outras atividades. Isto quer dizer que, como destaca Nóvoa (1995a, p. 24), os professores buscam “no ‘exterior’ estímulos (econômicos, culturais, intelectuais, profissionais, etc.) que muitas vezes não conseguem encontrar no ‘interior’ do ensino”. Entendo que a própria organização da escola, que burocratiza o sistema de ensino, privilegiando tarefas que exigem cumprimento de horários e conteúdos pré-estabelecidos, dá muito pouca atenção e espaço para o professor pensar sobre seu trabalho. Nóvoa (1995a, p. 24) complementa dizendo que dessa lógica burocrática resulta um trabalho docente individualizado que acarreta uma ”redução do potencial dos professores e da escola”. Já a licença – suporte legal para o ensino – é uma das mais importantes conquistas dos professores e deve ser revista tanto no que diz respeito à 97 subordinação exclusiva às autoridades estatais, quanto à autonomia na gestão da própria profissão. O professor tem a sua tradicional autonomia em sala de aula, porém Nóvoa (1995a) entende que essa percepção da autonomia deve ser alargada no que diz respeito à gestão da própria profissão e uma ligação mais forte com instituições e comunidades locais, que propiciarão novas normas de responsabilidade profissional. Isto significa que: Esta perspectiva implica o corte com uma visão funcionarizada do professorado e a assunção de riscos e responsabilidades inerentes a um estatuto profissional autônomo. A presença estatal no âmbito do ensino é importante, nomeadamente para assegurar uma equidade social e serviços de qualidade, mas o seu papel de supervisão deve exercer-se numa lógica de acompanhamento e de avaliação reguladora, e não numa lógica prescritiva e de burocracia regulamentadora (NÓVOA, 1995a, p. 26). Considerando essa mudança, essa outra possibilidade de atitude, é possível dizer que a profissão docente pode, assim, enfrentar com mais criatividade os desafios aos quais os professores e as suas organizações não têm conseguido encontrar respostas. Destaco, aqui, que a formação de professores, outra etapa do modelo estudado por Nóvoa (1995a), é uma das áreas mais sensíveis, sendo que ainda hoje permanece uma dicotomia entre os modelos acadêmicos da instituição formadora e os modelos práticos, centrados nas escolas. Para ultrapassá-los o autor propõe modelos profissionais que possibilitem um professor mais investigativo e reflexivo de e na sua ação docente. Concordo com o autor quando enfatiza que no curso de formação de professores não se produzem apenas profissionais, mas também uma profissão. As mudanças que se fazem necessárias passam pela instauração de mecanismos de regulação e de tutela da formação de professores, incluindo a autonomia dos centros formadores, das escolas e a relação menos dicotômica entre essas instituições, considerando a diversidade de interesses e de realidade existentes entre as mesmas. Falando mais especificamente da formação de professores, é preciso que ela seja considerada “como um todo, abrangendo as dimensões da informação 98 inicial, da indução e da formação contínua” (HARGREAVES, 1991). É preciso que se pense na definição de um “novo profissional cuja formação passe pela valorização do espaço da prática e da reflexão sobre essa prática, como nos fala Zeichner (1992), ou seja, uma formação de concepção reflexiva da profissão docente. Com relação às associações profissionais de professores, outra etapa do modelo de análise da profissão docente de Nóvoa (1995a), destaca-se a idéia de que elas devem, acima de tudo, articular os projetos de autonomia e responsabilização das escolas com o fortalecimento da profissão docente, tarefa que não reside apenas na competência do Estado. O autor aponta que elas desempenharam um papel fundamental na construção da profissão docente, uma vez que se articula com projetos de autonomia e de reorganização das próprias instituições e com os interesses dos próprios professores. A reconfiguração da profissão docente e o desenvolvimento das comunidades escolares, no entendimento de Nóvoa, “constituem condições necessárias ao aparecimento de um novo associativismo docente, agente coletivo de um poder profissional cuja legitimidade não reside apenas numa delegação de competências do Estado” (1995a, p. 27). Assim, as associações de professores são entendidas por Nóvoa como uma possibilidade de mudança no papel dos professores, de valorização da profissão e de reivindicações de seus direitos. É, também, a maneira encontrada pelos professores para resistir às perdas que vêm sofrendo ao longo do tempo. Outro aspecto que considero de fundamental importância diz respeito à relação do professor com o saber, e essa relação destacada por Nóvoa (1995) indica que ora eles são portadores de um saber próprio, ora reprodutores de um saber alheio, questionando se esse saber é científico ou técnico. Temas das discussões contemporâneas sobre a formação dos professores. E mais, o autor aponta para a necessidade de “repensar o conjunto de normas e valores que vem sustentando as ações docentes” (p. 30). Reforça, ainda, que pela perda de prestígio social e econômico dos professores é preciso dotar a profissão docente de mecanismos de seleção e de diferenciação, que permitam basear a carreira docente no mérito e na qualidade. 99 Apple (1987), por sua vez, ao discutir sobre os efeitos de reestruturação do trabalho dos professores e das professoras na escola, argumenta que a compreensão do que está acontecendo ao ensino e ao currículo deve ser pensado a partir das questões de classe - com o processo de proletarização que a acompanha - e gênero. Fatores como a desqualificação e intensificação, que atingem basicamente docentes do sexo feminino e administradores masculinos, devem ser pensados a partir do modo como estão historicamente articulados com a divisão social e sexual do trabalho, com o conhecimento e poder na sociedade. Com relação ao fato de o professorado, em sua maioria, ser constituído por mulheres, o autor destaca que é preciso olhar para além da escola para obter a compreensão do impacto das mudanças e para a percepção das professoras, lembrando que elas trabalham em dois locais, na escola e na casa. Uma vez apresentados alguns olhares teóricos sobre os significados e as implicações do trabalho docente, quero encaminhar esta escrita para pensar o professor; um professor que se faz também a partir de múltiplos saberes e histórias de vida. A profissão docente é uma profissão de interações humanas e um professor sempre se apresenta inteiro, com toda a sua personalidade. Entendo que o professor na relação pedagógica apresenta-se com toda a sua história e personalidade, pelo menos nas formas de ensino que implicam uma interação presencial entre professor e estudantes. A sua história pessoal, a sua trajetória pré-profissional, e, especialmente, a sua trajetória como aluno, tem uma influência decisiva no seu estilo de ensino. Tendemos a reproduzir, ou a excluir, quando professores, formas de trabalho ou atitudes de professores que marcaram nossa vida escolar quando alunos. Acredito que os professores exercem uma profissão em instituições que são muito semelhantes àquelas nas quais passaram longos anos de suas trajetórias escolares. Essas experiências marcam profundamente a escolha do magistério como carreira profissional, a prática docente e as mentalidades dos professores e das professoras. Quero enfatizar que um professor se constrói ao longo de sua vida. O tempo é um fator determinante na construção da competência docente e a socialização profissional dos professores inicia muito cedo. Os professores, no exercício de seu trabalho, utilizam saberes adquiridos em suas experiências préprofissionais, que envolvem as experiências familiares e escolares, nos processos 100 de formação profissional, e utilizam ainda, saberes adquiridos na experiência do próprio magistério. Aliás, a experiência docente é uma fonte importante dos saberes dos professores. Os “professores de ofício” (ARROYO, 1985a) costumam atribuir aos saberes construídos no exercício do magistério um valor predominante quando questionados sobre a construção de sua competência. É na experiência docente que o professor realiza uma mediação entre os saberes que aprendeu nos cursos de formação profissional e a realidade concreta. Nas relações de trabalho acontece um tipo de socialização profissional que integra e complementa os saberes da formação profissional obtidos nos cursos de formação de professores. Há saberes que só provêm da experiência do magistério. Por exemplo, como lidar com as hierarquias escolares e cumprir com os currículos e as exigências escolares em termos de tempo e avaliação; como lidar com problemas de gestão e organização da classe e dos alunos, são aprendizagens só possíveis de serem feitas em convívio com as hierarquias escolares e em situações de regência de classe. O inventário apresentado pelos autores é um desafio para pensar e propor mudanças na escola e na formação e ação dos professores ou, até mesmo, recriar a profissão docente. Saberes docentes em discussão O tema sobre os saberes do professor reflete uma evolução da pesquisa em ciências da educação voltada para o ensino e para a formação de professores, tanto no plano internacional como aqui mesmo, no Brasil, tal como diz Borges (2001). Para a autora, a produção de trabalhos sobre os "saberes" ou "conhecimentos" do professor ressalta grande diversidade conceitual e metodológica das pesquisas. Os estudos sobre os saberes dos professores compõem um amplo e diversificado campo que, em âmbito internacional, vem se constituindo há várias décadas. Trata-se de um campo que recebe contribuições das ciências humanas 101 e sociais, como as abordagens provenientes do comportamentalismo, do cognitivismo, da etno-metodologia, da fenomenologia, entre outras (BORGES, TARDIF, 2001; GAUTHIER, 1999). De acordo com Borges (2003), existem diversos tipos de estudos sobre os saberes do professor. Esses estudos incorporam perspectivas variadas, tais como: pesquisas sobre o comportamento do professor; a cognição do professor; o pensamento do professor; pesquisas compreensivas, interpretativas e interacionistas; e, por fim, pesquisas que se orientam pela sociologia do trabalho e das profissões. As pesquisas sobre o comportamento do professor têm origem na tradição behaviorista ou comportamentalista no ensino. Nela estão localizadas as pesquisas processo-produto, caracterizadas por buscar identificar o impacto da ação docente (o processo de ensino) sobre a aprendizagem do aluno (o produto), cujo intuito era compreender o comportamento dos professores eficientes. Borges (2003) comenta que muitas críticas foram feitas a essa abordagem, principalmente por ela não levar em consideração os aspectos subjetivos das interações entre o professor e os alunos, bem como o contexto da sala de aula. Ainda segundo a autora, o conhecimento nessa abordagem é visto como externo ao professor, circunscrevendo-se a procedimentos de ensino, conteúdos, métodos e seus efeitos imediatos sobre os alunos. Oriundas das críticas à abordagem processo-produto surgiram as pesquisas sobre a cognição do professor. Essas pesquisas buscam uma minuciosa análise do processo cognitivo do mesmo em suas ações e seus comportamentos no âmbito da sala de aula, procurando compreender como os professores percebem e coordenam suas ações, como aprendem e fazem uso de informações, transpondo-as de um contexto para outro. O modelo de análise é o lógico-matemático e os saberes são vistos como representacionais, configurandose como um conjunto de informações, roteiros e esquemas de ação que produzem orientações para a prática do sujeito. As pesquisas sobre o pensamento dos professores são também conhecidas pela expressão inglesa teachers' thinking. Compreendem estudos que se interessam pelas narrativas, pesquisas do tipo psico-social, psicanalítica, sociocrítica e socio-construtivista, tendo como foco central o pensamento dos 102 professores. Borges (2003) comenta que essa abordagem constitui um verdadeiro paradigma, sucessor dos estudos do tipo processo-produto, e que se preocupa com aquilo que os docentes pensam, conhecem, percebem, representam a respeito de seu trabalho, a disciplina que ministram e a maneira como pensam e resolvem as questões ligadas ao seu fazer no cotidiano escolar. Os estudos sobre o pensamento dos professores deixaram o âmbito descritivo e se consubstanciaram em ações práticas, enfim, trata-se de um paradigma que se tornou operatório. Outra possibilidade de pesquisa, apontada por Borges (2003), dá-se a partir da abordagem da fenomenologia, do enfoque etnográfico e do interacionismo. São estudos que procuram investigar e evidenciar pensamentos, ações e interações dos sujeitos, mas que o fazem a partir da tomada do contexto em que o sujeito está inserido através da lente histórica e social. O enfoque compreensivo ou fenomenológico não se reduz à cognição ou à razão, mas voltase à compreensão do professor como pessoa, um sujeito que lida e intervém nas situações cotidianas com base em seus valores, suas crenças, suas emoções e suas representações, que guardam suas raízes na história de vida do professor, em sua dimensão pessoal e profissional. Outro enfoque é o do interacionismo simbólico, da etnografia e da etnometodologia que, a partir de uma perspectiva sociológica, irá se deter no modo como o saber docente é construído no processo de socialização profissional e, até mesmo, pré-profissional, em âmbitos como a família, escola, universidade etc. O saber aí passa a ser considerado como um conhecimento prático erigido no trabalho escolar, motivo pelo qual surge para esse enfoque a valorização da observação das interações que os professores estabelecem em sala de aula e na escola. As pesquisas que se orientam pelas contribuições da sociologia do trabalho e das profissões se constituem também em uma importante perspectiva de investigação dos saberes dos professores, possibilitando um enriquecimento das abordagens anteriores. Segundo Borges (2003), não se trata de uma nova corrente teórica, mas de uma subdivisão da sociologia e da sociologia do trabalho que se articula com a etnografia, o interacionismo e a fenomenologia, das quais retém que o saber profissional é aprendido pela experiência, no trabalho e no decorrer de um longo processo que é a socialização profissional. A contribuição 103 da sociologia das profissões permitiu o questionamento da adoção de modelos de formação espelhados em profissões já solidamente constituídas, a exemplo da medicina, como também favoreceu que o modelo estrutural-funcionalista de conhecimento profissional, fundado em saberes das disciplinas científicas e altamente especializado, fosse questionado em sua origem. As abordagens apresentadas, segundo Borges (2003), não têm a pretensão de esgotar a amplitude do campo, são apenas algumas linhas de pensamentos que configuram algumas das teorias do saber docente. A autora lembra que os estudos sobre os saberes dos professores encontram-se também com os que investigam temas diversos e a partir de diferentes tradições teóricas. Isso pode ser visto, por exemplo, em estudos que investigam as disciplinas escolares (CHERVEL, 1990) e os processos de degradação e constituição da profissão de ensinar (FERNÁNDEZ ENGUITA, 1991). Aqui no Brasil, é no início da década de 1990 que, por meio do texto pioneiro de Tardif, Lessard e Lahaye (1991) e mais tarde pela teoria de Gauthier et al. (1998) os estudos que focalizam os saberes tácitos dos professores chegam até nós (LÜDKE, 2001). Esses estudos possuem como traços comuns a valorização da experiência profissional, o entendimento de que é possível a produção de um conhecimento prático e a compreensão de que o professor, ao desenvolver seu trabalho, mobiliza uma pluralidade de saberes. Parto, então, do princípio de que a ação do professor em sala de aula está impregnada de conhecimentos, isto é, de saberes, do saber-fazer, das competências e das habilidades construídas ao longo da sua trajetória acadêmica e docente, dos relativos ao pensamento e à história de vida desse professor. Assim, os saberes são originados da história de vida, da formação profissional, do conhecimento científico da disciplina que o professor ensina, dos currículos e materiais instrucionais com que trata o professor, da estrutura e organização escolar onde o professor atua e, finalmente, do conhecimento construído na prática pedagógica e profissional. Mas, quais são os saberes mobilizados na ação pedagógica? Se partirmos da idéia de que a profissão vai sendo construída à medida que o professor articula o conhecimento teórico-acadêmico, a cultura escolar e a reflexão sobre a prática docente, destaco o estudo desenvolvido por Guarnieri 104 (1997) acerca da atuação de professores iniciantes. Revisando as novas perspectivas de pesquisa que analisam a questão da competência para ensinar, enfatiza que “esses novos paradigmas investigativos buscam a partir do pensamento e desenvolvimento profissional dos professores "uma epistemologia da prática" que explique como se configura o processo de aprender a ensinar, de tornar-se professor” (p. 2). Dessa forma, os cursos de formação de professores precisam redirecionar as relações entre teoria e prática, centrando as análises na prática docente e procurando identificar quais conhecimentos são desenvolvidos pelo professor ao atuar, no âmbito da cultura escolar e das condições mais adversas do seu trabalho. Também buscam especificar e estudar as necessárias articulações desses conhecimentos do professor tanto com a prática, quanto com os conhecimentos teóricos acadêmicos da formação básica. Tais articulações possibilitam o desenvolvimento da capacidade reflexiva, que favorece o compromisso com o ensino de qualidade e a competência para atuar (GUARNIERI,1997, p. 6). Considerando tais idéias no desenvolvimento da pesquisa, o autor sinaliza a possibilidade de que na prática pedagógica do professor iniciante apareçam alguns aspectos como: a rejeição dos conhecimentos teóricos acadêmicos recebidos na formação por dificuldade em aplicá-los; a tentativa de transposição direta de uma concepção teórica; a percepção dos aspectos positivos da prática docente e da cultura escolar e como estas se apresentam no contexto do trabalho, podendo ser consideradas como parâmetros para sua própria prática. Suas análises enfatizaram o quanto o professor aprende a partir da prática, embora reconheça que os cursos de formação de professores, tanto inicial como continuada, ainda não favorecem a articulação entre a formação teórica acadêmica e os conhecimentos oriundos do universo escolar. Os saberes dos professores, a partir de agora, são analisados sob os olhares de Gauthier e de Tardif, pois me interessam esses autores porque eles veêm a perspectiva que investiga os saberes dos docentes como caminho que pode contribuir com o desenvolvimento profissional docente. Inicio, então, com as contribuições de Gauthier e colaboradores (1998), que realizaram estudos das pesquisas sobre o ensino no intuito de identificar convergências em relação aos saberes mobilizados na ação pedagógica e com o 105 objetivo de examinar as implicações, formular problemáticas, avaliar resultados e esboçar uma teoria geral da pedagogia. Gauthier et al (1998) concebem o ensino como uma atividade profissional que se apóia num sólido repertório de conhecimentos. Para os autores a escola tem sido, também, tema de vigorosas discussões, uma vez que ela é, por vezes, acusada de não estar cumprindo convenientemente seu papel, recaindo certas críticas nos professores por serem eles os mediadores entre a escola e os alunos. Essas críticas não isentam os responsáveis pela formação desses professores, envolvendo questões referentes ao tipo de educação recebida por eles. Diante dessas questões, os autores sugerem uma reflexão sobre a formação dos professores e da profissão docente. Reflexão essa que deve ir muito além das dimensões técnicas ou operacionais. A proposta, então, dos autores é o estudo sobre a natureza dos saberes subjacentes ao ato de ensinar, o que implica em discutir os conhecimentos, as competências e as habilidades que servem de base para a prática docente, ou seja, discutir o repertório de conhecimentos que corresponda aos saberes próprios do professor. A preocupação é aprofundar os estudos sobre o que o professor precisa saber para ensinar, pois se existe um repertório próprio ao ensino é preciso, então, entender a origem desse repertório e os possíveis limites e implicações inerentes a sua utilização por parte do professor. Os autores reconhecem, no entanto, a dificuldade – quase impossibilidade – de dar uma resposta definitiva a essas questões. Eles propõem uma classificação dos paradigmas que embasam as pesquisas sobre o ensino e as contribuições que elas podem dar para a identificação de um repertório de conhecimentos no campo da prática docente. Sendo assim, são três os paradigmas das pesquisas sobre o ensino: o enfoque processo-produto, o enfoque cognitivista e o enfoque interacionistasubjetivista, assunto já discutido anteriormente a partir do ponto de vista de Borges (2003) sobre as possibilidades de pesquisa com saberes docentes. O enfoque processo-produto precede o cognitivista e o interacionista, dizem os autores que sua utilização remonta à década de sessenta, ou talvez até um pouco antes: à década de cinqüenta. Nesse enfoque o professor é visto apenas como um gestor de comportamentos que deve organizar (da melhor forma, buscando a eficácia) os processos de ensino, visando à aprendizagem dos 106 alunos. As interações, o contexto, os outros saberes que não sejam aqueles relacionados aos conteúdos e aos procedimentos de ensino, o próprio conteúdo de certa forma, os aspectos subjetivos da relação professor-aluno, entre outros, ficam obscurecidos por um conjunto de variáveis comportamentais do professor e seus "efeitos imediatos" sobre os alunos. Esse paradigma parte do princípio de que o professor é a variável mais importante entre as que determinam a aprendizagem dos alunos. O segundo paradigma é o cognitivista. Ainda que a abordagem remonte a Piaget e Vigotsky, o que Gauthier e seus colaboradores buscam evidenciar são os estudos que vieram a constituir as chamadas "ciências da cognição", ocupando o cenário norte-americano, a partir dos anos de 1970. Mas o ponto central da abordagem cognitivista para o estudo dos saberes docentes, dentro da perspectiva das ciências da cognição, é, segundo os autores, a sua preocupação com o processamento da informação e com os processos de construção do conhecimento dentro do complexo processo ensino-aprendizagem. Além disso, essa perspectiva trabalha com o conceito de "metacognição", que envolve o conhecimento e o controle das estratégias cognitivas. Entretanto, para Borges (2003), essa abordagem também possui reducionismos, a começar por tratar aspectos humanos e simbólicos como fenômenos naturais e, sobretudo, por introduzir toda uma forma de compreender os fenômenos da cognição muito próxima dos campos da administração e da informática. Daí, a ênfase na terminologia: eficiência, competência, rentabilidade, medida, controle, planejamento, entre outros. O terceiro enfoque, interacionista-subjetivista, segundo Gauthier e seus colaboradores (1998), reúne o interacionismo simbólico, a etnometodologia, a etnografia escolar, a sociolingüística e o enfoque ecológico. No bojo desta abordagem consideram os trabalhos que têm referência na fenomenologia e que dão ênfase ao indivíduo, compreendido com um sujeito portador "de histórias", ou seja, um ser que constrói o mundo em relação com outros sujeitos. Nessa perspectiva, o ensino é concebido com uma forma de interação simbólica, um processo no qual os sujeitos agem em função daquilo que os conhecimentos significam para eles. Em decorrência disso, para conhecer os significados construídos pelos sujeitos, é necessário, também, ter em conta o contexto no qual 107 eles interagem. Do ponto de vista dos estudos sobre os saberes, o foco repousa nas representações que os professores têm dos seus saberes e nas interações que estes estabelecem em classe. Ainda de acordo com Gauthier et al. (1998), o interacionismo-subjetivista, na versão fenomenológica, enfatiza a análise das experiências individuais e o conhecimento adquirido pelo indivíduo através das suas experiências; na versão etnometodológica, vai buscar compreender como os indivíduos dão sentido ao mundo e como realizam as ações cotidianas; na visão etnográfica, vai focalizar a dinâmica da sala de aula e tentar compreendê-la, bem como as representações do professor e dos alunos nas interações cotidianas; na visão ecológica, vai tentar construir um modelo explicativo, coerente, de funcionamento da sala de aula, a fim de compreender a eficiência dos professores e seus saberes; e, na visão sociolingüística vai acentuar a linguagem, os aspectos relativos à verbalização dos sujeitos sobre os seus saberes. Para os autores, as três concepções de pesquisa apresentam lacunas que limitam o alcance dos resultados por elas fornecidos. Daí a proposta de um enfoque de pesquisa que busque a compreensão da atividade docente a partir de um caminho que forneça informações sobre a natureza de um repertório de conhecimentos próprios do ensino. Considerando, então, a existência de um repertório de conhecimentos de ensino que envolve os saberes profissionais do próprio professor, o estudo de citado tem como ponto de apoio as premissas de que, assim como a atividade docente não tem conseguido revelar os seus saberes, as ciências da educação acabam por produzir outros saberes que não condizem com a prática. Gauthier e seus colaboradores identificam, então, a existência de três categorias relacionadas às profissões: ofícios sem saberes; saberes sem ofício e ofícios feitos de saberes. Cabe, no entanto, ressaltar que na percepção dos autores a realização de pesquisas e reflexões em torno da existência de um repertório de conhecimentos próprios do ensino possibilita contornar dois obstáculos que sempre se interpuseram à pratica docente. O primeiro obstáculo é relativo à própria atividade docente, considerando-a uma atividade que se exerce sem revelar os saberes que lhes são inerentes; já o segundo obstáculo é o das ciências da educação, 108 cujos saberes produzidos não levam em conta as condições concretas do exercício da docência. Esses dois obstáculos impedem até certo ponto o surgimento dos saberes profissionais. Tais obstáculos, considerados pelos autores como erros, são os de um ofício sem saberes e os de saberes sem ofício. O desafio para vencer os obstáculos reside na compreensão da existência de saberes necessários para ensinar, ou seja, entender que a docência é um ofício feito de saberes. Gauthier e seus companheiros (1998, p. 81) acreditam que as pesquisas sobre os saberes docentes necessários para ensinar serão mais bem entendidas a partir de “uma consciência maior desses obstáculos” é que será possível “encontrar soluções apropriadas e interpretar os resultados com maior precaução”. Em síntese, a primeira categoria, ofícios sem saberes, abrange uma falta de sistematização de um saber próprio do docente envolvendo bom senso, intuição, experiência etc. Já os saberes sem ofício caracterizam-se pela formalização do ensino, reduzindo a sua complexidade e a reflexão que é presente na prática docente. Acabam tornando-se saberes que não condizem com a realidade. A terceira categoria apresenta um ofício feito de saberes, que abrange vários saberes que são mobilizados pelo professor e sua prática envolvendo o saber. Em seu livro Por uma teoria da Pedagogia, Gauthier et alii (1998) classificam os saberes dessa terceira categoria - ofício feito de saberes - e concebem o ensino como a mobilização de vários saberes que formam uma espécie de reservatório que é utilizado para responder às exigências das situações concretas de ensino. Do ponto de vista tipológico, os saberes são classificados em: disciplinar, referente ao conhecimento do conteúdo a ser ensinado; curricular, relativo à transformação da disciplina em programa de ensino; Ciências da Educação, relacionado ao saber profissional específico que não está diretamente relacionado com a ação pedagógica; tradição pedagógica, relativo ao saber dar aulas historicamente adquirido, que será adaptado e modificado pelo saber experiencial, podendo ser validado pelo saber da ação pedagógica; experiência, referente aos julgamentos privados responsáveis pela elaboração, ao longo do tempo, de uma jurisprudência particular; ação pedagógica, referente ao saber experiencial tornado público e testado. 109 Para os autores, reconhecer a existência de um repertório de conhecimentos reflete um olhar ressignificado para o professor, que passa a ser visto como um [...] profissional, ou seja, como aquele que, munido de saberes e confrontado a uma situação complexa que resiste à simples aplicação dos saberes para resolver a situação, deve deliberar, julgar e decidir com relação à ação a ser adotada, ao gesto a ser feito ou à palavra a ser pronunciada antes, durante e após o ato pedagógico (GAUTHIER et alii, 1998, p. 331). Percebe-se aí que a concepção de saber não impõe ao professor um modelo preconcebido de racionalidade. Dessa forma, o saber do professor pode ser racional sem ser um saber científico, pode ser um saber prático que está ligado à ação que o professor produz, um saber que não é o da ciência, mas que não deixa de ser legítimo. Assim, o saber é considerado como resultado de uma produção social, sujeito a revisões e reavaliações, fruto de uma interação entre sujeitos, fruto de uma interação lingüística inserida num contexto e que terá valor na medida em que permite manter aberto o processo de questionamento. Ao se pensar uma alternativa docente, deve-se levar em conta o contexto no qual se constroem e se aplicam os saberes docentes, isto é, as condições históricas e sociais nas quais se exerce a profissão; condições que servem de base para a prática docente. Este professor possui, em virtude da sua experiência de vida pessoal, saberes próprios que são influenciados por questões culturais e pessoais. O desafio da profissionalização docente é evitar dois erros: ofício sem saberes e saberes sem ofício; ademais, quando os autores admitem que as pesquisas já revelam a presença de um repertório de conhecimentos próprios ao ensino, propõem um ofício feito de saberes. Outro autor que volta seu olhar para a análise da questão dos saberes profissionais e sua relação com a problemática da profissionalização do ensino e da formação de professores é Tardif. A primeira produção desse autor publicada no Brasil ocorreu em 1991, por meio de um artigo na Revista Teoria & Educação, em parceria com Lessard e Lahaye. O artigo apresenta considerações gerais sobre a situação dos docentes em relação aos saberes, buscando identificar e definir os diferentes saberes presentes na prática docente, bem como as relações estabelecidas entre eles e os professores. 110 Em 2002, foi lançado, em nosso país, o livro Saberes docentes e formação profissional, que reúne oito ensaios de Tardif publicados desde 1991. Esses ensaios representam diferentes momentos e etapas de um itinerário de pesquisa e de reflexão do autor. É importante salientar que ele situa o saber do professor a partir de seis fios condutores. O primeiro diz respeito ao saber e trabalho — o saber do professor deve ser compreendido em íntima relação com o trabalho na escola e na sala de aula: são as relações mediadas pelo trabalho que fornecem princípios para enfrentar e solucionar situações cotidianas. O segundo fio condutor é a diversidade do saber, pois entende que o saber dos professores é plural, compósito, heterogêneo, por envolver, no próprio exercício da ação docente, conhecimentos e um saber-fazer bastante variado e, normalmente, de natureza diferente. O terceiro é a temporalidade do saber — no qual reconhece o saber dos professores como temporal, uma vez que o saber é adquirido no contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional. O quarto, denominado como a experiência de trabalho enquanto fundamento do saber, focaliza os saberes oriundos da experiência do trabalho cotidiano como alicerce da prática e da competência profissionais. É no contexto em que ocorre o ensino que o docente desenvolve certas disposições adquiridas na e pela prática real. O quinto, saberes humanos a respeito de saberes humanos, expressa a idéia de trabalho interativo, um trabalho em que o trabalhador se relaciona com o seu objeto de trabalho fundamentalmente por meio da interação humana. O sexto e último, saberes e formação profissional, é decorrente dos anteriores, ou seja, expressa a necessidade de repensar a formação para o magistério, considerando os saberes dos professores e as realidades específicas de seu trabalho cotidiano. Para Tardif (2002, p. 36), a relação dos docentes com os saberes não é restrita a uma função de transmissão de conhecimentos já constituídos. Ele explica que a prática docente integra diferentes saberes e que mantém diferentes relações com eles. Define o saber docente "[...] como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais". Nessa perspectiva, os saberes profissionais dos professores são temporais, plurais e heterogêneos, personalizados e situados, e carregam as marcas do ser humano. 111 Observa-se, na teoria do autor, que o saber docente compõe-se na verdade de vários saberes provenientes de diversas fontes, e pode ser entendido como um conjunto de saberes que o professor possui não só no que diz respeito aos conhecimentos já produzidos e que ele transmite, mas também ao conjunto de saberes que integram sua prática e com os quais ele estabelece relações. Para Tardif et al (1991, p. 218) o saber docente é um amálgama, mais ou menos coerente, de saberes provenientes de quatro fontes citadas a seguir: -saberes de formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica mobilizada em conformidade com essa atividade, transmitidos pelas instituições formadoras); -saberes da disciplina (que correspondem aos saberes sociais sistematizados e tematizados na instituição universitária); -saberes curriculares (saberes sociais que a escola/sociedade seleciona para serem transmitidos às futuras gerações); -saberes da experiência (desenvolvidos pelo professor no exercício de sua profissão). No processo de formação docente participam saberes pedagógicos e disciplinares, oriundos da própria instituição formadora, saberes curriculares definidos por essa instituição. Esse saber permeia uma das maneiras do professor existir profissionalmente e sua prática pedagógica é reveladora desses saberes. Os autores apontam que diante da impossibilidade de controlar os saberes das disciplinas curriculares e da formação profissional, os professores produzem ou tentam produzir saberes, por meio dos quais compreendem e dominam sua atuação docente. Os saberes da experiência têm origem na prática cotidiana e são por ela validados, constituem-se nos fundamentos da competência e fornecem as bases para os modelos pedagógicos utilizados pelo professor. Por meio dos saberes da experiência o professor julga sua formação anterior e sua formação ao longo da carreira, as reformas introduzidas nos programas e nos currículos, as inovações metodológicas e sua adequação à realidade. O saber experiencial, para Gauthier (1998, p. 24), ocupa um lugar muito importante no ensino, mas não pode representar a totalidade do saber docente. Para o autor o saber oriundo da experiência... 112 ... precisa ser alimentado, orientado por um conhecimento anterior mais formal que pode servir de apoio para interpretar os acontecimentos presentes e inventar soluções novas. Por conseguinte, em sua prática, o docente não pode adquirir tudo por experiência. Ele deve possuir também um corpus de conhecimento que o ajudarão a “ler” a realidade e a enfrentá-la. Desse modo, os saberes da experiência assumem outra dimensão, não tão restrita como apontaram Tardif et al (1991); eles não estão relacionados apenas às experiências no campo profissional mas também à prática acadêmica, à prática cotidiana dentro e fora da escola, à prática de vida. O saber da experiência é construído na práxis social cotidiana em interação com outros sujeitos e em relação aos demais saberes disponíveis. Para Gauthier (1998), os saberes da experiência podem vir a integrar-se aos saberes científicos. Isto implica considerar os conhecimentos validados pela instituição que forma o professor. E mais, as universidades, pelo caráter de cientificidade dos saberes que transmitem, devem legitimar conhecimentos que envolvem não apenas a prática pedagógica do professor, mas também o conhecimento a respeito de sua história, sua vida cotidiana e, ainda, conhecimentos da própria organização escolar e das interações que o professor estabelece no âmbito da escola. Retornando a Tardif, em 2005, ele e Lessard publicaram o livro O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Uma obra que tem como objeto de investigação o trabalho docente no cotidiano escolar com a intenção de descrevê-lo, analisá-lo e compreendê-lo tal como é desenvolvido pelos professores, e que compreende a docência, como [...] uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja, uma atividade em que o trabalhador se dedica ao seu 'objeto' de trabalho, que é justamente um outro ser humano, no modo fundamental da interação humana" (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 8). Os autores colocam em evidência as condições, as tensões e os dilemas que fazem parte desse trabalho feito sobre e com outrem, bem como a vivência das pessoas que o realizam diariamente. Entendem, ainda, que é na ação e na interação dos atores escolares que se estrutura a organização do trabalho na escola. 113 Portanto, é de fundamental importância reconhecer os professores como sujeitos do conhecimento e produtores de saberes, valorizando a sua subjetividade e tentando legitimar um repertório de conhecimentos sobre o ensino a partir do que os professores são, fazem e sabem. Isso deveria constituir as bases para a elaboração de programas de formação. Tardif (2002) explica que a atividade profissional dos professores deve ser considerada como um espaço prático de produção, de transformação e de mobilização de saberes e, conseqüentemente, de teorias, de conhecimentos e de saber-fazer específicos ao ofício de professor. O autor propõe um repensar das relações entre teoria e prática, pois entende que tanto a universidade como professores de profissão são portadores e produtores de saberes, de teorias e de ações. Ambos comprometem seus atores, seus conhecimentos e suas subjetividades. Portanto, “a [...] relação entre a pesquisa universitária e o trabalho docente nunca é uma relação entre uma teoria e uma prática, mas uma relação entre atores, entre sujeitos cujas práticas são portadoras de saberes” (p. 237). A necessidade de transformação nas práticas formativas e de superação do modelo baseado na racionalidade técnica é aclamada por todos os pesquisadores que tomam como objeto de estudo o ensino. Tardif (2002) argumenta que o modelo baseado na racionalidade técnica apresenta dois problemas epistemológicos: primeiro, por ser idealizado de acordo com uma lógica disciplinar e não conforme uma lógica profissional centrada no estudo das tarefas e realidade do trabalho dos professores; e segundo, por tratar os alunos como “espíritos virgens”, não levando em consideração suas crenças e representações anteriores a respeito do ensino. É nessa perspectiva que as transformações nas práticas formativas implicam superar o modelo aplicacionista do conhecimento e elevar o nível de conhecimento dos professores, tendo em vista o repertório de saberes sobre o ensino. Tanto Gauthier quanto Tardif dedicam-se a investigar a mobilização dos saberes nas ações dos professores e compreendem os educadores como sujeitos que possuem uma história de vida pessoal e profissional e que, portanto, são produtores e mobilizadores de saberes no exercício de sua prática. Gauthier (1998), ao defender um ofício feito de saberes, implementa esforços, como já foi dito, para a constituição de uma teoria geral da pedagogia. Já os estudos de Tardif 114 (2002) têm como particularidade o reconhecimento da pluralidade e heterogeneidade do saber. É nessa perspectiva que esses autores defendem a idéia de uma “epistemologia da prática”, com a finalidade de revelar os saberes docentes, “[...] compreender como são integrados concretamente nas tarefas dos profissionais e como estes os incorporam, produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às suas atividades de trabalho” (TARDIF, 2002, p. 256). Este referencial para compreender o trabalho docente reconhece que o professor é um profissional; que a natureza de seu trabalho é definida em função da forma como ele atua; que a gestão da sala de aula é de sua inteira responsabilidade e esta, por excelência, exige um confronto com situações complexas e imediatas cuja solução não está pronta, mas que exige ações imediatas; que o professor hoje precisa dominar certas competências e saberes para agir individual ou coletivamente no enfrentamento das especificidades do seu trabalho. Trajetória biográfica em voga A vida dos professores, as carreiras, os percursos profissionais, as biografias e até mesmo o desenvolvimento pessoal do professor, têm sido temas de estudos e objetos de investigações educacionais, tanto em âmbito internacional quanto nacional. Para Nóvoa (1995a, p. 12) as produções sobre trajetórias (auto) biográficas são heterogêneas, de qualidade desigual, mas tiveram um mérito indiscutível: “(re) colocar os professores no centro dos debates educativos e das problemáticas da investigação”. Os professores passam, então, a ser um “novo” foco de investigação, mas não na tentativa de encontrar um melhor método para seu ensino, ou pela importância dada à análise do ensino no cotidiano da sala de aula, ou ainda como destaca Nóvoa (1995a, p. 14), quando fala das fases do 115 percurso evolutivo da investigação educacional, pela busca de “características intrínsecas ao ‘bom’ professor”. A atenção dos teóricos e pesquisadores, agora, volta-se para a vida pessoal do professor, considerando a maneira como cada professor ensina e que essa está diretamente dependente daquilo que ele é como pessoa quando exerce seu ensino. Isto aponta para a “impossibilidade de separar a pessoa e o profissional que habitam cada professor” (NÓVOA, 1995b, p. 30). Destaco como significativo pensar sobre as razões que levam o professor a agir como age em sala de aula a partir do que nos diz Nóvoa (1995b, p. 16): A resposta à questão, Por que é que fazemos o que fazemos em sala de aula, obriga a evocar essa mistura de vontades, de gostos, de experiências, de acasos, até que sejam consolidados gestos, rotinas, comportamentos com os quais nos identificamos como professores. Cada um tem o seu próprio modo de organizar as aulas, de se movimentar em sala de aula, de se dirigir aos alunos, de utilizar os meios pedagógicos, um modo que constitui uma espécie da segunda pele profissional. Compartilho do pressuposto de que o professor “é” a partir de suas experiências e aprendizagens construídas ao longo de sua vida. Aproximo-me de Josso (2006) quando diz que o entendimento de sua trajetória de vida é de fundamental importância para o próprio professor, pois conhecer-se biograficamente/autobiograficamente é caminhar para si. E mais, a história de vida como “revisitação dos elos que nos habitam são capazes de desatar nosso passado para nos atarmos com ele abrindo possibilidades” (JOSSO, 2006, p. 376). Isto significa que revisitar nossa história é a possibilidade de entender como nos tornamos o que somos, o que sabemos sobre nós mesmos e como ensinamos. Quero com isso dizer que em minha prática de trabalho tenho evidenciado que as inter-relações entre as dimensões - pessoal e profissional - se constroem cotidianamente e que minha vida pessoal, escolar, acadêmica e profissional redimensionaram - e continuam redimensionando - cotidianamente minha atuação como professora. Acredito, com certeza, que meu desenvolvimento pessoal e profissional – juntos - constituíram-me como professora. 116 Cabe, aqui, apresentar olhares de alguns teóricos sobre essa “nova” possibilidade de compreender o desenvolvimento pessoal e profissional do professor, considerando diferentes espaços e tempos das produções sobre o tema. Para Pineau (2006, p. 331), o marco histórico do movimento sobre histórias de vida data do período que vai de 1980 a 2005, sendo que se pode dizer que os anos 80 foram de eclosão, os 90 de fundação e que, finalmente, o período de desenvolvimento das pesquisas ocorreu a partir de 2000. Nos anos 80, surgiu a primeira utilização sistemática da abordagem autobiográfica para explorar o processo de autoformação na vida cotidiana e comum44. Essa produção foi acompanhada no mesmo ano, como Pineau (2006, p. 330) nos fala, por outros autores que, de certa forma, criaram uma rede sobre histórias de vida e autoformação, dentre eles destacam-se Pierre Dominicé e Christina Josso da Universidade de Genebra, Antônio Nóvoa da Universidade de Lisboa, assim como o próprio Gaston Pineau da Universidade de Montreal. Os anos 90, na percepção de Pineau (2006), marcaram, além de uma diversidade de produções escritas sobre o tema, a criação de associações45 que congregavam professores e pesquisadores para definir, discutir e regulamentar as possibilidades de trabalhar com histórias de vida. Em 1996, foi iniciada uma coleção em Paris, Histoire de Vie et Formation, que abriu um espaço de publicação para as produções que buscavam articular história de vida com formação que, na época, se multiplicavam. A criação desse espaço é assim comentada por Pineau (2006, p. 335): A série Formação abre-se para os pesquisadores sobre formação, inspirando-se nas novas antropologias para compreender o que é inédito nas histórias de vida. A série Histórias de Vida, mais narrativa, reflete a expressão direta dos atores sociais às voltas com o correr da vida ao 46 darem uma forma e um sentido a ela. Produire sa vie: autoformation et autobiographie de Pineau, publicado em Montreal e em Paris em 1983. 45 L’Association Internationale des Histoires de vie en Formation - ASIHVIF – 1990/1991 (PINEAU, 2006, p. 334). 46 Em 2006, já havia mais de 60 obras publicadas, por volta de 30 em cada série (PINEAU, 2006, p. 335). 44 117 Como se vê, as publicações sobre histórias de vida em formação se consubstanciaram no período entre 1980 e 1990 no cenário internacional. A partir de 1990, ganham destaque as pesquisas realizadas por Zeichner (1993, 1995, 1998); Nóvoa (1991, 1992, 1995a, b) e Tardif (1991, 2000, 2002), dentre outros, que trazem à tona discussões sobre a prática reflexiva como elemento importante do exercício docente, a história de vida dos professores e os saberes docentes, respectivamente. Retornando a Pineau (2006), destaco que o início do ano 2000 marca um momento de desenvolvimento diferenciado e de expansão sobre histórias de vida. Para o autor, é possível entender esse desenvolvimento considerando três grupos: os iniciadores – pioneiros – dos anos 80, como os já citados Dominicé, Josso e Pineau; os contribuidores, pessoas e grupos que, fora da associação, contribuíram para a utilização das histórias de vida em formação através de pesquisas para a difusão de seus desenvolvimentos metodológicos; os criadores, situados entre os iniciadores e os contribuidores, que buscaram a autonomia e a criação através de “ligações flexíveis, de inter e trans-ações”, os mediadores entre os outros dois grupos (PINEAU, 2006, p. 336). Aqui no Brasil, nos anos 80 e a partir de 1990, se consolidaram, também, os discursos acadêmicos sobre formação de professores quanto ao desenvolvimento profissional, articulando-se com categorias teóricas no campo dos saberes docentes, identidade, histórias de vida como dispositivo de formação inicial e continuada, profissionalização, desenvolvimento pessoal e profissional, bem como em relação às possibilidades teórico metodológicas da pesquisa na área educacional (SOUZA, 2006, p. 31). Tais pesquisas vinculam-se ao movimento internacional de formação ao longo da vida, que considera a experiência do sujeito adulto como fonte de conhecimento e de formação. Portanto, nestes últimos quinze anos, as pesquisas não só sobre histórias de vida, mas também os estudos biográficos/autobiográficos ganham visibilidade no Brasil. Há um crescimento de fóruns que possibilitam discussões e consolidam pesquisas sobre histórias de vida como no caso, a exemplo, as reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd e os congressos do Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino – ENDIPE. 118 Segundo Bueno et alii (2006), nas Reuniões Anuais da ANPEd foram identificados 40 trabalhos sobre esses temas, no período 1991 e 2001, e nos congressos do ENDIPE, de 1998 a 2000 foram registrados 35 trabalhos. Configuram-se, assim, inúmeras possibilidades de estudar o professor, sua formação inicial e continuada, seus saberes, sua identidade, seu desenvolvimento pessoal e profissional. No entanto, penso ser de fundamental importância compreender o significado das diferenciadas terminologias como biografia, autobiografia, relato de vida e história de vida, enfim todas aquelas que estampam vida em seu título. É em Pineau (2006, p. 340- 341) que encontro as devidas explicações para cada uma das terminologias para estudar o professor. A biografia é entendida como escritura da vida de outrem; autobiografia como escrita de sua própria vida; o relato de vida destaca a expressão do vivido pela narrativa e, por fim, a história de vida entrelaça biográfico, autobiográfico e relatos de vida. A história de vida objetiva a construção do sentido temporal dos acontecimentos vividos. Josso (2004, p. 264) destaca que “os elementos biográficos são, então, reunidos em histórias segundo a lógica de um eu que imagina elos temporais significativos entre o passado, o presente e o futuro”. A diversidade de correntes, e até mesmo contracorrentes, indica a força do movimento biográfico que, para Pineau (2006, p. 342), é multiforme, mais do que uniforme, pois o futuro das histórias de vida se inscreve assim nas relações de um desafio bioético tenso entre um paradigma do comando e do controle e aquele da automização. Ele é incerto e não resolvido. Porém nessas lutas de poder pelo acesso aos saberes sobre a vida, seu domínio representa um meio vital estratégico para construir sentido e produzir sua vida. Convém observar, como diz o autor, que a corrente das histórias de vida pode fazer dessas práticas uma poderosa fonte de autonomia ou, ao contrário, de submissão dessas pessoas. Há, no entanto, que se ficar atento para o uso dessas abordagens, pois apesar do sucesso no terreno das práticas e no debate teórico, tanto Nóvoa (1995) quanto Pineau (2006) dizem que é preciso entender que existem fragilidades e ambigüidades. Nóvoa (1995a, p. 19) reforça a necessidade 119 de atentar para os seguintes motivos: de um lado, pensar que o sucesso dessas abordagens pode ser perigoso porque provoca os “efeitos de moda” e, por outro lado, porque “tende a dar guarida a experiências pouco consistentes e até eticamente reprováveis”. Pineau compartilha com Nóvoa dessa preocupação, uma vez que para ele surgiram abordagens em profusão que necessitam, sem dúvida, um esforço de elaboração teórica baseada numa reflexão sobre as práticas, porém não numa ótica normativa e prescritiva. Seja como for, pode-se dizer que o uso das biografias, autobiografias e histórias de vida vêm contribuindo para renovar a pesquisa educacional, basicamente, no que diz respeito à formação de professores e, como diz Catani et al (2006, p. 402), aflorando o interesse por “temáticas novas, tais como as que se configuram nos estudos sobre profissão, profissionalização e identidades docentes”. É importante dizer, também, que o trabalho seja com histórias de vida, com relatos de vida ou com biografias/autobiografias, servirá igualmente de suporte para orientar e clarificar a posição a sustentar diante dos desafios da vida e da história: “saber melhor de onde viemos” (DOMINICÉ, 2006, p. 356). Encaminho, neste momento, esta escrita para a apresentação de mais dois olhares teóricos: um que atenta para a trajetória do professor a partir dos ciclos de vida, pessoal e profissional; o outro que busca compreender a trajetória do professor centrada na experiência, ou seja, as fases da carreira docente. Professor em ciclos Pensar os professores a partir de suas vidas e sentimentos é, também, a proposta de Bolívar (2002); uma visão que atenta para a trajetória profissional do professor e seu ciclo de vida pessoal e profissional. Essa perspectiva é, para Hargreaves (1998 apud BOLÍVAR, 2002, p. 8), a possibilidade de “visualizar a outra face da mudança na educação”, a partir do entendimento de como as emoções, as ilusões, projetos futuros podem afetar individualmente os professores em sua qualidade de pessoa. Com relação à 120 proposta de mudança, Bolívar (2002) alega que muitas vezes não consideramos “a face racional” dessa mudança e estranhamos que o professor não a tenha implementado como devia, julgamos que tudo se resume em “como mudar” esse professor. Após inúmeros fracassos, argumenta Bolívar (2002, p. 8), “começamos a compreender que subestimamos os contextos nos quais os professores vivem e trabalham, em suma, sua história de vida”. Então, é essa outra possibilidade de analisar a problemática da profissão docente, a que me proponho, a partir do estudo do ciclo de vida profissional, ou seja, do ciclo vital pelo qual passa o professor, destacando aspectos significativos da história pessoal e da trajetória profissional para uma melhor compreensão da pessoa do professor e, como conseqüência, de sua atuação docente. Esses aspectos são basilares para toda e qualquer proposta de mudança e aprimoramento profissional. E mais, tal estudo indica a dimensão pessoal como fundamental nos processos pelos quais os professores se constroem e dinamizam seu trabalho, deixando claro que “o aperfeiçoamento profissional está associado ao desenvolvimento pessoal, ou faz parte dele” (BOLÍVAR, 2002, p. 8). Com isto quero dizer que o que a pessoa é ou sente não pode vir dissociado do exercício profissional. Para o autor, o desenvolvimento profissional compreende três grupos de fatores: o professor como pessoa, o contexto em que trabalha e os incentivos e programas para uma evolução profissional. Daí a importância dos estudos sobre o ciclo de vida do professor para possibilitar uma maneira de promover conhecimento tanto da evolução profissional quanto do aperfeiçoamento da escola. Para Bolívar (2002, p. 11), é a partir do conhecimento das histórias dos professores e dos itinerários de formação que: os programas de desenvolvimento profissional não devem se contentar em proporcionar determinados recursos ou incentivos a mudanças particulares, sem articular um sistema formativo, suficientemente flexível para que professores e professoras possam compor o itinerário pessoal mais condizente com sua evolução. Desta forma, as ações formativas planejadas externamente numa ampla lista de ações pontuais de formação, sem conexão direta com as situações de trabalho e as trajetórias profissionais, não surtem os efeitos desejados. Deve-se, 121 em se tratando de uma proposta formativa, levar sempre em consideração a idade, a etapa da carreira profissional, as experiências vitais e os fatores de gênero, o professor como “pessoa total” (BOLÍVAR, 2002, p. 8). O autor acredita que “depois de perfilar estruturas favoráveis à mudança educativa, demo-nos conta de que no final o que importa é a maneira como os professores e professoras sentem, pensam e agem”. Para Nóvoa (1995a), como vimos anteriormente, nos últimos vinte anos a literatura pedagógica tem sido invadida por obras e estudos sobre a vida dos professores, as carreiras, as trajetórias profissionais, as biografias e autobiografias ou, ainda, sobre o desenvolvimento pessoal dos professores. Isto significa que um novo olhar sobre a vida e a pessoa do professor tem complementado os estudos sobre as práticas de ensino. Nóvoa (1995b, p. 17) diz que a ação pedagógica é influenciada pelas características pessoais e pelo percurso de vida profissional de cada professor, pois “a maneira como cada um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos como pessoa quando exercemos o ensino”. E mais, para o autor, “é impossível separar o eu profissional do eu pessoal”. Considero que estudar o curso de vida de uma pessoa requer compreensão do diacronicamente percurso por ela em função de um percorrido, devendo ser analisado conjunto de etapas como idades, circunstâncias sociais e históricas e estágios profissionais. Tais estudos obedecem a certo grau de normatividade, seguindo as seqüências de fases/estágios pelos quais costumam passar os seres humanos; no entanto devese considerar, também, o conjunto de acontecimentos sócio-históricos e eventos individuais inesperados na vida de cada pessoa. Para Bolívar (2002, p. 22), o termo curso indica “seqüência temporal progressiva como conjunção de estabilidade e mudança, com continuidades e descontinuidades”. A idéia de ciclo de vida por ele utilizada é a de um dispositivo heurístico ou metáfora capaz de proporcionar um quadro para a observação e capaz de contribuir para a compreensão do aperfeiçoamento profissional do professorado. Nas últimas décadas pesquisas que aplicam as teorias de desenvolvimento dos adultos ao desenvolvimento do professorado vêm empregando “os ciclos de vida” profissional como uma maneira de entender a carreira, a evolução 122 profissional e, ainda, o grau de compromissos ou implicações com a mudança e inovação. Nessa perspectiva a carreira profissional é considerada como um todo, incluindo as experiências escolares da infância, passando pela escolha profissional - entrada no magistério – até o afastamento ou aposentadoria. Portanto, o modelo dos “ciclos de vida” possibilita uma compreensão mais ampla – ou pelo menos mais complementar – do desenvolvimento profissional e pessoal dos docentes. Adotar o enfoque de ciclos de vida de docentes implica considerar a existência de variações em função do contexto social e escolar do trabalho ou da própria pessoa. As modificações nas fases da vida profissional não são ocasionadas pela idade, não como se fossem conseqüências biológicas, mas sim pelas condições de tempo e lugar determinados, elas ocorrem pelas situações de oportunidades e limitações vividas. Elas acontecem em diferentes territórios pelos quais as pessoas costumam transitar, quebrando, por vezes, a linearidade das experiências vivenciadas. Com relação a esse fato, Bolívar (2002, p. 52) considera que o desenvolvimento da carreira: é um processo que, embora pareça linear, apresenta avanços, recuos, descontinuidades ou mudanças imprevisíveis. A carreira do professor ou professora será uma criação conjunta da interação dialética entre o que queriam ser (fatores maturativos e psicológicos) e os fatores do ambiente social. Cabe destacar que não se podem prever com segurança as fases de cada professor. Isto porque, para o autor citado (2002, p. 46), A vida de professores e professoras passa por uma sucessão de etapas ou fases que configuram seu ciclo de vida; caracterizadas, entre outras coisas, pelo predomínio de preocupações, atitudes, e vivências diante de trabalho, articulados com outros domínios da vida, em especial com o ambiente social. As fases/estágios na carreira profissional e suas possíveis derivações para novas fases dependerão dos acontecimentos ocorridos nas trajetórias individuais dos professores, determinados pelos sujeitos, pela própria maturidade ou pelo ambiente social. 123 Huberman (1995, p. 36) destaca uma série de questões, suscitadas pelas fases da carreira docente, que merecem atenção. A seguir, algumas dessas indagações: (a) com relação à carreira: existem fases ou estágios no ensino? Todos os professores passam pelas mesmas fases independentemente da geração a que pertencem? Existem trajetórias diferentes em cada período da carreira profissional? O que faz um professor ser diferente de outro professor? (b) sobre a percepção do professor: qual o grau de satisfação com seu ensino? Como ele, na sua atuação em sala de aula, vê os diferentes momentos de sua carreira? Como considera seu trabalho com o passar dos anos? Como vê seus momentos de crises e como faz para enfrentá-los? Como lida com as exigências da instituição escolar? Como percebe a influência dos acontecimentos da sua vida pessoal no trabalho escolar? É possível, aqui, aproximar os olhares teóricos de Huberman (1995) e Bolívar (2002) sobre o estudo dos ciclos de vida. Huberman trabalha em suas pesquisas, também, com ciclos de vida, porém enfatiza as fases da carreira docente. Para Bolívar, o estudo dos ciclos de vida fornece as coordenadas da evolução pessoal e profissional do docente, o que permite obter instrumentos para discutir, igualmente, os processos formativos desses docentes. Tanto Huberman quanto Bolívar admitem que, através deste estudo, existe a possibilidade de melhor compreender a profissão docente, levando em conta as variáveis históricas, institucionais e pedagógicas que configuram o itinerário de cada professor. Huberman aproxima-se mais uma vez de Bolívar quando destaca como fundamental conhecer as mudanças de vida, o enfrentamento das crises e os compromissos institucionais que os professores enfrentam, para, então, propor mudanças significativas no processo formativo e no aprimoramento profissional dos docentes. Professor em fases Para compreender as fases na carreira profissional, encontro em Huberman (1995) o modelo centrado nos anos de experiência docente e não na 124 idade. Para o autor, o desenvolvimento de uma carreira é um processo que para alguns pode ser linear, mas para outros, há momentos de altos e baixos. O estudo da carreira docente possibilita “a compreensão do percurso de uma pessoa numa determinada organização e a forma como as características dessa pessoa influenciam a organização e são, ao mesmo tempo, influenciadas por ela” (HUBERMAN, 1995, p. 38). A carreira docente caracteriza-se por diferentes fases que constituem o ciclo de vida profissional dos professores. O modelo proposto segue a ordem geral das fases, admitindo, porém, uma grande diversidade com relação às variáveis históricas, institucionais e psicológicas que configuram uma determinada geração, ou seja, pessoas de uma mesma idade e um conjunto de experiências comuns num certo espaço de tempo. As fases propostas pelo autor são em número de cinco (Quadro 1), considerando que as três primeiras fases são comuns à maioria dos professores. Quadro 3 – Fases por anos de carreira ANOS DE CARREIRA FASE DA CARREIRA 1-3 Exploração / entrada na carreira 4-6 Estabilização consolidação de um repertório pedagógico 7-25 Diversificação / questionamento 25-35 Conservantismo serenidade – distanciamento afetivo 35-40 Desinvestimento / sereno ou amargo A primeira fase é a entrada na carreira, chamada de exploração. Transcorre nos três primeiros anos de ensino, desde que se tenha feito uma escolha (casual ou não). Essa fase pode ter momentos fáceis ou difíceis, é onde surgem os contornos da nova profissão. Caracteriza-se por uma necessidade de sobrevivência no novo meio, um confronto entre os ideais e a realidade do cotidiano escolar. Outra característica dessa fase é a descoberta por parte do professor de sua própria atuação, de seus alunos e de sua integração no coletivo profissional. 125 A estabilização é a fase que se situa entre 4 e 6 anos, marcada pela consolidação de habilidades práticas, de um modo próprio de trabalhar. Caracteriza-se pela busca de uma autonomia profissional na execução do trabalho, capacidade de tomar decisões, surge o estilo pessoal de comandar a classe e a autoridade passa a ser mais natural e mais espontânea. Delineia-se, nesse momento, uma identidade profissional. Os percursos individuais parecem divergir mais a partir dessa fase. Outra fase é a de diversificação ou questionamento, que abrange o período que varia entre 7 e 25 anos de experiência docente. Essa fase está caracterizada por duas situações: por um lado, existem professores que procuram comprometer-se com o trabalho de ensino, buscando novas experiências pessoais; por outro lado, alguns professores, devido às limitações institucionais do trabalho, sentem-se prejudicados no desempenho em sala de aula e, como saída para a carreira, buscam novos desdobramentos como, por exemplo, direção, assessorias e responsabilidades administrativas. Nessa fase, os professores procuram preservar o status adquirido buscando a atualização que permite conservar o entusiasmo. Não obstante, a fase de diversificação pode desencadear um período de incertezas, variando de pessoa para pessoa. O conservantismo é uma fase que está situada num período entre 25 e 35 anos de experiência profissional. Nessa fase os sintomas podem variar: desde um ligeiro sentimento de rotina até uma crise existencial que questiona a continuidade – ou não - da carreira profissional. Destaca-se que nem todos os professores passam por essa crise. Segundo estudos realizados sobre os ciclos de vida, há unanimidade em afirmar que os professores na faixa etária entre 45 e 55 anos perdem a energia. Isso acontece por um período de serenidade e de distanciamento afetivo, no qual o professorado está mais calmo e costuma sentir certo desalento em enfrentar novos desafios, torna-se mais reflexivo, menos preocupado com os problemas de classe/grupo. Os professores mantêm uma distância afetiva com relação aos seus alunos, uma distância, na maioria das vezes, criada pelos próprios alunos em razão da diferença de idade e incompreensão mútua. Por fim, a fase do desinvestimento (sereno ou amargo) ocorre entre 35 e 40 anos. Professores, entre 50 e 60 anos, frente às novas gerações de alunos, os 126 colegas jovens e as medidas de política educativa, adotam uma postura conservadora, mais prudente e mais crítica. Eles se manifestam de forma queixosa e até mesmo reacionária, diante de propostas de mudanças. É o período do fim de carreira, onde se manifesta um processo de desaceleração e desengajamento do trabalho, seja por limitações pessoais, seja por preocupações de ordem pessoal. Os professores participam menos das ocupações profissionais, mais das atividades de lazer. Os professores libertam-se, progressivamente, do investimento no trabalho, para dedicar mais tempo a si próprios. Muitas vezes, as pessoas se dispõem a fazer um “balanço” das suas vidas em função do tempo que ainda falta para encerrar a carreira profissional. Quero destacar que os relatos biográficos dos professores viabilizam a reconstrução dos percursos através dos quais cada um pode identificar as experiências, os momentos e os reencontros significativos de sua formação e da escolha da profissão docente. Esse caminho biográfico possibilita a construção de um inventário de experiências e competências profissionais vivenciadas e, ao mesmo tempo, permite uma compreensão global da pessoa. Seu desempenho profissional pode atuar como um espelho crítico que devolve a imagem para que possa ser repensada, refletida, analisada e reconstruída. O estudo dos ciclos de vida deixa claro que não é possível dissociar o desenvolvimento profissional do pessoal, permitindo a articulação dos processos formativos do ponto de vista de quem se forma, inseridos na trajetória pessoal e profissional. É possível entender esses processos não apenas a partir da ótica das instituições externas de formação. Esse fato nos leva a pensar que as propostas de inovações das instituições devem considerar a dimensão pessoal da mudança (atitude, compromisso ou capacitação) para identificar que fatores de evolução profissional (fase do ciclo de vida) vão condicionar a disposição para a inovação. Cabe, então, perguntar se pode - ou não - haver estágios que sejam mais propícios para promover inovações? Se tomo como base as fases da carreira docente propostas por Huberman (1995) penso - quase afirmo – que devido ao fato de existirem, no curso da carreira, diferentes tipos de compromissos, juntamente com níveis de satisfação, 127 existem momentos propícios para inovações, como por exemplo, a fase central da carreira, situada entre a “estabilização” e o “auto-questionamento”, na qual os professores chegam a ser mais ativos e disponíveis para inovações. Destaco, aqui, a importância de tal conhecimento para posterior proposta de inovação, o que evitaria a seguinte, e tão usual, pergunta: “Quem sabe o problema é do professor e não da proposta de inovação?” Culpar o professor pelo fracasso da mudança é desprezar o momento da carreira em que o mesmo se encontra. É a voz do professor que precisamos ouvir e dela extrair considerações que permitam compreender o entrelaçamento de sua história e trajetória em diferentes espaços e tempos de sua vida pessoal e de sua prática docente. É essa escuta que precisamos considerar antes de qualquer julgamento, seu relato de vida ao transpor sua voz revela suas reais necessidades. Só ele sabe de si, das relações que estabeleceu com o seu processo formativo e com as aprendizagens que construiu ao longo da vida. Nesse sentido, o estudo das fases que balizam a carreira docente, através das histórias pessoais da experiência profissional, permite a elaboração de um inventário de vivências, saberes e competências profissionais e, na medida em que trabalha a biografia narrativa, possibilita a análise dos aspectos essenciais desse desenvolvimento e a compreensão da pessoa do professor como capaz de orientar sua vida a partir dos acontecimentos sócio-históricos e dos eventos individuais. Em minhas andanças teóricas, apresentei nesse capítulo um caminho para compreender o professor. Comecei pensando na escola como lugar de cultura, como espaço de produção de vozes e como o cenário onde acontece o trabalho docente. Falei de uma escola com características próprias, com uma cultura que perpassa todas as ações do cotidiano, incluindo suas formas de organização, de gestão, e de constituição dos sistemas curriculares. Uma escola, que tem como significativo para o entendimento e construção dessa cultura a presença dos professores e suas práticas, incluindo a formação, a seleção e o desenvolvimento da carreira acadêmica desses professores. Falei de uma escola, que além de ser um lugar de cultura é, também, um lugar de produção de vozes, ecoadas pelos 128 discursos, pelas formas de comunicação e pelas linguagens presentes no seu cotidiano. Trilhei, posteriormente, profissionalização dos a professores, trajetória por do processo considerá-lo histórico determinante da para compreender os problemas atuais da profissão docente e, parodiando Nóvoa, digo ser esse um desafio para pensar e propor mudanças na escola e na formação e ação dos professores ou, até mesmo, recriar a profissão docente. Seguindo minhas andanças teóricas, procurei entender o repertório de conhecimentos que corresponde aos saberes próprios do professor, acreditando que a perspectiva que investiga esses saberes pode contribuir com o desenvolvimento profissional dos professores. Por acreditar que o professor “é” a partir de suas experiências e aprendizagens construídas ao longo de sua vida, fui buscar as produções sobre trajetórias biográficas para olhar a vida pessoal do professor, considerando a maneira como ele ensina e que essa maneira está diretamente ligada aquilo que ele é como pessoa quando ensina. Então, é dessa possibilidade de analisar a problemática da profissão docente, através de um caminho biográfico, que procurei entender o estudo do ciclo de vida profissional, que permitiu destacar aspectos significativos da história pessoal e da trajetória profissional para melhor compreender a pessoa do professor e, como conseqüência, sua atuação docente. Para complementar esse estudo, busquei as fases da carreira docente porque penso - quase afirmo – que devido ao fato de existir, no curso da carreira, diferentes tipos de compromissos, níveis de satisfação existem momentos propícios para inovações, para propor mudanças. É desse lugar, com esses olhares, que me propus a analisar o desenvolvimento pessoal e profissional do professor de Artes Visuais e compreender as continuidades e descontinuidades na (re) construção de sua trajetória docente. A seguir, serão apresentadas as impressões primeiras de um grupo de professores de Artes Visuais, onde será possível verificar as características e expectativas formativas comuns no coletivo. IMPRESSÕES PRIMEIRAS "Impressão, nascer do Sol“ eu bem o sabia! Pensava eu, justamente se estou impressionado é porque lá há uma impressão. E que liberdade, que suavidade de pincel! Um papel de parede é mais elaborado que esta cena marinha". Louis Leroy A obra de Monet48 “Impressão, nascer do sol” é minha Imagem Viajante nº 6. Essa pintura foi exibida na primeira exposição impressionista e deu origem ao nome do movimento. A expressão “impressão” do critico de arte Leroy foi usada originalmente de forma pejorativa, mas Monet e seus colegas adotaram o título, sabendo da revolução que estavam iniciando na pintura. A polêmica causada pela obra foi pela sua forma de apresentar na técnica de pintar o efeito das luzes com rápidas pinceladas, fato incomum na arte até aquele momento, pois predominava a pintura acadêmica de atelier. A crítica ao quadro de Monet dizia que essa pintura não passava de uma impressão, um rascunho. É exatamente por esse motivo que a imagem de Monet inspira a escrita sobre minhas impressões primeiras de um grupo de professores. Tal como o artista, eu saí ao “ar livre” para capturar e entender melhor as nuances e as 48 Claude Oscar Monet (1980-1926), pintor francês representante do movimento impressionista. O impressionismo pode ser considerado um movimento revolucionário ocorrido na história da pintura ocidental nos fins do século XIX. Os pintores impressionistas foram, sobretudo, paisagistas, pintavam ao ar livre, captando modificações que a luz do sol provocava nas cores da natureza (GOMBRICH, 1983, p. 419). Os impressionistas se propuseram a reduzir a arte à representação imediata da sensação visual. Os artistas viam o mundo subjetivamente, ou seja, tal como se apresentava aos seus sentidos em várias luzes ou de diferentes pontos de vista. Os impressionistas foram considerados pela crítica da época como “falsos artistas, ignorantes das regras tradicionais da pintura e dos princípios da verdadeira beleza” (CAVALCANTI, 1978, p. 211). 130 mutações coloridas dos docentes de artes visuais, só que agora, apenas, as características e expectativas formativas comuns no coletivo. Imagens delineadas As primeiras imagens de professores49 surgem a partir da aplicação de um questionário para 40 docentes de Artes Visuais. O questionário elaborado constava de 45 questões, subdivididas em questões fechadas e de alternativas múltiplas, agrupadas em torno das seguintes dimensões: dados de identificação, escolaridade, carreira e expectativas profissionais, processo de trabalho. Por fim, solicitei aos professores informações sobre as dificuldades encontradas para ensinar arte e sugestões para a melhoria desse ensino. • Dados de identificação, escolaridade A imagem inicial predominante é a da professora, uma vez que a maioria é do sexo feminino, apenas um professor do sexo masculino, com idades que variam entre 30 e 51 anos. A maioria delas é casada, apenas uma é divorciada e o professor é solteiro. Os dados relativos à escolaridade apontam para o predomínio do ensino público municipal ou estadual na educação básica, sendo que duas professoras cursaram o ensino fundamental em escolas particulares, uma em particular leiga e outra em uma escola particular religiosa. Outro fator que se destaca diz respeito ao ensino médio, pois a maioria dos professores teve esse nível de ensino em cursos de magistério nas escolas públicas da cidade. Apenas uma docente concluiu o ensino médio, magistério, em escola particular religiosa. Uma professora teve formação no nível médio no ensino técnico profissionalizante. O professor iniciou o ensino médio em uma escola técnica federal e concluiu esse 49 O número de docentes que participaram dessa primeira fase da coleta de dados resultou de contatos telefônicos, cujos números foram fornecidos pelo colegiado do curso, através de visitas a quatro escolas e, ainda, pela indicação dos próprios professores. Os questionários foram aplicados para 30 docentes entre os meses de outubro e novembro de 2007 e para mais 10 professores no mês de maio de 2008. Os professores pertencem a 54 escolas municipais – 35 na zona urbana, 17 na periferia, uma no Laranjal e uma na zona rural. Total de escolas do Município. 131 nível de ensino em uma escola municipal. Outra professora cursou o ensino médio na antiga Escola Técnica Federal de Pelotas. Todos os professores são formados, em nível superior, pelo IAD/UFPel, concluindo seus cursos50 entre 1983 e 2002 (Tabela 8). Tabela 8 – Professores por formação: curso e habilitação HABILITAÇÃO CURSO TOTAL FP* Licenciatura Plena em Ed. Artística AP D AV 22,5% 22,5% Licenciatura Plena em Ed. Artística 30% 7,5% 37,5% Licenciatura em Artes 22,5% TOTAL DCG 30% 7,5% 35% 5,0% 40,0% 35% 6,7% 100,0% Fonte: Elaboração própria. * Legenda: FP - Formação Polivalente em Artes Plásticas, Teatro e Música; AP – Artes Plásticas; AV Artes Visuais; D - Desenho; DCG – Desenho e Computação Gráfica. O grupo de professores apresenta formação diferenciada na área de Arte, 22,5% é formado no curso de Licenciatura Plena em Educação Artística com formação polivalente. Essa formação tinha como propósito formar professores capazes de ensinar artes plásticas, música e teatro, ou seja, uma formação superficial em todas as linguagens artísticas, embora o professor fosse habilitado em Artes Plásticas ou Desenho ou Música. Concordo, plenamente, com Magalhães (2002) quando destaca que essa proposta polivalente deixou sérias lacunas na formação do professor e nas práticas educativas superficialidade da em Arte, área nos que contribuíram, currículos sem escolares, dúvida, para impossibilitando a um conhecimento mais sistematizado e aprofundado dos contextos históricos e as especificidades de cada uma das linguagens artísticas. Outro fator que destaco 50 Os cursos indicados foram: Licenciatura Plena em Educação Artística com habilitações em Artes Plásticas e Desenho, Licenciatura Plena em Educação Artística sem o caráter polivalente, mas com as mesmas habilitações e, por fim, Licenciatura em Artes com as habilitações em Artes Visuais e Desenho e Computação Gráfica. 132 na formação dos professores foi – e por vezes ainda é - a concepção de um ensino da arte que prioriza a livre expressão em detrimento do conhecimento dessa arte, uma ênfase excessiva no fazer artístico. O curso de licenciatura com formação polivalente existiu no IAD durante o período de 1978 até 1993. Em 1994, após 15 anos, a estrutura polivalente é eliminada do curso, que mantém a mesma nomenclatura e habilitações. Com formação nesse curso participaram da pesquisa 37,5% do total de quarenta docentes, sendo que desses 30% habilitadas em Artes Plásticas e 7,5% em Desenho. O outro grupo de professores – 40% - tem formação no curso de Licenciatura em Artes, 35% tem habilitação em Artes Visuais e 5% em Desenho e Computação Gráfica. Considerando as exigências da LDB nº 9.394/96 e a proposta das Diretrizes Curriculares, sistematizada pala Comissão de Especialistas de Ensino de Artes Visuais da SESu/MEC e a conseqüente divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o curso passa por nova reformulação em 1999. A reformulação altera, primeiramente, o nome do Curso para Licenciatura em Artes com habilitações em Artes Visuais e Desenho e Computação Gráfica. Essa última terminalidade permanece mais alguns anos, até sua reestruturação por decisão dos professores do IAD e não por adequação às exigências legais. Entendo que o interesse em manter o ensino do desenho como uma habilitação é um resquício do ensino praticado na antiga Escola de Belas Artes. A ampliação do ensino das Artes Plásticas (pintura, escultura, desenho, gravura, arquitetura) para Artes Visuais (fotografia, moda, artes gráficas, cinema, televisão, vídeo, computação, performance, holografia, desenho industrial, arte em computador) foi outro fator priorizado na estrutura curricular do curso. Com relação a Curso de Pós-Graduação, apenas três professoras possuem cursos de Especialização, uma na área de Arte em Patrimônio Cultural: Conservação de Artefatos e outras duas na de Educação, no IAD e na FaE/UFPel, respectivamente. Uma das professoras está cursando Especialização em Educação na área de concentração em Educação Infantil na FaE/UFPel. Uma professora realizou um Curso de Capacitação para trabalhar com alunos surdos. 133 • Carreira e expectativas profissionais A carreira e as expectativas profissionais dos professores indicam questões relevantes como: tempo de docência, regime de trabalho, incluindo categoria funcional. Nesse item do questionário são, ainda, destacados aspectos referentes à participação – ou não – em associação de classe e em tipos de atividades artísticas, a escolha da profissão e as expectativas profissionais. O tempo de atuação no magistério dos professores varia entre 5 e 24 anos. Entre 20 e 24 anos de carreira estão três professoras: uma com 20 anos, outra com 21 anos e outra com 24 anos de magistério e apenas uma professores entre 16 e 20 anos de docência. Entre 11 e 15 anos de carreira encontram-se 15 % das professoras; 45% estão entre 6 e 10 anos e 27,5% entre 1 a 5 anos de carreira no magistério (Tabela 9). Portanto, 72,5% dos professores encontram-se na faixa que varia entre 1 a 10 anos de docência, comprovando-se os dados sobre a renovação do quadro de docentes na área de Arte no município51. Tabela 9 – Professores por tempo de docência ANOS DE DOCÊNCIA PROFESSORES 1 a 5 anos 27,5% 6 a 10 anos 45,0% 11 a 15 anos 15,0% 16 a 20 anos 5,0% 21 a 25 anos 7,5% Fonte: Elaboração própria. O regime de trabalho para a maioria – 90% - dos professores é de 40 horas semanais. Apenas uma tem 20 horas semanais, outra, além das 40 horas no município, trabalha mais 20 horas numa escola estadual e uma terceira tem 60 horas no município. Uma professora trabalha 40 horas no município, 20 horas no estado e mais 10 horas numa instituição particular de ensino, ou seja, essa 51 Segundo informações da SME em 2006, no último concurso realizado em 2000 a renovação de professores de Arte foi de 68%. Esse dado evidencia uma reposição significativa do quadro docente nas escolas municipais. 134 professora tem uma carga horária semanal de 70 horas. Portanto, 10% dos professores têm mais de 40 horas de trabalho por semana. Os docentes, na maioria, não participam da associação de classe nem exercem outra atividade fora da escola. Uma professora que também atua numa escola estadual, assinalou o Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul- CPERS/Sindicato, acrescentando que sua participação é pouco ativa. No caso de desempenho de alguma atividade artística, os professores não atuam em nenhuma área da arte fora da escola. Outra professora é filiada ao Sindicato dos Municipários de Pelotas/SIMP. Quanto à categoria funcional, os professores municipais que lecionam no ensino fundamental de 1ª a 4ª séries são professores nível 1 - P1, de 5ª a 8ª séries, P2, e no ensino médio, P3. Cabe destacar que um professor da rede municipal pode ter mais de uma categoria funcional. A maioria – 95% - dos professores pertence ao nível P2, 7,5% desses também ao nível P3, sendo que 5% tem como categoria funcional o nível P1. O ser professor como opção pessoal foi a maioria das respostas dos professores. Apenas uma assinala a influência familiar como fator motivador na escolha da profissão. O professor, no entanto, difere das professoras, não tinha a intenção de ser professor, mas como não foi aprovado no curso pretendido optou pela licenciatura por ser a via mais fácil de ingresso no ensino superior. Destacase o fato de todos os professores, exceto uma professora e o professor, terem cursado o magistério no ensino médio. Ao serem questionados sobre a possibilidade de reiniciar a carreira profissional, 92,5% dos professores responderam que voltariam a escolher a docência e 7,5% que não a escolheriam novamente. No caso de respostas afirmativas ou negativas os professores deveriam indicar as razões, os que marcaram sim, indicaram que vêem futuro na educação e consideram o trabalho gratificante e, ainda, apontaram a estabilidade que a carreira proporciona. Dos três professores que não voltariam a escolher a carreira docente, duas indicaram como causas o baixo salário e o trabalho estressante e o professor, além dessas indicações, apontou as condições precárias de trabalho e o baixo prestígio social como razões para não voltar a ser professor. 135 Sobre as expectativas profissionais, 60% das professoras pretendem manter a situação atual e gostariam de buscar o aperfeiçoamento através de cursos de pós-graduação e 40% assinala a aposentadoria como a expectativa futura. O professor tem como expectativa profissional a realização de um curso de pós-graduação no nível de mestrado e, se possível, mudar de profissão. Em síntese, os dados apresentados até o momento apontam para um grupo predominantemente feminino, cuja escolarização e formação superior foram realizadas em instituições públicas de ensino. O regime de trabalho da maioria é de 40 horas semanais e o tempo de docência varia entre 5 e 24 anos. A escolha da profissão para todas as docentes foi por opção pessoal e, se pudessem reiniciar a carreira, escolheriam novamente a docência, pois acreditam na educação, consideram o trabalho gratificante e destacam, ainda, a estabilidade que esse trabalho proporciona. No entanto, um grupo significativo tem como expectativa futura a aposentadoria por considerar o trabalho docente estressante e as condições de trabalho precárias. Indicam, ainda, os baixos salários e o desprestígio social como fatores que desestimulam o trabalho docente. Apenas o professor não tinha como opção profissional a docência e, como já dito, pretende buscar sua atualização profissional através de um curso de pós-graduação, trocando, se possível, no futuro, de profissão. • Dados sobre o processo de trabalho Neste item do questionário os professores assinalaram respostas às questões relativas aos aspectos relevantes para o desempenho docente como nível de ensino e séries de atuação, turno de trabalho, número de turmas e de alunos, carga horária efetiva em sala de aula. Foram solicitados a responder, também, questões mais específicas das aulas de Artes Visuais, tais como espaço físico, recursos materiais, planejamento das aulas, utilização do livro didático, instrumentos de avaliação. Por fim, os professores deveriam destacar a participação nas reuniões que a instituição costuma realizar e as atividades de formação continuada no último ano. 136 As alternativas mais relevantes indicadas pelos professores para o exercício da profissão foram, dentre as oferecidas, a responsabilidade e o conhecimento adquirido pela experiência, como mostra a Tabela 10. Tabela 10 - Alternativas para o exercício da docência ALTERNATIVAS PROFESSORES Conhecimento oriundo da sua formação profissional Conhecimento adquirido na sua experiência 90,0% Domínio dos conteúdos de Arte 2,5% Domínio dos conhecimentos pedagógicos e didáticos 2,5% Amor pela profissão 2,5% Responsabilidade e compromisso 92,5% Constante atualização profissional 5,0% Fonte: Elaboração própria. O número percentual de informantes ultrapassa os 100%, uma vez que alguns professores indicaram mais de uma alternativa. Esse grupo de professores, como se vê, alega estar imbuído de seus deveres para com a formação de seus alunos, pois consideram que a responsabilidade e o compromisso são relevantes para o exercício da profissão docente. É, sem dúvida, um grupo extremamente comprometido com a profissão escolhida por eles. E, ainda, destacam o conhecimento adquirido através da experiência como sendo a alternativa preponderante. Concordo, em parte, com os docentes. Mas quero enfatizar que um professor se constrói, sim, ao longo de sua vida e que, no exercício de seu trabalho, utiliza saberes oriundos de suas experiências profissionais, porém onde ficam as experiências familiares e escolares, os processos de formação profissional? É bem como nos diz Arroyo (1985a), os professores costumam atribuir aos saberes construídos no exercício do magistério um valor predominante quando questionados sobre a construção de sua competência. As professoras não consideraram os conhecimentos oriundos de sua formação profissional nem tampouco o domínio dos conteúdos de sua área de atuação, as Artes Visuais. Apenas o professor assinalou o domínio do conhecimento em Arte como aspecto relevante para a sua atuação em sala de aula. 137 É importante lembrar que os estudos sobre os saberes docentes valorizam a ação da experiência profissional, que é possível a produção de um conhecimento prático, porém enfatizam a compreensão de que o professor, ao desenvolver seu trabalho, mobiliza uma pluralidade de saberes. Destaco, aqui, que tanto Gauthier (1998) quanto Tardif (2002) enfatizam que existe, sem dúvida, uma mobilização de saberes nas ações dos professores e, ambos compreendem os educadores como sujeitos que possuem uma história de vida pessoal e profissional e que são produtores e mobilizadores de saberes no exercício de sua prática. Portanto, os saberes são originados da história de vida, da formação profissional, do conhecimento científico da disciplina que o professor ensina, dos currículos e materiais instrucionais com que trata o professor, da estrutura e organização escolar onde o professor atua e, finalmente, do conhecimento construído na prática pedagógica e profissional. Com relação aos níveis de ensino, 80% dos professores leciona de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental52 no período diurno, manhã e tarde, e ainda atuam de 5ª a 8ª séries também nos turnos da manhã e tarde. 17,5% do grupo de professores só atuam de 5ª a 8ª séries. O professor leciona de 1ª a 7ª séries. Três professoras, além de lecionar para todas as séries do ensino fundamental, atuam no ensino médio. Duas dessas professoras têm também, cada uma delas, uma turma de alunos portadores de necessidades especiais e a outra uma turma do EJA (Educação de Jovens e Adultos), todas no turno da noite. Desse grupo de professores, 65% atuam em uma única escola em turno diurno e 35% em duas escolas em turno diurno e 7,5% também trabalha no turno noturno. Uma professora leciona em três escolas: uma do município, outra do estado e, ainda, em uma instituição particular, ou seja, essa professora trabalha nos três turnos. Apenas uma professora atua somente de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental. Uma professora atua em quatro escolas. Destaco como significativo pensar mais uma vez na formação do grupo de professores, considerando que 22,5% têm o curso de Licenciatura Plena em Educação Artística com formação polivalente e 37,5% o curso com o mesmo nome, porém sem a polivalência, e que esses cursos preparavam seus formandos Nas escolas municipais os professores de Artes Visuais lecionam nas séries iniciais do ensino fundamental, o que significa uma adequação ao Art. 26§ 2ª da LDB 9394/96, que determina que o ensino da Arte deve ser componente curricular em todos os níveis de ensino da educação básica. 52 138 para atuarem de 5ª a 8ª séries, o que significa que 60% dos professores não têm preparação para trabalhar de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental. O outro grupo de professores - 40% -, por sua vez, encontra-se em situação semelhante, pois a formação é no curso de Licenciatura em Artes, cujas alterações contemplaram em parte as exigências legais sem, no entanto, ter na sua estrutura curricular disciplinas que trabalhassem especificamente a relação do desenvolvimento cognitivo e afetivo com o grafismo das crianças nesse nível de ensino. A ampliação na formação de professores para atuar em todos os níveis de ensino fundamental e médio ocorreu com a reformulação de 2004, não atingindo o grupo que participa desta pesquisa. O número de turmas semanais por professor varia entre 15 e 22 e o de alunos entre 150 e 950. A carga horária efetiva em sala de aula corresponde, aproximadamente, à carga horária de contrato de cada um dos professores. Uma professora, com regime de trabalho de 60 horas, dedica 35 horas para uma atividade de coordenação, complementando sua carga horária com 11 turmas semanais, dentre elas, uma turma para alunos surdos. Penso ser importante salientar que os professores ocupam seu tempo na escola apenas com atividades em sala de aula, exceto a última professora citada. Essa situação aponta para a questão da intensificação no trabalho docente, uma vez que, segundo Apple (1987), a redução do tempo dedicado a pensar, programar e planejar acarreta, no decorrer do processo, um aumento de desqualificação profissional e um elevado grau de dependência, por parte dos professores, das tecnologias educacionais e das determinações externas. Complemento essa idéia com Hargreaves (1998), quando afirma que a intensificação é uma quebra, muitas vezes abrupta, na organização para o lazer, ao que Apple (1987) chama de dinâmica de desqualificação intelectual. O espaço físico mais utilizado pelos professores para o trabalho com Artes Visuais é a sala de aula. Apenas dois outros locais alternativos foram indicados por duas professoras: a oficina de arte e o pátio da escola (Tabela 11). 139 Tabela 11 – Espaço físico indicado para as aulas de Artes Visuais ESPAÇO FÍSICO PROFESSORES Sala de aula normal 100% Oficina de arte 5% Pátio 5% Auditório / Ginásio - Saguão - Refeitório - Outro Fonte: Elaboração própria. O número percentual de informantes ultrapassa os 100%, uma vez que alguns professores indicaram mais de uma alternativa. Destaco, aqui, um aspecto que merece atenção: se a média de alunos em uma sala de aula varia entre 25 e 30 alunos e as aulas de Artes Visuais são em sua maioria de 45 minutos, exceto para as raras ditas dobradinhas, como os professores podem propor aos seus alunos trabalhos que exijam domínio de espaço visual para além de uma folha de ofício tamanho A4 e o uso de tintas? Penso que, nesse espaço físico, as professoras sobrevivem com o que têm e podem fazer, enfrentando a ausência das condições mínimas, e os alunos, por sua vez, ficam restritos em suas experiências e produções visuais. Quando ao planejamento das aulas, todos os professores indicam que a realização dessa atividade ocorre individualmente, e apenas uma professora responde que, algumas vezes, discute o planejamento das atividades com outras colegas. A freqüência com que os professores realizam o planejamento de suas aulas apresenta-se de forma variada, conforme mostra a Tabela 12. Tabela 12 – Freqüência no planejamento das aulas pelos professores FREQÜÊNCIA DO PLANEJAMENTO PROFESSORES Diariamente 2,5% Semanalmente 2,5% No início do período letivo 80,0% Semestralmente - Por unidades de ensino 15,0% Esporadicamente - Não planeja suas aulas Fonte: Elaboração própria. 140 Fica evidente, aqui, que a maioria dos professores – 80 % - planeja suas aulas no início do período letivo e 15% faz seu planejamento por unidades de ensino. Apenas uma professora planeja suas aulas diariamente, a que tem a carga horária de 20 horas semanais. E, também, uma professora organiza suas atividades de ensino semanalmente. A utilização do livro didático como auxiliar na preparação das aulas não é a opção de 90% dos professores, 10% usam pouco e, apenas, duas professoras utilizam o livro didático com muita freqüência, uma delas frisa que usa, principalmente, aqueles que possuem imagens de obras de arte. Com relação à forma como se dá a escolha do livro didático apenas duas professoras responderam à questão – aquelas que o utilizam com freqüência. Essas dizem que os livros que usam em sala de aula são comprados por elas, ora indicados por colegas, pela faculdade, ora pela SME, pois a escola não possui livros de arte na biblioteca. Uma professora, ainda, complementa dizendo que muitas vezes adquire livros de vendedores que visitam a escola. A seleção dos conteúdos a serem trabalhados pelos professores é realizada por eles mesmos, pois ao serem solicitados a indicar a influência e ou interferência da coordenação pedagógica na definição desses conteúdos 97,5% das docentes responde que a coordenação não exerce nenhuma influência. Uma professora assinala que a coordenadora exerce pouca influência na seleção dos seus conteúdos de aula. Outra questão diz respeito à influência – ou não – dos Parâmetros Curriculares Nacionais e dos Temas Transversais na preparação das aulas de Arte e 95% assinalam que eles têm pouca contribuição a dar. Apenas duas professoras indicam que utilizam tanto de um quanto de outro, e especificam que os temas Transversais contribuem para as discussões com os alunos sobre Ética, Saúde e Meio Ambiente e com idéias para desenvolver trabalhos práticos. Outra colocação de uma dessas professoras refere-se à possibilidade de encontrar nos temas transversais base para discussões sobre situações cotidianas de sala de aula sobre racismo, saúde e multiculturalismo. É de se pensar até que ponto é válida essa negativa de uso dos PCN’s, pois entendo que eles realmente sinalizam mudanças significativas para o ensino da Arte, proporcionado, sem dúvida, um diálogo mais aprofundado entre Arte e 141 educação e a inserção de um ensino da Arte comprometido com as transformações na concepção de Arte e do ensino dessa Arte. Quero crer que há necessidade de o professor analisar, criticar e selecionar o que é relevante nesse documento para a sua cultura e, principalmente, para os alunos com quem convive, planejando suas aulas em conformidade com as peculiaridades de sua cidade e de sua região. Quando solicitados a indicar os instrumentos avaliativos predominantemente utilizados, os docentes apontam várias possibilidades, porém priorizam as produções artísticas realizadas individualmente ou em grupo e a leitura de imagens como sendo as formas mais utilizadas. Uma professora destaca a prova oral como forma de avaliar seus alunos; duas avaliam também, através de provas descritivas e quatro professoras – 10% – valem-se de provas com consulta. O professor diz avaliar seus alunos apenas através de produções artísticas individuais e, ocasionalmente, faz uso da leitura de imagens quando desenvolve conteúdos da História da Arte (Tabela 13). Tabela 13 - Instrumentos avaliativos utilizados pelos professores INSTRUMENTOS AVALIATIVOS PROFESSORES Provas descritivas 5,0% Provas orais 2,5% Provas com consulta 10,0% Leitura de imagens 100,0% Produções artísticas individuais 100,0% Produções artísticas em grupo 97,5% Outros Fonte: Elaboração própria. O número percentual de informantes ultrapassa os 100%, uma vez que alguns professores indicaram mais de uma alternativa. Percebe-se, aqui, que os instrumentos avaliativos mais usados pelos professores são as produções artísticas individuais e/ou em grupo e a leitura de imagens, que pela informação dos próprios professores é feita, prioritariamente, 142 com base nas obras de artistas, digo isso a partir da indicação do uso do livro didático com obras de arte, dito por eles anteriormente, e da utilização de recursos materiais como de imagens de livros, o que veremos a seguir. Antes, porém, destaco que o processo de avaliação em Arte não é só, e necessariamente, a produção poética do aluno, levando em conta que ensinar Artes Visuais hoje é, também, provocar a interrelação desse fazer com o saber arte e que a leitura de imagens envolve apreciação interpretativa e a contextualização histórica, social, antropológica e/ou estética não só da obra do mundo das artes, mas também da publicidade. Saliento, aqui, uma recomendação bastante significativa dos PCN’s (1997), pois eles orientam que o ensino das Artes Visuais deve articular-se em três eixos: a produção, a fruição e a reflexão, definindo o objeto artístico, no caso as imagens, como produção cultural, documento do imaginário humano, de sua historicidade e de sua diversidade (BRASIL, 1997, p. 45). As imagens não cumprem apenas a função de informar ou ilustrar, mas também de educar e produzir conhecimento (PILLAR, 2002). Entendo que a leitura de imagens realizadas pelos professores, que consideram o fazer artístico, a apreciação estética e a contextualização histórica a partir de obras de Arte, tem servido de base para esse tipo de trabalho, porém só essa leitura não é suficiente para a construção de uma educação artística ideal, formadora da sensibilidade e do senso estético. Considerando as inúmeras possibilidades do trabalho a partir da ampliação do ensino das Artes Plásticas (pintura, escultura, desenho, gravura, arquitetura) para Artes Visuais (fotografia, moda, artes gráficas, cinema, televisão, vídeo, computação, performance, holografia, desenho industrial, arte em computador), os professores são solicitados a indicar os recurso materiais mais utilizados por eles em sala de aula, conforme mostra a Tabela 14. 143 Tabela 14 – Recursos materiais utilizados pelos professores RECURSOS MATERIAIS PROFESSORES Folhas mimeografadas 50,0% Fotocópias 32,5% Slides Sucatas 5,0% 10,0%% Material impresso 12,5% Imagens de livro 100,0% Data-show - Computador - Retro-projetor 5,0% Livro didático 5,0% Jornais e revistas 100,0% Filmes 15,0% Músicas 33,3% Jogos 10,0% Quadro e giz Tintas Lápis de cor, caneta hidrocor, giz de cera e papéis Não utiliza nenhum desses recursos 100,0% 12,5% 100,0% - Fonte: Elaboração própria. O número percentual de informantes ultrapassa os 100%, uma vez que alguns professores indicaram mais de uma alternativa. Perguntados sobre se a escola fornece os materiais que utilizam em sala de aula, 77,5% diz que sim, no entanto salientam que os materiais fornecidos pela escola são os básicos como folhas de ofício, lápis de cor, giz de cera e tintas. Duas professoras dizem que a escola não fornece nenhum tipo de material. O professor diz que uma escola fornece materiais básicos se ele solicitar, já a outra escola em que trabalha não fornece nenhum tipo de material. Na hora de especificar como os professores conseguem outros recursos que não os 144 fornecidos pela escola, todos os professores dizem utilizar seus próprios materiais, principalmente filmes e livros com imagens de obras de Arte. Observando os dados relativos aos recursos materiais utilizados nas aulas de Artes Visuais, entendo que as atividades realizadas pelos alunos privilegiam, como os próprios professores apontam, as produções artísticas individuais ou em grupo e a leitura de imagens, confirmando-se, aqui, essas atividades como as avaliadas pelas professoras. Isto significa que os professores utilizam o material (lápis de cor, caneta hidrocor, giz de cera e papéis) fornecido pela escola, exceto imagens de obras de arte que são trazidas por eles. Registro como significativo o pouco uso da sucata, pois sua utilização, principalmente no final dos anos 80 e durante a década de 90, estava atrelada a uma concepção de ensino laissez-faire, um deixar fazer “qualquer coisa”. Frange (2002) diz que o uso deste “lixo-limpo” seria uma simplista apropriação para grotescas reproduções copistas que nada tem a ver com criação e muito menos com processos inventivos. Com relação a slides e filmes sabemos que sua utilização implica em materiais específicos como projetor de slides e aparelho de televisão e DVD, o que apenas três escolas têm. Se considerarmos o número de escolas – 54 representadas pelos professores que participam desta pesquisa, veremos que a falta de equipamentos é uma realidade que, de certa forma, limita o trabalho do professor de Artes Visuais. Outro destaque que merece atenção é a utilização de folhas mimeografadas por parte de 50% dos professores, uma vez que esse recurso vem sendo descartado por limitar o processo criativo do aluno e levá-lo a uma ação de reprodução – cópia – de modelos pré-estabelecidos. Os professores foram solicitados, ainda nessa questão, a especificar outros recursos por eles utilizados, que não tenham sido listados. Não houve indicação de nenhum outro tipo. Esperava-se que, nesse item, algum dos professores, principalmente os que trabalham nas quatro escolas que possuem laboratório de informática, indicassem o uso de tais laboratórios, considerando as possibilidades de sair do espaço tradicional do ensino da Arte e trabalhar a construção e a manipulação de imagens, de visitar sites tanto de produção e divulgação de imagens da arte através de galerias e museus como de produtos culturais diversos que não apenas os ligados à Arte européia. Isso deixaria o ensino da 145 Arte bem mais próximo do hibridismo cultural. Apenas o professor fez uma anotação dizendo que em uma das escolas onde trabalha está sendo criado o laboratório de informática, nas que a diretora avisou que será prioridade dos professores de Matemática. No entanto, se considerarmos a ampliação da área de atuação do professor em Artes Visuais, atestamos que a escola não fornece condições físicas e materiais para a implementação desse ensino, então ficam as perguntas: como as professoras ensinam Arte? Que Arte ensinam? Como se dá a convivência dos meios eletrônicos com os tradicionais? Como acontece o ensino da Arte que vai do lápis ao mouse? Da imagem estática à imagem em movimento? Será que ainda há o predomínio da livre expressão, aquela que enfatiza o fazer pelo fazer artístico, a emoção como o principal conteúdo da expressão? Quero crer que esses professores, mesmo com as mínimas condições de trabalho, não trabalham a Arte só para acalmar, descansar os alunos ou para ornar a escola, mas sim para estabelecer uma relação entre o fazer e o saber Arte, para apreciar e interpretar imagens tanto do cotidiano quanto de obras de Arte, contextualizandoas com um olhar histórico, social, antropológico e/ou estético. Concordo plenamente com Nóvoa (1992) quando afirma que as escolas deveriam abrir espaços para a história e o projeto pessoal do aluno, unindo saberes e experiências. E digo mais, deveria abrir suas portas para a cultura e a Arte produzida no seu entorno, na comunidade, na região, no mundo, entendendo que trabalhar com a alternância de valores culturais, artísticos e sociais é salutar para o desenvolvimento dos alunos. É preciso que a escola queira um ensino de Arte que vá além do desenho entre quatro paredes, que entenda, também, que o papel da Arte na escola é preparar os alunos para novos modos de percepção amplamente introduzidos pela tecnologia e pela comunicação de massa. Os professores, quando solicitados a indicar os tipos de reuniões que a escola costuma realizar, assinalam todas as apresentadas no questionário. No entanto, na hora de especificar aquelas das quais participam, as indicações mostram-se reduzidas (Tabela 15). Apenas uma professora assinala que participa de todos os tipos de reuniões promovidas pela sua escola. Outra acrescenta que sempre que for convocada e tiver disponibilidade em seu horário. 146 Tabela 15 – Tipos de reunião promovida pela escola das quais os professores participam TIPO DE REUNIÃO PROFESSORES Da comunidade escolar 2,5% Conselhos de Classe 100,0% Administrativas 2,5% Pedagógicas 30,0% Por áreas de estudo 5,0% Com pais 2,5% Outras Fonte: Elaboração própria. Com relação à freqüência com que os professores participam das reuniões, por áreas de estudo, as respostas assinaladas são as seguintes (Tabela 16): Tabela 16 – Freqüência na participação em reuniões por áreas de estudo FREQÜÊNCIA NAS REUNIÕES PROFESSORES Mensal 2,5% Bimensal - Trimestral 10,0% Semestral - Anual - Esporadicamente 90,0% Nunca Fonte: Elaboração própria. Quanto à participação nas reuniões que a escola costuma realizar, os professores – todos sem exceção – participam dos conselhos de classe; já um número bastante reduzido - 30% - participa das reuniões pedagógicas quando elas acontecem e, com relação às reuniões por áreas de estudo, 90% dos professores participam esporadicamente. Como se percebe, a participação das professoras no cotidiano da escola limita-se às aulas, uma vez que a carga horária efetiva em sala de aula corresponde, aproximadamente, à carga horária do contrato de cada um dos professores, como vimos anteriormente. A participação em reuniões que a escola 147 costuma realizar resume-se aos conselhos de classe e às esporádicas reuniões pedagógicas e/ou por áreas de estudo, ora porque elas não acontecem, ora porque os professores cumprem quase toda a carga horária em sala de aula. Entendo que a escola existe à medida que seus ocupantes experimentam e interpretam esse espaço e dele se apropriam, atribuindo significado e valores. A escola caracteriza-se pelo seu trabalho coletivo que perpassa todas as ações do seu cotidiano, seja na sua forma de organização e de gestão, seja na constituição dos sistemas curriculares, seja na convivência entre todos os segmentos da comunidade escolar. A escola tem em sua estrutura um corpo de princípios e valores dados pelo sistema educacional, por meio de leis, decretos e papéis formalmente estabelecidos, e outro corpo de princípios e valores construídos e reelaborados no seu interior, pelos participantes do processo educacional. Temos, assim, a cultura da escola como um mundo humanamente construído, mundo das instituições e dos signos no qual, desde a sua origem, se banha o indivíduo humano, e a cultura escolar como um conjunto de saberes que compõe a base de conhecimentos sobre o qual trabalham os professores e alunos. A compreensão da cultura da escola como um processo dinâmico e negociado entre os diferentes participantes do processo pedagógico permite uma compreensão mais aprofundada da contribuição de tais pessoas na construção dos valores, crenças e princípios, assim como nas ações que se processam na realidade cotidiana da escola. É, portanto, significativa a presença dos professores e suas práticas no cotidiano da escola, uma presença para além da sala de aula. Daí, então, fica a dúvida: como e quando as professoras participam da vida da escola? Outra questão abordada no questionário diz respeito à participação no Projeto Político Pedagógico da escola; apenas uma professora responde que teve uma participação bastante ativa. Isto significa que 97,5% dos professores afirmam que não participaram da construção desse projeto. Considero que pensar um projeto de educação implica pensar o tipo e qualidade de escola, e vou mais longe, digo que concepção de homem e de sociedade que se pretende construir. O projeto de uma escola só pode ser pensado por quem está dentro da escola e é impossível pensar em mudanças a partir daqueles que não estão diretamente ligados à realidade de cada escola. Alunos, professores, comunidades, não podem figurar apenas nos papéis e nas propostas, devem fazer parte do sistema 148 de reformulação do pensar a educação e a escola. Entendo que o Projeto Político Pedagógico das escolas dessas professoras não sinaliza ações para o ensino das Artes Visuais, uma vez que, por indicação dos próprios professores, todos eles realizam o planejam sozinhos suas aulas e apenas uma professora responde que, algumas vezes, discute o planejamento das atividades com outras colegas. Portanto, os professores têm autonomia para a seleção do que pretendem – ou não - trabalhar em sala de aula. Por fim, os professores foram solicitados a indicar as atividades de formação continuada das quais participaram no último ano, e somente 10% indica cursos de curta duração. Outras atividades assinaladas por duas professoras são palestras e seminários. Como fatores de impedimento para participar de atividades de formação destacam-se falta de disponibilidade pessoal, horários inadequados, temas sem interesse e falta de recursos financeiros (Tabela 17). Tabela 17 – Fatores de impedimento para formação continuada FATORES Falta de liberação da escola para esse tipo de atividade PROFESSORES - Falta de disponibilidade pessoal 90% Horários inadequados 85% Falta de recursos financeiros 65% Temas sem interesse 75% Fonte: Elaboração própria. O número percentual de informantes ultrapassa os 100%, uma vez que alguns professores indicaram mais de uma alternativa. Nesse momento faz-se necessário destacar dois aspectos: o primeiro é a ampliação na área de Artes Visuais e, como conseqüência, mudanças no seu ensino e, o segundo, o tipo de formação recebida pelos professores. Considerando esses fatores, percebe-se que 60% dos professores têm sua habilitação em artes plásticas no período que compreende os anos de 1983 a 1998, no qual a única alteração foi a eliminação do caráter polivalente na estrutura curricular. 40% são habilitados em Artes Visuais, a partir de 1999, num curso cuja estrutura curricular adequou-se às novas exigências legais, sem, no entanto, inovar em suas linhas conceituais. Era o início da caminhada de 149 transformações, marcadamente acentuadas na virada desse nosso século. Sendo assim, pode-se dizer que cursos de formação continuada são necessários a esse grupo de professores. Por outro lado, destaca-se que, como vimos anteriormente, os professores, com quase toda a carga horária em sala de aula, atuando em sua maioria nos turnos da manhã e tarde, algumas inclusive à noite, e numa diversidade enorme de níveis de ensino, não têm disponibilidade de realizar cursos de atualização e, de certa forma, apontam também que os horários dos cursos são inadequados e os temas sem interesse. Há, também, falta de disponibilidade pessoal e de recursos financeiros. As questões relativas ao processo de trabalho apontam para professores extremamente envolvidos com as atividades de sala de aula, atividades essas que exigem responsabilidade e conhecimento adquirido pela experiência. Os professores dedicam quase toda a carga horária em sala de aula, atuando, majoritariamente, em todas as séries do ensino fundamental; três professoras, também, atuam no ensino médio e duas atendem classes de alunos portadores de necessidades especiais. Elas trabalham diuturnamente. O planejamento das aulas para todos os professores é feito individualmente, exceto uma que às vezes discute a proposta de atividades com outras colegas. Esse planejamento para a maioria dos professores é realizado no início do período letivo, enfatizando como atividades propostas para os alunos produções artísticas individuais e/ou em grupos e leitura de imagens, atividades pelas quais os alunos também são avaliados. Os livros mais utilizados pelos professores são aqueles que possuem imagens de obras de Arte. As aulas de Artes Visuais acontecem, de acordo com todos as professores, em salas de aula normal, pois lugar próprio para produções artísticas apenas uma professora tem e para a concretização de suas propostas artísticas a escola fornece os recursos materiais básicos. Todo e qualquer outro recurso como imagens, filmes pertencem ao acervo particular das professoras. Assim, tal como já dito, como o trabalho em sala de aula desses professores é muito intenso, pouco tempo resta para participar das reuniões promovidas pela escola e de atividades de formação continuada, apenas quando possível eles freqüentam cursos de curta duração. 150 • Dificuldades encontradas para ensinar arte e sugestões para a melhoria do ensino da Arte Os professores apontam como principais entraves para a realização de um ensino da Arte de melhor qualidade a falta de livros didáticos na escola, a necessidade de um espaço físico adequado e, ainda, a desvalorização da Arte como área de conhecimento por parte dos alunos e da escola. Questões recorrentes aparecem como entraves para um ensino das Artes Visuais de melhor qualidade. Parece-me que os professores continuam enfrentando os mesmos problemas ao longo dos anos, pois quando realizei minha primeira investigação, em 1991, com professores tanto da rede municipal quanto da estadual, uma das dificuldades apontadas era a falta de um espaço físico para desenvolver as aulas. Outro estudo, realizado em 2004/2005 com professores da rede pública, também enfatiza a falta de espaço adequado como um dos principais entraves para o ensino. A falta de livros didáticos na escola e de livros com imagens de obras de Arte são problemas comuns nas investigações. A falta de recursos materiais básicos como papel, lápis de cor e giz de cera apenas nas duas primeiras investigações aparecem como um problema para as professoras, pois o grupo de docentes desta pesquisa tem esse material disponibilizado pelas escolas. Outro aspecto que merece atenção diz respeito à desvalorização da Arte por parte dos alunos, fato comum nos três estudos. E mais uma vez, é preciso pensar no lugar que o ensino da Arte ocupa no currículo da escola, pois para Tourinho (2002) a hierarquia do conhecimento escolar - explícita ou implicitamente - vem mantendo ao longo dos anos o ensino da Arte numa escala inferior, o que de certa forma acredito refletir-se no nível de interesse dos alunos por esse conhecimento. Por outro lado, vale destacar que o ensino da Arte precisa ser significativo para o aluno e aí concordo com Barbosa (2002) quando diz que esse ensino deve ser tratado como um conhecimento e não somente como um “grito da alma”, porque na verdade esse é um ensino que não educa nem no sentido cognitivo, nem no sentido emocional. Para mim um ensino que não educa não acontece. 151 A condição social do aluno é, também, um entrave para o desenvolvimento de um ensino da Arte de melhor qualidade, conforme uma professora. Sua escrita nos revela que: Para expressar meu pior momento como educadora, sinto muito em dizer, que, o principal entrave é no que diz respeito à minha ação e à possível compreensão do aluno, se dá pelas péssimas condições sociais, as quais a maioria de meus alunos está submetida. São alunos de uma zona muito carente, que pensam em merenda, e na falta da alimentação, no caos familiar que estão inseridos e na violência, o tempo todo. Frente a essa realidade fica muito difícil, tornar interessante – por maior que seja meu esforço – uma aula de história da Arte ou uma aula prática sobre produção artística. O aluno que passa fome e é maltratado não consegue “ver” o que insisto em mostrar-lhe. As condições sociais interferem brutalmente nas relações de ensino aprendizagem sem dúvida nenhuma. É de se questionar, no momento, até que ponto essa realidade da história da Arte tem significado para esse aluno de um mundo tão diferente? Esboça-se aqui, para mim, um dos grandes desafios – hoje - do professor de Artes Visuais: ensinar em consonância com a realidade do aluno. Entendo que pouco importa se a imagem é de Picasso, de Monet ou de uma propaganda da mídia, o que interessa é que os alunos possam perceber como o homem e a mulher, em tempos e lugares diferentes puderam - e podem - falar de seus sonhos e desejos, de sua cultura, de sua realidade e de suas esperanças e desesperanças (MARTINS, 2002). Como sugestões, os professores destacam a necessidade de cursos de atualização mais voltados para a realidade do aluno e da escola e, também, maior compromisso da universidade com a formação continuada. Há, ainda, a reivindicação para o aumento da carga horária da aula de Arte, geralmente de 45 minutos semanais. Destaca-se, por fim, outro registro da mesma professora: A melhoria do ensino passa por uma melhoria na vida como um todo, principalmente de parcelas da sociedade totalmente desassistidas pelo Estado. A realidade escolar é sufocante, e muitas vezes frustrante. Sem dúvida, a melhoria no ensino da Arte, acontece quando conseguimos aliar, recursos didáticos e humanos, com objetivos claros e de interesse mútuo. Ensinar a Arte não é difícil quando se tem domínio e responsabilidade, o difícil é fazer acontecer em situações sociais precárias. 152 Imagens percebidas O professor e sua formação é um tema recorrente no âmbito da pesquisa educacional e mais uma vez é tema de mais uma pesquisa. No entanto, pretendo, tal como Monet, pensar que o tema é coisa secundária, pois o que ele queria mesmo era reproduzir as relações entre o tema, ele e a realidade e eu quero entender as relações entre eu, os professores e a realidade deles. Monet à luz do sol, eu à luz da teoria. Para Monet a impressão de cada momento, fosse pela luz do sol, pelos reflexos ou pelo vento, era o que importava, buscava sempre mutações coloridas com sua luminosidade. Eu também busco mutações coloridas com toda a sua luminosidade possível nas trajetórias profissionais dos professores de Artes Visuais, não com tintas e pincéis, mas pela voz do professor que ouvi, para dela extrair considerações que me permitam compreender o entrelaçamento de suas histórias e seus itinerários em diferentes espaços e tempos de sua vida pessoal e de sua prática docente. Neste momento, minha intenção é registrar as imagens delineadas por respostas dadas, por um simples gesto de marcar numa folha de papel, o que não significa que essas imagens não sejam reais, são apenas pouco nítidas porque não são individualizadas. Procurei, com esse grupo de professores em exercício na área de Artes Visuais, traçar uma imagem geral, queria conhecer características e expectativas formativas comuns no coletivo. Então, o que vi? Um grupo de professores, mulheres na maioria, que fez uma opção pessoal pela docência. Desse grupo apenas o professor não pretendia seguir a carreira docente. As professoras se sentem gratificadas com o trabalho que exercem e acreditam, ainda, na educação; o professor, por sua vez, pretende num futuro próximo mudar de profissão. Essas professoras e o professor são, extremamente, envolvidos com as atividades de sala de aula, atividades essas que exigem responsabilidade e conhecimento adquirido pela experiência. Já para o professor essa atividade o fundamental é o domínio dos conteúdos de Artes Visuais. É um grupo solitário de professores, planejam suas aulas individualmente e participam pouco da vida da escola. 153 As aulas de Artes Visuais dos professores acontecem entre quatro paredes, resumem-se a uma simples sala de aula. Nesse espaço físico as professoras sobrevivem com o que têm e podem fazer, enfrentam a ausência das condições mínimas, e os alunos, por sua vez, ficam restritos a uma folha de ofício tamanho A4 nas suas experiências e produções visuais. Para ampliar a percepção visual de seus alunos recorrem a materiais próprios, se eles não têm os alunos não vêem. A escola também não tem. Para ensinar Artes Visuais hoje, endosso o pensamento de Coutinho (2006), segundo o qual o professor precisa sair da sala de aula e interagir com os espaços culturais, museus, bibliotecas e outras instituições que produzem bens artísticos e culturais. É um professor que precisa estar conectado às redes de informação, enfim, precisa estar conectado com o seu tempo. Defino, então, quatro grandes momentos de enfrentamento para esse professor de hoje: a questão, o perigo, a tarefa e o desafio. A questão é pensar se a seleção dos conteúdos está dando conta das imagens divulgadas pela televisão, pela publicidade e por outros meios que usam a imagem para comunicar. O perigo é não repensar constantemente as concepções de educação, de escola, de Arte e de ensino da Arte, pois o que está sendo colocado talvez não resista às exigências do que está por vir. O desafio é qualificar novas propostas do ensino das Artes Visuais numa relação com o cotidiano do aluno. Por fim, entendo que a grande tarefa é estar sempre em contato com a produção de imagens, do passado e atual, e atento às imagens consumidas por nossos alunos, resgatando na cultura da imagem o que é relevante para a formação do aluno em sintonia com o seu tempo. E a escola, por sua vez, precisa abrir suas portas e acolher as produções artísticas e culturais da sua comunidade e de outros lugares e de outras épocas. Como trabalham muito, os professores têm pouco tempo para participar das reuniões da escola e de atividades de formação continuada. Esses professores estão sempre muito atarefados e muitíssimo apressados. Com base nessas imagens delineadas, surgem algumas aproximações cristalizadas pelo tempo e algumas constatações provocadas pelo tempo. Primeiramente, destaco situações que permanecem inalteradas apesar do tempo: uma pesquisa realizada em 1991, dezesseis anos atrás, com professores 154 de Arte da rede municipal e estadual, em 2004/2005 outra e, agora, entro em contato com outro grupo de professores. Ao solicitar, em todas as três investigações, a indicação das dificuldades encontradas para ensinar Arte e sugestões para a melhoria do seu ensino, encontro as mesmas respostas: a falta de livros didáticos, a necessidade de um espaço físico adequado e, ainda a desvalorização da Arte como área de conhecimento por parte dos alunos e da escola. E como sugestões, também, as mesmas: a necessidade de cursos de atualização mais voltados para a realidade do aluno e da escola e, também, maior compromisso da universidade com a formação continuada e talvez por isso – e devido a isso – não haja indícios de mudanças tão significativas no ensino das Artes Visuais desses professores. Há muito que pensar sobre isso! Agora, registro minhas constatações provocadas pelo tempo e pelos fatos. Os professores têm sua formação acadêmica realizada no período de 1983 a 2002, o que significa um grupo de professores com formação diversificada, ora polivalente, ora sem polivalência; ora habilitados em Artes Plásticas, ora em Artes Visuais. No entanto, a ampliação na formação de professores para atuar em todos os níveis de ensino fundamental e médio e para entender e atender os vários contextos da Arte e suas relações com a multiculturalidade e com a cultura visual ocorreu com a reformulação de 2004, não atingindo o grupo de professores que participa desta pesquisa. Se esses professores não possuem uma formação ampliada em Artes Visuais, quase não freqüentam atividades de educação continuada, ignoram a contribuição de documentos legais que sinalizam possibilidades de ampliar e aprofundar o foco do ensino da Arte nas escolas e a preocupação dos professores ainda esta voltada somente para a produção dos alunos, cria-se, aqui, um impasse: como, então, os professores atualizam seu ensino? Quero crer que em geral os mentores e ministrantes de programas ou cursos de formação continuada visam a mudanças nas concepções e nas práticas dos professores, oferecendo informações, conteúdos que, provavelmente, a partir do domínio de novos conhecimentos, produzirão mudanças em posturas e formas de agir. No entanto, chamo a atenção para o fato de que esses profissionais são pessoas integradas a grupos sociais de referência nos quais se gestam concepções de educação, de modos de ser, que se constituem em representações e valores que 155 filtram os conhecimentos que lhes chegam. Os conhecimentos adquirem sentido ou não, são aceitos ou não, incorporados ou não, em função da trajetória não só profissional desse professor, mas também pessoal. Assim sendo, pergunto? O professor pode atualizar-se sozinho? Minha hipótese inicial parte do pressuposto de que uma mudança nas concepções de ensino e aprendizagem em Artes Visuais dos professores poderia ser obtida se esses professores, eles próprios, fossem capazes de buscar atualização. No momento seguinte apresento, através da voz dos professores, os eventos e experiências, passados e presentes, em casa, na rua, na escola, na universidade, que configuram a vida e a carreira e suas expectativas acerca do futuro, ou seja, acontecimentos histórico-sociais que fazem desse professor uma pessoa total. Os processos formativos dos e nos professores determinam, também, as práticas cotidianas em sala de aula e as experiências decorrentes das continuidades e descontinuidades durante a construção e a (re)construção da trajetória individual de cada professor. Só ele sabe de si, das relações que estabeleceu com o seu processo formativo e com as aprendizagens que construiu ao longo da vida. DE ONDE VÊM? QUEM SÃO? PARA ONDE VÃO? O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente. Mário Quintana Paul Gauguin53, na busca de um mundo primitivo nas sociedades esquecidas nos trópicos, vai para o Taiti, minúsculo arquipélago perdido nas imensidões do Oceano Pacífico, e pinta o que ele chamou a visão do paraíso, visão essa denominada De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos? E por mim selecionada para ser minha Imagem Viajante nº7. Nessa obra o artista retrata, da direita para esquerda, a evolução da vida humana, aparecendo primeiramente uma criança no canto, depois um adulto ao meio em contato com o conhecimento e, por fim, no outro extremo, uma velha anciã. É, exatamente, o representar a trajetória da vida humana que me inspirou a escolha da obra, pois entendo que tal como o artista pretendo retratar, só que através de narrativas, a trajetória pessoal e profissional de um grupo de professores, ou seja, registrar a problemática da profissão docente, a partir do estudo do ciclo de vida profissional com base nas fases da carreira docente. Registro, assim, o ciclo vital pelo qual passa o professor, destacando aspectos Eugène-Henri-Paul Gauguin (1848-1903) foi um pintor francês do pós-impressionismo. O termo pós-impressionismo foi utilizado no final do impressionismo, por volta de 1885, para designar a obra de grandes artistas da Europa Ocidental, sem qualquer ligação estilística entre eles, que evoluem a partir das conquistas do Impressionismo para encontrar novos caminhos para a pintura. Esse termo tem sido usado para definir especificamente a obra de artistas, além de Gauguin,como Van Gogh (1853-1890) e Cèzanne (1839-1906) (CUNHA, 2005, p. 268). 53 157 significativos da história pessoal e da trajetória profissional para uma melhor compreensão da pessoa do professor e, como conseqüência, de sua atuação docente. Ciclos de vida dos professores Os professores entrevistados54 representam cada uma das etapas de transformação do curso de licenciatura e diferentes fases da carreira docente. Nessa perspectiva, para a presente etapa do trabalho, tomo o subgrupo constituído de sete docentes, seis professoras e um professor, como base para o estudo do ciclo de vida profissional dos docentes de Artes Visuais. A imagem predominante no grupo é a da professora, uma vez que a maioria é do sexo feminino, apenas um professor do sexo masculino, com idades que variam entre 30 e 51 anos, sendo a maioria delas casada, apenas uma, divorciada e o professor, solteiro. Todos estudaram todos os níveis de ensino em instituições públicas. A maioria das professoras fez o ensino médio em cursos de magistério nas escolas públicas da cidade. Uma professora teve formação no nível médio no ensino técnico profissionalizante e outra em uma instituição federal. O professor iniciou o ensino médio em uma escola técnica federal e concluiu esse nível de ensino em uma escola municipal. Todos os professores são formados, em nível superior, pelo IAD/UFPel, concluindo seus cursos entre 1985 e 2002. O tempo de docência desse grupo de professores varia entre 6 e 21 anos. Neste momento, através das entrevistas biográfico-narrativas, apresento “a voz” dos professores, seus relatos de vida e experiências, que tornam públicos seus interesses, percepções, dúvidas, circunstâncias que influenciam, significativamente, ser o que são e agir como agem. Esse estudo sobre os ciclos de vida dos professores permitiu-me a explicitação das dimensões do passado que pesam sobre as situações atuais e sua projeção em formas desejáveis de ação. Destaco, também, a importância de compreender os ciclos de vida, através do entrecruzamento das histórias pessoais e das trajetórias profissionais dos 54 Os critérios para a seleção do subgrupo estão discriminados no capítulo deste trabalho intitulado “O caminho se faz caminhando. 158 professores em diferentes espaços e tempos da prática docente e suas implicações no ensino das Artes Visuais, para, então, incentivar propostas de inovação. A trajetória biográfico-narrativa dos professores compreende aspectos relativos à escolarização; escolha da profissão com seus fatores determinantes e expectativas; a trajetória acadêmica com suas influências, lembranças e formação prática de ensino; a carreira docente com seus primeiros anos, o exercício da profissão e se o fato de ser mulher/homem afetou ou não a carreira. Por fim, os professores falam da escola onde exercem a docência, destacando a história pessoal vivida na instituição, bem como o grau de satisfação com essa escola e o momento profissional em que se encontram. • A escolarização As primeiras lembranças solicitadas aos professores estão relacionadas com experiências vividas na infância, como momentos significativos da escola e como transcorreu a escolaridade e influência de professores. Tal como Cora Coralina e a sua Mestra Silvina, a Professora Ana lembra com carinho da professora que a alfabetizou, pois esse foi o momento que ocorreu o “estalo da alfabetização” como ela própria diz. As lembranças sobre a sua primeira professora são assim relatadas: A professora Iva conversando com minha mãe disse que só ouvia minha voz em sala de aula quando eu respondia a chamada; que eu era um “sabonetinho” por estar sempre perfumada e que seria maravilhoso se todos meus outros três irmãos tivessem a mesma facilidade que eu para a alfabetização (a professora Iva alfabetizou nós quatro, sou a caçula de quatro irmãos). Sobre o processo de alfabetização as Professoras Maria e Eduarda contam que Fui alfabetizada em casa. Minha primeira professora foi minha irmã mais velha. Nove anos a mais que eu, ela me ensinava tudo, com o giz da escola, nas portas dos roupeiros de nossa mãe, me alfabetizou. Minha primeira série foi sem muitos atrativos, encher as linhas e o “aeiou” para mim não significavam nada, pois já dominava muito disso tudo. A partir da segunda série é que tudo começou a ficar interessante (Professora Maria). 159 Minha infância foi intimamente ligada à escola, pois sempre morei em prédios de escolas, meu pai era professor de zona rural. Minha escolaridade inicial foi tranqüila, meu pai foi meu professor até a 5ª série (Professora Eduarda). Outras lembranças importantes para a Professora Ana foram os desfiles de 7 de Setembro, pois para ela “o coração batia forte e dava um friozinho na barriga”; e a visita, com toda a turma, na casa da professora para ver TV colorida e um passeio com toda turma numa fábrica de bolachas. Suas boas lembranças de professores não se resumem só à Professora Iva, ela descreve outros, lembrando seus nomes e dentre eles a Profª Alda que contava a História como se estivesse contando um caso que aconteceu ontem, a professora diz que “seus olhos vibravam com os acontecimentos e ela gesticulava muito, falava com as mãos e o corpo”, ou o Prof. Benedito que, em sua opinião, era um “coringão”, como ela explica: Montou o coral da escola (óbvio que eu me infiltrei para não precisar ficar em sala de aula), montou um grupo teatral que eu também era da expressão corporal da peça “O pequeno Príncipe” e ainda administrava junto ao pároco a 1ª comunhão dos alunos da escola. A primeira e última vez que me “confessei” na vida foi com ele. Tenho até foto. Uma mistura de produtor cultural com padre. Uma figura. Surge, ainda, na lembrança, a Profª Cleci, que em “nada favorecia. Era professora de Matemática, gorda, mal humorada e gritava muito. Diziam que era solteirona. Percebia que um professor não poderia ser assim. Não funciona”. Para a Professora Maria suas lembranças recaem na professora que proporcionou sua primeira experiência de teatro, como ela nos conta: Quando estava na quarta-série tive minha primeira e única experiência de teatro na escola. Foi maravilhosa, a professora definiu os papéis e fui a “Bela Adormecida”, era uma história narrada. Foi muito importante. Às vezes digo que, fui a “Bela Adormecida” muito tempo, depois de transitar por outras profissões, certo dia ao acordar me vi professora, descobrindo assim meu verdadeiro destino, do qual tenho muito orgulho. As lembranças relatadas até o momento estão muito ligadas à figura do professor. Outra professora, no entanto, aponta para um fato ocorrido em sua casa e muito marcante na sua infância. O tal acontecimento é descrito da seguinte forma: 160 Tudo normal, mas tem uma coisa que me marcou muito, foi em relação a uma prima que desenhava muito bem, e quando cheguei em casa feliz com um trabalho de Arte para fazer a minha mãe me cortou e disse que minha prima faria muito melhor, mas superei e me tornei professora de Artes (Professora Diva). A Professora Silvia não destaca nenhum acontecimento especial, apenas relata o significado da escola, para ela: Minha experiência em escola pública foi como qualquer criança pobre, na minha época a minha mãe pagava mensalidade, assim como os colegas, uniforme e livros eram comprados pela família e a escola era muito significativa e valorizada. Para o Professor Paulo são pouquíssimas as lembranças do período relativo à educação básica, sentia-se um estranho por ser o único menino na sala e ter outros interesses que não os propostos em sala de aula. Esse professor faz assim seu relato: Nunca fui a maioria, sempre tive um gosto diferente pelas coisas, era o único garoto da sala que preferia a biblioteca ou as aulas de Artes ao futebol, gostava de brincar de imaginar mundos alternativos onde poderia ser qualquer coisa ou qualquer um e adorava escutar música, muita música, como é até hoje. Tenho pouquíssimas lembranças do período relativo à minha educação básica, o pouco que consigo recordar é o sentimento de estar sendo obrigado a fazer algo de que eu não gostava nenhum pouco, mas todos diziam que era para o meu bem e que eu tinha de fazer aquilo. Esse sentimento de obrigação só foi se dissipar na faculdade, onde encontrei pessoas com os mesmo interesses, onde se podia falar, debater, aprender e até mesmo questionar, discutir, discordar sobre artistas, visionários e acima de tudo – apaixonados. A Professora Jenice não tem lembranças de seus primeiros anos na escola, porém Só lembro que tocava acordeom nas festas juninas para o grupo dançar e de apresentações cantando com um colega. Lembro de um grito de uma professora comigo. Não lembro mais nada, só a partir da 5ª série primária. Essa professora, no entanto, diz o que não gostava na escola, suas lembranças são de algumas amizades, alguns professores, mas uma professora deixou marcas positivas, como ela própria diz a seguir: 161 Odiava as aulas de História no ginásio. Odiava ter que jogar handebol na Escola Técnica no 2º grau. Odiava gincanas nas festas juninas. As lembranças boas foram algumas amizades, alguns professores. A Professora Eni Zambrano no 2º grau. A imagem da escola revelada pelos professores está intimamente ligada à figura do professor. Suas falas revelam a importância das marcas deixadas pelos seus professores que, na verdade, são referências em suas vidas porque estão relacionadas às representações e sentimentos construídos no interior da escola. Sabe-se que a escola tem características próprias, uma cultura que perpassa todas as ações de seu cotidiano, seja na organização e na gestão, seja na constituição dos sistemas curriculares, porém destaco como significativa para o entendimento dessa cultura escolar a presença dos professores com suas práticas e seus discursos, já que esses constituem aspectos fundamentais para os processos de transmissão de saberes e de valores dentro da escola. Evidencia-se, também, nas falas dos professores, a singularidade das trajetórias individuais de escolarização, reafirmando a especificidade do percurso de cada um dos professores na apreensão de vivências na família e na escola. Isto, na percepção de Souza (2006), é o que ele chama de “experiências formadoras” em diferentes tempos e espaços de convivência revelados pela memória e pela história de vida de cada indivíduo. Josso (2004) explica muito claramente o conceito de experiência formadora, quando diz que essa envolve uma articulação consciente elaborada, atividade, sensibilidade, afetividade e ideação, articulação que se concretiza numa representação e numa competência. As práticas vividas na família, na escola, nas brincadeiras e nas mais diferentes convivências vão construindo a dimensão pessoal do indivíduo; quero com isso dizer que, segundo Bolivar (2002), essa dimensão pessoal exerce um papel preponderante para que o professor, posteriormente, construa e dinamize seu trabalho docente. • A escolha da profissão Para falar sobre a escolha da profissão, os sujeitos foram inicialmente solicitados a falar sobre os fatores e influências que contribuíram nessa escolha, 162 como, por exemplo, família, professores, colegas, amigos, disciplinas, instituição de ensino e nível econômico familiar. Entendo que a escolha da profissão se dá através de diversos caminhos, são vários os motivos que determinam as escolhas que fazemos em nossa trajetória pessoal e profissional. Tais escolhas não ocorrem ao acaso, elas são resultados de ponderações sobre possibilidades futuras, considerando os objetivos, as necessidades e as expectativas tanto pessoais quanto profissionais. Entendo que as escolhas não são apenas resultado de uma opção individual, mas sim de um conjunto de fatores externos circunstanciais ao indivíduo no momento em que realiza sua escolha. Fatores e influências determinantes Lembranças marcantes de professores e colegas na educação básica a Professora Maria não tem, no entanto, influências dessa natureza ocorreram durante seu curso de graduação. Tal fato é assim descrito por ela: As influências de professores e colegas na minha educação básica, foram mínimas, tenho pouquíssimas recordações de meus professores. Uma rara exceção foi uma professora de música que me mostrou que através da música a escola poderia ser melhor. Na licenciatura com certeza as influências foram extremamente marcantes. Tanto de professores como de colegas. As relações foram mais intensas e, portanto, serviram de base para minha formação. A licenciatura foi um laboratório de experimentos, de vivências que me proporcionou ser professora dedicada, capaz e comprometida com todo o sistema educacional. Acredito que tudo influenciou um pouco em minha formação e atuação profissional, contudo, a influência de meus professores foi determinante para que eu pudesse nortear e identificar os valores que são essências para trabalhar como docente. Os professores afetaram diretamente em minhas escolhas, em minha construção intelectual como um todo. Obviamente que, influências negativas também existiram, essas, porém, são exemplos que ignoro. A Professora Silvia também afirma que “houve professores significativos, principalmente, na área de Português e História na educação básica”. Nessa época ela destaca suas piores lembranças como sendo ”a baixa auto-estima e o peso (acima) corporal; as boas foram a minha escola que estudei mais tempo, o D. João Braga, o antigo 2º Grau, com a auto-estima mais elevada.” 163 Outra que concorda que professores e colegas a influenciaram é a Professora Eduarda, mas destaca o apoio da família, marido e filhos, como fundamentais. Eis suas palavras sobre isso: Ao certo não sei se influência é o termo mais correto, pois acho que na minha trajetória encontrei bons e péssimos colegas e professores, pessoas que me alegram e outras que me deixam triste ao lembrar. Quando comecei o ensino médio e a licenciatura eu já estava bem amadurecida e sabia o que queria e ia em frente. Os obstáculos eu vencia e as coisas ficaram para serem lembradas. Eu tinha que chegar onde eu queria. Para minha carreira tudo influiu. Os conteúdos dados no curso me serviram de caminho. Os professores serviram para me espelhar no que eu poderia ser e no que eu não queria ser. Colegas, felizmente, eu encontrei muitos que me apoiaram de todas as maneiras possíveis, como, por exemplo, a Helenita que me pagava até o ônibus quando eu não tinha passagem e me emprestava os xerox, que não eram poucos, para fazer os trabalhos. Meus filhos, quatro guris, e marido, apesar das dificuldades, sempre me apoiaram e nunca me cobraram o tempo que eu deixava de passar com eles, nem com o que eu deixava de fazer em casa para estudar e as despesas, que por pouco que fosse, sempre saiam do orçamento da semana. Meus irmãos e pai achavam que tudo era bobagem, que eu deveria parar de andar na rua ”perneando” para cuidar dos filhos. Minha sogra, que é bem mais velha, me apoiava muito, minhas cunhadas também me dando roupas e calçados. Vários são os fatores que influenciaram a escolha profissional desse grupo de professores, para a Professora Ana tudo influenciou; além dos professores e colegas, ela cita as matérias estudadas e o ambiente. A influência das matérias foi também muito significativa para a Professora Diva, que destaca os professores de Arte e Matemática como importantes para ela, já que “tinha verdadeira loucura por Artes e Matemática”. A Professora Jenice é categórica ao afirmar que não teve nenhuma influência, foi exatamente e somente seu gosto pelas Artes em geral que a levou a uma formação na área. O Professor Paulo dá um destaque especial ao espaço físico onde estudou sua licenciatura, além das pessoas que ele conviveu, pois para ele: 164 O ambiente como um todo, na verdade os ambientes, pois minha trajetória pela faculdade de Artes começou na antiga Escola de Belas Artes, um prédio do século XIX, com escadarias de mármore e vitrais de tirar o fôlego, onde nos dois primeiros anos da licenciatura podíamos conviver com “os fantasmas do passado” e suas glórias. Já os dois últimos anos tiveram como palco o novo Instituto de Letras e Artes, hoje IAD, um prédio de arquitetura contemporânea, teto abobadado feito de fibras tecnológicas que mais parecia um Shopping Center. Posso dizer que com toda a segurança que o que mais me marcou nessa caminhada por entre mundos, foram as pessoas que trilharam verdadeiramente o caminho e não aqueles que, acreditando possuir bagagem suficiente para encher seus passaportes, somente fingiram caminhar. De acordo com as narrativas, percebe-se que a presença dos professores para a maioria dos entrevistados foi de fundamental importância para todo o grupo, seja como parâmetro do que é ser um bom professor ou de um professor que tenha deixado marcas não muito positivas nas lembranças do grupo. No entanto, reafirma-se que os fatores que determinaram a escolha da profissão dos professores foi resultado de um somatório de fatores externos combinados com as condições subjetivas de cada um deles. A escolha desses professores implicou em uma profissão ligada à Arte a partir de uma relação com as manifestações expressivas vivenciadas na infância, na família e/ou na escola. Opção pela carreira Retornando a questão sobre as razões da opção pela carreira docente a maioria das respostas dos professores indica o “ser professor“ como opção pessoal e duas professoras destacam, ainda, a influência familiar como fator motivador na escolha da profissão. Dois professores, no entanto, diferem do restante do grupo. Um desses é o Professor Paulo que não tinha a intenção de ser professor, mas como ficou excedente no vestibular para o Curso de Design Gráfico optou pela licenciatura por ser a via mais fácil de ingresso no ensino superior; a outra é a Professora Jenice, que se aproxima da situação anterior, porque na verdade desejava ser arquiteta, mas a opção pela licenciatura foi a mais fácil. Convém lembrar, também, o fato de a maioria das professoras terem cursado o magistério no ensino médio, exceto o professor e duas professoras. 165 Com o grupo que participou das entrevistas a situação permanece inalterada daquela encontrada nos dados do questionário, pois os resultados já delineados reforçam a opção pessoal através de suas falas, como podemos ver a seguir: Acho que a escolha foi mais pessoal do que por influência de outros fatores (Professora Silvia). Sempre tive vontade de dar aula, tentei na área de engenharia, mas não gostei muito (Professora Diva). Desde bem jovem quis ser professora. Sempre me senti seduzida pela profissão, pelo ato de poder ensinar e contribuir com a vida das pessoas. Através da educação tudo isso, se torna cada vez mais gratificante para mim. Ser professora foi um sonho que se transformou em realidade e estou tentando dar o máximo de mim enquanto puder. Quando foi chegando perto da idade de definir a profissão, fui percebendo cada vez mais a paixão pela Arte e quando vi que podia associar essa paixão à possibilidade de levá-la para os outros, a licenciatura foi o melhor caminho. Tudo influenciou em uma determinada medida. Tudo contribuiu para minha escolha. A família que sempre apoiou em todas as decisões pesou muito. Depois da escolha, tudo “conspirou” a favor, para que, cada vez mais eu me interessasse pela docência e pelo ensino da Arte (Professora Maria). A influência familiar na escolha da docência foi assim comentada pela Professora Ana: Hoje percebo que a família foi um dos fatores mais determinantes desse momento, mas não posso deixar de citar que o fato de eu ter feito o curso de magistério também influiu em eu aceitar a decisão que no momento minha ex-sogra sugeriu. Disse-me assim: Faz Educação Artística. Tens gosto e habilidade. Optei. A Professora Diva assinalou anteriormente que a carreira docente foi uma opção pessoal, o que se confirma agora, porém ela acrescenta que o auxilio da família foi fundamental, como ela própria explica: Foi o apoio de familiares na hora da troca do curso de engenharia que eu estava detestando no momento, para a Arte, fiquei quase três anos sem estudar até a decisão, neste tempo trabalhei em uma escola (maternal) e lá descobri a vontade de trabalhar com Arte. Os professores que assinalaram no questionário não terem cursado o magistério e que não indicaram a docência como opção pessoal, justificam, por meio das entrevistas, o “ser professor” da seguinte forma: 166 Pela estabilidade e oferta de trabalho (Professora Eduarda). Não escolhi foi por conseqüência. Eu queria entrar na Arquitetura, mas entrei na licenciatura, foi mais fácil, depois ia pedir reopção, mas não pude, acho que não foi permitido. Fui gostando do curso e fiquei (Professora Jenice). Na verdade, minha paixão sempre foi a Arte, em suas muitas áreas de expressão, música, poesia, cinema, pintura, entre tantas outras; logo fazer um curso ligado a essa área foi a única escolha, apesar de a licenciatura ser um campo desconhecido até então. O desejo de aprender as muitas formas de expressão artísticas, pintura, gravura, cerâmica, etc. e a possibilidade de poder aprende a lidar com os diversos materiais envolvidos em seus processos de criação (Professor Paulo). Entendo que a opção pela carreira revela que, por um lado, a decisão da maioria das professoras está atrelada a uma continuidade da formação, no caso o magistério, lembrando que elas próprias dizem ter sido esta uma opção pessoal, um desejo manifesto bem antes do ingresso em um curso de formação de professores. Por outro lado, temos clara a opção de uma professora por ser esta uma profissão que proporciona certa estabilidade e existe mais oferta de trabalho. Já no caso do professor e de outra professora, cuja paixão sempre foi a Arte, reforça-se, aqui, que o curso de licenciatura na área de Arte é uma via mais fácil de ingresso no ensino superior, uma vez que apresenta baixa concorrência. Expectativas pessoais/profissionais As expectativas do grupo são determinadas pelas possibilidades de crescimento pessoal e de formação profissional. Para a Professora Ana suas expectativas ao entrar na academia correspondiam, primeiramente, ao seu crescimento pessoal, uma vez que esse era o local de produção de conhecimento e de fazer novas amizades. A Professora Eduarda, por um bom tempo, pensava apenas na sua realização pessoal, a tomada de consciência do que realmente estava fazendo no curso aconteceu bem mais tarde e é assim explicada por ela: ”na verdade me caiu a “ficha” no 6º semestre, aí eu percebi para onde eu estava trilhando, foi quando eu me conscientizei do peso da profissão que eu tinha 167 escolhido”. Um caso diferente dos demais é o da Professora Jenice que lembra que “não sabia o que queria fazer no futuro, mas sabia que não queria ser professora, não gostava de escolas e continuo não gostando dessa “entidade””. Sua decisão de lecionar aconteceu muito tempo depois, como ela própria conta: No estágio percebi que foi tranqüilo, resolvi trabalhar então. Após formada me descobri criativa, com idéias criando todos os meus trabalhos, gostando do contato com os alunos, mas muito decepcionada com a “entidade”. Acho que a variação da rotina me agradou, cada dia é diferente (Professora Jenice). A Professora Ana entende que a sua formação lhe mostrou caminhos, e que a prática docente gerou novas expectativas. Sua explicação para isso é assim narrada por ela: Quanto às expectativas profissionais, eu pensava que sairia pronta para atuar na sala de aula. Ledo engano. A academia apenas me apontou tópicos para serem aprofundados gerando assim, novas expectativas e novas lutas. A idéia de que o professor se constrói ao longo de sua prática é compartilhada pela Professora Maria, que além de realizar o sonho de ser professora, aponta para a necessidade de continuar aperfeiçoando-se, como nos mostra sua fala: Sem dúvida que muitas expectativas se realizaram na profissão. Dos sonhos de menina a ansiedade da faculdade, muitas metas já foram alcançadas. Muitas outras, ainda, eu pretendo concretizar, pois a docência exige por si só que se tenha o pensamento no futuro. Sinto que para ser professora, preciso manter acesa uma chama que me leve ao aperfeiçoamento e a uma busca incessante de saber mais. Isso na maioria das vezes não é fácil como pode parecer. As frustrações do cotidiano, diante do caos social, muitas vezes, fazem com que o fardo pese muito. Refletir sobre a prática, sobre os acertos e erros é o que sustenta essa busca. Já pela fala da Professora Silvia entende-se que suas expectativas profissionais foram se concretizando com o passar do tempo, no entanto, ela ressalta a interferência nessa trajetória de fatores de ordem pessoal, como ela própria diz: “as expectativas profissionais foram acontecendo ao longo do processo e algumas situações de vida pessoal ocasionaram um novo momento”. 168 A compreensão de que as expectativas geradas pela profissão são resultados de processos, de sonhos futuros, refletem-se nas seguintes falas: Totalmente realizada não estou ainda, estou sempre em busca de algo novo, gosto de estar nesta busca, mas pretendo trabalhar não somente em sala de aula, mas sim em oficinas como no início da minha profissão onde trabalhei no CEFET em um atelier com mães de alunos bolsistas (Professora Diva). Minhas expectativas profissionais nesse momento se voltam em duas direções, uma primeira trabalhar noções de patrimônio e memória cultural no recém inaugurado laboratório de informática da escola onde trabalho, e uma segunda é a possibilidade de entrar no curso de Mestrado em Memória e Patrimônio fornecido pela Universidade Federal de Pelotas (Professor Paulo). Os fatos determinantes para a escolha da profissão apontados pelos professores, como vimos, resultam de um somatório de fatores externos combinados com as condições subjetivas de cada um deles, incluindo as vivências na família e na escola. Na escola destaca-se o professor com figura importante na vida dos entrevistados. Quanto à opção pela carreira docente, prevalece a idéia de que essa decisão foi sendo construída ao longo do tempo, bem anterior à universidade. Até mesmo a Professora Eduarda, que pretendia seguir a carreira no campo do desenho industrial, teve sua infância marcada pelo pai professor da zona rural que a alfabetizou até a 5ª série e pela escola, como ela diz: ”minha infância foi intimamente ligada à escola, pois sempre morei em prédios de escolas”. Considero importante pensar nas razões que lavaram o grupo de professores à docência em Arte, o porquê dessa especificidade que ora são as artes plásticas ou Artes Visuais; ora é o desenho ou desenho e computação gráfica. A relação com a Arte e suas linguagens manifestou-se muito cedo na vida dos professores, como é o caso da Professora Ana que, além de ser filha de uma professora de música, diz que sempre cultivou habilidades artísticas tanto no teatro quanto nas artes plásticas, com o incentivo da família. Outra que teve uma ligação forte e marcante com a Arte, mais precisamente com o Teatro, foi a Professora Maria quando representou a personagem “Bela Adormecida” em uma comemoração na escola e ela lembra, ainda, de uma professora de Música que defendia a idéia de que através da música a escola poderia ser melhor. 169 A Professora Silvia conta que em sua casa teve contato com o desenho, pois seus irmãos desenhavam muito e na escola ela gostava de desenhar, na verdade ela sempre teve contato com pessoas que tinham noção de desenho. Outra relação forte com o desenho é a da Professora Eduarda, tanto que foi fazer no ensino médio um curso de Desenho Industrial. Já o gosto pelo desenho para a Professora Diva data da infância, na época admirava uma prima que desenhava muito bem, e o fato decisivo para ser uma professora de Arte foi quando, ao mostrar um desenho feito por ela na escola, sua mãe disse-lhe que a prima o faria muito melhor. A relação com a Arte e suas manifestações expressivas é, também, para os Professores Paulo e Jenice uma paixão desde criança. Enfim, a Arte e suas linguagens fizeram parte da infância desses professores. • A trajetória acadêmica Considerando a relação com a Arte e com o querer ser professor, a escolha do grupo só poderia recair em um curso de ensino superior na área, e mais, um curso de licenciatura. Esse grupo de professores, graduados entre 1985 e 2002, tem uma formação diferenciada devido às transformações ocorridas na estrutura curricular do curso. Assim sendo, esses professores vivenciaram momentos diferentes em diferentes tempos e espaços o que, de certa forma, se refletem em suas trajetórias acadêmicas. Incluindo aí as influências, as lembranças e a formação prática de ensino. Influências e lembranças do período de formação Com relação às influências recebidas e lembranças do período de formação, as narrativas indicam, de um modo geral, os professores como sendo os exemplos a serem seguidos ou não. As falas, a seguir, são reveladoras: 170 Alguns professores deixaram ótimas lembranças, outros se mostraram descomprometidos com a formação de quem vai atuar na área da educação. Alguns não se dão conta do compromisso que tem na mão. Formar professores é muito sério. Muito! (Professora Ana). Na faculdade encontrei vários professores legais, mas também professores que tem cargo vitalício e não tem competência para exercê-lo, vivem na utopia, fora do contexto. Eu gostaria de vê-los dando aula em uma das turmas que eu dou, daria muita risada e teria pena deles. Professores como o [...] que não leva em conta o conhecimento e vivência do aluno; a [...] que não respeita o aluno como pessoa; o [...] que nunca se achou nos seus conteúdos e avalia o aluno pela cara, acho que ele nem sabe que para avaliar tem que ter critérios bem claros; o [...] que apesar de ser extremamente culto, enrola o aluno com seu discurso e quase não dá conteúdo, mas tira do fundo do baú folhas amareladas para cobrar na prova o que ele não deu. Professores como esses me marcaram negativamente por terem uma prática pedagógica precária, uma porcaria, e ainda menosprezam a inteligência do aluno. Acho que os últimos semestres - 6º,7º e 8 foram o que mais valeram. Minhas professoras preferidas eram a [...] e a [...], gostava tanto que parece que só tive aula com elas, não lembro de mais ninguém (Professora Eduarda). Sem dúvida nenhuma, o que mais me auxiliou na trajetória profissional foi o exemplo de alguns professores que ao invés de ficarem repetindo o velho discurso empoeirado da academia, nos davam noções de como era o mundo real, em se tratando do ensino da Arte e da educação em geral vigente no país, nos preparando para as dificuldades que inevitavelmente enfrentaríamos. As maiores lembranças que tenho dos meus estudos são da oportunidade que tive de poder observar as diversas maneiras de se dar uma aula. Lembro-me dos professores pretensiosos, que não sabiam absolutamente nada sobre o que sua disciplina tratava; aqueles que sabiam muito, mas guardavam o conhecimento apenas para si com medo de que algum aluno roubasse o seu intocado lugar ao sol glorioso que brilha sobre o panteão das Artes e principalmente aqueles que eram tidos como loucos, pois sabiam, pouco ou muito, mas tinham o dom de compartilhar e que me deixaram uma valiosa lição: compartilhar conhecimento é construir saber! (Professor Paulo). As falas acima destacam que as influências positivas e as boas lembranças estão diretamente ligadas aos professores comprometidos com a formação docente e com aqueles que sabiam compartilhar e construir conhecimento. A Professora Maria concorda com a Professora Ana, pois para ela “a influência de professores que valorizam a profissão docente, ajudou de forma concreta no exercício de minha profissão”. E completa dizendo que “os professores ajudaram na medida em que orientavam, que indicavam caminhos, que faziam a discussão acontecer sobre a educação”. 171 Lembranças de disciplinas cursadas e que foram significativas se fizeram presentes nas narrativas, como, por exemplo, o caso da Professora Silvia que gostava de História da Arte e de Expressão Plástica, ou da Professora Diva que também adorava História da Arte e nos conta o seguinte fato: “quando estudei a Arte barroca e depois fiz uma viagem para Belo Horizonte, daí a fixa caiu, foi realizado um sonho do estudo com a realidade ao vivo e a cores.” Essa mesma professora relata que detestava as disciplinas de Expressão Cênica porque, como ela diz, “nunca consegui quebrar a barreira nas aulas de cênica, nunca consegui me soltar, mas atrás dos bastidores tive uma realização”. A Professora Eduarda é outra que gostava muito de História da Arte, mas detestava Estética. Os conteúdos das matérias cursadas “sempre foram motivo de curiosidade e muitas vezes encantamento” para a Professora Maria, já as aulas de Música e todas as de desenhos eram as disciplinas preferidas da Professora Jenice, incluindo, também, História da Arte. As lembranças dessa época relatadas pela Professora Silvia destacam como negativo “as dificuldades financeiras, o estudo durante o dia e sem trabalho e o fato de só o meu marido trabalhar. O lado positivo na faculdade foi o conhecimento e a conclusão dos meus estudos”. A Professora Ana, tal como o Professor Paulo, lembra de algumas aulas, do ambiente onde elas transcorriam e do espaço físico da instituição. Para ela: O espaço físico da minha graduação é uma boa lembrança. Aulas teóricas ao som de flautas desafinadas era motivo de crítica para nós alunos. Hoje tenho saudade dessa impregnação artística dentro dos espaços escolares. As aulas de teatro eram o máximo. Serviu muito para eu aprender a lidar com minhas emoções, a ocupação do espaço dentro da sala de aula enfim. Acredito que todo estudante de licenciatura deveria ter essa experiência (Professora Ana). Como vimos anteriormente, o Professor Paulo descreve os prédios onde aconteciam as aulas da antiga Escola de Belas Artes. Era um prédio do século XIX, com escadarias de mármore e vitrais, onde se podia conviver com “os fantasmas do passado e suas glórias” ou o novo Instituto de Arte e Design, um prédio de arquitetura contemporânea, teto abobadado feito de fibras tecnológicas que mais parecia um Shopping Center”. 172 Formação prática de ensino A formação do professor no curso de licenciatura, independente da época em que foi realizada, envolve um conjunto de disciplinas: as teóricas (saber Arte), as práticas (fazer Arte) e as pedagógicas (saber-fazer pedagógico). Pelos depoimentos é possível perceber que os saberes de formação adquiridos durante a trajetória acadêmica validados pelos professores são aqueles que partem da experiência (TARDIF et alli, 1991). Reforça-se, aqui, mais uma vez, que os professores costumam atribuir aos saberes construídos no exercício do magistério um valor predominante quando questionados sobre a construção de sua competência (ARROYO, 1985a). Isto explica porque os professores, em suas falas, destacam como positivas as disciplinas que, de alguma forma, estão mais próximas dos saberes práticos e daquele saber fazer adquirido na prática. Os professores consideram que a boa formação é aquela que possibilita o conhecimento ampliado da realidade para além dos muros da academia. Para o Professor Paulo se isso acontecesse, alguns transtornos teriam sido evitados. Seu relato diz o seguinte: Acredito que todos os erros ou deslizes cometidos no início da minha docência poderiam ter sido em grande parte evitados, se tivesse tido uma preparação melhor no sentido de discussões a respeito do universo que cerca a escola, como comunidade, família, cultura local, ética... A Professora Diva concorda que a formação poderia estar mais perto da realidade da escola, embora entenda que faltou um pouco de dedicação da sua parte, pois segundo ela “quando a gente sai da faculdade fica pensando que poderia ter sido bem melhor, deveria ter me dedicado muito mais, e que tem uma grande diferença dentro da faculdade para a realidade dentro de uma sala de aula”. A fala da Professora Silvia, a seguir, reforça bem essa idéia: 173 Tanto a parte teórica como a prática tem que “descer” do salto, da alienação, e mergulhar no mundo real, o da sala de aula, das condições mínimas estruturais que temos, dos péssimos salários e como tudo isso vai interferir na nossa vida profissional. Quando fui fazer meu último estágio, na época de 2º grau, disse para a minha orientadora: ”Não sei nada, do que me valeu o curso se não consigo aplicar nesta realidade? A minha vontade é começar tudo de novo.” Hoje penso que talvez tenha sido muito radical, mas em parte continuo pensando a mesma coisa. A Professora Jenice considera sua busca pessoal pelo conhecimento um aspecto importante para sua atuação profissional, dá uma ênfase maior a essa ação individual do que a formação acadêmica propriamente dita. Em sua narrativa ela conta que: Eu sempre segui construindo meu conhecimento. Sou uma pesquisadora, estou sempre aprendendo e buscando novos conhecimentos. Acho que isso deve ser incentivado na formação do professor. Deve ter a base, mas o professor não pode parar, deve acompanhar a evolução e entender que as gerações se modificam e aceitá-las. Todas as professoras, ao responderem o item do questionário sobre as alternativas mais relevantes para o exercício da profissão, indicaram o conhecimento adquiridos pela experiência como sendo o mais importante, exceto o professor que apontou como alternativa principal o domínio dos conteúdos de Arte. A formação prática realizada através de disciplinas que estão mais próximas dos saberes práticos foi muito significativa para os entrevistados. Eis as falas de alguns dos professores: Tive uma formação prática muito boa, pois quando me defrontei com o ensino pela primeira vez me senti segura, pronta. Acho que sempre selecionamos o que nos interessa, muitas informações me foram dadas, todas muito importantes. Acho que a maneira que muitas delas foram dadas é que poderia ser melhor. Minha formação foi muito boa, me preparou para o exercício da minha profissão, o resto é correr atrás (Professora Eduarda). As lembranças da formação prática são muitas e na maioria são maravilhosas. Desde o inicio da graduação fiz estágios, esses então foram muito significativos, e deram uma boa base. Colaboraram para que ao assumir verdadeiramente a titularidade na escola, a expectativa fosse sobre coisas reais. Ao estar pela primeira vez como 174 professora formada em uma escola, tive muita tranqüilidade, tive serenidade, pois já sabia como funcionava o ensino público e as condições em que se davam as aulas de Arte (Professora Maria). Meu período de estágios supervisionados foi o momento em que realmente pude colocar em prática muitos dos conceitos vistos em sala de aula e onde pude constatar também que os ensinamentos mais válidos vieram de alguns professores do nosso Instituto de Artes que aparentemente sabiam muito mais sobre realidade e educação do que os “mestres” da faculdade de educação que passaram semestres a fio delirando sobre um mundo hipotético do qual pouco ou nada sabiam, pois o viam através dos olhos de outros autores e não com os seus próprios. Exemplo lamentável! (Professor Paulo). Na prática profissional tive dificuldade nos primeiros anos com a realidade onde eu fui trabalhar (escolas municipais), eram bem diferentes em recursos materiais umas das outras. O que mais me ajudou foi a minha facilidade de entender e gostar de música, desenho, História da Arte, teatro. Assim eu pude trabalhar conforme a realidade que tenho, sou uma professora polivalente, que tantos condenam, mas eu gosto, sou interdisciplinar (Professora Jenice). Destaca-se a fala da Professora Jenice pelo fato de ter tido uma formação polivalente, por gostar dessa formação e por considerá-la uma forma de diversificar o trabalho em sala de aula. Com base nas narrativas, percebe-se que os professores fazem suas avaliações da formação recebida a partir de vivências pessoais e da atuação docente. Os diferentes olhares – e até mesmo o aparecimento de algumas contradições – dos professores para a formação acadêmica, comprovam a singularidade na vida desses professores na sua qualidade de pessoas. Uma coisa, no entanto, um fato é inegável: todos os professores destacam aspectos positivos da formação que contribuíram na profissão, mas nem por isso deixam de apontar questões que merecem maior atenção, como as que se apresentam a seguir: Acho que fui bem preparada para exercer a profissão, mas a teoria que devemos saber para passar em concurso ficou devendo. Espero que isso tenha mudado. Nunca havia discutido sobre pensadores da educação dentro da faculdade, tive que me virar, ler, arrumar material emprestado, no ILA – hoje IAD - por exemplo, não se discute, sabendo que estão formando profissionais que, na sua maioria, vão para as escolas lidar com crianças e adolescentes (Professora Eduarda). 175 Ficou faltando muita coisa, tanto teórica quanto prática. Saliento uma melhor formação para as séries iniciais e a modalidade EJA que são diferenciados e nem ouvi falar dentro do curso. Não menosprezo minha formação. Muito pelo contrário. Penso que ela foi fundamental, mas tive de correr atrás de muita coisa (Professora Ana). Aprendi a ouvir, a falar, a escrever, a ler, a criticar e a estudar. Contudo, apesar de ter feito um curso de formação de professores, digo que não aprendi a ensinar, isto aprendo todos os dias um pouco mais, cada vez que entro em sala de aula e me encontro com meus alunos, sejam os pequeninos ou os adolescentes da oitava-série (Professora Maria). Vimos que as influências, as lembranças e a avaliação da formação recebida por parte dos professores são, marcadamente, percepções individuais. Podemos, também, afirmar que os docentes do curso de formação tiveram um papel significativo na formação acadêmica dos entrevistados e que a importância atribuída àqueles varia de acordo com os valores e interesses de cada um. Cabe, aqui, salientar que o professor que forma professores é uma pessoa histórica e socialmente contextualizada e que “seu desempenho tem a ver com suas condições e experiências de vida” (CUNHA, 1994, p. 29). Os professores são, sem dúvida, o resultado de suas trajetórias pessoal e profissional. Pensando assim, os professores que formam professores de Artes Visuais construíram – e reconstruíram – suas práticas e o saber/fazer artístico com concepções de e em Arte em diferentes momentos histórico-sociais, tal como os professores por mim entrevistados. A história da (re)construção da trajetória profissional dos professores repete-se, apesar dos diferentes tempos e espaços de formação. Entendo como significativo compreender que a docência em Artes Visuais passa por contextos históricos e conceituais nos quais se insere seu ensino, sofrendo, obviamente, transformações ao longo dos tempos, já que a Arte em si mesma é uma realidade cambiante, e que algumas concepções de Arte e do ensino dessa Arte necessitam ser (re)construídas e revigoradas. • A carreira docente A intenção, aqui, através das falas dos professores, é compreender o percurso de construção da carreira profissional de cada um deles, registrar suas percepções sobre o acesso àa profissão, os primeiros anos de docência e o 176 exercício propriamente dito da docência. Busquei, ainda, entender se o fato de ser mulher/homem afetou a sua carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes. A compreensão do que esse grupo pensa e faz – e fez - da e na sua profissão permitiu a construção dos ciclos de vida de cada um deles. Esse estudo possibilitou aproximar a pessoa e o professor e o entendimento de que opções feitas por cada um dos professores são reveladoras de sua maneira de ser e de sua maneira de ensinar, que juntas fazem do professor o que ele é quando ensina. Uma vez explicitadas as questões relativas à carreira docente, a ênfase recai nas fases pelas quais passam os professores durante a trajetória profissional, considerando essas fases a partir do tempo de atuação na profissão. Acesso à profissão A forma pela qual todos os professores chegaram à profissão deu-se através de concurso público. A atuação de duas professoras em escolas particulares aconteceu uma por seleção e a outra por indicação de pessoas conhecidas que já tinham trabalhado nas instituições; uma delas ainda continua lecionando na escola particular, a outra se demitiu tão logo foi nomeada pelo Estado. Ficou evidente, anteriormente, que a maioria das professoras escolheu o curso de licenciatura por opção pessoal, prevalecendo a idéia de que essa decisão foi sendo construída ao longo do tempo, bem anterior à universidade, exceto para três professores: uma fez sua escolha na busca de estabilidade financeira, o professor e outra professora fizeram sua escolha por ser o curso de licenciatura mais fácil de ingresso no ensino superior. Registro, novamente, que esses dois professores acabaram gostando do curso e aceitando a idéia, antes não imaginada, de ser professor. Retomando a entrevista na questão da opção pela carreira e fatos que contribuíram para essa escolha, os professores reiteram suas posições anteriores, mas outras evidências - percepções mais aguçadas da profissão 177 docente - começam a aparecer na fala de algumas das professoras, como as que seguem: Acho que a minha opção pela docência foi, em parte, ao acaso e outra pelo prazer de ensinar, não para o momento que estamos vivendo, sem respeito e sem valorização (Professora Silvia). Eu acho que não saberia fazer outra coisa na vida, apesar da desvalorização (Professora Diva). As influências foram muitas, tanto de professores, assim como o apoio da família. Na verdade essas influências foram o que sustentaram a busca pela carreira, muito mais do que o desejo em si. Deram suporte, pois a profissão por si só, sabe-se muito bem que não seduz ninguém, haja vista, as condições em que se trabalha (Professora Maria). As condições de trabalho não muito favoráveis e a desvalorização do ofício surgem como percepções dos professores, já no início da profissão; a Professora Maria chega a dizer que, por esses motivos, a profissão docente “não seduz ninguém”. Procurei, a partir de então, saber dos professores a avaliação que eles fazem dessa etapa inicial da profissão. A fala da Professora Maria destaca que no início da carreira “trabalhar foi algo muito positivo, foi um início vitorioso que significou a realização profissional tão almejada, considerando que muitos colegas ficam muitos anos sem conseguir emprego, depois de formados”. Para o Professor Paulo foi o início de uma grande aprendizagem, pois como diz: “para minha surpresa, nessa fase em que imaginei que iria ensinar, foi onde mais aprendi”; já a Professora Jenice explica essa etapa com três palavras: ”difícil, difícil, difícil”. Pode-se dizer que para a Professora Ana também não foi nada fácil esse inicio de carreira, seu relato a seguir afirma isso: Tive de ir à luta. Nesse momento tinha como princípio que os alunos teriam de levar a sério a disciplina de Arte. Para que isso acontecesse, eu cobraria tal qual as disciplinas ditas “sérias” do currículo faziam. Textos, provas e inflexibilidade. Logo tive de mudar porque os alunos cobravam produção e passei a trabalhar com conteúdo e produção artística. Baseada no fazer, fruir e contextualizar. Passei a freqüentar as reuniões pedagógicas e ouvia as insatisfações dos professores quanto a pagamentos atrasados, turmas lotadas, alunos protegidos porque eram filhos de fulano e beltrano enfim. Passei a contabilizar os problemas da docência que não se resumiam as quatro paredes da sala de aula. Tudo era novidade. 178 Outras narrativas são, também, significativas para ilustrar essa fase inicial da docência, pois confirmam o contato com um mundo diferente e bem distante da academia: a escola. Eis as falas de dois professores sobre isso: O primeiro ano foi de adaptação em uma nova realidade. Uma realidade cheia de compromissos e de vivência diária com pessoas novas, com crianças e adolescentes. Um mundo novo que passou a completar o meu mundo (Professora Maria). Em março quando tudo começou me dei conta realmente que estava em uma escola pública, de ensino fundamental incompleto, até a quinta série situada do outro lado do muro invisível aos olhos, mas que separa a periferia dos bancos da academia (Professor Paulo). Configura-se assim, a partir deste grupo de professores, algumas características do início da carreira docente como, por exemplo, o sentimento de vitória, a euforia por estar trabalhando, a realidade da escola incluindo aí as condições de trabalho, o contato com os colegas, o lugar que o ensino da Arte ocupa na escola, enfim, as primeiras noções do que seja o trabalho docente com todas as suas implicações. Primeiros anos de docência Continuando com os primeiros anos de docência, os professores foram solicitados a falar um pouco mais dessa fase, descrever o significado dessa etapa, comentar as impressões, aprendizagem e mudanças durante esse período e, por fim, explicitar as principais preocupações profissionais. Para a Professora Jenice essa foi uma “fase de experimentação, descobertas e aprendizagem. Descobri que eu podia criar aulas, ia refazendo após, vendo o que tinha que modificar”. Além da fase de euforia, de descobertas, da sensação de ter chegado ao lugar desejado, a Professora Eduarda destaca a preocupação com o domínio do conteúdo e com a equipe diretiva, como podemos observar em sua narrativa: 179 Os primeiros meses como professora foram cheios de otimismo, orgulho de mostrar que tinha chegado onde eu queria, que era capaz, mas também por outro lado ver que as coisas não seguiam o percurso que se queria, que não era só chegar e despejar o conteúdo, que além de ter a pretensão de ensinar teria que estar aprendendo, estudar conteúdo, procurar a melhor maneira de estar passando isso para o aluno. Minha maior preocupação era demonstrar domínio do conteúdo para os alunos e de classe para a equipe diretiva, pois afinal estava em estágio probatório. A preocupação com o domínio do conteúdo e com sua aplicação e adequação à realidade dos alunos também se fez presente nas falas que seguem. Tinha um verdadeiro pânico de esquecer a matéria ou não saber responder dúvidas de alunos, mas tentava ao máximo estar sempre envolvida e estudando o conteúdo e levando algo diferente principalmente unindo o desenho geométrico com a Arte (Professora Diva). As principais preocupações eram em relação à capacidade de envolver tantos indivíduos – tão diferentes – em torno do mesmo assunto – Arte – diante de tantas adversidades. As condições sociais dos alunos, de suas famílias, foram se tornando um referencial em tudo que eu pensava ao planejar e preparar aulas. Uma preocupação que passou a ser mais intensa, pois já existia durante o curso de formação era a busca por material didático para ser usado. Visto que, o Governo Federal através do Ministério da Educação envia para as escolas, livros de todas as áreas, menos para Arte e Educação Física. Todo material bibliográfico que faço uso, é fruto de minha busca e aquisição. Isto revela entre outras coisas, a falta de reconhecimento na importância da formação em Arte, pelo Ministério da Educação, isso para dizer o mínimo (Professora Maria). Tive muita dificuldade inicialmente em trabalhar com as séries iniciais. Primeiro porque não tive formação na graduação para atuar com as séries iniciais. Minha salvação foi ter feito o curso de magistério e participado do projeto de extensão “Vivenciar, Integrar e Agir”. Segundo porque concomitante ao trabalho com as séries iniciais eu ainda trabalhava com o ensino médio regular e EJA do ensino fundamental e médio, logo, a dedicação não era exclusiva. Fui aprendendo com a necessidade dos alunos e com a minha própria. Sempre no estudo e planejamento. Foi difícil (Professora Ana). A preocupação manifestada pela Professora Silvia não estava ligada ao domínio - ou não - do conteúdo, ela destaca que, além das dificuldades financeiras por que passava, enfrentou problemas com a direção da escola, fato que ocasionou uma mudança de escola, como ela própria conta a seguir: 180 A minha primeira experiência, embora todas as dificuldades financeiras, foi muito boa, foram 4 anos. Um dos lugares mais problemáticos que trabalhei foi no [...], mais pela direção (anos perpétua) do que pelos alunos. Lá eu tive um grupo de teatro junto com uma colega de Educação Física, foi muito bom. Quando não se resolve, não se consegue mudar, a gente tem que abandonar o barco, fiz assim na Escola [...], fiquei um ano e saí. Para a Professora Diva o impacto maior no início da carreira foi a realidade da escola já que ela vinha de uma experiência docente em uma escola particular, para ela: A mudança de trabalhar na escola particular e ir para a pública, não conseguia encarar a situação de pobreza dos alunos, a quantidade de filhos que alguns pais tinham na escola sem poder sustentar, a falta de carinho entre eles. A Professora Ana também manifesta, a seguir, o impacto sentido ao enfrentar uma escola pública de periferia pela primeira vez, e faz uma observação sobre seus colegas de escola: Fui parar numa escola de periferia chamada [...]. Localizada numa zona de extrema pobreza e num bairro violento. Os problemas começaram. Após sair da faculdade, parecia muito bom trabalhar numa escola particular e ainda com ensino médio. Eu era feliz e não sabia. No [...] trabalhei com as séries iniciais e duas 5ª séries. Não foi fácil. Aliás, tudo era difícil. Desde o transporte. Nessa escola, conheci o currículo oculto. As conversas de professores nas portas das salas com os alunos ouvindo tudo, as imagens que os alfabetizadores utilizavam para fazer associações com as letras totalmente distanciadas da realidade deles, colegas descomprometidos. Essa professora, em 2003, deixou a escola porque foi convidada a dedicar suas 40 horas na organização do setor de Multimeios da Secretaria Municipal de Ensino, fato que amenizou o impacto e as dificuldades que vinha enfrentando na escola. Nesse momento, faz-se necessário retomar dois aspectos: a formação acadêmica e o lugar que o ensino das Artes Visuais ocupa na escola. Com relação ao curso de licenciatura temos um grupo de professores graduados entre os anos de 1985 e 2002, portanto com formação diferenciada. Essa formação implica em atuações polivalentes em Educação Artística, atuações não 181 polivalentes, mas restritas às artes plásticas ou desenho também em Educação Artística e, ainda, atuação em Artes, mais especificamente em Artes Visuais ou desenho e computação gráfica. O curso formou professores, na época da Educação Artística, polivalentes ou não, para atuar de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental, não preparando esses professores para as séries iniciais. Este fato repete-se com os professores graduados no Curso de Licenciatura em Artes, Artes Visuais ou Desenho e Computação Gráfica, que, apesar das alterações curriculares implantadas em 1999, não contemplou o ensino nas séries iniciais, nem tampouco o ensino médio. Na verdade, apesar da exigência da LDB de 1996, isso só veio a ocorrer no curso em 2004. A referida LDB nº 9.394/96 entende que o ensino da Arte deva acontecer em todos os níveis da Educação Básica55, ensino fundamental e médio, determinação que foi adotada pela Secretaria Municipal de Pelotas a partir do concurso para professores de 1999, respeitando, também, as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais sobre a área de atuação desses professores: Artes Visuais ou Música, áreas distintas, concursos distintos. Diante dessa situação, entendo que esse grupo de professores procurou as soluções para esse impasse individualmente, pois os dados dos questionários indicam que todos os professores entrevistados trabalham em todas as séries do ensino fundamental, sendo que três das professoras ainda atuam no ensino médio. Evidenciou-se no questionário, e comprova-se aqui, que todos os professores preparam suas aulas sozinhos, são eles os responsáveis pelos conteúdos trabalhados em sala de aula. Como não tiveram em sua formação os subsídios necessários para trabalhar Artes Visuais nas séries iniciais e no ensino médio, buscaram soluções e alternativas de trabalho através de esforços individuais. O lugar que a Arte ocupa na escola é outro fator que merece atenção. Apesar da obrigatoriedade, parece-me que os documentos oficiais não são suficientes para garantir o devido reconhecimento da Arte na formação do aluno, porque, ao que tudo indica, prevalece o espírito hierárquico da supremacia da 55 Lei de Diretrizes e Bases (LDB) - Lei Darcy Ribeiro – nº 9.394/96 - que no Capítulo II, Da Educação Básica - Seção I - Das Disciplinas Gerais, Art. 26, § 2º diz que “o ensino da Arte constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. 182 linguagem escrita e verbal e o conseqüente desprezo pela linguagem visual. Essa hierarquia do conhecimento na escola, explícita ou implícita, ainda mantém o ensino da Arte num escalão inferior da estrutura curricular. Justificam-se as preocupações manifestas pela Professora Ana sobre sua dificuldade em trabalhar nas séries iniciais e pela Professora Maria quando diz que seu trabalho tem que envolver tantos indivíduos – tão diferentes – em torno do mesmo assunto – Arte –, diante de tantas adversidades e da falta de material didático nas escolas em que trabalha. Aliás, a falta de livros de Arte e sobre Arte é um fato comprovado pelos dados do questionário. Reforça-se que a utilização do livro didático, como auxiliar na preparação das aulas, não é uma opção dos professores porque a escola não possui esse material e, quando utilizado, o livro pertence a acervos pessoais dos docentes. Faço aqui uma ressalva ao destacar um caso não muito freqüente, relatado pela Professora Maria: O apoio mais significativo que recebi foi sem dúvida em relação à compra de materiais para serem usados em aulas práticas. Esse apoio sempre foi dado pela diretora da escola, que sempre respondeu positivamente às minhas solicitações. Outra questão solicitada aos professores, ainda com relação aos primeiros anos da carreira, foi sobre a socialização profissional: o planejamento das primeiras aulas, as preocupações com a disciplina de Artes Visuais e o relacionamento com colegas e alunos. O planejamento das primeiras aulas, de um modo geral, e como era de se prever, foi organizado pelos próprios professores individualmente a partir do conhecimento da escola e dos alunos, como nos fala a Professora Maria: Ao conhecer a comunidade escolar e atentar para suas necessidades, fui aos poucos construindo meus planos de estudos, minha proposta pedagógica, e assim formatando meus planos de aula. A Professora Eduarda conta que sua expectativa, ao apresentar-se na escola, era a de receber orientações sobre conteúdos e propostas de ensino, no entanto o que aconteceu foi o seguinte: 183 No dia em que me apresentei na escola fui entrevistada pela diretora e pela coordenadora da área dentro de uma minúscula salinha da coordenação, me explicaram sobre documentos que eu deveria preencher, as turmas que eu iria trabalhar, os horários, com um tema gerador que não lembro qual era, só sei que achei chato e não tinha nada a ver com o que eu queria trabalhar, me mostraram onde era o meu armário e materiais, me apresentaram as turmas que eu iria trabalhar. As colegas ficaram contentes, pois teriam “folga”, me deram uma listagem de conteúdos que me baseei para planejamento das minhas aulas, a coordenadora me esclarecia dúvidas, mas analisei todas as colegas por um bom tempo e escolhi uma para perguntar detalhes como preencher algumas coisas na folha de chamada, etc. A fala dessa professora aponta para uma questão que não posso me furtar de falar: a burocratização do sistema de ensino. O exemplo que a professora nos apresenta é de uma instituição que privilegia tarefas que exigem cumprimento de horários, preenchimento de folhas e fichas, conteúdos pré-estabelecidos e dá muito pouca atenção e espaço para o professor pensar e refletir sobre seu trabalho. Encontro em Nóvoa (1995a, p. 24) o complemento do que acabo de dizer, para ele “dessa lógica burocrática resulta um trabalho docente individualizado que acarreta uma redução do potencial dos professores e da escola”. A Professora Diva teve o apoio da coordenadora, que era sua amiga, por isso não encontrou dificuldades para o planejamento das primeiras aulas, tinha com quem trocar idéias, porém o preparo propriamente dito foi feito sozinha. As preocupações com a disciplina de Arte, além do domínio dos conteúdos e da insegurança do que fazer com as crianças das séries iniciais - essa última circunstância “uma pedra no sapato” da Professora Ana -, envolvem a falta de materiais e o relacionamento com os colegas e alunos. As falas a seguir evidenciam essas questões: Entrei numa eterna preocupação, e isso levo até hoje, que o professor tem que ser muito, mas muito mesmo organizado, ter material para mostrar para os alunos, livros, vídeos, imagens, mas como, se a escola não tem (Professora Diva). Dar aula de Arte, para crianças que passam fome é tarefa mais que desafiadora, digo com tristeza, mas com os dois pés na realidade, é tarefa desumana (Professora Maria). 184 Tive problemas dos alunos. Me diziam na escola - “ a entidade” -que eu tinha que ter “pulso de classe” (Que raiva!), como lidar com a emoção, com os alunos punidos ao mesmo tempo (Que difícil!) (Professora Jenice). Encontramos muitos colegas, poucos amigos ao longo dos anos. Um fator bem marcante foi quando concorri à direção de uma escola na Santa Terezinha, acreditei que as pessoas queriam mudanças, não era verdade, mas saí da escola quando tive vontade, não aceitei perseguição (Professora Silvia). A Professora Eduarda disse não ter problemas de relacionamento com colegas, porque sempre achou que no trabalho “as relações são obrigatoriamente profissionais, devemos ser éticos, se a amizade vier junto é um grande lucro”. Para o Professor Paulo “estar em uma escola é antes de qualquer coisa um exercício de diplomacia: um universo de situações e realidade conflitantes que se entrelaçam e caminham lado a lado”. Esse professor fala, ainda, da sua percepção sobre os colegas de trabalho, pois, como diz: Nunca sabemos ao certo com que estamos lidando. Existem os bons colegas, que são competentes naquilo que fazem e sabem reconhecer a competência nos outros. Existem aqueles que são competentes e não conseguem ver isso em mais ninguém, bem como há aquele tipo de professor que em minha opinião é o pior, o incompetente, que não realiza nada, critica a o trabalho de todos e ainda usa o seu tempo ocioso pra servir de leva e traz dentro da escola minando todas as relações. Percebo que, à medida que o tempo passa, os professores manifestam um olhar mais aguçado sobre a realidade da escola e as implicações de seu trabalho com as necessidades específicas da área em que atuam, bem como das relações com colegas e alunos, criando, assim, mecanismos de sobrevivência no ambiente escolar, alternativas de ensino por conta da uma maior confiança em si mesmo, no seu trabalho, o que lhes confere mais autonomia nas decisões relacionadas ao ensino e no comando de classe. É bem como diz a Professora Jenice: “tive várias crises, de não ter vontade de ir dar aula, mas saí sozinha. Eu caminhei sozinha.” Delimita-se, então, mais uma fase de carreira na qual os professores manifestam diferentes percepções, demonstrando estilos pessoais bem distintos. 185 Exercício profissional As falas dos professores, até o momento, evidenciam dois períodos distintos vividos por eles: o primeiro caracterizado pela euforia com as primeiras aulas, pelo sentimento de vitória alcançada, pelo confronto com uma realidade até então pouco conhecida, certo estranhamento com o ambiente escolar, e o segundo, com um maior distanciamento da época da formação recebida, os professores estão mais seguros de si, conhecedores da estrutura e da organização da escola e das formas de relacionamento com seus alunos e colegas, surgindo um estilo pessoal de ser professor. Na busca de um entendimento mais específico das individualidades pessoais e docentes, os professores foram solicitados a narrar situações mais diretamente ligadas à experiência profissional, destacando questões relativas ao comprometimento com o ensino das Artes Visuais voltado à formação dos alunos e os momentos críticos vividos na carreira. Pedi a eles, ainda, que manifestassem suas percepções sobre gênero, ou seja, falar se o fato de ser mulher/homem afetou a carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes na escola e na docência, o que será abordado algumas páginas adiante. Com relação ao comprometimento dos professores com o ensino e com seus alunos, os dados do questionário evidenciam que esse grupo de professores está imbuído de seus deveres para com a formação de seus alunos, pois consideram que a responsabilidade e o compromisso são relevantes para o exercício da profissão docente. É, sem dúvida, um grupo extremamente comprometido com a profissão escolhida por eles. Uma fala que comprova esse fato é a da Professora Eduarda, que diz: “Sempre me sinto comprometida e com disposição para o trabalho e também com autonomia. Meu trabalho é com os alunos e procuro fazê-lo da melhor maneira possível”. Outro dado destacado do questionário é a ênfase dos professores ao conhecimento adquirido através da experiência como sendo uma alternativa preponderante para o exercício profissional, pois a idéia de que na sala de aula o professor aprende a ser professor é quase uma “teoria” entre os professores, muito bem explicitada pela Professora Maria, quando diz que: “aprendo todos os 186 dias um pouco mais, cada vez que entro em sala de aula e me encontro com meus alunos, sejam os pequeninos ou os adolescentes da oitava-série”. O comprometimento com o ensino e com os alunos está, também, presente no depoimento do Professor Paulo, que fala claramente das mudanças ocorridas na sua forma de perceber seu trabalho em sala de aula, como podemos observar a seguir: Posso afirmar que aquele recém formado que pretendia se utilizar da Arte como uma forma de transformar, criar e aprimorar já não existe mais, após seis anos me transformei em um profissional ciente de meu dever como educador, mas também ciente de que somente a minha vontade não é capaz de auxiliar um indivíduo a crescer e caminhar com as próprias pernas, ele tem que antes de tudo desejar caminhar, meu papel é mostrar a estrada e caminhar com ele, nunca por ele. Também não tenho mais a pretensão de caminhar com todos, o caminho pode ser de todos, mas não é assim que as coisas são e não é assim que todos pensam. Para mim o importante é acender a chama em alguns e que esses alguns possam sentir o mesmo desejo que eu senti, o desejo de ir além, de ver, de conhecer mais e de perceber que as fronteiras do mundo podem ir muito mais longe do que a cerca do quintal. A fala do professor é significativa porque denota um maior amadurecimento e melhor entendimento de suas reais possibilidades como professor. Quero, aqui, considerar a concepção sobre os saberes da experiência numa dimensão mais ampla, não tão restrita apenas à prática pedagógica do professor, mas também o conhecimento a respeito de sua história, de sua vida cotidiana e, ainda, conhecimentos da própria organização escolar e das interações que o professor estabelece no âmbito da escola (GAUTHIER, 1998). Digo isso porque os professores vêm demonstrando que suas experiências práticas de ensino não estão limitadas apenas à atuação em sala de aula e, à medida que conhecem as limitações institucionais do trabalho, se comprometidos com seus alunos e com seu ensino, reformulam a prática de sala de aula, buscando novas experiências pessoais. Caso contrário, se prejudicados no desempenho em sala de aula, como saída buscam remanejamento de escola e, até mesmo, novos desdobramentos como direção ou outras responsabilidades administrativas. Esse é outro momento, configura-se uma fase da carreira docente, não mais aquela primeira onde prevalecia o sentimento de vitória, a euforia por estar trabalhando, o contato inicial com a realidade escolar e diferente da segunda na 187 qual os professores, mais seguros de si, conhecedores da estrutura e da organização da escola e das formas de relacionamento com seus alunos e colegas, definem um estilo pessoal de ser professor. As mudanças ocorridas com o professor, tanto na sua atuação como na sua forma de pensar a escola, são explicitadas quando falam dos momentos críticos no decorrer da profissão. Esses acontecimentos apontados pelos professores estão relacionados mais diretamente com a escola, ou seja, com uma situação vivida na escola. De um modo geral, os fatos relatados são aqueles que desagradaram muito aos professores, como por exemplo, o que nos conta a Professora Silvia: Um fato ruim foi quando a direção do [...] tirou minhas horas e deu para uma professora leiga, sem formação, por perseguição política, não há apoio do órgão mantenedor. Fui, então, parar na zona rural graças a uma colega da minha área que se elegeu diretora, passei o pão que o diabo amassou. Meu filho estava em fase de alfabetização e não conseguia acompanhar, minha vida familiar um caos, um dia eu ia lá só para um período, depois caminhava 2 km, tinha 20 horas na Colônia Maciel e 20 horas na Cascata, tudo isso me tornou muito “dura”, muitas vezes sem esperança. Outros acontecimentos destacados pelos professores como momentos críticos por eles vivenciados são verdadeiros desabafos, narrados com detalhes e motivadores de mudanças. Eis, então, alguns desabafos: Momentos críticos vividos na carreira profissional, ainda é aquele desconhecimento das escolas de que Arte é tão área de conhecimento quanto qualquer outra disciplina. Material didático não existe. Sala apropriada muito menos. Sempre falo que a disciplina mais difícil de se trabalhar dentro das escolas é a Arte porque não há subsídio algum. Meu grau de satisfação com a escola é baixo. Para se ter uma idéia, este ano, faltou professor de Arte para um turno da escola. Eu estou com os horários arrebatados, a solução que deram foi de uma professora, alfabetizadora, mestranda em educação, atender algumas turmas. Ela ainda teve a cara de pau de pedir meu plano de ensino! Poupe-me! Como posso estar satisfeita com a escola. Ano passado uma professora da outra escola em que trabalho, pediu-me também planos de aula para atender algumas turmas no estado. Ela professora de geografia. Engraçado é que ninguém me convida para substituir o professor de outra área. O senso comum é de que aula de Arte qualquer um dá. Encontramos professores que entendem que Arte é uma área de conhecimento e que não metem as caras, mas a maioria desconhece. A falta de espaço apropriado para as salas de Arte tornou-se um problema. Principalmente para o trabalho com as séries iniciais. Eu ainda trabalho em uma escola que não tem sequer um retroprojetor como 188 recurso. Penso um absurdo isso. As aulas da área de Arte e Educação Física, no ensino fundamental, são acomodadas de modo que encaixem nas “folgas” dos professores. Então, elas são colocadas de qualquer jeito no horário. Pego crianças após a Educação Física por exemplo. Isso não é legal para o professor. Até acalmar e centralizar na aula leva um tempo considerável. A aula de Arte, não raras vezes necessita de concentração, silêncio, serenidade para poder produzir algo que passou pelo pensamento, pela imaginação ora! Não há essa preocupação. Escassez ou inexistência de materiais diversificados também é histórica nas aulas de Arte. Eu trabalho muito com lixo, mas é necessário diversificar (Professora Ana). Momentos críticos foram nos últimos meses que fiquei na minha primeira escola, fui acusada de ser contra a folga das professoras de currículo e de ser desumana com uma professora que estava quase abortando o filho, tudo porque eu me recusei atender os alunos dela junto com os da turma que eu deveria atender, pois essa professora faltava muito e a turma estava perdida, sem limites, então de 2ª a 4ª feira eles dividiam a turma em três grupos para colocar um grupo em cada turma que tinha as professoras titulares, mas os alunos que mais incomodavam ficavam na turma da titular de folga, isto é nos dias das especializadas. Na 5ª feira como era aula com as especializadas a turma toda ficava junto. Resumo, em todas as turmas que eu atendia os “pestes” (como eram chamados) estavam. Explodi, entrei em depressão, só chorava, não comia nem dormia, depois que foram perceber que eu estava com razão porque a secretária me defendeu, fizeram antes disso uma reunião com toda a escola, colocaram o problema, me senti um leão enjaulado, naquele momento decidi pelo remanejo, tentaram me convencer em ficar, mas não aceitei. Perdi a confiança, consegui ser remanejada para a escola que escolhi e estou lá até hoje (Professora Eduarda). Posso dizer com toda certeza, e com muita tristeza que o momento mais crítico de minha vida profissional, foi em 2007, quando nossa escola perdeu um aluno. Na ocasião, passei por uma forte tentação de abandonar a profissão diante de tanta impotência sobre o acontecido. Perdemos todos. Eu perdi não somente um aluno, mas um amigo. Um menino aparentemente alegre, com um sorriso maravilhoso, educado, querido, gentil, mas ao mesmo tempo, pobre, com baixa estima, com inúmeras privações sociais, que foram fatais em sua vida, o levando ao suicídio. Esse fato afetou minha vida – profissional e pessoal – de forma drástica. Desde aquele momento concretizou-se em minha frente a incapacidade da escola em transformar a vida de quem quer que seja. Esse aluno passou o dia inteiro na escola, pela manhã, em aula, e à tarde, buscando falar com a diretora – não conseguiu – na madrugada aconteceu... e ninguém, viu em seus olhos o pedido de ajuda que ele tanto estava precisando. Tudo isso, me fez parar e chorar muito, pensar muito, refletir sobre minha prática inicialmente, mas também sobre o sistema de ensino, no qual estamos inseridos – público, falido e fracassado - que não educa, e sim, tenta de todas as formas possíveis, adestrar e não informar. Tudo que havia acontecido, em minha profissão, não significa nada perto desse episódio, que desejo veementemente, que nunca mais venha a se repetir. Contudo, não quero esquecê-lo, quero sim, tê-lo como exemplo de como não se deve proceder diante dos problemas de meus alunos, por mais distantes de mim que pareçam estar (Professora Maria). 189 O que dizer de situações como essas? Nada a comentar, apenas a lamentar. Lamentar pelas condições, ou melhor, pela falta de condições em que ocorre o ensino das Artes Visuais na escola. Lamentar pela percepção da Arte – que insiste em continuar – por parte da escola e dos professores, como uma mera atividade que dispensa o pensar porque é só fazer por isso pode muito bem ser “usada” para preencher “folgas" de outros professores, ministrada por alguém sem formação específica. Lamentar situações que levam a uma visão nada satisfatória da escola e ter que ouvir frases como: “a incapacidade da escola em transformar a vida de quem quer que seja”, da Professora Maria ou “meu grau de satisfação com a escola é baixo”, da Professora Ana. E, ainda, que situações como essas tivessem levado a Professora Silvia a dizer: “Tudo isso me tornou muito ‘dura’, muitas vezes sem esperança”. Refletindo melhor sobre os fatos narrados pelas professoras, podemos considerar que: (a) a Professora Silvia diante dos fatos solicitou remanejamento e foi para uma escola da zona rural – onde permanece até hoje - e lá assumiu a coordenação pedagógica da escola, dado explicitado no questionário. Essa professora já trabalhou como supervisora de ensino junto a SME e como coordenadora pedagógica em outra escola, além da tentativa frustrada de concorrer à direção de umas das escolas em que trabalhou anteriormente. Tais acontecimentos, somados a alguns problemas de ordem pessoal, tornaram essa professora “muito ‘dura’, muitas vezes sem esperança”; (b) a Professora Eduarda também solicitou remanejo de escola porque, como ela fala, ”explodi, entrei em depressão”; (c) a Professora Maria, ao narrar o fato da perda de um aluno, revela que isso afetou sua vida – profissional e pessoal – de forma drástica e que desde aquele momento concretizou-se diante dela a incapacidade da escola em transformar a vida de quem quer que seja, o que a fez tomar esse fato como um exemplo de como não se deve proceder diante dos problemas dos alunos, por mais distantes que pareçam estar dela e (d) a Professora Ana deixa claro que apesar das dificuldades encontradas para lecionar a disciplina de Artes Visuais nas escolas em que trabalha, não desanima, pois seu principal objetivo era e continua sendo formar público para Arte. Como disse anteriormente: “O aluno tem que produzir e saber Arte... pauto até hoje meu trabalho dessa forma”. 190 Considero as narrativas indicadores de outra fase na qual se encontram os professores, uma vez que o desenvolvimento de suas carreiras vem sendo resultado de uma série de acontecimentos que os levaram a reagir frente a situações adversas. Essa fase pode levar o professor a momentos distintos como, por exemplo, a mudança de instituição de ensino para continuar sua atuação docente ou ocupar alguma outra função fora da sala de aula, ou por outro lado, através de uma tomada de consciência mais ”aguda” das questões institucionais, buscar alternativas para o trabalho em Artes Visuais, o que significa maior investimento no ensino e na formação dos alunos. Gênero Os professores foram solicitados a fazer algumas considerações sobre questões relativas a gênero, indicando se o fato de ser mulher/homem afetou a carreira e o exercício da docência. A educação é considerada um campo profissional predominantemente desempenhado pelas mulheres. Assim, tento aqui dialogar com a condição do feminino, isto porque a maioria dos docentes entrevistados é do sexo feminino seis professoras e apenas um professor. Se considerarmos as atividades e ocupações desempenhadas pelas professoras e suas características, devemos considerar a carga global de trabalho, ou seja, a segunda jornada laboral: o trabalho doméstico. As possíveis repercussões da dupla jornada de trabalho se refletem sobre a saúde, acarretando sobrecarga psicológica, fadiga física; tempo insuficiente para lazer, para descanso, horas de sono e alimentação. Isso fica claro numa fala da Professora Eduarda já expressa (quando ela diz que ”Explodi, entrei em depressão, só chorava, não comia nem dormia”), que as altas demandas familiares, combinadas com situações vividas no trabalho, estão associadas a sintomas de depressão. Essa mesma professora, ao falar das implicações pelo fato de ser mulher na carreira e no exercício da docência, afirma: 191 Acho que o fato de ser mulher até beneficia no exercício da minha profissão. Meus filhos reclamam que quase não fico com eles, mas sou eu que faço tudo para eles, levo na escola, cuido para estudar, se tem tema, se tem que tomar banho, lavar orelha, cortar unha, se a roupa está limpa, se tem merenda, se tem material, às vezes escapa alguma coisa. Haja responsabilidade! Para ela a responsabilidade maior é com os filhos, pois ser mulher “até beneficia” no exercício da docência, com o que a Professora Maria concorda plenamente, justificando que esse fato facilita seu relacionamento com os alunos: Acredito que o fato de ser mulher, somente contribui para minha escolha profissional. O fato de ser mulher facilita meu relacionamento e faz com que a proximidade afetiva com meus alunos seja mais intensa em comparação com colegas do sexo masculino. Penso que o fato de ser mulher me torna mais capaz e menos desatenta diante de pequenos detalhes que estão presentes em simples atos e gestos dos alunos. Pode ser que essa percepção seja “feminista” demais, mas hoje, sinto assim (Professora Eduarda). Já para a Professora Maria as responsabilidades familiares referem-se, especificamente, no que diz respeito apenas a ela e seu companheiro, pois os filhos ainda não vieram e como ela diz: “Talvez nunca cheguem... Só o tempo dirá. Assim, ser mulher me faz pensar que sou privilegiada em todos os sentidos”. A Professora Jenice fez a opção de não ter filhos e completa: ”não vivi o tradicional que toda a mulher vive”. A Professora Ana destaca em sua narrativa as implicações do ser mulher em casa e na escola, pois para ela: O fato de ser mulher, principalmente no inicio da carreira, afetou no sentido de que não é fácil administrar tudo. As dificuldades já começam na gravidez. Depois veio o divórcio. Criar um filho, administrar casa e estudos. Não foi e ainda não é fácil. Hoje ainda a gente tem que administrar a escola, o material que vai levar, a aula da semana que mudou devido à necessidade dos próprios alunos, o novo relacionamento afetivo enfim. Quanto mais o tempo passa, parece-me que as responsabilidades aumentam. Penso que esta situação é bem comum hoje em dia. A mulher está cada vez mais tendo que administrar tudo. A antológica feminização do magistério aponta para muitos casos de sobrecarga de atividades às mulheres. Muitas vezes a mulher que escuta o choro de criança em casa ainda vai para o trabalho e vai escutar choros e lamúrias de 30, 35 crianças. É diferente de uma outra profissional mulher que vai para o seu escritório, consultório ou atender atrás de um balcão. A tarefa da professora de um modo geral, ao meu ver, sempre vai ser mais pesada. Isso não é um privilégio, é tarefa árdua e comprometedora. 192 As narrativas das professoras apontam para a questão da feminização do magistério. Destaco, primeiramente, que o gênero, segundo Scott (1990) é uma maneira de “indicar “construções sociais”, utilizado para designar as relações sociais entre os sexos, estabelecendo idéias sobre papéis adequados às mulheres e aos homens. E um papel definido historicamente para a mulher é o de professora. Apple (1991), ao tentar responder por que o magistério tornou-se campo de trabalho feminino, explica que esta profissão foi uma das primeiras que se abriu para as mulheres sob a aprovação da sociedade. Entretanto, para o autor, as mulheres foram impelidas para este trabalho sob a associação da tarefa educativa com a materna, afirmando, por sua vez, que os componentes de cuidar e servir embutidos no magistério, principalmente nas séries iniciais, operaram como fatores de segregação sexual, uma vez que cuidar de crianças e servir sempre foram consideradas ocupações de baixa qualificação. Estas concepções contribuíram para o afastamento dos homens da profissão e refletem-se nos baixos salários. E mais, os atributos femininos associados à esfera doméstica como docilidade, submissão, sensibilidade, intuição e paciência, induziram a transformação da escola em um reduto feminino, pois se argumentava que ali elas continuariam rodeadas de crianças e exercitariam todas as características de sua vocação maternal. O magistério vem se definindo e perpetuando como “missão feminina” desde o período de consolidação como profissão até os dias atuais, em que se constata flagrantemente a maioria de mulheres nesta função. A Professora Silvia entende que a sua profissão é, prioritariamente, feminina e aponta para os problemas oriundos do excesso de trabalho – escola e casa – e para a pouca valorização da sua profissão. Eis o que ela diz: A nossa profissão tem em sua maioria mulheres e isso ocasiona alguns problemas: baixos salários, acúmulo de funções como dona de casa, problemas de saúde, etc. Os governos não nos valorizam também, em parte, porque somos mulheres e historicamente são as que percebem menores salários. 193 As falas das professoras Maria e Eduarda, como já expresso, têm, no sentido de maternidade, sua principal linha de ação. Além disso, a missão/apostolado de que se reveste a docência, sobretudo quando exercida pelas mulheres, imprime também esse papel: uma filiação e uma maternidade simbólicas, que encontram no magistério o lugar ideal de realização ou o lugar de realização ideal, pelo fato da profissão docente representar mais um locus de realização pessoal para as mulheres, ao lado da família. A fala do Professor Paulo, a seguir, reforça a relação da professora próxima à figura da mãe e mostra como ele se percebe nesse ambiente predominantemente feminino: Ser professor é também atender expectativas, sonhos e fantasias, tanto de alunos, como de pais e colegas de trabalho. O fato de ser homem me diferenciava do conceito de “tia” - pseudo-projeção da imagem da mãe -, ser jovem, me colocava em uma posição de irmão mais velho o que sempre dava margem a um não reconhecimento da figura do professor e principalmente o fato de ser gay e não me parecer nenhum pouco com o estereótipo de uma criatura cheia de afetações e que deveria em tese se vestir de mulher foram três barreiras em uma que tive de aprender a conviver para mais tarde transpor. Hoje sou o professor de Artes em qualquer uma das escolas e sou respeitado como tal, não importando o que mais eu sou ou deixo de ser. A presença do professor na escola gerou problemas que ele teve que enfrentar: um deles, por ser jovem, ter sido considerado como um irmão mais velho dificultando seu reconhecimento como o professor e a outra situação foi o fato de ser gay não estereotipado, como ele mesmo fala, sofrendo preconceito por parte das colegas, não dos alunos. Pode-se entender que o tipo de masculinidade expressa no comportamento do professor não correspondia às expectativas dos colegas, ou seja, esse professor não apresentava atitudes e comportamentos apropriados dentro do lugar comum quando se fala de gênero dos homens, como nos relata Connell (1995). Para o autor as masculinidades são construídas de forma convencional, refletidas tanto no agir quanto nos sentir, para se distanciarem do comportamento das mulheres. De acordo com a teoria de Connell a não correspondência à norma masculina pode levar à violência, ou à crise pessoal e a dificuldades nas relações com as mulheres. Esse último fato foi realmente o grande problema a ser enfrentado pelo professor nas duas escolas em que trabalha. 194 Outra questão que destaco sobre o item de gênero desenvolvido na entrevista é a relevância da responsabilidade feminina pelo trabalho doméstico, ainda uma atribuição das professoras e não do professor. A dupla jornada de trabalho, profissional e doméstico, foi, de fato, uma realidade para as mulheres estudadas. Vale lembrar que as professoras, pela necessidade de realizar a dupla jornada de trabalho, têm aí um possível obstáculo ao avanço profissional. Quero enfatizar que é impossível pensar numa qualificação das professoras/mulheres trabalhadoras sem intervir sobre o trabalho doméstico. Digo isso porque as professoras – as quatro casadas e com filhos - quando solicitadas, no questionário, a indicar os fatores de impedimento para participar de atividades de formação, apontam a falta de disponibilidade pessoal para a realização de cursos de atualização. A professora casada e sem filhos e a professora solteira, nesse item do questionário, dizem apenas assistir a palestras ou a cursos de pequena duração, devido à carga excessiva de trabalho na escola. No entanto, o professor que é solteiro indica que os temas propostos geralmente não lhe interessam, e sua próxima meta é um curso de mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural (ICH/UFPel). A Professora Maria, casada e sem filhos, pretende também fazer um curso de mestrado e a Professora Jenice, solteira, está próxima da aposentadoria, sendo categórica ao dizer que chega pois “penso que seria mais feliz em outra profissão. Não gosto de escolas, mas estou lá, talvez para transgredir”. • A escola Os professores apresentam, nesse momento, suas considerações sobre a instituição de ensino em que trabalham atualmente, evidenciando a chegada à escola; a história pessoal ali vivida; o grau de satisfação com a escola; o momento profissional como professor, como professor de Artes Visuais e a situação desse ensino. A chegada dos professores à escola atual, de um modo geral, foi tranqüila. Algumas vieram de outras escolas, como é o caso das Professoras Ana, Silvia e Eduarda ou como a Professora Jenice, que veio permutada de Porto Alegre para 195 duas escolas municipais de Pelotas. Como já vimos, todos os professores trabalham em mais de uma instituição. Os professores, em sua maioria, conforme dados do questionário, têm um regime de trabalho de 40 horas semanais, sendo que duas professoras trabalham 60 horas e outra 70 horas semanais. Essa última professora fala o seguinte sobre seu momento atual: Atualmente trabalho em (4) quatro escolas. Professora de Arte e desenho do pré a 8º série. Fase bastante difícil pela diversidade de níveis de ensino. Hoje em dia estou fazendo uma pequena loucura em trabalhar os três turnos quase 70 horas, mas estou levando numa boa. Destaco aqui, mais uma vez, que a participação das professoras no cotidiano da escola limita-se às aulas, uma vez a carga horária efetiva em sala de aula corresponde, aproximadamente, à carga horária do contrato de cada um dos professores. Outro fator que merece atenção, fato também comprovado anteriormente e citado pela Professora Diva, é a diversidade de níveis de ensino em que atuam os professores nas escolas municipais, ou seja, a maioria atua em todas as séries do ensino fundamental. É na instituição particular que essa professora leciona na pré-escola. Nas narrativas dos professores destacam-se aspectos relativos ao relacionamento com colegas, ao desafio de lecionar para alunas do magistério e às condições sociais dos alunos, como podemos observar nos relatos a seguir: A chegada na atual escola [...] foi normal, é uma escola pequena, tenho todo o material didático que peço, tenho autonomia no meu trabalho, me relaciono bem com os colegas e equipe diretiva, só não gosto das fofocas que são freqüentes. Eu também pertenço a um projeto de banda musical do qual sou integrante. Sou muito elogiada pelo trabalho que faço na sala de aula. A chegada no [Colégio...] foi normal, mas é outro ambiente, muito mais elitizado. Sou meio “Xepa”, no início senti que era avaliada pela aparência, mas depois que muitos descobriram que eu trabalhava com surdos, lugar que muitos gostariam de estar, começaram a me respeitar. Minha relação com os colegas é boa. Nas duas escolas o meu grau de satisfação é bom, faço o que me cabe (Professora Eduarda). Vim permutada para duas escolas: uma de ensino fundamental e a outra foi um desafio, pois é um Curso de Magistério para formação de professores para a Educação Infantil lá no [Colégio...]. Tive que estudar, aprender muitas coisas, pois nunca havia me dedicado a 196 essa faixa etária, tive que construir meus conteúdos e definir como trabalhar. É a experiência mais “legal” de todas. Mas é um grupo coeso, onde trabalhamos juntas com o mesmo propósito e objetivos. O curso é um projeto, para alunos que já concluíram o 2º grau. Tive momentos de insegurança, mas agora estou bem, todos se ajudam e temos a liberdade de ir e vir, uma escola boa de trabalhar (Professora Jenice). Minha chegada à escola em 2004 foi muito boa, em relação às condições para poder exercer a profissão. Mas desde o inicio senti a deficiência, em que as condições sociais implicavam na formação do nosso aluno e percebo que, cada vez mais implicam negativamente. A zona onde está localizada a escola é muito carente. A pobreza é grande. Ensinar, trocar, aprender, alfabetizar, informar, são desejos que muitas vezes são aniquilados diante da fome, da criança que quer merendar e brincar no recreio somente e sabemos que a escola deve muito mais que isso. Falar de Arte ou de qualquer outra área do conhecimento com quem é espancado, abusado sexualmente, que tem em sua casa um ponto de tráfico de drogas, é algo que beira o desumano. As famílias têm em média quatro filhos. Algumas famílias possuem quatro filhos na 1ª série, detalhe, que, nenhum mais com idade adequada. Prova disso é que a escola possui todos os anos, cinco turmas de 1ª série, lotadas, com média de trinta alunos cada, e sempre, somente uma oitava, com no máximo quatorze formandos, isso, representa o “funil social” pelo qual todos passam e, infelizmente, sabe-se que sociedade resulta disso. É preciso dizer que mesmo diante de tantas adversidades, tenho experiências dignas de Prêmio Nobel, não para mim obviamente, mas para “pequenos guerreiros” como costumo classificar meus alunos. Mesmo diante das dificuldades, ainda se sente a vontade de aprender, de ensinar, de amar, de viver. As crianças mesmo lutando contra tudo e todos, ainda assim, nos surpreendem muitas vezes e fazem com que cada vez mais tenhamos esperança e perspectiva para continuar (Professora Maria). Fica claro na fala das professoras as diferenças existentes entre uma escola urbana e uma de periferia, principalmente onde está localizada a escola da Professora Maria. Já no caso da Professora Eduarda, apesar de uma de suas escolas estar localizada na periferia, as condições sociais do entorno são melhores e por ser, também, uma escola pequena, oferece melhores condições de trabalho. Com relação à escola urbana, onde trabalham as Professoras Eduarda e Jenice, percebe-se em suas falas que é uma escola com “ambiente mais elitizado”, como diz a Professora Eduarda ou, como no caso da Professora Jenice, “é a experiência mais ‘legal’ de todas”, tanto que ao ser perguntada sobre seu momento atual ela diz que: “Meu momento profissional é o melhor da minha trajetória”. O grau de satisfação dos professores apresenta-se variado, mas de um modo geral, eles mostram-se pouco satisfeitos com as condições da escola e com 197 as condições sociais dos alunos, o que acarreta dificuldades no aprendizado dos mesmos. Para a Professora Diva o grau de satisfação varia de escola para escola, uma vez que ela trabalha em quatro escolas, localizadas em diferentes bairros, incluindo aí o centro da cidade. A Professora Ana disse “meu grau de satisfação com a escola é baixo” devido à falta de condições para o ensino da Arte e a desconsideração desse ensino por parte dos colegas. A Professora Maria também anda um pouco desiludida com a escola, como ela própria fala: Hoje em dia posso dizer que minha satisfação com a escola poderia ser muito mais positiva. Mas não culpo ninguém e culpo a todos, se isso é possível. Eles não têm estrutura familiar, não tem acesso à cultura, à saúde, e nem mesmo à educação que verdadeiramente se deseja e necessitam. Já para a Professora Silvia a satisfação depende de momentos vividos. Alguns mais esperançosos e outros nem tanto, pois para ela: A satisfação depende muito dos momentos vividos, das expectativas que temos. Já vivi momentos de maiores esperanças quanto a desenvolver um trabalho melhor, hoje estou um pouco cansada, é difícil lidar com pessoas, mas faz parte. Outra docente que, apesar de estar vivendo na escola urbana seu melhor momento profissional, argumenta que está muito difícil lecionar hoje em dia, é a Professora Jenice, que afirmou anteriormente que seria mais feliz se tivesse optado por outra profissão e que não gosta de escolas, “a entidade”, como ela chama. A questão, agora, é registrar a voz dos professores sobre o momento em que estão vivendo como professores e mais, como professores de Artes Visuais. Antes, porém, é preciso lembrar que é na escola que aprendemos e ensinamos a ler, a escrever, a contar, a colocar questões ao mundo que nos cerca, à natureza, à maneira como homens/mulheres se relacionam entre si e com ela. É na escola que professores de Artes Visuais ensinam as imagens do mundo. É através da produção e circulação de significados, de modos como as pessoas vivem permutando e produzindo significados na vida social que a cultura escolar é produzida. Os significados culturais não estão nas próprias coisas, na 198 materialidade dos objetos; eles são construídos nas práticas que os sujeitos vivem. Os significados dependem da circulação dos sentidos produzidos nessas práticas. É nesse processo que a voz dos envolvidos ocupa uma função instituidora. As vozes dos professores produzem significados, realidades. Nesse sentido, os significados que são construídos nas práticas vividas por eles na escola e fora dela, na circulação dos sentidos que eles atribuíram a essas práticas em determinado tempo e espaço, esclarecem o momento em que estão vivendo como pessoas e como professores. Eis “a voz” de alguns dos professores: Então, eu vejo esse momento profissional que estou vivendo assim: ser professor está cada vez mais difícil. Tem que ter paixão senão já era. Nossa clientela pode ser alto risco, não se sabe. Nosso aluno está difícil. A escola é uma micro sociedade. Se a sociedade está consumista, em crise, violenta, sem perspectiva, isso vai se refletir na escola, na sala de aula. A escola não acompanha o apelo visual que o mundo oferece, a produção de comportamentos disseminados pela cultura visual. A disciplina de Arte merecia mais recursos para trabalhar com o mundo visual. Acredito que estamos vivendo um processo na educação. Estamos em transformação. Sou ciente que meu papel, nesse momento é de lutar para o reconhecimento da área de Arte, sua importância nas escolas e na formação do indivíduo, lutar por melhores condições de trabalho, salário enfim, por um maior comprometimento com o ensinar Arte (Professora Ana). Atualmente tento dar o melhor de mim. Tento fazer o melhor possível como professora, ser coerente e ser responsável com meu compromisso com a educação. Assumindo todas as tarefas e as cumprindo da melhor maneira possível. Estou sempre atenta a minha “eterna graduação”. Fiz curso de especialização e vou pleitear este ano o mestrado. Fora isso, procuro sempre estar participando de eventos que propiciem minha atualização e “reciclagem”. Cada vez mais minha preocupação com o lado humano das pessoas torna-se mais latente. Humanizar as relações é algo imprescindível. Perceber meu aluno como um ser único, diferente, mas que deve ser integrado na coletividade é para mim essencial. Vejo que mais importante que conteúdos e discussões teóricas faz-se necessário valorizar saberes culturais de cada aluno. A cada início de ano letivo renova-se a esperança, a vitalidade, a força para continuar numa batalha pelo melhor, pelo que atingirá mais pessoas positivamente. Sou professora porque quero. Porque brota em meu coração a vontade de contribuir com a vida de crianças e adolescentes e melhorar o mundo através da docência, da Arte (Professora Maria). Continuo lotado na mesma escola onde comecei e estou fazendo desdobramento de carga horária em uma escola de um dos balneários da cidade há três anos, local este onde me encontro realizado pelas amizades que fiz e pelos ensinamentos que obtive 199 dos mais experientes que me tornaram um educador visivelmente melhor do que aquele visionário de cinco anos atrás (Professor Paulo). É difícil ser professora de Arte, lidar com o barulho, com a desvalorização por parte das famílias, das direções e colegas, mas também é importante o que deixamos nos nossos alunos de significativo, a lembrança que fica e o reconhecimento (Professora Silvia). Meu momento profissional é o melhor da minha trajetória, mas também uma época difícil, eu percebo que a escola está muito defasada, está atrasada no tempo. Não acompanhou a evolução, temos uma escola que prepara o individuo para o vestibular e não para a vida. Os alunos não querem aprender, vão para a escola para socializar, namorar e jogar futebol. Trabalhar Arte é quase impossível (Professora Jenice). Acho este momento bom, tenho bastante oferta de trabalho, costumo dizer que se tivesse turno das horas às 6 horas da manhã também trabalharia. Costumo me impor como professora de artes (Educação Artística como dizem), tenho que ser vigilante no meu discurso tanto com os alunos como com os colegas. Nas escolas de séries iniciais, por incrível que parece as professoras titulares acham que as especializadas são para “dar folga”. Acham também que tenho que trabalhar as datas comemorativas, enfeitar a escola, mas não faço nada disso. No [...] uma professora falou ”brincando” que eu era uma incompetente porque não fazia isso, respondi a ela que tinha feito um curso universitário regular, que não tinha feito meu curso superior “nas coxas” como muitas que fizeram pedagogia porque o governo tinha oferecido, e ainda cursos de especialização pagos com trabalhos de conclusão encomendados, também falei que não tinha tirado curso de decoração de ambientes, se tivesse estaria animando festas de aniversário e talvez ganhando mais do que professora. Procuro estar atualizada no interesse dos alunos, estudar e rever a minha prática. Estou começando a registrar sobre minha prática e resultados, isso antes eu não fazia, mas como as pessoas me incentivam, dizem que meu trabalho é bom, se não registro meu trabalho se perde no tempo. Gostaria de publicar coisas que fiz e deu certo. Às vezes leio em artigos sobre trabalhos que já fiz e não me dei conta que era bom, aí pensei mas isso eu faço, e na publicação está como uma grande novidade. Estou numa fase que quero que um nome cresça e apareça por pura vaidade e reconhecimento do meu trabalho é o ditado: “Se eu não gavo....”. Acho muito coerente este momento (Professora Eduarda). As narrativas dos professores apontam, por um lado, para esperança de continuar lutando pelo que acreditam por sentirem-se realizados com o fato de serem professores por opção; por outro lado, reafirmam as dificuldades enfrentadas para ensinar Artes Visuais nas escolas em que trabalham. Dificuldades essas já manifestas nos questionários e confirmadas pela voz dos professores. 200 Os professores esperançosos acreditam que a luta deva ser pelo reconhecimento da importância do ensino da Arte para o desenvolvimento dos alunos por parte da escola, dos colegas, por melhores condições de trabalho, principalmente, porque a disciplina mereceria mais recursos para trabalhar com o mundo visual. Há, também, professores satisfeitos com o trabalho que estão realizando em sala de aula, sentem-se mais amadurecidos, mais conscientes da sua função de educador, pretendendo até buscar aprimoramento em cursos de pós-graduação. As dificuldades encontradas pelos professores estão mais diretamente ligadas à escola, ao aluno e ao trabalho com Artes Visuais. A escola, para alguns professores está distante da realidade do aluno e, como diz uma professora, “a escola está muito defasada, está atrasada no tempo. Não acompanhou a evolução, temos uma escola que prepara o individuo para o vestibular e não para a vida”. Ainda com relação à escola, outra professora a considera uma micro sociedade, pois para ela “se a sociedade está consumista, em crise, violenta, sem perspectiva, isso vai se refletir na escola, na sala de aula”. E, conseqüentemente, esses fatos refletem-se nos alunos, que na percepção de três professoras estão “difíceis” e como diz uma delas: “os alunos não querem aprender, vão para a escola para socializar, namorar e jogar futebol”. Isso faz com que elas considerem que ensinar Artes Visuais seja uma tarefa árdua, difícil, quase impossível de ser realizada. Com relação ao ensino das Artes Visuais, há o argumento de que a escola não acompanha o apelo visual que o mundo oferece, a produção de comportamentos disseminados pela cultura visual. Reafirma-se, mais uma vez, a concepção desse ensino vinculado a sua antiga terminologia, a Educação Artística, cuja função é trabalhar datas comemorativas, enfeitar a escola e proporcionar à professora titular das séries iniciais a sua tão almejada “folga”. Cabe, aqui, relembrar momentos muito distintos pelos quais passaram os professores, como, por exemplo, aquele em que a professora continua entusiasmada querendo mudar o mundo com seu ensino; aquele do professor mais centrado no seu trabalho e consciente de suas reais possibilidades, não tão visionário, fazendo o que pode e como pode; ou o da professora que trabalha em quatro escolas e vai levando “numa boa”. Ou aquele momento, já delineado 201 anteriormente, em que ocorre uma mudança de instituição de ensino para continuar a atuação docente ou ocupar alguma outra função fora da sala de aula, ou por outro lado, através de uma tomada de consciência mais ”aguda” das questões institucionais, buscar alternativas para o trabalho em Artes Visuais, o que significa maior investimento no ensino e na formação dos alunos. Configura-se, a partir das últimas falas dos professores, outro momento na vida profissional de alguns deles, como a docente que diz estar numa fase que “quer que seu nome cresça e apareça por pura vaidade e reconhecimento do seu trabalho”; ou como a professora que se tornou mais “dura”, menos esperançosa, diz estar hoje um pouco cansada e considera difícil lidar com pessoas, “mas faz parte”. É possível compreender, agora, ao término das narrativas sobre a trajetória pessoal e profissional dos professores, que o percurso de cada um dos docentes é único, repleto de singularidades e de acontecimentos variados em função do contexto social e escolar do trabalho ou da própria pessoa. Como vimos no decorrer das narrativas as modificações nas fases da vida dos professores foram ocasionadas pelas condições de tempo e lugar determinados, elas ocorreram pelas situações de oportunidades e limitações vividas por cada um dos professores. Fases da carreira docente Há algum tempo - penso que pelos resultados de pesquisas realizadas anteriormente e pelas situações vividas na minha prática docente num curso de formação de professores de Artes Visuais - venho me perguntando: o que leva um professor a ser diferente de outro se praticamente a formação acadêmica foi a mesma? O que leva um professor a ensinar Artes Visuais igual ao outro se a formação acadêmica foi diferente? Quais os fatores que determinam as diferenças? Por que alguns professores resistem tanto às mudanças? Acompanhada desses questionamentos, tenho um encontro decisivo com Bolivar e Huberman, autores que me possibilitaram visualizar possíveis respostas para tais inquietações. Em Bolivar encontrei o caminho que me levou aos ciclos 202 de vida dos professores, em Huberman as fases da carreira docente. Daí porque eu decidi trabalhar os ciclos de vida com base nas fases da carreira docente. O estudo dos ciclos de vida me permitiu traçar a trajetória pela qual passaram os professores, com a intenção de obter uma melhor compreensão da pessoa do professor e de sua atuação docente. Já as fases da carreira docente, que apresento a seguir, oportunizaram conhecer os momentos de mudanças de vida, de enfrentamento das crises e dos compromissos institucionais que os professores enfrentaram. Como já dito aqui, o modelo proposto por Huberman (1995) é centrado nos anos de experiência docente e não na idade. Para ele o desenvolvimento de uma carreira é um processo linear para alguns, para outros com momentos de altos e baixos, tornando-se bastante significativo compreender o percurso de uma pessoa numa determinada organização e a forma como as características dessa pessoa influenciam a organização e são, ao mesmo tempo, influenciadas por ela. Entretanto, os estudos realizados por Huberman envolvem professores com outras nacionalidades, com outras realidades. A proposta do autor, portanto, não foi aqui usada literalmente, mas serviu de base para a construção de um quadro com as fases da carreira docente do grupo pesquisado: professores de Artes Visuais de escolas municipais da cidade de Pelotas. A carreira docente caracteriza-se por diferentes fases que constituem o ciclo de vida profissional dos professores. O modelo que proponho, construído a partir das narrativas dos professores, segue uma ordem seqüencial de fases, admitindo uma diversidade com relação às variáveis históricas, institucionais e psicológicas que configuram um determinado grupo, ou seja, pessoas de uma mesma idade, pessoas com idades diferentes e um conjunto de experiências comuns - ou não - num certo espaço de tempo. Porém, esse modelo, diferentemente do proposto por Huberman, não toma como base para definir as fases apenas um critério rígido de anos de docência. Os anos de docência são considerados, mas não são definidores das fases, pois as narrativas dos professores comprovam que as fases podem mesclar-se constantemente, e uma não afasta nem elimina a possibilidade de outra. A definição de uma fase predominante em uma determinada situação, não descarta a possibilidade de outra fase considerada próxima. 203 As fases propostas são em número de quatro (Quadro 4), considerando que as duas primeiras foram comuns a todos os professores pesquisados. Tendo em conta o tempo de docência para aposentadoria, que é de 25 anos para mulheres (já que as professoras entrevistadas com mais tempo de docência são mulheres) e os acontecimentos narrados pelos professores que originaram as quatro fases da carreira, o cálculo para definição dos anos de docência foi feito com base na divisão do tempo de aposentadoria pelo número de fases, o que resultou na média de 6 anos para cada fase. Quadro 4 – Fases da carreira por aproximação dos anos de docência Anos de docência Fases da carreira 1-6 Impacto 7-12 Personalização 13-18 Alternância 19-25 Individualização Fonte: Elaboração própria. Para compreender as fases acima apresentadas, parto do princípio de que os anos de carreira são significativos para definir o início da primeira fase, denominada de impacto (1-6 anos), mas não balizadores do seu término, porque os acontecimentos – mais ou menos intensos - vividos pelos professores, tanto na escola quanto na vida pessoal, são determinantes para uma mudança de fase. Já a aproximação da segunda fase, de personalização (7-12), com os anos de carreira, justifica–se porque acontece a construção de um estilo pessoal de ensinar Artes Visuais para turmas de níveis tão diversificados e escolas com realidades diferentes e isso requer tempo e maturidade, o que não descarta uma mudança mais rápida provocada por um ou outro tipo de acontecimento, um momento crítico enfrentado pelo professor. É preciso lembrar que a docência em Artes Visuais passa por contextos históricos e conceituais nos quais se insere seu ensino, sofrendo, obviamente, transformações ao longo dos tempos, já que a Arte 204 em si mesma é uma realidade cambiante, e que algumas concepções de Arte e do ensino dessa Arte necessitam ser constantemente revisitadas. A fase de alternância (13-18 anos) corresponde a um período no qual o tempo de atuação possibilita ao professor uma maior compreensão do sistema educacional e da docência, do que pode ou não, do que quer ou não fazer; o professor permite-se optar. Lembro que fatores da vida pessoal são também determinantes na manutenção ou na mudança de fase. Já a proximidade com o final da carreira determina a fase de individualização (19-25 anos), responsável pelo distanciamento do professor dos problemas educacionais e pela busca de satisfação pessoal. Eis, então, as características, mais especificadas de cada uma das fases propostas. A primeira é a de impacto, o início da carreira docente, onde o professor tem um encontro com a realidade do cotidiano escolar, o “choque do real”. Esse primeiro contato pode ser fácil ou difícil, caracteriza-se, por um lado, pelo entusiasmo, pela sensação de euforia e de vitória por estar trabalhando; por outro lado, pelo contato com a realidade da escola, incluindo aí as condições de trabalho, condições sociais dos alunos, o relacionamento com os colegas, o lugar que o ensino da Arte ocupa na escola, enfim, as primeiras noções do que seja o trabalho docente com todas as suas implicações. Delineiam-se, nesse momento, os contornos da profissão docente pela descoberta por parte do professor de sua própria atuação, de seus alunos e de sua integração no coletivo profissional. Essa fase pode prolongar-se – ou não –, seu tempo de duração depende única e exclusivamente da forma como cada professor enfrenta seu início de carreira, mas o certo é que todos os professores entrevistados passaram por ela. A personalização é a fase onde o professor constrói um olhar mais aguçado sobre a realidade da escola, as implicações de seu trabalho, as necessidades específicas da área em que atua, bem como das relações com colegas e alunos, criando, assim, mecanismos de sobrevivência no ambiente escolar, alternativas de ensino por conta da uma maior confiança em si mesmo e no seu trabalho, o que lhe confere mais autonomia nas decisões relacionadas ao ensino e no comando de classe. Nessa fase da carreira os professores manifestam diferentes percepções, demonstrando estilos pessoais bem distintos. 205 É o momento em que estão mais seguros na organização e no desenvolvimento dos conteúdos frente à diversificação de níveis de ensino em que atuam. Outra fase é a de alternância, que pode levar o professor a momentos distintos como, por exemplo, a mudança de instituição de ensino para continuar sua atuação docente ou ocupar alguma outra função fora da sala de aula, ou por outro lado, através de uma tomada de consciência mais “aguda” das questões institucionais, ora buscar alternativas para o trabalho em Artes Visuais - o que significa maior investimento no ensino e na formação dos alunos -, ora acomodarse à rotina, fazer o que pode e como pode ou “levar numa boa. É uma fase em que os percursos individuais são mais acentuados, variando de pessoa para pessoa. A fase da individualização (19-25 anos) implica, realmente, no caminho para o final da carreira, para a aposentadoria, onde o professor tem seus pensamentos voltados mais para si do que para sua atuação docente, torna-se mais espectador do que ator do cenário educacional. É um período de interiorização, o investimento é mais pessoal, do querer estar bem consigo mesmo, pois a docência deixou o professor cansado, mais “duro”, menos esperançoso. Há certo distanciamento dos alunos e dos problemas da escola Os professores manifestam a dificuldade em lidar com os alunos, considerando-os pessoas difíceis. A construção dessa proposta de fases da carreira docente teve como base professores com diferentes tempos de trabalho, tal como indica o quadro abaixo: Quadro 5 – Professores entrevistados por anos de docência Professores Anos de Docência Ana 9 anos Sílvia 20 anos Maria 5 anos Diva 12 anos Eduarda 8 anos Paulo 5 anos Jenice 21 anos Fonte: Elaboração própria. 206 Então, se considerarmos os anos de docência, diríamos que temos uma professora e um professor na fase de impacto, duas na de personalização, uma professora na fase de alternância e, por fim, duas professoras, uma com 20 anos e outra com 21 anos, na fase de individualização. Entretanto, ao analisarmos as narrativas, percebemos que os limites de anos não são rígidos porque as mudanças de fases diferem de professor para professor de acordo com a trajetória pessoal e profissional, acontecimentos vividos individualmente, os momentos críticos, aceleraram ou retardaram as mudanças. Podemos, agora, lembrar dos docentes: daquela professora com cinco anos de docência que se sente mais segura e continua entusiasmada querendo mudar o mundo com seu ensino; do professor também com cinco anos de docência, que diz estar mais centrado no seu trabalho e consciente de suas reais possibilidades, não tão visionário, fazendo o que pode e como pode; ou o da professora com 12 anos de docência que trabalha em quatro escolas e vai levando “numa boa”; a professora que trabalha há 9 anos, busca alternativas para o trabalho em Artes Visuais, o que significa maior investimento no ensino e na formação dos alunos; e a outra com 8 anos de docência que quer que seu nome cresça e apareça por pura vaidade e reconhecimento do seu trabalho; a professora com 20 anos de carreira que algum tempo atrás, mudou de instituição de ensino para ocupar uma função fora da sala de aula e que diz estar hoje um pouco cansada, considerando difícil lidar com pessoas, que se tornou mais ”dura”, menos esperançosa e, ainda, a professora com 21 anos de docência que foi categórica ao dizer que chega, pois pensa que seria mais feliz em outra profissão. Não gosta de escolas, mas está lá, talvez para transgredir, e, apesar de tudo, afirma estar vivendo seu melhor momento na profissão. As narrativas dos professores comprovam que as fases se mesclam e uma não afasta nem elimina a possibilidade de outra. O estudo dos ciclos de vida, através da trajetória biográfico-narrativa dos professores compreendeu aspectos relativos à escolarização; escolha da profissão com seus fatores determinantes e expectativas; a trajetória acadêmica com suas influências, lembranças e formação prática de ensino; a carreira docente com seus primeiros anos de docência, o exercício da profissão e se o fato de ser mulher/homem afetou ou não o exercício da docência e, por fim, os 207 professores falaram da escola onde exercem a docência, destacando a história pessoal vivida na instituição, bem como o grau de satisfação com essa escola e o momento profissional em que se encontram. Finalizando, então, apresento uma breve retrospectiva do que eu ouvi dos professores. A imagem predominante no grupo é a da professora - uma vez que há apenas um professor do sexo masculino -, com idades que variam entre 30 e 51 anos sendo a maioria delas casada, apenas uma divorciada e, o professor, solteiro. Estudaram todos os níveis de ensino em instituições públicas e são formados, em nível superior, pelo IAD/UFPel, concluindo seus cursos entre 1985 e 2002, com formação diferenciada devido às transformações ocorridas na estrutura curricular do curso durante esse período. Com relação às experiências escolares, os professores revelam que estão intimamente ligadas à figura do professor, cujas marcas deixadas são, na verdade, referências em suas vidas, porque estão relacionadas às representações e sentimentos construídos no interior da escola. Os professores, sobre a opção pela carreira, destacam que para a maioria foi uma decisão pessoal, um desejo manifesto bem antes do ingresso em um curso de formação de professores. Ou como no caso do professor e de uma das professoras, cuja paixão sempre foi a Arte, a opção pelo curso de licenciatura na área de Arte foi por ser este a via mais fácil de ingresso no ensino superior, uma vez que apresenta baixa concorrência. Os fatos determinantes para a escolha da profissão resultam de um somatório de fatores externos combinados com as condições subjetivas de cada um deles, incluindo as vivências na família e na escola. Destaco que a escolha pela área deu-se porque a Arte e suas linguagens fizeram parte da infância desses professores. Com base nas narrativas, percebo que os professores fazem suas avaliações da formação recebida a partir de vivências pessoais e da atuação docente. As diferentes percepções sobre a formação acadêmica comprovam a singularidade na vida desses professores. Apesar de destacarem aspectos positivos da formação que contribuíram na profissão, enfatizam que o conhecimento adquirido através da experiência é preponderante para o exercício profissional, pois acreditam que na sala de aula o professor aprende a ser professor. 208 As mudanças ocorridas, tanto na sua atuação como na sua forma de pensar a escola, são devidas aos momentos críticos no decorrer da profissão. Os acontecimentos apontados pelos professores estão relacionados mais diretamente com a escola, ou seja, com situações vividas na escola, principalmente, com o lugar que a Arte ali ocupa, evidenciado pela falta de condições materiais e a não valorização do ensino das Artes Visuais por parte dos colegas, e até mesmo por parte dos alunos. Todos os professores preparam sozinhos suas aulas, são eles os responsáveis pelos conteúdos trabalhados em sala de aula. O que significa que, como não tiveram em sua formação acadêmica subsídios necessários para trabalhar Artes Visuais nas séries iniciais e no ensino médio, eles buscam soluções e alternativas de trabalho através de esforços individuais. O fato de ser mulher, na percepção das professoras, ajuda no exercício da profissão. Algumas falas estão centradas na idéia da maternagem, destacandose, ainda, a missão/apostolado de que se reveste a docência. A presença do professor na escola gerou problemas primeiro por ser jovem e ser visto como um irmão mais velho, dificultando seu reconhecimento como o professor; a outra situação foi o fato de ser gay e sofrer preconceito por parte das colegas. A responsabilidade feminina pelo trabalho doméstico se mostrou relevante, ainda uma atribuição das professoras e não do professor. A dupla jornada de trabalho, profissional e doméstico, foi, de fato, uma realidade para as mulheres estudadas. Vale lembrar que as professoras, pela necessidade de realizar a dupla jornada de trabalho, têm aí um possível obstáculo ao avanço profissional. O grau de satisfação dos professores apresenta-se variado, mas de um modo geral, eles mostram-se pouco satisfeitos com as condições da escola e com as condições sociais dos alunos, o que acarretaria dificuldades no aprendizado desses alunos. Suas narrativas apontam, por um lado, à esperança de continuar lutando pelo que acreditam por sentirem-se realizados com o fato de serem professores por opção; por outro lado, reafirmam as dificuldades enfrentadas para ensinar Artes Visuais nas escolas em que trabalham. As dificuldades encontradas pelos professores estão mais diretamente ligadas à escola, ao aluno e ao trabalho com Artes Visuais. A escola, para alguns 209 professores, está distante da realidade do aluno, não acompanha a evolução, uma escola que prepara o individuo para o vestibular e não para a vida. Quanto ao ensino das Artes Visuais, a escola não teria condições de acompanhar os apelos visuais contemporâneos. Considero que o estudo sobre os ciclos de vida com base nas fases da carreira docente dos professores possibilitou-me a compreensão do percurso de cada professor através da análise diacrônica, em função do conjunto de etapas como circunstâncias sociais e históricas e estágios profissionais. O estudo obedeceu a um certo grau de normatividade, seguindo as seqüências de fases/estágios pelos quais costumam passar as pessoas, no entanto considero, também, o conjunto de acontecimentos sócio-históricos e eventos individuais inesperados na vida de cada pessoa. O caminho biográfico possibilitou a construção de um inventário de experiências e competências profissionais vivenciadas e, ao mesmo tempo, permite uma compreensão global da pessoa que habita cada um dos professores. Seu desempenho profissional pode atuar como um espelho crítico que devolve a imagem para que possa ser repensada, refletida, analisada e reconstruída. A seguir, apresento um capítulo “visual”, com acontecimentos vividos que marcaram a trajetória profissional de cada um dos professores, ou seja, biovias, caminhos biograficamente construídos. OS PROFESSORES PELAS SUAS TRAJETÓRIAS DOCENTES “Squares? I see no squares in my pictures" Piet Mondrian Minha Imagem Viajante nº8 é a tela Broadway Boogie-Woogie de Mondrian57, realizada pouco depois de este ter mudado para Nova Iorque, em 1940. Embora a obra tenha um caráter essencialmente abstrato, essa pintura se inspira diretamente em duas referências do mundo real: o traçado urbano de Manhattan e o ritmo do boogie-woogie, estilo de dança que o pintor admirava. A geometrização de Mondrian, para mim, é um exemplo de organização do espaço e porque não dizer, também, do tempo. Na tela a idéia é a forma e a forma é a idéia, percebo, ainda, um equilíbrio estático e ao mesmo tempo dinâmico. Seu traçado, através de linhas horizontais e verticais, limita e ao mesmo tempo transcende ao espaço pictórico. É, exatamente, aí, que vejo o traçado das trajetórias docentes individuais dos professores: no estático pelas continuidades do percurso, com uma unidade singular e de formas particulares; no dinâmico Pieter Cornelis Mondrian, conhecido como Piet Mondrian (1872-1944), pintor holandês que considerava a arte um meio intuitivo tão exato como a matemática para representar as características do cosmo. O termo Neoplasticismo refere-se ao movimento artístico de vanguarda capitaneado pela figura de Mondrian, relacionado à arte abstrata. O Neoplasticismo defendia uma total limpeza espacial para a pintura, reduzindo seus elementos mais puros e buscando suas características mais próprias. Muitos de seus ideais foram expostos na revista De Stijl (O Estilo). Para Mondrian, o elemento definitivo no neoplasticisno era o seu desejo de objetividade, uma tendência anti-expressionista (READ, 1980, p. 194-196). 57 211 pelas descontinuidades dos percursos, com uma aparente organização contínua que permite ir além, uma organização necessária para entender que os professores continuarão a (re)construção de suas trajetórias profissionais. Um traçado de limites ilimitados é o que me sugere a imagem de Mondrian. A utilização de biovias serve para mostrar fatos ocorridos durante os anos de docência, o perfil profissional dos professores. Tais fatos narrados pelos professores, em sua percepção atual, contribuíram para configurar a vida profissional. Os acontecimentos vividos - momentos críticos – que marcaram a trajetória docente em Artes Visuais são relatados seqüencialmente, conforme ocorridos no tempo narrativo do professor. Pelas narrativas os professores reconstruíram um conjunto de acontecimentos que determinaram por si mesmos o curso da vida docente e suas relações com as fases da carreira de cada um. A seguir, apresento os professores pelas suas trajetórias docentes e uma breve caracterização do perfil profissional. Optei por representar cada acontecimento por uma cor, que se repetirá nos acontecimentos comuns ao grupo, como por exemplo, o concurso público – na cor azul – que significou para todos o início da tão almejada docência, vitória pessoal e estabilidade financeira. Outro caso é o Curso de Especialização – na cor laranja – que proporcionou aos professores maior qualificação e conhecimentos que os acompanham até hoje. A falta de recursos materiais e a desvalorização da Arte na escola - na cor marrom e vermelho, respectivamente – acompanham a trajetória de alguns docentes até o momento atual. Desta forma, para a construção das biovias foi utilizado o programa PowerPoint 2007, a partir dos seguintes critérios: (a) definição de dois eixos: um vertical para indicação dos acontecimentos, que seguiram uma ordem seqüencial, de cima para baixo, de acordo com o tempo de ocorrência e outro horizontal relativo aos anos de docência indicados da esquerda para a direita; (b) traçado de linhas coloridas para cada um dos acontecimentos de acordo com os anos de docência. Sendo mantidas as cores para os acontecimentos repetidos. A linha pontilhada não significa acontecimento, apena marca a direção do mesmo, representado pela linha cheia. Eis, então, as biovias de cada um dos professores. 212 Biovias 1 – Professora Ana - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência PROFESSORA ANA Tem 43 anos e 9 anos de docência. Trabalha em três escolas num total de 60 horas, 40 horas semanais em duas escolas municipais, 20 horas em cada uma delas e mais 20 horas em uma escola estadual. Leciona ao todo para 398 alunos, o que corresponde a 18 turmas. Atua em todos os níveis do ensino fundamental, primeiros anos do ensino médio e uma turma do EJA. Momentos críticos: curso de especialização na área de Educação, concurso público para o magistério, desvio da função docente para o setor de Multimeios da SME, dupla jornada de trabalho, dificuldades com o ensino nas séries iniciais, falta de recursos materiais, desvalorização da Arte na escola. 213 Biovias 2 – Professora Sílvia - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência PROFESSORA SÍLVIA Tem 45 anos e 20 anos de docência. Trabalha60 horas semanais em três escolas: 40 horas em duas escolas municipais e 20 horas em uma escola estadual. Leciona ao todo para 200 alunos, o que corresponde a 10 turmas. Atua em todos os níveis do ensino fundamental, primeiros anos do ensino médio e em uma turma de alunos surdos. É coordenadora pedagógica da escola municipal. Momentos críticos: concurso público para o magistério, dupla jornada de trabalho, desvio da função docente para coordenação por área na SME curso de especialização em Educação Ambiental, perda de 20 horas por perseguição política na escola, mudança de escola, desvio da função docente para coordenação pedagógica da escola, falta de recursos materiais, desvalorização da Arte na escola. 214 Biovias 3 – Professora Maria - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência PROFESSORA MARIA Tem 34 anos e 5 anos de docência. Trabalha 40 horas semanais em uma escola municipal. Leciona ao todo para 400 alunos, o que corresponde a 16 turmas. Atua em todos os níveis do ensino fundamental. Momentos críticos: concurso público para o magistério, curso de especialização em Patrimônio Cultural, desvio da função docente para coordenação por área na SME, condições sociais dos alunos, desvalorização da Arte na escola. 215 Biovias 4 – Professora Diva - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência PROFESSORA DIVA Tem 38 anos e 12 anos de docência. Trabalha 70 horas semanais, 40 horas em duas escolas municipais, 20 horas numa estadual e 10 horas numa escola particular, Leciona ao todo para 950 alunos, o que corresponde a 27 turmas. Atua em todos os níveis do ensino fundamental. Momentos críticos: concurso público para o magistério, impacto entre escola particular e escola pública, dificuldade com o ensino noturno, falta de recursos materiais. 216 Biovias 5 – Professora Eduarda - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência PROFESSORA EDUARDA Tem 46 anos e 8 anos de docência. Trabalha 60 horas semanais, 40 horas em uma escola e 20 horas em outra, ambas municipais. Leciona ao todo para 450 alunos, o que corresponde a 21 turmas. Atua em todos os níveis do ensino fundamental, no primeiro ano do ensino fundamental e em uma turma de alunos surdos. Momentos críticos: concurso público para o magistério, mudança de escola, curso de capacitação para trabalhar com surdos, dupla jornada de trabalho, desvalorização da Arte pelos colegas e na escola. 217 Biovias 6 – Professor Paulo - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência PROFESSOR PAULO Tem 30 anos e 5 anos de docência. Trabalha 60 horas semanais, 40 horas em uma escola e 20 horas em outra, ambas municipais. Leciona ao todo para 600 alunos, o que corresponde a 19 turmas. Atua em todos os níveis do ensino fundamental, menos a 8ª série. Momentos críticos: concurso público para o magistério, mudança de escolas (quatro vezes), enfrentamento com a realidade escolar, preconceito das colegas sobre sua orientação sexual. 218 Biovias 7 – Professora Jenice - Trajetória docente por acontecimentos e anos de docência PROFESSORA JENICE Tem 51 anos e 21 anos de docência. Trabalha 60 horas semanais, 40 horas em uma escola e 20 horas em outra, ambas municipais. Leciona ao todo para 400 alunos, o que corresponde a 15 turmas. Atua em todos os níveis do ensino fundamental e no Curso de Magistério. Momentos críticos: concurso público para o magistério, mudança de país, mudança de cidade (docência em Porto Alegre e em Pelotas), enfrentamento com estrutura escolar, distanciamento da escola com a realidade, desinteresse dos alunos, desafio de trabalhar no Curso de Magistério. 219 Quando me propus a sair ao “ar livre” para capturar dados era para entender melhor as nuances e as mutações coloridas das trajetórias profissionais dos docentes de Artes Visuais. Agora, o quadro abaixo, revela as cores de cada professor marcadas pelos seus momentos críticos, vividos de acordo com os anos de docência e as fases da carreira dos professores. Quadro 6 – Mutações coloridas da trajetória profissional dos docentes O próximo capítulo é, também, “visual”, pois nele os professores, graças à imaginação, apresentam-se pelas imagens por eles escolhidas. Mais que qualquer outra função, elas especificam o humano. Assim, a imaginação não é um estado de espírito, é a própria existência humana dos professores. OS PROFESSORES PELAS SUAS IMAGENS VIAJANTES A arte não representa o visível, ela torna visível. Paul Klee A inspiração para explicar este momento do trabalho veio, sem dúvida, de Paul Klee58, sua obra “Reconstruction” é minha Imagem Viajante nº 9. Para mim o traço do artista parece ser um instrumento de busca de uma forma mais livre que se desdobra no tempo e no espaço e exige a participação do espectador. Uma obra pode ter mil significados ou não ter nenhum, depende de quem a vê. O artista se propunha a revelar o que permanecia oculto na superfície visível do quadro, pensava ele que o espectador buscava uma semelhança através da correspondência no tempo e no espaço que permitiam desdobramentos, para possíveis identificações. Ao declarar em 1921, querer tornar visível o invisível, ele pretendeu captar a energia vital existente no mundo. Ele pintava o que os olhos não enxergavam. Seus quadros não eram para ser vistos, apenas sentidos com a alma e com o coração, ele buscava o mundo exterior, aquele que estava além das aparências. Assim, ao solicitar aos professores suas Imagens Viajantes, reveladoras de si, queria como espectadora que essas imagens, tal como Paul Klee pensava, ocasionassem, independente do tempo e da cultura, uma aproximação, um encontro com o outro para além das aparências. Então, os professores pelas suas imagens. Paul Klee (1870-1940) foi um pintor alemão que pertenceu ao grupo “Cavaleiro Azul” do Expressionismo de Munique, que buscava um “novo realismo que comportava certo aroma socialista” (READ, 1980, p. 220). 58 221 PROFESSORA Nº 1 Como na imagem de René Magritte, estou indo. Tento me ver e me enxergo indo, fazendo parte de um momento de avanço. Não me sinto pronta como professora, sempre falta mais. Me olho e não me enxergo de frente, me enxergo indo em frente. A reprodução proibida – Retrato de Edward James Rene Maggrite – 1937 Private collection PROFESSORA Nº 2 Considero a obra de Dali de acordo com o meu momento atual. O tempo que passa rápido e não nos permite viver e só sobreviver. A ligação do tempo versus memória nos faz pensar na saúde, na diminuição de hormônios e na necessidade de se permanecer atuante no trabalho, na família e na sociedade Persistência da Memória - Salvador Dali, 1931. MoMA, New York 222 PROFESSORA Nº 3 Escolher uma imagem apenas para representar o momento atual de minha profissão, foi algo muito difícil de fazer. Ao conviver com as imagens e reproduções das obras de arte, desde a faculdade e na seqüência da carreira, fez com que elas façam parte de minha vida de forma especial. Ao pensar sobre a profissão e o que cada obra pode “dizer” é difícil não encontrar algo em tantas que não tenha significado. Contudo, escolhi a obra de Picasso – Lês Demoiselles d’Avignon, 1907 – pois nela encontrei muito de mim, de meu jeito, de minha vida, de minha prática e do meu dia-a-dia, que tentarei descrever. Assim como nessa obra onde se vê muitas mulheres, penso que também sou por vezes “muitas mulheres”. Mulher dona da casa que luta para mantê-la; mulher amada; mulher amante; mulher amiga; mulher frágil, mulher valente; mulher que quer estar sozinha, mas que também gostaria sempre de ter alguém para compartilhar, e quem sabe outra mulher; uma mulher que às vezes está bem de frente, para tudo e para todos; mulher que às vezes está de costas, pois não suporta mais encarar o mundo – e esse mundo difícil às vezes é o da educação mulher que às vezes precisa usar uma máscara, talvez não para esconder-se, mas para que simplesmente não vejam sua tristeza ou depressão ou até mesmo o êxtase do seu prazer. Penso que hoje sou assim, “muitas” em uma só. Sou sem sobre maneira, muitas professoras: comprometida, preocupada, realizada, otimista, frustrada, orgulhosa, desmotivada; Uma apenas que precisa se desdobrar em muitas, para enfrentar as adversidades, dificuldades, lutas e muito mais. Hoje me vejo assim, tentando estar da melhor maneira possível diante de tudo e todos e, às vezes o melhor é estar junto, é usar máscara, é ficar de perfil, de frente, de costas, mas sempre estar presente. Minha profissão atualmente exige tanto de mim, que sinto ser mais que uma mulher... sinto que preciso ser aquela que ainda é aluna, e que quer ser aluna, que é professora, que quer ser mais professora, que tem especialização, mas quer chegar no mestrado, que é filha e quer ser mãe... Hoje minha profissão me coloca assim na vida, muitas mulheres diferentes. Les Demoiselles d'Avignon, Pablo Picasso, 1907 Giraudon, Paris 223 PROFESSORA Nº 4 Bom, escolhi é claro do Van Gogh por adorar a obra deste artista, escolhi também esta obra por ter imagens ligadas à influência japonesa na qual estamos agora vivendo um momento tão ligado a arte oriental vivenciando as olimpíadas, ideogramas. Essa relação com outras culturas da obra do artista me fascina. Retrato de Pai Tanguy 1887-1888 Van Gogh Collection Niarchos PROFESSORA Nº 5 Escolhi essa imagem porque me sinto responsável por meus alunos tanto no desenvolvimento moral, cognitivo como físico. Às vezes sou mãe, psicóloga, babá de pobre porque muitas famílias vêem a escola como um depósito, lugar onde coloca o filho para descansarem, lamentam as férias, mandam seus filhos sem material e nós que temos que nos resolver com o que temos. Eu também trabalho com criança de periferia. Morro Vermelho – Lasar Segall -1926 Coleção Particular 224 PROFESSOR Nº 6 Detalhe da obra Nascimento de Vênus – Sandro Botticelli – 1483 Galeria degli Uffizi, Florença Alguém certa vez disse: “que a melhor parte da viagem acontece justamente quando pomos de lado os mapas” e nos deixamos ir ao sabor das sensações, para tanto a minha viagem por estes questionamentos terá como ponto fixo apenas o local da partida, uma imagem, com múltiplos significados e infindas interpretações. Na verdade não se trata de uma imagem, mas de um detalhe muito peculiar de uma famosa obra de um dos grandes mestres da renascença. Resolvi escolher o rosto da personagem tema da obra “O Nascimento de Vênus” de Botticceli mesmo antes de ter posto meus olhos sobre a entrevistadora, na verdade acho que ela me escolheu. Em uma de muitas das minhas andanças virtuais pela rede de computadores a procura de imagens significativas da historia da arte, depareime com aqueles olhos. Olhos que me fizeram viajar mais além, em busca talvez de mim mesmo, ou quem sabe o que mais. A partir daquele momento o pano de fundo da área de trabalho do meu computador havia se transformado numa ponte, numa janela, onde ela, a Venus, me levava ao encontro de vários pensamentos, tais como, beleza, arte, educação e renascimento. Uma imagem, um rosto, um olhar secular, que apesar de toda a sua beleza e significação traz consigo séculos de história desgastada em seus pequenos craquelados, marcas que o tempo foi talhando, modificando-a em sua forma, tornando-a um pálido reflexo daquilo que os olhos do mestre haviam concebido. Terão os anos alterado, também, a sua essência? 225 PROFESSORA Nº 7 Solitária, observando o mundo, mas com um entendimento mais profundo de tudo isso... por isso o meio sorriso. Mona Lisa - Leonardo da Vinci, 1503-1507 Museu do Louvre - Paris A VOZ: IMPRESSÕES FINAIS O senhor mire e veja, o mais importante do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. É o que a vida me ensinou”. Guimarães Rosa Em “O Grito” de Munch, a Imagem Viajante nº 9, encontro minha inspiração para escrever minhas (in) conclusões. Essa obra é representada por uma figura andrógina num momento de profunda angústia e desespero existencial. O pano de fundo é a doca de Oslofjord ao pôr-do-sol em Oslo. “O Grito” é considerada como uma das obras mais importantes do movimento expressionista59 e adquiriu um estatuto de ícone cultural. Entendo a obra do artista como o resultado de uma necessidade compulsiva de abrir seu próprio coração. Ele, ao longo de sua vida, não só lutou pelo subjetivismo como tal, mas teve como objetivo estabelecer valores universais através dos individuais, pela cristalização das imagens, das emoções mais profundas do homem - amor, morte e angústia - que retiveram suas propriedades primitivas evidentemente esquecidas pela civilização burguesa do seu tempo. Expressionismo: corrente estilística que surgiu na Alemanha em 1904-1905, caracteriza-se pelo predomínio do sentimento sobre a sensação visual. Os expressionistas expressavam interrogações espirituais sobre o destino do homem e a intimidade das coisas do mundo. Edvard Munch (1863- 1944) foi um pintor norueguês, um dos precursores do expressionismo alemão (Cavalcanti, 1978, p. 312). 59 227 A fonte de inspiração de “O Grito” pode ser encontrada na vida pessoal do próprio Munch e eu, tal como o artista, encontrei em mim as razões para falar pela minha voz escrita – o que sei, o que vi e ouvi durante a trajetória de realização deste trabalho. Não tomo esse momento, como aquele do artista ao realizar sua obra, para expressar angústia ou qualquer problema existencial, mas o considero delicado e difícil porque preciso ter o cuidado de não julgar na tradicional linha do certo e do errado, do bem e do mal, de não achar que encontrei todas as soluções para o trabalho docente em Artes Visuais. Quero sim, entender esse momento pelas palavras de Guimarães Rosa, que eu não estou pronta, que eu e meus professores entrevistados não somos sempre iguais, não fomos terminados, mas que vamos sempre mudando. No entanto, não posso e não vou deixar de falar nas evidências determinadas e determinantes pelos dados coletados nesta investigação para explicitar a trajetória profissional dos professores, com suas continuidades, descontinuidades e seus reflexos na docência em Artes Visuais. Pensando bem, eu não poderia desenvolver uma tese que não tratasse – mais uma vez e como sempre - do professor de Arte, neste caso específico do professor de Artes Visuais. Procurei, então, entender esse docente com outro olhar que não o reduzisse a um conjunto de possibilidades metodológicas para o ensino, ou tentar analisar seu ensino no cotidiano da sala de aula, ou ainda, pela definição das características intrínsecas do ‘bom’ professor. Busquei entender o professor através de sua trajetória profissional, considerando que essa resulta também de sua trajetória pessoal, que como eu gosto de dizer, parodiando Nóvoa, pensar a pessoa e o profissional que habita cada professor. Como o objetivo desta pesquisa foi investigar as continuidades e descontinuidades na (re)construção da trajetória profissional de docentes de Artes Visuais, defendi, ao longo do trabalho, a idéia de que os aspectos significativos da vida pessoal e profissional e que o momento docente em que se encontram os professores interfere e revela sua atuação docente. O primeiro passo foi voltar o olhar para mim e reconstruir minha própria trajetória pessoal e profissional, buscar na memória registros do passado, lembranças das experiências vividas, dos eventos significativos que me produziram e fizeram produzir-me como sujeito, mulher, professora. Nessa volta 228 ao passado percebi que minha trajetória pessoal foi determinante na (re)construção da trajetória profissional e que as continuidades e descontinuidades ocorridas nessa união de trajetórias determinaram, sem dúvida, minha maneira de ser professora. A partir daí, voltei minha atenção para minha trajetória profissional numa instituição formadora de professores e ao revisitar pesquisas anteriores, ora com professores da rede pública, ora com professores do centro formador desses professores, encontrei o foco para este trabalho. Os resultados inquietaram-me, levaram-me a pensar que, em parte, por um lado os professores ensinam Arte nas suas escolas de forma semelhante a dos seus professores e por outro, criam soluções próprias para o seu ensino. No entanto, ficou claro para mim um fator nitidamente marcante: a diferença existente de professor para professor na sua forma de trabalhar as Artes Visuais com seus alunos, apesar de concepções e formações semelhantes ou diferentes. Meu desafio, então, estava posto. Aceitei o desafio de pensar a dimensão pessoal aliada aos acontecimentos marcantes da dimensão profissional como fundamental no processo pelos quais os professores se constroem e dinamizam seu trabalho, deixando claro que o aperfeiçoamento profissional está associado ao desenvolvimento pessoal, ou faz parte dele. Um desafio que me levou a conhecer as características e expectativas formativas comuns no coletivo a partir de um grupo de professores, para depois ouvir a voz do professor e dela extrair as considerações que me permitiram compreender o entrelaçamento de suas histórias e trajetórias em diferentes espaços e tempos de sua vida pessoal e de sua prática docente. É essa escuta que considerei antes de qualquer julgamento, pois o relato de vida, ao transpor a voz do professor, revelou suas reais necessidades, revelou quem ele é. Imagens delineadas pelo gesto Certa do que eu queria pesquisar, parti para conhecer as características e expectativas formativas comuns no coletivo a partir de um grupo de quarenta (40) professores. 229 Um grupo predominantemente feminino, com idades entre 30 e 51 anos, cuja escolarização e formação superior foram realizadas em instituições públicas de ensino. O regime de trabalho da maioria dos professores é de 40 horas semanais e o tempo de docência varia entre 5 e 24 anos. A escolha da profissão para todos os docentes foi uma opção pessoal; e se eles pudessem reiniciar a carreira escolheriam novamente a docência, pois acreditam na educação, consideram o trabalho gratificante e destacam, ainda, a estabilidade que esse trabalho proporciona. No entanto, um grupo significativo tem como expectativa futura a aposentadoria por considerar o trabalho docente estressante e as condições de trabalho precárias. Indicam, ainda, os baixos salários e o desprestígio social como fatores que desestimulam o trabalho docente. Apenas o professor, que não tinha como opção profissional a docência, pretende buscar sua atualização profissional através de um curso de pós-graduação e, no futuro, se tivesse possibilidade, trocaria de profissão. Com relação ao ensino das Artes Visuais, destaco situações que permanecem inalteradas apesar do tempo: questões recorrentes na pesquisa. Ao solicitar, tanto nessa investigação como nas anteriores, a indicação das dificuldades encontradas para ensinar Artes Visuais e sugestões para a melhoria do ensino, encontro as mesmas respostas: a falta de livros didáticos, a necessidade de um espaço físico adequado e, ainda a desvalorização da Arte como área de conhecimento por parte dos alunos e da escola. E como sugestões, também, as mesmas: a necessidade de cursos de atualização mais voltados para a realidade do aluno e da escola e, também, maior compromisso da universidade com a formação continuada e, talvez por isso – e devido a isso –, não há indícios de mudanças tão significativas no ensino das Artes Visuais desses professores. Um fato comprovado, e mais uma vez evidenciado, é sobre o espaço físico onde ocorrem as aulas de Artes Visuais dos professores. Elas, como já disse anteriormente, acontecem entre quatro paredes, resumem-se a uma simples sala de aula. Nesse espaço físico os professores sobrevivem com o que têm e podem fazer, enfrentam a ausência das condições mínimas e os alunos, por sua vez, ficam restritos a uma folha de ofício tamanho A4 nas suas experiências e produções visuais. Para ampliar a percepção visual de seus alunos recorrem a 230 materiais próprios, se eles não têm os alunos não vêem. A escola também não tem. Outro aspecto detectado com a pesquisa diz respeito à formação acadêmica. Os professores têm essa formação realizada no período de 1983 a 2002, o que significa um grupo de professores com formação diversificada, ora polivalente, ora sem polivalência; ora habilitados em Artes Plásticas, ora em Artes Visuais. No entanto, a ampliação na formação de professores para atuar em todos os níveis de ensino fundamental e médio e para entender e atender os vários contextos da Arte e suas relações com a multiculturalidade e com a cultura visual ocorreu com a reformulação de 2004, não atingindo o grupo de professores que participa desta pesquisa. Penso ser importante salientar que os professores ocupam seu tempo na escola apenas com atividades em sala de aula, exceto a professora que tem uma carga horária dedicada à coordenação pedagógica. Essa situação evidencia a questão da intensificação do trabalho docente, pois eles têm pouco tempo para pensar, programar e planejar, o que acarreta, segundo Apple (1987), no decorrer do processo, um aumento de desqualificação profissional e um elevado grau de dependência, por parte dos professores, das tecnologias educacionais e das determinações externas. Confirma-se com esses professores a falta de tempo para cursos de aperfeiçoamento, ao que Apple (1987) chama de dinâmica de desqualificação intelectual. O grupo de professores é extremamente comprometido com a profissão escolhida por eles, consideram o conhecimento adquirido através da experiência fundamental para o exercício da profissão. Reforço, aqui, o que disse anteriormente a respeito de eles estarem certos, pois concordo que os professores se constroem, sim, ao longo de sua vida e que, no exercício de seu trabalho, utilizam saberes oriundos de suas experiências profissionais. Porém, onde ficam as experiências familiares e escolares, os processos de formação profissional? Arroyo (1985a) está correto ao dizer que os professores costumam atribuir aos saberes construídos no exercício do magistério um valor predominante quando questionados sobre a construção de sua competência. Os professores não consideraram os conhecimentos oriundos de sua formação profissional nem tampouco o domínio dos conteúdos de sua área de atuação, as 231 Artes Visuais. Apenas o professor homem assinalou o domínio do conhecimento em Arte como aspecto relevante para a sua atuação em sala de aula. É importante lembrar que os estudos sobre os saberes docentes valorizam a ação da experiência profissional, que é possível a produção de um conhecimento prático, porém enfatizam a compreensão de que o professor, ao desenvolver seu trabalho, mobiliza uma pluralidade de saberes. Tanto Gauthier (1998) quanto Tardif (2002) enfatizam que existe, sem dúvida, uma mobilização de saberes nas ações dos professores e, ambos compreendem os educadores como sujeitos que possuem uma história de vida pessoal e profissional e que são produtores de saberes no exercício de sua prática. No entanto, não se pode negar a contribuição dos saberes da formação profissional, do conhecimento científico, da disciplina que o professor ensina, dos currículos e materiais instrucionais com que trata o professor, da estrutura e organização escolar onde o professor atua na sua prática docente. As imagens delineadas por respostas dadas, por um simples gesto de marcar numa folha de papel, traçaram uma imagem geral do grupo de professores, apresentando as características e expectativas formativas comuns no coletivo. Imagens construídas pela voz No momento seguinte apresentei, através da voz dos professores, os eventos e experiências, passados e presentes, em casa, na escola, na universidade, que configuram a vida e a carreira e suas expectativas acerca do futuro, ou seja, acontecimentos histórico-sociais que fazem desse professor uma pessoa total. Os processos formativos dos e nos professores determinam, também, as práticas cotidianas em sala de aula e as experiências decorrentes das continuidades e descontinuidades durante a construção e a reconstrução da trajetória individual de cada professor. Só ele sabe de si, das relações que estabeleceu com o seu processo formativo e com as aprendizagens que construiu ao longo da vida. A trajetória biográfico-narrativa dos professores compreendeu aspectos relativos à escolarização; escolha da profissão com seus fatores determinantes e 232 expectativas; a trajetória acadêmica com suas influências, lembranças e formação prática de ensino; a carreira docente com seus primeiros anos de docência, o exercício da profissão e se o fato de ser mulher/homem afetou a carreira, o exercício da docência. Por fim, os professores falaram da escola onde exercem a docência, destacando a história pessoal vivida na instituição, bem como o grau de satisfação com essa escola e o momento profissional em que se encontram. Evidenciou-se nas falas dos professores a singularidade das trajetórias individuais de escolarização, reafirmando a especificidade do percurso de cada um dos professores na apreensão de vivências na família e na escola. A imagem de escola revelada pelos professores está intimamente ligada à figura do professor. Suas falas revelam a importância das marcas deixadas pelos seus professores que, na verdade, são referências em suas vidas porque estão relacionadas às representações e sentimentos construídos no interior da escola. A figura do professor destacou-se, seja como parâmetro do que é ser um bom professor ou de um professor que tenha deixado marcas não muito positivas nas lembranças do grupo. Entretanto, reafirmou-se que as razões que determinaram a escolha da profissão dos professores foi resultado de um somatório de fatores externos combinados com as condições subjetivas de cada um deles. A escolha desses professores implicou em uma profissão ligada à Arte a partir de uma relação com as manifestações expressivas vivenciadas na infância, na família e/ou na escola. A opção pela carreira revelou que, por um lado, a decisão da maioria das professoras está atrelada a uma continuidade da formação, no caso o magistério, lembrando que elas próprias dizem ter sido esta uma opção pessoal, um desejo manifesto bem antes do ingresso em um curso de formação de professores. Por outro lado, temos clara a opção de uma professora por ser esta uma profissão que proporciona certa estabilidade e existe mais oferta de trabalho. Já no caso do professor e de outra professora, cuja paixão sempre foi a Arte, reforça-se, aqui, que o curso de licenciatura na área de Arte é uma via mais fácil de ingresso no ensino superior, uma vez que apresenta baixa concorrência. Com relação à formação recebida, percebi que os professores fizeram suas avaliações da formação recebida a partir de vivências pessoais e da atuação docente. Os diferentes olhares – e até mesmo o aparecimento de algumas 233 contradições – dos professores para a formação acadêmica, comprovam a singularidade na vida desses professores na sua qualidade de pessoas. Uma coisa, no entanto, é inegável: todos os professores destacam aspectos positivos da formação que contribuíram para a profissão. Para os professores o aspecto positivo da formação prática do ensino são as disciplinas que, de alguma forma, estão mais próximas dos saberes práticos e dão aquele saber fazer adquirido na prática. Os professores consideram que a boa formação é aquela que possibilita o conhecimento ampliado da realidade para além dos muros da academia. As narrativas dos professores sobre o percurso de construção da carreira profissional possibilitaram registrar suas percepções sobre o acesso à profissão, os primeiros anos de docência e o exercício propriamente dito da docência. Busquei, ainda, entender se fato de ser mulher/homem afetou a sua carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes. Como vimos, a maioria dos docentes entrevistados é do sexo feminino seis professoras e apenas um professor -, e se considerarmos as atividades e ocupações desempenhadas pelas professoras e suas características o destaque fica para a dupla jornada de trabalho, o trabalho doméstico. A responsabilidade feminina pelo trabalho doméstico se mostrou relevante, uma atribuição das professoras e não do professor. A dupla jornada de trabalho, profissional e doméstico, foi, de fato, uma realidade para as mulheres estudadas. Vale lembrar que as professoras, pela necessidade de realizar a dupla jornada de trabalho, têm aí um possível obstáculo ao avanço profissional. Os professores, ao revelarem suas dificuldades, destacaram aquelas relacionadas à escola, ao aluno e ao trabalho com Artes Visuais. A escola, para alguns professores, está distante da realidade do aluno, atrasada no tempo. Os alunos são “difíceis”, o que torna o ensino das Artes Visuais uma tarefa árdua. E com relação a esse ensino, há ainda o argumento de que a escola não acompanha o apelo visual que o mundo oferece, a produção de comportamentos disseminados pela cultura visual. Reafirma-se, mais uma vez, a concepção, por parte da escola e dos colegas professores, desse ensino vinculado a sua antiga terminologia, a Educação Artística, cuja função é trabalhar datas comemorativas, enfeitar a escola e proporcionar a professora titular a sua almejada “folga”. 234 O momento profissional em que se encontram os docentes varia de professor para professor. Há aquele em que a professora continua entusiasmada querendo mudar o mundo com seu ensino; aquele do professor mais centrado no seu trabalho e consciente de suas reais possibilidades, não tão visionário, fazendo o que pode e como pode; ou o da professora que trabalha em quatro escolas e vai levando “numa boa”. Ou aquele momento em que ocorre uma mudança de instituição de ensino para continuar a atuação docente ou ocupar alguma outra função fora da sala de aula; ou por outro lado, através de uma tomada de consciência mais ”aguda” das questões institucionais, buscar alternativas para o trabalho em Artes Visuais, o que significa maior investimento no ensino e na formação dos alunos ou deixar-se envolver pela rotina. Assim, pela compreensão do que esse grupo pensa e faz – e fez - da e na sua profissão foi possível a construção dos ciclos de vida de cada um deles, com base nas fases da carreira docente. Esse estudo possibilitou aproximar a pessoa do professor e o entendimento de que as opções feitas por cada um dos professores são reveladoras de sua maneira de ser e de sua maneira de ensinar, que juntas fazem do professor o que ele é quando ensina. Pela explicitação das questões relativas à carreira docente, foi possível definir e construir as fases pelas quais passam os professores durante a trajetória profissional, considerando essas fases a partir do tempo de atuação docente. Para a elaboração das fases parti do princípio de que os anos de carreira são significativos para definir o início da primeira fase, denominada de impacto (1-6 anos), mas não foram balizadores do seu término, porque os acontecimentos – mais ou menos intensos - vividos pelos professores, tanto na escola quanto na vida pessoal, foram determinantes para uma mudança de fase. Já a aproximação da segunda fase, de personalização (7-12), justificou–se porque os professores definiram um estilo pessoal de ensinar Artes Visuais para turmas de níveis tão diversificados e escolas com realidades diferentes, o que requer tempo e maturidade e não descartou uma mudança mais rápida provocada por um ou outro tipo de acontecimento, um momento crítico enfrentado pelo professor. A fase de alternância (13-18 anos) correspondeu a um período no qual o tempo de atuação possibilitou ao professor uma maior compreensão do sistema educacional e da docência, do que pode ou não, do que quer ou não fazer, o 235 professor permitiu-se optar. Já a proximidade com o final da carreira determinou a fase de individualização (19-25 anos), responsável pelo distanciamento do professor dos problemas educacionais e pela busca de satisfação pessoal. O caminho biográfico-narrativo possibilitou a construção de um inventário de experiências e competências profissionais vivenciadas e, ao mesmo tempo, permitiu uma compreensão global da pessoa que habita cada um dos professores. Uma vez identificadas as fases da carreira dos professores, pelas narrativas reconstruí um conjunto de acontecimentos – momentos críticos – que determinaram por si mesmos o curso da vida docente e suas relações com as fases da carreira pelas quais passaram os professores, criei as biovias, caminhos biograficamente construídos, para, assim, dar visibilidade ao percurso docente, destacando os fatos significativos que marcaram as continuidades e descontinuidades da trajetória profissional dos docentes de Artes Visuais. Imagens (in)concluídas Olhar os ciclos de vida com base nas fases da carreira docente dos professores possibilitou-me compreender o percurso de cada professor em função do conjunto de etapas, como circunstâncias sociais e históricas e estágios profissionais. Nesse estudo, seguindo as seqüências de fases/estágios pelos quais costumam passar as pessoas considerei, também, o conjunto de acontecimentos sócio-históricos e eventos individuais inesperados na vida de cada um dos professores. O desempenho profissional dos professores atuou como um espelho crítico que devolve a imagem para que possa ser repensada, refletida, analisada e reconstruída. Isto porque a maneira de ensinar de cada professor está diretamente dependente daquilo que ele é como pessoa. Penso que, agora, entendi o que leva um professor a ser diferente de outro, se praticamente a formação acadêmica foi a mesma; o que leva um professor a ensinar Artes Visuais igual a outro, se a formação acadêmica foi diferente; os fatores que determinam as diferenças e porque alguns professores resistem tanto às mudanças. 236 Comprovei que os professores não possuem uma formação ampliada em Artes Visuais, quase não freqüentam atividades de educação continuada, ignoram a contribuição de documentos legais que sinalizam possibilidades de ampliar e aprofundar o foco do ensino da Arte nas escolas e sua preocupação, ainda, está voltada somente para a produção dos alunos. Como, então, os professores atualizam seu ensino? O professor pode atualizar-se sozinho? Respondo que uma mudança nas concepções de ensino e aprendizagem em Artes Visuais dos professores pode ser obtida se esses quiserem e puderem, eles próprios são capazes de buscar a atualização se assim desejarem. Mas, por outro lado, é preciso lembrar que a formação recebida pelos professores aconteceu em uma instituição na qual, apesar do esforço de conjugar as mudanças para adequação às diferentes concepções de Arte e de ensino de Arte, persistem, ainda, aquelas dadas e herdadas da antiga Escola de Belas Artes. Por falar nisso, destaco um fato bastante significativo. Quando pensei na forma que daria a minha tese logo imaginei conduzi-la pelo meu olhar e de imediato surgiram imagens. Comecei, então, um trabalho cuidadoso de seleção de imagens que me inspirassem a escrita de cada etapa da pesquisa. Pedi, também, aos professores entrevistados que escolhessem imagens que representassem o momento atual pelo qual eles estão passando, eles prontamente escolheram e justificaram a escolha. Ao repassar todas as imagens, as minhas e as dos professores, o que vejo? Todas nos foram dadas e herdadas pelos ensinamentos visuais das Belas Artes, atreladas à cultura artística européia. Os anos de docência são considerados significativos na trajetória profissional, mas não são definidores das fases, pois as narrativas dos professores comprovam que as fases se mesclam constantemente - ou não - e uma não afasta nem elimina a possibilidade de outra. A definição de uma fase predominante em uma determinada situação, não descarta a possibilidade de outra fase. Quero com isso afirmar que as modificações nas fases da vida dos professores são ocasionadas pelas condições de tempo e lugar determinados, elas ocorreram pelas situações de oportunidades e limitações vividas por cada um dos professores e o entrecruzamento das histórias pessoais e das trajetórias profissionais nesses diferentes espaços e tempos configuram uma singularidade na prática docente desses professores. Embora todos os professores passem, de 237 um modo geral, por fases similares da carreira docente, como vimos pelas falas dos professores e pela representação de seus caminhos biograficamente construídos nas biovias, ficou evidente que cada um deles tem uma história de vida e trajetórias profissionais únicas e singulares que se cruzam nas vidas pessoais, cada um deles tem uma trajetória subjetiva específica, cada um deles é único. Através dos acontecimentos vividos pelos professores delineados por uma seqüência progressiva como uma conjunção de estabilidade e mudança, percebi continuidades e descontinuidades na construção da trajetória profissional dos professores, que, sem dúvida, se refletem na docência em Artes Visuais. Reafirmo, aqui, que o estudo dos ciclos de vida deixou claro que não é possível dissociar o desenvolvimento profissional do pessoal, e acredito que essa articulação deva ocorrer, também, no processo formativo de futuros professores. O que me leva a pensar que toda e qualquer proposta de mudança na formação inicial de professores deve considerar a dimensão pessoal do aluno. E, ainda, que uma proposta de formação continuada deve considerar a dimensão pessoal da mudança (atitude, compromisso ou capacitação) para identificar que fatores de evolução profissional (fases da carreira docente) dos professores vão condicionar a disposição para a inovação. Ao finalizar este trabalho, quero dizer que, nesse momento, as imagens são (in)concluídas porque entendo que, talvez, num amanhã muito próximo, os professores busquem novos contornos e nuances coloridas para suas trajetórias profissionais, quiçá novas imagens. Digo também que me sinto, como professora que forma professores, (in) conclusão, ao término deste trabalho, porque preciso visualizar outros caminhos, ainda pouco conhecidos, que possam contribuir mais efetivamente para e na formação inicial ou continuada do docente em Artes Visuais; e, assim, quem sabe, incentivar propostas de inovação. Por fim, a seguir, a imagem que fica dos professores... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPLE, Michael. Relações de classe e de gênero e modificações no processo de trabalho docente. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 60, p. 3-14, fev. 1987. _____. Educação e Poder. Porto Alegre, Artes Médicas, 1989. _____; TEITELBAUN, Kenneth. Está o professorado perdendo o controle de suas qualificações e do currículo? Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 4, p. 62-71, 1991. ARANHA, Maria Lúcia de A. História da Educação. São Paulo, Moderna, 1989. ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular? 13. ed. São Paulo, Brasiliense, 1988. ARGAN, Giulio Carlo. 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Não me sinto pronta como professora, sempre falta mais. Me olho e não me enxergo de frente, me enxergo indo em frente. 1. Esboço biográfico geral: dados relevantes na história de vida Idade ou anos de docência: 43 anos e 8 anos de docência Data de início da carreira de licenciatura: início: 1990 A 1991 – URCAMP – Bagé/ término: 1999 – UFPel – Pelotas Curso: Licenciatura em Artes / Habilitação em Artes Visuais Data de conclusão do curso: 1999 Data de início da docência: Dezembro de 1999 - Colégio Albert Einstein – Pelotas Algumas mudanças radicais ao longo da carreira: 1991 – Interrupção do curso por nascimento do filho; 1992 – Transferência para UFPel; 1994 – Trancamento do curso: mudança para Porto Alegre, divórcio; 1997 – Retorno à UFPel para término do curso. 248 2. Primeira etapa biográfica: ensino básico e de licenciatura Experiência na infância: algumas lembranças significativas da escola; como transcorreu a escolaridade. 1) O estalo da alfabetização; 2) A professora Iva conversando com minha mãe que só ouvia minha voz em sala de aula quando eu respondia a chamada; que eu era um “sabonetinho” por estar sempre perfumada e que seria maravilhoso se todos meus outros três irmãos tivessem a mesma facilidade que eu para a alfabetização (A professora Iva alfabetizou nós quatro, sou a caçula de quatro irmãos); 3) Na primeira série fiquei envergonhada em pedir para ir ao banheiro e fiz cocô na calça e ainda por cima fui convidada a ir até o quadro. Que micão! 4) Os desfiles de 7 de Setembro (o coração batia forte e dava um friozinho na barriga) 5) Na terceira série a professora levou toda a turma para ver TV colorida na sua casa; 6) Um passeio com toda turma numa fábrica de bolachas; Em que tipo de instituição estudou a educação básica e a licenciatura? Educação básica e licenciatura foram realizadas em instituições públicas e privadas conforme segue: Ensino fundamental: 1ª série – Grupo Escolar Machado de Assis – PoA 2ª série – Escola Estadual Roque Gonzales – PoA 3ª e 4ª séries – Colégio Beata Tereza Verzéri – Santo Ângelo 5ª e 6ª séries – Ginásio Estadual Polivalente – Santo Ângelo 7ª e 8ª séries – Colégio Estadual Missões – Santo Ângelo Ensino médio – Curso de Magistério: 1° ano – Colégio Beata Tereza Verzéri – Santo Ângelo 2º ano – Escola Cenecista Sepé Tiarajú – Santo Ângelo 3º ano – Instituto de Educação Olavo Bilac – Santa Maria Estágio supervisionado de 6 meses pelo Colégio São José – Pelotas Graduação em Arte: 1º e 2º ano no Curso de Belas Artes da URCamp – Bagé 3º e 4º ano no Instituto de Letras e Artes da UFPel - Pelotas Especialização em Educação na FaE UFPel. Influências de professores e colegas na educação básica e na licenciatura. Ensino Básico Profª Alda – contava a História como se estivesse contando um caso que aconteceu ontem. Seus olhos vibravam com os acontecimentos e ela gesticulava muito, falava com as mãos e o corpo. Eu gostava disso. 249 Profº Raul Dala Barba – Foi meu treinador na ginástica olímpica, na ginástica rítmica, no atletismo e no handebol. Ele era muito exigente. Não admitia falta ao treino e era um obcecado pela vitória. Para ele não bastava só competir. Prof° Benedito - Ele era um “coringão”. Montou o coral da escola (óbvio que eu me infiltrei para não precisar ficar em sala de aula) montou um grupo teatral que eu também era da expressão corporal da peça “O pequeno Príncipe” e ainda administrava junto ao pároco a 1ª comunhão dos alunos da escola. A primeira e última vez que me “confessei” na vida foi com ele. Tenho até foto. Uma mistura de produtor cultural com padre. Uma figura. Profª Cleci – Nada favorecia. Era professora de Matemática, gorda, mal humorada e gritava muito. Diziam que era solteirona. Percebia que um professor não poderia ser assim. Não funciona. Tive ainda um professor em Santa Maria no curso de magistério (3º ano) não lembro o nome, mas ele me marcou muito porque falava com convicção sobre as leis do magistério e suas lutas. Lembro que ali percebi que o magistério fazia parte das lutas de classes e que havia muito a se conquistar. Até ali eu considerava tudo meio sacerdócio. Graduação: Profª Marilu Bueno – Foi minha professora de História da Arte em Bagé. Suas aulas eram muito cansativas. Dava aula sentada o tempo todo percorrendo um fichário amarelado pelo tempo onde constavam os períodos da História da Arte. Ditava a matéria e fazia comentários sempre com olhar fixo nas fichas. Raramente encarava os alunos. Foi muito chato. Profª Mirna – Foi minha professora em Bagé da disciplina de Estudo de Materiais e Técnicas. Eu não me esqueci dela porque era uma operária do “Fazer Arte”. Chamava atenção por suas mãos estarem sempre “detonadas” de experimentar novas e diferentes técnicas. Profª Carmem Biasoli – Foi minha professora das disciplinas de Teatro, de Fundamentos, de Projeto em Arte I e II e me oportunizou a participação em projetos de Extensão em pré - escola (Pelotas) e para professores de séries iniciais (Piratini). Ainda tive o privilégio de ser sua monitora. Fazia associações geniais com o conhecimento erudito e a vida como ela é. Sempre disposta e bem humorada e com um domínio muito particular de sala de aula. Com ela aprendi muito e não raras vezes, em serviço, lembrome dela. Como professora, percebo que me esforço para reproduzir um pouco da capacidade que ela tem de transformar conhecimento em aula propriamente dita. Profº Beto Santos - Foi meu professor de História da Arte. Era extremamente imprevisível quanto ao seu humor. Às vezes dócil noutras vezes amargo, mas, entendia do assunto e ilustrava suas aulas com seminários e longas horas de projeções de slides. Fumava muito e era muito acelerado. Profª Zunilda – Esta parece brincadeira, deu como encerramento do semestre um trabalho onde os alunos teriam de fazer uma análise das decorações com luzinhas de natal expostas na cidade em contraponto com 250 a arquitetura de Pelotas. Até hoje não entendi onde ela quis chegar. Me senti uma débil mental fazendo este trabalho. Profº Lauer – Com esse conheci o descomprometimento de um professor. Na sua disciplina propôs como nota de encerramento que fizéssemos uma intervenção na cidade. Meu grupo optou por fazer a tal intervenção em um canalete da cidade (situado na Rua Argolo) Para tanto precisávamos de muito tecido e fomos pedir nas lojas. Apresentávamos como estudantes da UFPel e percorremos várias lojas. Ouvimos muitos “sins” e “nãos”. Quando já tínhamos passado o mico da pedincha, prontas para começarmos o trabalho, ele sumiu. Foi embora para fazer seu pós e não deixou nem “até logo”. Que coisa absurda. Não gosto nem de lembrar. Pior que hoje ele é diretor do instituto. Foram muitos professores que deixaram boas e más impressões. Agradeço a todos, pois, contudo, deu prá ir construindo o que se pode e não se pode ser como pessoa e profissional, se é que dá para separar. O que acha que mais influiu dessa etapa de sua carreira? (matérias, professores, colegas, família). Tudo. O ambiente, os colegas as matérias e os professores. 3. Segunda etapa biográfica: opção de estudos e anos de carreira (i) Opção de estudos Porque decidiu seguir essa carreira? Quando fiz vestibular, três opções deveriam ficar claras na inscrição. As minhas foram: 1ª) Direito – coloquei essa em primeiro lugar porque minha irmã havia sido brutalmente assassinada a pouco tempo e eu queria justiça; 2ª) Letras – Porque sempre gostei de português, tinha facilidade em escrever e gostava (vinha de um namoro de 8 anos onde nos comunicávamos por correspondência semanal. Eram cartas/jornais, com muita escrita e leitura) 3ª) Belas Artes – Porque sempre cultivei habilidades artísticas, tanto no teatro quanto nas artes plásticas, além de ser filha de professora de música. Na hora de decidir, eu queria fazer todas. Passei com média para o Direito, a que exigia maior pontuação. Fui fazer a matrícula com minha ex-sogra e, na verdade, ela decidiu por mim. Disse-me assim: Faz Educação Artística. Tens gosto e habilidade. Optei. Que fatores foram mais determinantes? (instituição de ensino, família, professores, amigos, nível econômico familiar). Hoje percebo que a família foi um dos fatores mais determinantes desse momento, mas não posso deixar de citar que o fato de eu ter feito o curso de magistério também influiu em eu aceitar a decisão que no momento minha ex- sogra sugeriu. 251 Em que grau as expectativas pessoais/profissionais realizaram? Ou se geraram outras novas? se As expectativas pessoais corresponderam no sentido de ser a academia um local de produção de conhecimento e de novas amizades. Quanto às expectativas profissionais, eu pensava que sairia pronta para atuar na sala de aula. Ledo engano. A academia apenas me apontou tópicos para serem aprofundados gerando assim, novas expectativas e novas lutas. (ii) Anos de estudo na universidade Onde estudou, anos que estudou , houve algum professor ou matéria mais influente ou preferida? O que mais ajudou em seu exercício profissional posterior: matérias ou professores? Quais as lembranças (melhores ou piores) que tens de seus estudos? Alguns professores deixaram ótimas lembranças, outros se mostraram descomprometidos com a formação de quem vai atuar na área da educação. Alguns não se dão conta do compromisso que tem na mão. Formar professores é muito sério. Muito! O espaço físico da minha graduação é uma boa lembrança. Aulas teóricas ao som de flautas desafinadas era motivo de crítica para nós alunos. Hoje tenho saudade dessa impregnação artística dentro dos espaços escolares. As aulas de Teatro eram o máximo. Serviu muito para eu aprender a lidar com minhas emoções, a ocupação do espaço dentro da sala de aula enfim. Acredito que todo estudante de licenciatura deveria ter essa experiência. (iii) Formação prática de ensino Quais as lembranças que tens da formação prática? Que aspectos mais ajudaram quando se defrontou pela primeira vez com o ensino? Avaliando esse momento, que tipo de formação acredita ter necessitado (teórica, prática) Como avalia a formação recebida? Ficou faltando muita coisa, tanto teórica quanto prática. Saliento uma melhor formação para as séries iniciais e a modalidade E.J. A que são diferenciados e nem ouvi falar dentro do curso. Não menosprezo minha formação. Muito pelo contrário. Penso que ela foi fundamental, mas tive de correr atrás de muita coisa. 4. Acesso ao ensino e exercício profissional (i) Acesso à profissão Razões pela opção pela docência e influências. 252 Optei pela docência por ter feito 6 anos de curso sem nunca ter rodado e pego exame só uma vez. Muitas matérias eu tive de fazer novamente devido à tramitação da minha transferência. Não raras vezes, estava cursando uma disciplina e vinha da reitoria que eu não precisava fazê-la porque já havia feito, mas eu não podia esperar devido aos pré-requisitos. Uma novela. Foram 6 anos árduos de busca pela profissão. Também porque no momento em que me formei, mais do que nunca, almejava pela minha independência financeira. A docência nesse momento já não era uma opção, era uma conseqüência. Terminado o curso, a formatura foi num dia e o concurso no outro, e na outra semana foi o concurso para o Estado. Ufa!!! Foi uma etapa conturbada, pois só fui respirar aliviada depois. Tudo aconteceu muito rápido e ainda, antes de prestar os concursos eu já estava empregada. Como chegou a profissão (concurso). Na escola particular por indicação e na rede pública (município e estado) por concurso. Como avalia essa etapa. Minha primeira experiência profissional foi numa escola privada. Colégio Albert Einstein por indicação de um colega de curso que havia se formado antes. Minha primeira turma era composta por 60 alunos da E.J.A ensino médio. Me colocaram num palquinho e me deram um microfone. Detestei. Quase caí do palco (porque caminhava muito). Em seguida abandonei o microfone e perdi a timidez na voz. A água bateu no pescoço. Tive de ir à luta. Nesse momento tinha como princípio que os alunos teriam de levar a sério a disciplina de arte. Para que isso acontecesse, eu cobraria tal qual as disciplinas ditas “sérias” do currículo faziam. Textos, provas e inflexibilidade. Logo tive de mudar porque os alunos cobravam produção e passei a trabalhar com conteúdo e produção artística. Baseada no Fazer, Fruir e Contextualizar. Passei a freqüentar as reuniões pedagógicas e ouvia as insatisfações dos professores quanto a pagamentos atrasados, turmas lotadas, alunos protegidos porque eram filhos de fulano e beltrano enfim. Passei a contabilizar os problemas da docência que não se resumiam as quatro paredes da sala de aula. Tudo era novidade. As primeiras aulas eu planejei com muito estudo. Não queria seguir pura e simplesmente o programa proposto pela escola. A Bienal acontecendo em PoA e eu trabalhando o Antigo Egito. Abandonei o programa e passei a programar minhas aulas com mais autonomia. Lembro que propus uma instalação, retratos tridimensionais etc. Foi ficando cada vez melhor. Meu foco já não era ser uma disciplina “séria” para que a escola e os alunos levassem a sério. A minha postura foi modificando porque eu levava e levo a sério o que faço. Meu principal objetivo era e continua sendo formar público para arte. O aluno tem que produzir e saber arte. Os alunos foram gostando cada vez mais das aulas e pauto até hoje meu trabalho dessa forma. 253 (ii) Primeiros anos de docência Onde começou a exercê-la? Descrever o significado dos primeiros meses como professor. Comentar as impressões, aprendizagem e mudanças durante esse período. Explicitar as principais preocupações profissionais durante esse período. Socialização profissional. Como planejou as primeiras aulas, de quem recebeu apoio, como foi aprendendo. Preocupações principais: disciplina, gestão de classe, programa da disciplina, relacionamento com colegas, alunos e pais. Passei nos concursos. Fui chamada primeiramente para a rede municipal de ensino. Fui parar numa escola de periferia chamada Getúlio Vargas. Localizada numa zona de extrema pobreza e num bairro violento. Os problemas começaram. Após sair da faculdade, parecia muito bom trabalhar numa escola particular e ainda com ensino médio. Eu era feliz e não sabia. No Getúlio Vargas trabalhei com as séries iniciais e duas 5ª séries. Não foi fácil. Aliás, tudo era difícil. Desde o transporte. Nessa escola, conheci o currículo oculto. As conversas de professores nas portas das salas com os alunos ouvindo tudo, as imagens que os alfabetizadores utilizavam para fazer associações com as letras totalmente distanciadas da realidade deles, colegas descomprometidos enfim. Na escola Getúlio Vargas, essa da periferia, foi a única que de tanto eu insistir, eu ganhei uma sala. Foi a primeira e única experiência, nesse sentido, nos meus 8 anos de docência. Isso foi muito bom! Em 2003, fui convidada a trabalhar na Secretaria Municipal de Educação para montar um setor que hoje se chama Multimeios. Concomitante à proposta, o Estado me chama para trabalhar com o ensino médio regular e E.J. A médio. Ainda nesse mesmo período fiz seleção para professora substituta da disciplina de Metodologia do Ensino da Arte (se não me engano era esse o nome). Fui aprovada. Acabei ficando com a SME e o Estado. Sempre em sala de aula. Contudo, eu na verdade gostava da infra-estrutura oferecida pela escola particular, mas o afeto era gritante na escola da periferia. Não sei discernir uma escola melhor ou pior. Ambas têm os dois lados. Nenhuma é totalmente ruim ou totalmente boa. Tive muita dificuldade inicialmente em trabalhar com as séries iniciais. Primeiro porque não tive formação na graduação para atuar com as séries iniciais. Minha salvação foi ter feito o curso de magistério e participado do projeto de extensão “Vivenciar, Integrar e Agir”. Segundo porque concomitante ao trabalho com as séries iniciais eu ainda trabalhava com o Ensino médio regular e E.J.A do ensino fundamental e médio, logo, a dedicação não era exclusiva. Fui aprendendo com a necessidade dos alunos e com a minha própria. Sempre no estudo e planejamento. A noite fazia pós na Faculdade de Educação. Descia do ônibus da Escola Getúlio Vargas e embarcava no ônibus para o Pós na Faculdade de Educação. Foi difícil. 254 (iii) Exercício profissional Cargos ocupados no exercício profissional; lugares, instituições, mudanças. Em que lugares sentiu-se mais à vontade, comprometido e com disposição para trabalhar? Por quê? Em que lugar foi pior? Desenvolvimento como docente; fatores e marcos a destacar (colegas curso, experiências) Momentos críticos vividos na carreira profissional. Descontinuidade na carreira profissional. Acontecimentos da vida profissional ou familiar que influíram no seu ensino ou no transcorrer da sua carreira. Quanto a momentos críticos vividos na carreira profissional, ainda é aquele desconhecimento das escolas de que Arte é tão área de conhecimento quanto qualquer outra disciplina. Material didático não existe. Sala apropriada muito menos. Sempre falo que a disciplina mais difícil de se trabalhar dentro das escolas é a Arte porque não há subsídio algum. Atualmente trabalho com todas as séries do ensino fundamental, na zona rural e urbana, segundos anos do ensino médio e E.J.A do ensino médio. Escola Municipal Garibaldi – Zona rural (1ª a 4ª séries) Escola Assistencial Municipal Jeremias Fróes – Zona Urbana (de 1ª a 8ª séries) e Escola Estadual de Ensino Médio Areal (2º ano médio regular e E.J. A do ensino médio). Zona Urbana. 50 h semanais. Meu grau de satisfação com a escola é baixo. Para se ter uma idéia, este ano, faltou professor de arte para um turno da escola. Eu estou com os horários arrebatados, a solução que deram foi de uma professora, alfabetizadora, mestranda em educação, atender algumas turmas. Ela ainda teve a cara de pau de pedir meu plano de ensino! Poupe-me! Como posso estar satisfeita com a escola. Ano passado uma professora da outra escola em que trabalho, pediu-me também planos de aula para atender algumas turmas no estado. Ela professora de geografia. Engraçado é que ninguém me convida para substituir o professor de outra área. O senso comum é de que aula de arte qualquer um dá. Encontramos professores que entendem que arte é uma área de conhecimento e que não metem as caras, mas a maioria desconhece. A falta de espaço apropriado para as salas de arte tornaram-se um problema. Principalmente para o trabalho com as séries iniciais. Eu ainda trabalho em uma escola que não tem sequer um retroprojetor como recurso. Penso um absurdo isso. As aulas da área de arte e Ed. Física, no ensino fundamental, são acomodas de modo que encaixem nas “Folgas” dos professores. Então, elas são colocadas de qualquer jeito no horário. Pego crianças após a Ed. Física por exemplo. Isso não é legal para o professor. Até acalmar e centralizar na aula leva um tempo considerável. A aula de arte, não raras vezes necessita de concentração, silêncio, serenidade para poder produzir algo que passou pelo pensamento, pela imaginação ora! Não há essa preocupação. Escassez ou inexistência de materiais diversificados também é histórica nas aulas de arte. Eu trabalho muito com lixo, mas é necessário diversificar. Material do MEC, como as outras disciplinas recebem, também não vem nada. Ou melhor, ano 255 passado vieram DVDs para todas as áreas, alguns interessantes. Mas ainda é muito pouco. Gênero: Como o fato de ser mulher/homem afetou a sua carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes. O fato de ser mulher, principalmente no inicio da carreira, afetou no sentido de que não é fácil administrar tudo. Ainda grávida, certa vez em Bagé, tendo que entregar um trabalho a noite, fiquei de bruços sobre um trabalho enorme, acabei vomitando sobre ele. E para dar a explicação que eu havia vomitado sobre o trabalho. Pareceu deboche, mas era real. As dificuldades já começam na gravidez. Depois veio o divórcio. Criar um filho, administrar casa e estudos. Não foi e ainda não é fácil. Hoje ainda a gente tem que administrar a escola, o material que vai levar, a aula da semana que mudou devido à necessidade dos próprios alunos, o novo relacionamento afetivo enfim. Quanto mais o tempo passa, parece-me que as responsabilidades aumentam. Penso que esta situação é bem comum hoje em dia. A mulher está cada vez mais tendo que administrar tudo. Ainda na faculdade, deparei-me com uma situação inusitada de preconceito de mulher para mulher: uma colega de curso, mãe de 5 filhos homens, esforçando-se para estudar, recém parida do 5º filho, necessitava levar a criança para as aulas e foi convidada a se retirar pois se o ILA (Instituto de Letras e Artes) abrisse precedente, o local viraria uma creche. Achei um absurdo, pois a criança não atrapalhava nada e a colega precisava muito concluir seu curso. A antológica feminização do magistério aponta para muitos casos de sobrecarga de atividades às mulheres. Muitas vezes a mulher que escuta o choro de criança em casa ainda vai para o trabalho e vai escutar choros e lamúrias de 30, 35 crianças. È diferente de uma outra profissional mulher que vai para o seu escritório, consultório ou atender atrás de um balcão. A tarefa da professora de um modo geral, a meu ver, sempre vai ser mais pesada. Isso não é um privilégio, é tarefa árdua e comprometedora. (iv) Instituição de ensino atual Chegada à escola atual. História pessoal vivida na escola. Grau de satisfação com a escola. Momento profissional . Então, eu vejo esse momento profissional que estou vivendo assim: ser professor está cada vez mais difícil. Tem que ter paixão senão já era. Nossa clientela pode ser alto risco, não se sabe. Nosso aluno está difícil. A escola é uma micro sociedade. Se a sociedade está consumista, em crise, violenta, sem perspectiva, isso vai se refletir na escola, na sala de aula. A escola não acompanha o apelo visual que o mundo oferece, a produção de comportamentos disseminados pela cultura visual. A disciplina de arte merecia mais recursos para trabalhar com o mundo visual. Acredito que estamos vivendo um processo na educação. Estamos em transformação. Sou ciente que meu papel, nesse momento é de lutar para o reconhecimento 256 da área de arte, sua importância nas escolas e na formação do indivíduo, lutar por melhores condições de trabalho, salário enfim, por um maior comprometimento com o ensinar arte. Quero registrar que foi muito interessante ter feito essa entrevista, um verdadeiro “memorial docente”. Pude perceber que, como na imagem de René Magritte, estou indo. Tento me ver e me enxergo indo, fazendo parte de um momento de avanço. Não me sinto pronta como professora, sempre falta mais. Me olho e não me enxergo de frente, me enxergo indo em frente. PROTOCOLO DE REGISTRO DE ENTREVISTA Professora: Silvia IDADE: 45 anos DATA: 04/04/2008 HORA 14 horas INÍCIO: 14 h TÉRMINO: 15h30min Nº DO PROTOCOLO: 2 IMAGEM VIAJANTE DA PROFESSORA Nº 2 Persistência da Memória- Salvador Dali, 1931. MoMA, New York Considero a obra de Dali de acordo com o meu momento atual. O tempo que passa rápido e não nos permite viver e só sobreviver. A ligação do tempo versus memória nos faz pensar na saúde, na diminuição de hormônios e na necessidade de se permanecer atuante no trabalho, na família e na sociedade 1. Esboço biográfico geral: dados relevantes na história de vida Idade ou anos de docência – Tenho 45 anos, e 20 anos de docência. Curso: Sou formada em Licenciatura Plena em Educação ArtísticaHabilitação em Artes Plásticas. Data de conclusão do curso: 1988 Data de início da docência: março de 1988. Algumas mudanças radicais ao longo da carreira: As mudanças foram: em 1991 lecionei numa escola particular em Rio Grande mais uma gravidez; em 1998 perdi 20 horas numa escola para uma professora leiga e fui dar aulas na zona rural; em 2001 dei aulas para surdos, sem curso e sem material. 258 2. Primeira etapa biográfica: ensino básico e de licenciatura Experiência na infância: algumas lembranças significativas da escola, como transcorreu a escolaridade. Em que tipo de instituição estudou a educação básica e a licenciatura? Sempre estudei em escola pública (Grupo Escolar Estadual Nossa Senhora Medianeira, Escola Estadual Lindolfo Collor, Escola Estadual Dom João Braga e na Universidade Federal de Pelotas o Ensino Superior). Minha experiência em escola pública foi como qualquer criança pobre, na minha época a minha mãe pagava mensalidade, assim como os colegas, uniforme e livros eram comprados pela família e a escola era muito significativa e valorizada. Influências de professores e colegas na educação básica e na licenciatura. Houve professores significativos, principalmente na área de português e história na educação básica. Na faculdade um professor de história da arte e em disciplinas que envolviam “plástica”. A influência foi muito satisfatória. O que acha que mais influiu dessa etapa de sua carreira? (matérias, professores, colegas, família)? Na minha casa sempre tive contato com o desenho por causa de meus irmãos e acho que não tinha muita noção das licenciaturas. Na escola sempre desenhei e convivi com pessoas que tinham noção sobre desenho, a arte surgiu depois com o conhecimento e as expectativas foram surgindo com o tempo. Destaco na UFPel, nos anos de 1984,1985, 1986 1987, as professoras Miriam Anselmo e Ângela Gonzales. Acho que foi um somatório. 2. Segunda etapa biográfica: opção de estudos e anos de carreira (i) Opção de estudos Porque decidiu seguir essa carreira? Eu gostava de desenhar, meus irmãos estudavam na ETFPEL (hoje CEFET) e convivia muito com essa situação. O primeiro vestibular que fiz foi nessa área em São Paulo, depois que voltei acabei entrando na licenciatura, mas sem muito conhecimento do que era. Que fatores foram mais determinantes? (instituição de ensino, família, professores, amigos, nível econômico familiar)? 259 Acho que a escolha foi mais pessoal do que por influência de outros fatores. Em que grau as expectativas pessoais/ realizaram? Ou se geraram outras novas? profissionais se As expectativas profissionais foram acontecendo ao longo do processo e algumas situações de vida pessoal ocasionaram um novo momento. (ii) Anos de estudo na universidade Onde estudou, anos que estudou , houve algum professor ou matéria mais influente ou preferida? Na UFPEL, no período de 1984 a 1987, sempre gostei de história da arte e das disciplinas de expressão plástica. O que mais ajudou em seu exercício profissional posterior: matérias ou professores? No meu exercício profissional, o conhecimento me ajudou, mas a prática e a experiência foram mais significativas. Quais as lembranças (melhores ou piores) que tens de seus estudos? Lembranças da Educação Básica: as piores foram a baixa auto-estima e o peso (acima) corporal; as boas foram a minha escola que estudei mais tempo, o D João Braga, o antigo 2º Grau , com a auto-estima mais elevada. No Ensino Superior as dificuldades financeiras, o estudo durante o dia e sem trabalho e o fato de só o meu marido trabalhar. O lado positivo na faculdade foi o conhecimento e a conclusão dos meus estudos. (iii) Formação prática de ensino Quais as lembranças que tens da formação prática? Que aspectos mais ajudaram quando se defrontou pela primeira vez com o ensino? Avaliando esse momento, que tipo de formação acredita ter necessitado (teórica/prática). Como avalia a formação recebida? Lembro de uma prática de Educação Artística no próprio ILA (hoje IAD), íamos estagiar no Lar de Jesus e atrás da Beneficência Portuguesa (Escolinha da Faculdade de Educação), zonas muito pobres. Queriam que ensinássemos 260 pintura em tecido e outras atividades que possibilitassem um rendimento aquela população. Foi muito difícil porque, muitas vezes, lidar com pessoas relacionadas à educação transformadora é mais complicado que a tradicional. Tanto a parte teórica como a prática tem que “descer” do salto, da alienação, e mergulhar no mundo real, o da sala de aula, das condições mínimas estruturais que temos, dos péssimos salários e como tudo isso vai interferir na nossa vida profissional. Quando fui fazer meu último estágio, na época de 2º grau, disse para a minha orientadora: ”Não sei nada, do que me valeu o curso se não consigo aplicar nesta realidade? A minha vontade é começar tudo de novo.” Hoje penso que talvez tenha sido muito radical, mas em parte continuo pensando a mesma coisa. 3. Acesso ao ensino e exercício profissional (i) Acesso à profissão Razões pela opção pela docência e influências. Acho que a minha opção pela docência foi, em parte, ao acaso e outra pelo prazer de ensinar, não para o momento que estamos vivendo, sem respeito e sem valorização. Como chegou a profissão (concurso). Cheguei á profissão por indicação de uma professora da Faculdade de Educação na escola privada do seu filho. Na mesma época fiz os concursos, trabalhei com adolescentes em outra escola privada. Fui chamada e acabei assumindo no município e no estado. Como avalia essa etapa? Lá, na escola privada, aprendi muita coisa, a lidar com as mães e filhinhos de classe média alta, com a direção, com a falsidade, com os baixos salários, com o sindicato (hoje sou filiada ao CPERS, tenho 20 horas no Estado, com a primeira greve (e única de 1989) das escolas privadas, com o construtivismo, com o prazer de orientar aquelas crianças. Já trabalhei como supervisora de ensino junto a SME e como coordenadora pedagógica em duas escolas (ii) Primeiros anos de docência Onde começou a exercê-la? Descrever o significado dos primeiros meses como professor. Comentar as impressões, aprendizagem e mudanças durante esse período. Explicitar as principais preocupações profissionais durante esse período. A minha primeira experiência, embora todas as dificuldades financeiras, foi muito boa, foram 4 anos. Um dos lugares mais problemáticos que trabalhei foi no CAIC 261 do Pestano, mais pela direção (anos perpétua) do que pelos alunos. Lá eu tive um grupo de teatro junto com uma colega de Educação Física, foi muito bom. Quando não se resolve, não se consegue mudar, a gente tem que abandonar o barco, fiz assim na Escola Saldanha da Gama, fiquei 1 ano e saí. Socialização profissional. Como planejou as primeiras aulas, de quem recebeu apoio, como foi aprendendo? Preocupações principais: disciplina, gestão de classe, programa da disciplina, relacionamento com colegas, alunos e pais. Encontramos muitos colegas, poucos amigos ao longo dos anos. Um fator bem marcante foi quando concorri à direção de uma escola na Santa Terezinha, acreditei que as pessoas queriam mudanças, não era verdade, mas saí da escola quando tive vontade, não aceitei perseguição. (iii) Exercício profissional Cargos ocupados no exercício profissional; lugares, instituições, mudanças. Em que lugares sentiu-se mais à vontade, comprometido e com disposição para trabalhar? Por quê? Em que lugares foi pior? Um fato ruim, como falei anteriormente, foi quando a direção do CAIC tirou minhas horas e deu para uma professora leiga, sem formação, por perseguição política, não há apoio do órgão mantenedor. 0 Desenvolvimento como docente; fatores e marcos a destacar (colegas. curso, experiências). Em 2005, consegui fazer um curso de especialização em Educação Ambiental no CEFET, com muito sacrifício com aulas toda semana, com filho em idade escolar, com mãe doente, com problemas conjugais e sem conseguir licença do município para estudar, no estado a minha escola me liberava sexta feira à noite e sábado. Foi muito difícil, mas muito prazeroso. Momentos críticos vividos na carreira profissional. Descontinuidade na carreira profissional. Acontecimentos da vida profissional ou familiar que influíram no seu ensino ou no transcorrer da sua carreira. Fui, então, parar na zona rural graças a uma colega da minha área que se elegeu diretora, passei o pão que o diabo amassou. Meu filho estava em fase de alfabetização e não conseguia acompanhar, minha vida familiar um caos, um dia eu ia lá só para um período, depois caminhava 2 km, tinha 20 horas na Colônia 262 Maciel e 20 horas na Cascata, tudo isso me tornou muito “dura”, muitas vezes sem esperança. Gênero: Como o fato de ser mulher/homem afetou a sua carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes? A nossa profissão tem em sua maioria mulheres e isso ocasiona alguns problemas: baixos salários, acúmulo de funções como dona de casa, problemas de saúde, etc. Os governos não nos valorizam também, em parte, porque somos mulheres e historicamente são as que percebem menores salários. (iv) Instituição de ensino atual Chegada à escola atual. História pessoal vivida na escola. Hoje em dia, eu atuo 20 horas numa escola à noite, onde leciono em uma turma de surdos no ensino médio e coordeno turmas do ensino médio de ouvintes. Em outra escola tenho 10 horas em sala de aula com duas turmas de 1ª séries e duas de 2ª séries, e esse ano pela primeira vez tive uma estagiária de música. Completo minha carga horária, com mais 30 horas, numa escola da zona rural: 10 horas em sala de aula com o pré e de 1ª a 4ª séries e 20 horas na coordenação pedagógica do currículo por atividades; esse é o último ano dessa equipe diretiva que eu faço parte. Grau de satisfação com a escola. A satisfação depende muito dos momentos vividos, das expectativas que temos. Já vivi momentos de maiores esperanças quanto a desenvolver um trabalho melhor, hoje estou um pouco cansada, é difícil lidar com pessoas, mas faz parte. Momento profissional. É difícil ser professora de Arte, lidar com o barulho, com a desvalorização por parte das famílias, das direções e colegas, mas também é importante o que deixamos nos nossos alunos de significativo, a lembrança que fica e o reconhecimento. PROTOCOLO DE REGISTRO DE ENTREVISTA PROFESSORA: Maria IDADE: 34 anos DATA: 12/05/2008 HORA: 16 horas INÍCIO: 16h TÉRMINO: 18h30min Nº DO PROTOCOLO: 03 IMAGEM VIAJANTE DA PROFESSORA Nº 3 Les Demoiselles d'Avignon, Pablo Picasso, 1907, Giraudon, Paris Escolher uma imagem apenas para representar o momento atual de minha profissão, foi algo muito difícil de fazer. Ao conviver com as imagens e reproduções das obras de arte, desde a faculdade e na seqüência da carreira, fez com que elas façam parte de minha vida de forma especial. Ao pensar sobre a profissão e o que cada obra pode “dizer” é difícil não encontrar algo em tantas que não tenha significado. Contudo, escolhi a obra de Picasso – Lês Demoiselles d’Avignon, 1907 – pois nela encontrei muito de mim, de meu jeito, de minha vida, de minha prática e do meu dia-a-dia, que tentarei descrever. Assim como nessa obra onde se vê muitas mulheres, penso que também sou por vezes “muitas mulheres”. Mulher dona da casa que luta para mantê-la; mulher amada; mulher amante; mulher amiga; mulher frágil, mulher valente; mulher que quer estar sozinha, mas que também gostaria sempre de ter alguém para compartilhar, e quem sabe outra mulher; uma mulher que às vezes está bem de frente, para tudo e para todos; mulher que às vezes está de costas, pois não suporta mais encarar o mundo – e esse mundo difícil às vezes é o da educação - mulher que às vezes precisa usar uma máscara, talvez não para esconder-se, mas para que simplesmente não vejam sua tristeza ou depressão ou até mesmo o êxtase do seu prazer; Penso que hoje sou assim, “muitas” em uma só. Sou sem sobre maneira, muitas professoras: comprometida, preocupada, realizada, otimista, frustrada, orgulhosa, desmotivada; Uma apenas que precisa se desdobrar em muitas, para enfrentar as adversidades, dificuldades, lutas e muito mais. Hoje me vejo assim, 264 tentando estar da melhor maneira possível diante de tudo e todos e, às vezes o melhor é estar junto, é usar máscara, é ficar de perfil, de frente, de costas, mas sempre estar presente. Minha profissão atualmente exige tanto de mim, que sinto ser mais que uma mulher... sinto que preciso ser aquela que ainda é aluna, e que quer ser aluna, que é professora, que quer ser mais professora, que tem especialização, mas quer chegar no mestrado, que é filha e quer ser mãe... Hoje minha profissão me coloca assim na vida, muitas mulheres diferentes: Regiane, Reja, Rezane, Rezinha, Sora, Sorinha, Prof, Professorinha, essas sou eu: Professora R...... S ....... 1. Esboço biográfico geral: dados relevantes na história de vida Idade ou anos de docência – Tenho 34 anos, e 5 anos de docência. Curso: Sou formada em Licenciatura em Artes / Habilitação em Artes Visuais . Data de conclusão do curso: 2003 Data de início da docência: 24 de fevereiro de 2004. Algumas mudanças radicais ao longo da carreira: Acredito que ainda não tive nenhuma mudança radical em minha carreira. O que posso dizer que acontece, é que, inevitavelmente o tempo faz com que o modo de encarar e resolver as situações do dia-a-dia seja cada vez mais aprimorado e consciente. 2. Primeira etapa biográfica: ensino básico e de licenciatura Experiência na infância: algumas lembranças significativas da escola, como transcorreu a escolaridade. Fui alfabetizada em casa. Minha primeira professora foi minha irmã mais velha. Nove anos a mais que eu, ela me ensinava tudo, com o giz da escola, nas portas dos roupeiros de nossa mãe, me alfabetizou. Minha primeira série foi sem muitos atrativos, encher as linhas e o “aeiou” para mim não significavam nada, pois já dominava muito disso tudo. A partir da segunda série é que tudo começou a ficar interessante. Quando estava na quarta-série tive minha primeira e única experiência de teatro na escola. Foi maravilhosa, a professora definiu os papéis e fui a “Bela Adormecida”, era uma história narrada. Foi muito importante. As vezes digo que, fui a “Bela Adormecida” muito tempo, depois de transitar por outras profissões, certo dia ao acordar me vi professora, descobrindo assim meu verdadeiro destino, do qual tenho muito orgulho. Em que tipo de instituição estudou a educação básica e a licenciatura? Meu Ensino Fundamental foi em escola pública (Gravataí e Pelotas), o Ensino Médio em Instituição Particular (Pelotas), e a formação acadêmica em instituição pública federal (Pelotas). 265 Influências de professores e colegas na educação básica e na licenciatura. As influências de professores e colegas na minha educação básica, foram mínimas, tenho pouquíssimas recordações de meus professores. Uma rara exceção foi uma professora de música que me mostrou que a através da música a escola poderia ser melhor. Na licenciatura com certeza as influências foram extremamente marcantes. Tanto de professores como de colegas. As relações foram mais intensas e, portanto, serviram de base para minha formação. A licenciatura foi um laboratório de experimentos, de vivências que me proporcionou ser professora dedicada, capaz e comprometida com todo o sistema educacional. O que acha que mais influiu dessa etapa de sua carreira? (matérias, professores, colegas, família)? Acredito que tudo influenciou um pouco em minha formação e atuação profissional, contudo, a influência de meus professores foi determinante para que eu pudesse nortear e identificar os valores que são essências para trabalhar como docente. Os professores afetaram diretamente em minhas escolhas, em minha construção intelectual como um todo. Obviamente que, influências negativas também existiram, essas, porém, são exemplos que ignoro. 3. Segunda etapa biográfica: opção de estudos e anos de carreira (i) Opção de estudos Porque decidiu seguir essa carreira? Desde bem jovem quis ser professora. Sempre me senti seduzida pela profissão, pelo ato de poder ensinar e contribuir com a vida das pessoas. Através da educação tudo isso, se torna cada vez mais gratificante para mim. Ser professora foi um sonho que se transformou em realidade e estou tentando dar o máximo de mim enquanto puder. Quando foi chegando perto da idade de definir a profissão, fui percebendo cada vez mais a paixão pela arte e quando vi que podia associar essa paixão à possibilidade de levá-la para os outros, a licenciatura foi o melhor caminho. Que fatores foram mais determinantes? (instituição de ensino, família, professores, amigos, nível econômico familiar)? Tudo influenciou em uma determinada medida. Tudo contribuiu para minha escolha. A família que sempre apoiou em todas as decisões pesou muito. Depois da escolha, tudo “conspirou” a favor, para que, cada vez mais eu me interessasse pela docência e pelo ensino da arte. Em que grau as expectativas pessoais/profissionais realizaram? Ou se geraram outras novas? se Sem dúvida que muitas expectativas se realizaram na profissão. Dos sonhos de menina a ansiedade da faculdade, muitas metas já foram alcançadas. Muitas 266 outras, ainda, pretendo concretizar, pois a docência exige por si só que se tenha o pensamento no futuro. Sinto que para ser professora, preciso manter acesa uma chama que me leve ao aperfeiçoamento e a uma busca incessante de saber mais. Isso na maioria das vezes não é fácil como pode parecer. As frustrações do cotidiano, diante do caos social, muitas vezes, fazem com que o fardo pese muito. Refletir sobre a prática, sobre os acertos e erros, é que sustenta essa busca. (ii) Anos de estudo na universidade Onde estudou, anos que estudou , houve algum professor ou matéria mais influente ou preferida? Minha formação acadêmica foi na Universidade Federal de Pelotas em seis anos de estudo. Muitos professores foram influentes. Poucos os preferidos. Como minha paixão pela Arte e pela docência era o que me movia dentro do curso, as matérias, sempre foram motivo de curiosidade e muitas vezes encantamento. O que mais ajudou em seu exercício profissional posterior: matérias ou professores? Acredito que o domínio sobre as matérias dos conteúdos e a influência de professores que valorizam a profissão docente, ajudou de forma concreta no exercício de minha profissão. As matérias deram subsídios teóricos e práticos também para desenvolver os planejamentos. Os professores ajudaram na medida em que orientavam, que indicavam caminhos, que faziam a discussão acontecer sobre a educação. Quais as lembranças (melhores ou piores) que tens de seus estudos? Com muita satisfação afirmo que minhas lembranças são maravilhosas de minha formação. Obviamente que coisas negativas aconteceram inevitavelmente, mas representam minoria. Aprendi muito, troquei muito, absorvi muito, vivi intensamente todos os momentos na faculdade. Fiz amizades eternas, sinceras. Aprendi a ouvir, a falar, a escrever a ler a criticar e a estudar. Contudo, apesar de ter feito um curso de formação de professores, digo que não aprendi a ensinar, isto aprendo todos os dias um pouco mais, cada vez que entro em sala de aula e me encontro com meus alunos, sejam os pequeninos da pré-escola ou os adolescentes da oitava-série. (iii) Formação prática de ensino Quais as lembranças que tens da formação prática? Que aspectos mais ajudaram quando se defrontou pela primeira vez com o ensino? Avaliando esse momento, que tipo de formação 267 acredita ter necessitado (teórica,prática) Como avalia a formação recebida? As lembranças da formação prática são muitas e na maioria são maravilhosas. Desde o inicio da graduação fiz estágios, esses então foram muito significativos, e deram uma boa base. Colaboraram para que ao assumir verdadeiramente a titularidade na escola, a expectativa fosse sobre coisas reais. Ao estar pela primeira vez como professora formada em uma escola, tive muita tranqüilidade, tive serenidade, pois já sabia como funcionava o ensino público e as condições em que se davam as aulas de arte. Ao avaliar minha formação, tanto teórica quanto prática, a satisfação é grande. Ela foi muito positiva. Tenho consciência, obviamente, que em alguns aspectos poderia ter sido melhor. Mas, como profissional comprometida, acho que não devo colocar a culpa em terceiros e sim assumir e correr atrás do que eventualmente possa ter ficado deficitário. É assim que penso e procuro agir. 4. Acesso ao ensino e exercício profissional (i) Acesso à profissão Razões pela opção pela docência e influências. Durante todo o curso de formação, minha intenção sempre foi ser professora, dar aula para crianças e adolescentes, mesmo sabendo que poderia atuar em outras atividades. As influências foram muitas tanto de professores, assim como o apoio da família. Na verdade essas influências foram o que sustentaram a busca pela carreira, muito mais do que o desejo em si. Deram suporte, pois a profissão por si só, sabe-se muito bem que não seduz ninguém, haja vista, as condições em que se trabalha. Como chegou a profissão (concurso). Sou professora da Rede Municipal de Ensino de Pelotas, nomeada através de concurso público. Como avalia essa etapa? Quando estava terminando o curso de licenciatura houve concurso público pela Prefeitura. Ter concluído o curso e logo em seguida ter a oportunidade de começar a trabalhar foi algo muito positivo, foi um início vitorioso que significou a realização profissional tão almejada, considerando que muitos colegas que ficam muitos anos sem conseguir emprego, depois de formados. (ii) Primeiros anos de docência Onde começou a exercê-la? Descrever o significado dos primeiros meses como professor. Comentar as impressões, 268 aprendizagem e mudanças durante esse período. Explicitar as principais preocupações profissionais durante esse período. Após a nomeação do concurso público, fui designada para uma escola na zona do Porto/Várzea do município de Pelotas, na Vila da Balsa. A escola chama-se Ferreira Vianna. Os primeiros meses foram muito intensos, tendo assumido 11 (onze) turmas que atendiam alunos da pré-escola até a 6ª série. O primeiro ano foi de adaptação em uma nova realidade. Uma realidade cheia de compromissos e de vivência diária com pessoas novas, com crianças e adolescentes. Um mundo novo que passou a completar o meu mundo. As principais preocupações eram em relação a capacidade de envolver tantos indivíduos – tão diferentes – em torno do mesmo assunto – arte – diante de tantas adversidades. As condições sociais dos alunos, de suas famílias, foram se tornando um referencial em tudo que eu pensava ao planejar e preparar aulas. Uma preocupação que passou a ser mais intensa, pois já existia durante o curso de formação era a busca por material didático para ser usado. Visto que, o governo federal através do Ministério da Educação envia para as escolas, livros de todas as áreas, menos para Arte e Educação Física. Todo material bibliográfico que faço uso, é fruto de minha busca e aquisição. Isto revela entre outras coisas, a falta de reconhecimento na importância da formação em arte, pelo ministério da educação, isso para dizer o mínimo. Socialização profissional. Como planejou as primeiras aulas, de quem recebeu apoio, como foi aprendendo? Preocupações principais: disciplina, gestão de classe, programa da disciplina, relacionamento com colegas, alunos e pais. Ao conhecer a comunidade escolar e atentar para suas necessidades, fui aos poucos construindo meus planos de estudos, minha proposta pedagógica, e assim formatando meus planos de aula. O apoio mais significativo que recebi foi sem dúvida em relação a compra de materiais para serem usados em aulas práticas. Esse apoio sempre foi dado pela diretora da escola, que sempre respondeu positivamente às minhas solicitações. Por ser muito carente a comunidade escolar de modo geral não questiona muito, não participa muito, não se envolve. Daí não se tem grandes problemas com as famílias. O que interessa para a maioria, é que seus filhos tenham um lugar onde possam ficar durante quatro horas. As principais preocupações sempre eram – e ainda são – em relação a desenvolver atividades e propor aulas interessantes a quem não vê na escola nada de bom. A escola de modo geral não atrai, não investe no aluno, não seduz ninguém. Essa é a maior dificuldade. Dar aula de Arte, para crianças que passam fome é tarefa mais que desafiadora, digo com tristeza, mas com os dois pés na realidade, é tarefa desumana. (iii) Exercício profissional Cargos ocupados no exercício profissional; lugares, instituições, mudanças. Em que lugares se sentiu mais à vontade, comprometido e com disposição para trabalhar? Por quê? Em que lugares foi pior? 269 Em 2005 fui convidada pelo então Secretário Municipal da Educação para fazer parte da equipe pedagógica daquela secretaria, ocasião que ocupei o cargo de supervisora de ensino até 2006. Nesse tempo ainda continuei trabalhando na escola, dividindo carga-horária. Foi um momento muito gratificante, em que pude vivenciar duas experiências distintas ao mesmo tempo. Na escola, o cotidiano de entrega para uma comunidade escolar. Na secretaria, ter que conviver e estar à disposição de toda a rede de ensino, em um total de 75 escolas de ensino fundamental e reuniões que tinham que atender mais de 80 professores da área de Arte. Sem dúvida que estou muito mais a vontade e tenho muito mais disposição para trabalhar na escola. Que representa hoje para mim um segundo lar. Conheço todo mundo, sei nome e sobrenome, sei dos sonhos, desejos e necessidades. Assim, acredito que ajudo muito mais, por isso me sinto muito mais útil e feliz. Desenvolvimento como docente; fatores e marcos a destacar (colegas curso, experiências). Momentos críticos vividos na carreira profissional. Descontinuidade na carreira profissional. Acontecimentos da vida profissional ou familiar que influíram no seu ensino ou no transcorrer da sua carreira. Posso dizer com toda certeza, e com muita tristeza que o momento mais crítico de minha vida profissional, foi em 2007, quando nossa escola perdeu um aluno. Na ocasião, passei por uma forte tentação de abandonar a profissão diante de tanta impotência sobre o acontecido. Perdemos todos. Eu perdi não somente um aluno, mas um amigo. Um menino aparentemente alegre, com um sorriso maravilhoso, educado, querido, gentil, mas ao mesmo tempo, pobre, com baixa estima, com inúmeras privações sociais, que foram fatais em sua vida, o levando ao suicídio. Esse fato afetou minha vida – profissional e pessoal – de forma drástica. Desde aquele momento concretizou-se em minha frente a incapacidade da escola em transformar a vida de quem quer que seja. Esse aluno, passou o dia inteiro na escola, pela manhã, em aula, e a tarde, buscando falar com a diretora – não conseguiu – na madrugada ...aconteceu... e ninguém, viu em seus olhos o pedido de ajuda que ele tanto estava precisando. Esse fato, que agora (abril/2008) completa um ano, ainda é vivo em meu coração. Cada vez que entro naquela sala de aula, lembro-me daqueles olhos, daquele sorriso e daquele ser, que poderia ter sido tanto, que deveria ter tido tanto, mas que desapareceu deixando um vazio. Tudo isso, me fez parar e chorar muito, pensar muito, refletir sobre minha prática inicialmente, mas também sobre o sistema de ensino, no qual estamos inseridos – público - falido e fracassado, que não educa, e sim, tenta de todas as formas possíveis, adestrar e não informar. Tudo que havia acontecido, em minha profissão, não significa nada perto desse episódio, que desejo veementemente, que nunca mais venha a se repetir. Contudo, não quero esquecê-lo, quero sim, tê-lo como exemplo de como não se deve proceder diante dos problemas de meus alunos, por mais distantes de mim que pareçam estar. 270 Gênero: Como o fato de ser mulher/homem afetou a sua carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes? Acredito que o fato de ser mulher, somente contribui para minha escolha profissional. O fato de ser mulher facilita meu relacionamento e faz com que a proximidade afetiva com meus alunos seja mais intensa em comparação com colegas do sexo masculino. Penso que o fato de ser mulher me torna mais capaz e menos desatenta diante de pequenos detalhes que estão presentes em simples atos e gestos dos alunos. Pode ser que essa percepção seja “feminista” demais, mas hoje, sinto assim. As responsabilidades familiares referem-se no meu caso, especificamente no que diz respeito apenas para mim e meu companheiro, pois, os filhos ainda não vieram... Talvez nunca cheguem... Só o tempo dirá. Assim, ser mulher me faz pensar que sou privilegiada em todos os sentidos. (iv) Instituição de ensino atual Chegada à escola atual. História pessoal vivida na escola. Minha chegada à escola em 2004 foi muito boa, em relação às condições para poder exercer a profissão. Mas desde o inicio senti a deficiência, em que as condições sociais implicavam na formação do nosso aluno e percebo que, cada vez mais implicam negativamente. A zona onde está localizada a escola é muito carente. A pobreza é grande. Ensinar, trocar, aprender, alfabetizar, informar, são desejos que muitas vezes são aniquilados diante da fome, da criança que quer merendar e brincar no recreio somente e sabemos que a escola deve muito mais que isso. Falar de Arte ou de qualquer outra área do conhecimento com quem é espancado, abusado sexualmente, que tem em sua casa um ponto de tráfico de drogas, é algo que beira o desumano. As famílias tem em média 4 filhos. Algumas famílias possuem quatro filhos na 1ª série, detalhe, que, nenhum mais com idade adequada. Prova disso é que a escola possui todos os anos, cinco turmas de 1ª série, lotadas, com média de trinta alunos cada, e sempre, somente uma oitava, com no máximo quatorze formandos, isso, representa o “funil social” pelo qual todos passam e infelizmente sabe-se que sociedade resulta disso. É preciso dizer que mesmo diante de tantas adversidades, tenho experiências dignas de Prêmio Nobel, não para mim obviamente, mas para “pequenos guerreiros” como costumo classificar meus alunos. Mesmo diante das dificuldades, ainda se sente a vontade de aprender, de ensinar, de amar, de viver. As crianças mesmo lutando contra tudo e todos, ainda assim, nos surpreendem muitas vezes e fazem com que cada vez mais tenhamos esperança e perspectiva para continuar. Grau de satisfação com a escola. Hoje em dia posso dizer que minha satisfação com a escola poderia ser muito mais positiva. Mas não culpo ninguém e culpo a todos, se isso é possível. Eles não têm estrutura familiar, não tem acesso a cultura, a saúde, e nem mesmo a educação que verdadeiramente se deseja e necessitam. 271 Momento profissional. Atualmente tento dar o melhor de mim. Tento fazer o melhor possível como professora, ser coerente e ser responsável com meu compromisso com a educação. Assumindo todas as tarefas e as cumprindo da melhor maneira possível. Estou sempre atenta a minha “eterna graduação”. Fiz curso de especialização e vou pleitear este ano o mestrado. Fora isso, procuro sempre estar participando de eventos que propiciem minha atualização e “reciclagem”. Cada vez mais minha preocupação com o lado humano das pessoas torna-se mais latente. Humanizar as relações é algo imprescindível. Perceber meu aluno como um ser único, diferente, mas que deve ser integrado na coletividade é para mim essencial. Vejo que mais importante que conteúdos e discussões teóricas fazem-se necessário valorizar saberes culturais de cada aluno. A cada início de ano letivo renova-se a esperança, a vitalidade, a força para continuar numa batalha pelo melhor, pelo que atingirá mais pessoas positivamente. Sou professora porque quero. Porque brota em meu coração a vontade de contribuir com a vida de crianças e adolescentes e melhorar o mundo através da docência, da Arte. PROTOCOLO DE REGISTRO DE ENTREVISTA PROFESSORA: Diva IDADE: 38 anos DATA: 15/05/2008 HORA:16 horas INÍCIO: 15 h TÉRMINO: 16h 30min Nº DO PROTOCOLO: 04 IMAGEM VIAJANTE DA PROFESSORA Nº 4 Retrato de Pai Tanguy 1887-1888 – Van Gogh Collection Niarchos Bom, escolhi é claro do Van Gogh por adorar a obra deste artista, escolhi também esta obra por ter imagens ligada a influência japonesa na qual estamos agora vivendo um momento tão ligado a arte oriental vivenciando as olimpíadas, ideogramas. Essa relação com outras culturas da obra do artista me fascina. 1. Esboço biográfico geral: dados relevantes na história de vida Idade ou anos de docência: Tenho 38 anos e comecei a trabalhar em 1996 um ano após a formatura. Tenho 12 anos de docência. Curso: Sou formada em Licenciatura Plena em Educação ArtísticaHabilitação em Desenho. Data de conclusão do curso: 1995 Data de início da docência: março de 1996. Algumas mudanças radicais ao longo da carreira: 273 Nos três primeiros anos comecei a dar aula em duas escolas particulares, com todos os materiais, livros e recursos. Depois passei na prefeitura e peguei uma das escolas mais carentes, foi complicado, mas superei. 2. Primeira etapa biográfica: ensino básico e de licenciatura Experiência na infância: algumas lembranças significativas da escola, como transcorreu a escolaridade. Tudo normal, mas tem uma coisa que me marcou muito, foi em relação a uma prima que desenhava muito bem, e quando cheguei em casa feliz com um trabalho de arte para fazer a minha mãe me cortou e disse que minha prima faria muito melhor, mas superei e me tornei professora de artes Em que tipo de instituição estudou a educação básica e a licenciatura? Escola do município da 1º a 4º série, em escola particular da 5º série até o 3 ano e o curso superior na UFPel. Influências de professores e colegas na educação básica e na licenciatura. Tinha verdadeira loucura por artes e matemática, alguns professores foram responsáveis outros não O que acha que mais influiu dessa etapa de sua carreira? (matérias, professores, colegas, família)? As matérias. 2. Segunda etapa biográfica: opção de estudos e anos de carreira (i) Opção de estudos Porque decidiu seguir essa carreira? Sempre tive vontade de dar aula, tentei na área de engenharia, mas não gostei muito Que fatores foram mais determinantes? (instituição de ensino, família, professores, amigos, nível econômico familiar)? Foi o apoio de familiares na hora da troca do curso de engenharia que eu estava detestando no momento para a arte, fiquei quase três anos sem estudar até a 274 decisão, neste tempo trabalhei em uma escola (maternal) e lá descobri a vontade de trabalhar com arte Em que grau as expectativas pessoais/ profissionais se realizaram? Ou se geraram outras novas? Totalmente realizada não estou ainda, estou sempre em busca de algo novo, gosto de estar nesta busca, mas pretendo trabalhar não somente em sala de aula, mas sim em oficinas como no início da minha profissão onde trabalhei no CEFET em um atelier com mães de alunos bolsistas. (ii) Anos de estudo na universidade Onde estudou, anos que estudou , houve algum professor ou matéria mais influente ou preferida? Na UFPel, entrei no vestibular de 1990, sim, adorei as disciplinas do Beto, Pelegrin e tinha verdadeira dificuldade em Expressão Cênica O que mais ajudou em seu exercício profissional posterior: matérias ou professores? Professores. Quais as lembranças (melhores ou piores) que tens de seus estudos? Melhores: história da arte, principalmente quando estudei com o beto a arte barroca e depois fiz uma viagem para Belo Horizonte, daí a fixa caiu, foi realizado um sonho do estudo com a realidade ao vivo e a cores.Piores: nunca consegui quebrar a abarreira nas aulas de cênica, adorava a professora (rsrsrsr- era tu) mas nunca consegui me soltar, mas atrás dos bastidores tive uma realização. (iii) Formação prática de ensino Quais as lembranças que tens da formação prática? Que aspectos mais ajudaram quando se defrontou pela primeira vez com o ensino? Avaliando esse momento, que tipo de formação acredita ter necessitado (teórica/prática) Como avalia a formação recebida? Amei o meu estágio no CEFET, trabalhei com uma turma dez, era aula prática de Batik. É complicado falar sobre este tema, mas quando a gente sai da faculdade fica pensando que poderia ter sido bem melhor, deveria ter me dedicado muito 275 mais, e que tem uma grande diferença dentro da faculdade para a realidade dentro de uma sala de aula. 3. Acesso ao ensino e exercício profissional (i) Acesso à profissão Razões pela opção pela docência e influências. Sonho de criança realizado. Como chegou a profissão (concurso). Cheguei à profissão por seleção em uma escola particular e depois por concurso. Como avalia essa etapa? Vou repetir a resposta anterior _ REALIZAÇÃO _ eu acho que não saberia fazer outra coisa na vida, apesar da desvalorização. (ii) Primeiros anos de docência Onde começou a exercê-la? Descrever o significado dos primeiros meses como professor. Comentar as impressões, aprendizagem e mudanças durante esse período. Explicitar as principais preocupações profissionais durante esse período. Comecei em uma escola particular foi tranqüilo, eram apenas duas horas semanais tinha muito tempo para organizar minhas aulas, tinha um verdadeiro pânico de esquecer a matéria ou não saber responder dúvidas de alunos, mas tentava ao máximo estar sempre envolvida e estudando o conteúdo e levando algo diferente principalmente unindo o desenho geométrico com a arte.Hoje em dia estou fazendo uma pequena loucura em trabalhar os três turnos quase 70 horas, mas estou levando numa boa. Socialização profissional. Como planejou as primeiras aulas, de quem recebeu apoio, como foi aprendendo? Preocupações principais: disciplina, gestão de classe, programa da disciplina, relacionamento com colegas, alunos e pais. Como falei entrei numa eterna preocupação, e isso levo até hoje, que o professor tem que ser muito, mas muito mesmo organizado, ter material para mostrar para os alunos, livros, vídeos, imagens, mas como se vê a escola não têm. Quando iniciei a coordenadora era minha colega, daí a coisa ficou fácil além da amizade estávamos caminhando juntas. 276 (iii) Exercício profissional Cargos ocupados no exercício profissional; lugares, instituições, mudanças. Em que lugares se sentiu mais à vontade, comprometido e com disposição para trabalhar? Por quê? Em que lugares foi pior? Nunca tive problemas em escolas, tanto particular como municipal os meus alunos são os mesmos, trabalho os mesmos conteúdos, claro que alguns lugares tenho mais material, mais apoio de computadores, tvs,...Uma das coisas que adoro muito em trabalhar é com cursos pois ali estão pessoas afim de fazer os cursos o geralmente em sala de aula temos alunos sem a menor disposição ainda mais quando se trata de aula de artes que não é dado o valor, na qual eles acham que não reprova o aluno. Outro aspecto que enfrentei foi quando iniciei a trabalhar a noite em uma escola em local complicado e difícil (Caíque- como é mais conhecida), mas acabei gostando é claro que tem pessoas muito difíceis, problemas que enfrentamos com certos alunos, mas também descobri que é muito bom trabalhar com adultos e que tem pessoas ótimas, lá e fiz amigos. Desenvolvimento como docente; fatores e marcos a destacar (colegas. curso, experiências). Foram os que eu já citei na pergunta anterior. Momentos críticos vividos na carreira profissional. Descontinuidade na carreira profissional. Acontecimentos da vida profissional ou familiar que influíram no seu ensino ou no transcorrer da sua carreira. A mudança de trabalhar na escola particular e ir para a pública, não conseguia encarar a situação de pobreza dos alunos, a quantidade de filhos que alguns pais tinham na escola sem poder sustentar, a falta de carinho entre eles,... Gênero: Como o fato de ser mulher/homem afetou a sua carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes? Sempre tentei realizar um trabalho no momento de aula, levando coisas para meus alunos conhecerem e ali naquele momento tentar levar um pouco da arte até eles. 277 (iv) Instituição de ensino atual Chegada à escola atual. História pessoal vivida na escola. Grau de satisfação com a escola. Variada, cada uma tem lados positivos e também lados negativos, atualmente trabalho em (4) quatro escolas. Momento profissional. Professora de arte e desenho do pré a 8º série. Fase bastante difícil pela diversidade de níveis de ensino. PROTOCOLO DE REGISTRO DE ENTREVISTA PROFESSORA: Eduarda IDADE: 46 anos DATA: 17/05/2008 HORA: 20 horas INÍCIO: 20h TÉRMINO: 22h30min Nº DO PROTOCOLO: 05 IMAGEM VIAJANTE DA PROFESSORA Nº 5 Morro Vermelho – Lasar Segall -1926 Coleção Particular Escolhi essa imagem porque me sinto responsável por meus alunos tanto no desenvolvimento moral, cognitivo como físico. Às vezes sou mãe, psicóloga, babá de pobre porque muitas famílias vêem a escola como um depósito, lugar onde coloca o filho para descansarem, lamentam as férias, mandam seus filhos sem material e nós que temos que temos que nos resolver com o que temos. Eu também trabalho com criança de periferia. 1. Esboço biográfico geral: dados relevantes na história de vida Idade ou anos de docência: Tenho 46 anos e 8 anos de docência. Curso: Sou formada em Licenciatura em Artes com habilitação em Desenho e Computação Gráfica. Data de conclusão do curso: 1999 Data de início da docência: 21 de junho de 2000. Algumas mudanças radicais ao longo da carreira: Independência financeira, separação depois de 20 anos de casada, financiamento de um apartamento do PAR. 279 2. Primeira etapa biográfica: ensino básico e de licenciatura Experiência na infância: algumas lembranças significativas da escola; como transcorreu a escolaridade. Minha infância foi intimamente ligada à escola, pois sempre morei em prédios de escolas, meu pai era professor de zona rural. /minha escolaridade inicial foi tranqüila, meu pai foi meu professor até a 5ª série. Em que tipo de instituição estudou a educação básica e a licenciatura? Sempre estudei m instituições públicas. Influências de professores e colegas na educação básica e na licenciatura. Ao certo não sei se influência é o termo mais correto, pois acho que na minha trajetória encontrei bons e péssimos colegas e professores, pessoas que me alegram e outras que me deixam triste ao lembrar. Quando comecei o ensino médio e a licenciatura eu já estava bem amadurecida e sabia o que queria e ia em frente. Os obstáculos eu vencia e as coisas ficaram para serem lembradas. Eu tinha que chegar onde eu queria. O que acha que mais influiu dessa etapa de sua carreira? (matérias, professores, colegas, família)? Para minha carreira tudo influiu. Os conteúdos dados no curso me serviram de caminho. Os professores serviram para me espelhar no que eu poderia ser e no que eu não queria ser. Colegas, felizmente, eu encontrei muitos que me apoiaram de todas as maneiras possíveis, como, por exemplo, a Helenita que me pagava até o ônibus quando eu não tinha passagem e me emprestava os xerox, que não eram poucos, para fazer os trabalhos. Meus filhos, quatro guris, e marido, apesar das dificuldades, sempre me apoiaram e nunca me cobraram o tempo que eu deixava de passar com eles, nem com o que eu deixava de fazer em casa para estudar e as despesas, que por pouco que fosse sempre saiam do orçamento da semana. Meus irmãos e pai achavam que tudo era bobagem, que eu deveria parar de andar na rua ”perneando” para cuidar dos filhos. Minha sogra, que é bem mais velha, me apoiava muito, minhas cunhadas também me dando roupas e calçados. 2. Segunda etapa biográfica: opção de estudos e anos de carreira (i) Opção de estudos Porque decidiu seguir essa carreira? Pela estabilidade e oferta de trabalho. 280 Que fatores foram mais determinantes? (instituição de ensino, família, professores, amigos, nível econômico familiar)? Nível econômico familiar. Em que grau as expectativas pessoais/profissionais realizaram? Ou se geraram outras novas? se Na verdade me caiu a “ficha” no 6º semestre, aí eu percebi para onde eu estava trilhando, foi quando eu me conscientizei do peso da profissão que eu tinha escolhido. (ii) Anos de estudo na universidade Onde estudou, anos que estudou , houve algum professor ou matéria mais influente ou preferida? Estudei na UFPel, de 1996 até 1999 – a formatura foi em 2000 – e minha disciplina preferida era História da Arte, detestava Estética. O que mais ajudou em seu exercício profissional posterior: matérias ou professores? Tanto professores quanto os conteúdos me ajudaram muito, mas o de maior peso eu acho que foi o conteúdo porque para ser professor não é só ter postura mas conhecimento acadêmico e também estar atualizado. Quais as lembranças (melhores ou piores) que tens de seus estudos? Melhor de todas as lembranças foi de um professor da ETFPEL que no dia em que eu fui fazer uma prova, eu estava muito insegura e ele chegou perto de mim e falou: “Parabéns, pensei que tu não sabias a matéria, mas agora vi que me enganei”, foi como uma injeção de segurança, eu fiquei tão feliz que tirei a melhor nota da turma. Outra vez, esse mesmo professor me deu uma dica de como fazer uma maquete que eu teria que fazer ou seria reprovada e perderia o ano, sem o outro professor perceber ele falou: “em forma de sanduíche”, entendi a mensagem “era por empilhamento”. Meu trabalho foi o melhor, tanto que o professor ficou com ele para ser mostrado. A pior foi ter ficado em recuperação junto com a amante do professor, ela era burra como uma porta eu e ela estávamos com a nota na tangente, então ele me colocou em recuperação para não ter que fazer a recuperação só com ela. Esse mesmo professor fez com que eu e outra colega perdêssemos um estágio em uma firma de embalagens. No final do curso, eu e essa colega fomos fazer uma entrevista e conseguimos o estágio, quando ele descobriu telefonou para a firma e disse que tinha a indicação de uma aluna com média maior que a nossa, a firma aceitou e os dispensou. Fiquei sem estágio lá e na Prefeitura porque antes de eu aceitar o estágio nessa firma tive que rescindir o contrato que eu tinha como estagiária. Na faculdade 281 encontrei vários professores legais, mas também professores que tem cargo vitalício e não tem competência para exercê-lo, vivem na utopia, fora do contexto. Eu gostaria de vê-los dando aula em uma das turmas que eu dou, daria muita risada e teria pena deles. Professores como o Zeca que não leva em conta o conhecimento e vivência do aluno; a Luciana Leitão que não respeita o aluno como pessoa; o Caringi que nunca se achou nos seus conteúdos e avalia o aluno pela cara, acho que ele nem sabe que para avaliar tem que ter critérios bem claros; o Beto, que apesar de ser extremamente culto, enrola o aluno com seu discurso e quase não dá conteúdo, mas tira do fundo do baú folhas amareladas para cobrar na prova o que ele não deu. Professores como esses me marcaram negativamente por terem uma prática pedagógica precária, uma porcaria, e ainda menosprezam a inteligência do aluno. (iii) Formação prática de ensino Quais as lembranças que tens da formação prática? Que aspectos mais ajudaram quando se defrontou pela primeira vez com o ensino? Avaliando esse momento, que tipo de formação acredita ter necessitado (teórico/prática) Como avalia a formação recebida? Acho que os últimos semestres - 6º, 7º e 8º – foram o que mais valeram. Minhas professoras preferidas eram a Biasoli e a Tânia Porto, gostava tanto que parece que só tive aula com elas, eu não me lembro de mais ninguém. Tive uma formação prática muito boa, pois quando me defrontei com o ensino pela primeira vez me senti segura, pronta. Acho que sempre selecionamos o que nos interessa, muitas informações me foram dadas, todas muito importantes. Acho que a maneira que muitas delas foram dadas é que poderia ser melhor. Minha formação foi muito boa, me preparou para o exercício da minha profissão, o resto é correr atrás. 3. Acesso ao ensino e exercício profissional (i) Acesso à profissão Razões pela opção pela docência e influências. Quando terminei a ETFPEL, o curso de Desenho Industrial, eu não consegui estágio-emprego que pagasse o suficiente para levar meus filhos – na época trêsjuntos, pois estagio bom só fora da nossa cidade, então resolvi fazer uma faculdade que desse uma continuidade ao curso feito e esse curso seria o de Artes. Conversei com uma amiga e ela me aconselhou a escolher a licenciatura porque eu arrumaria emprego. Como chegou a profissão (concurso). 282 Depois da colação de grau eu prestei concurso para o município – P1 e Educação Infantil como auxiliar, eu estudei muito e consegui passar nos dois. Como avalia essa etapa? Acho que fui bem preparada para exercer a profissão, mas a teoria que devemos saber para passar em concurso ficou devendo. Espero que isso tenha mudado. Nunca havia discutido sobre pensadores da educação dentro da faculdade, tive que me virar, ler, arrumar material emprestado, no ILA –hoje IAD- por exemplo, não se discute, sabendo que estão formando profissionais que, na sua maioria, vai para as escolas lidar com crianças e adolescentes. (ii) Primeiros anos de docência Onde começou a exercê-la? Descrever o significado dos primeiros meses como professor. Comentar as impressões, aprendizagem e mudanças durante esse período. Explicitar as principais preocupações profissionais durante esse período. Comecei a exercer minha profissão em uma escola perto da minha casa, a escola em que morei, cresci, estudei até a 5ª séria, escola onde meu pai durante minha infância e adolescência, era professor e diretos (EMEF Luiz Augusto Assumpção no Laranjal). Os primeiros meses como professora foram cheio de otimismo, orgulho de mostrar que tinha chegado onde eu queria, que era capaz, mas também por outro lado ver que as coisas não seguiam o percurso que se queria, que não era só chegar e despejar o conteúdo, que além de ter a pretensão de ensinar teria que estar aprendendo, estudar conteúdo, procurar a melhor maneira de estar passando isso para o aluno. Minha maior preocupação era demonstrar domínio do conteúdo para os alunos e de classe para a equipe diretiva, pois afinal estava em estágio probatório. Socialização profissional. Como planejou as primeiras aulas, de quem recebeu apoio, como foi aprendendo? Preocupações principais: disciplina, gestão de classe, programa da disciplina, relacionamento com colegas, alunos e pais. (iii) Exercício profissional A minha socialização profissional foi boa, acho e sempre achei que no trabalho as relações são obrigatoriamente profissionais, devemos ser éticos, se a amizade vir junto é um grande lucro. No dia em que me apresentei na escola fui entrevistada pela diretora e pela coordenadora da área dentro de uma minúscula salinha da coordenação, me explicaram sobre documentos que eu deveria preencher, as turmas que eu iria trabalhar, os horários, com um tema gerador que não lembro qual era, só sei que achei chato e não tinha nada a ver com o que eu queria trabalhar, me mostraram onde era o meu armário e materiais, me apresentaram as turmas que eu iria trabalhar. As colegas ficaram contentes, pois teriam “folga”, me deram uma listagem de conteúdos que me baseei para planejamento das minhas aulas, a coordenadora me esclarecia dúvidas, mas analisei todas as colegas por um bom tempo e escolhi uma para perguntar detalhes como 283 preencher algumas coisas na folha de chamada, etc. Escolhi bem porque era uma excelente colega. Cargos ocupados no exercício profissional; lugares, instituições, mudanças. Em que lugares se sentiu mais à vontade, comprometido e com disposição para trabalhar? Por quê? Em que lugares foi pior? Sempre ocupei cargo de professor em escolas municipais. Sempre me sinto comprometida e com disposição para o trabalho e também com autonomia. Meu trabalho é com os alunos e procuro fazê-lo da melhor maneira possível. O pedagógico é muito importante, se não há uma harmonia com ele nada funciona, então troca-se de escola. Desenvolvimento como docente; fatores e marcos a destacar (colegas. curso, experiências). Meu desenvolvimento como docente foi intenso, mas tenho muito que desenvolver. Fiz curso de capacitação para trabalho com surdos, que no final transformou-se em um curso de especialização. Este curso dentre todos os que eu fiz foi o mais significativo, pois me proporcionou perspectivas novas de trabalho, por exemplo, quando fiz o segundo concurso que passei fui designada para trabalhar com turmas de inclusão na escola, mas exclusão de surdos na sala de aula no CMP e também aumentou meu salário com a gratificação e aumento do percentual de incentivo além da experiência com ma cultura até então nova para mim. Momentos críticos vividos na carreira profissional. Descontinuidade na carreira profissional. Acontecimentos da vida profissional ou familiar que influíram no seu ensino ou no transcorrer da sua carreira. Momentos críticos foram nos últimos que fiquei na minha primeira escola, fui acusada de ser contra a folga das professoras de currículo e de ser desumana com uma professora que estava quase abortando o filho, tudo porque eu me recusei atender os alunos dela junto com os da turma que eu deveria atender, pois essa professora faltava muito e a turma estava perdida, sem limites, então de 2ª a 4ª feira eles dividiam a turma em três grupos para colocar um ouço em cada turma que tinha as professoras titulares, mas os alunos que mais incomodavam ficavam na turma da titular de folga, isto é nos dias das especializadas. Na 5ª feira como era aula com as especializadas a turma toda ficava junto. Resumo, em todas as turmas que eu atendia os “pestes” (como eram chamados) estavam. Explodi, entrei em depressão, só chorava, não comia nem dormia, depois que foram perceber que eu estava com razão porque a secretária me defendeu, fizeram antes disso uma reunião com toda a escola, colocaram o problema, me senti um leão enjaulado, naquele momento decidi pelo remanejo, tentaram me 284 convencer em ficar, mas não aceitei. Perdi a confiança, consegui ser remanejada para a escola que escolhi e estou lá até hoje. Acho que não houve descontinuidade no meu trabalho. A experiência me ensinou que devo me respaldar com documentos escritos quando trabalho com “aborrecentes” principalmente à noite. Acho que nem o MEC respeita o docente e fico triste de saber que Instituição como essa cria “leis” que acabam desvalorizando o meu trabalho e eu não posso fazer nada. Às vezes ma sinto uma palhaça organizando trabalhos, conteúdos, critérios de avaliação para fazer de conta. Gênero: Como o fato de ser mulher/homem afetou a sua carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes? Acho que o fato de ser mulher até beneficia no exercício da minha profissão. Meus filhos reclamam que quase não fico com eles, mas sou eu que faço tudo para eles, levo na escola, cuido para estudar, se tem tema, se tem que tomar banho, lavar orelha, cortar unha, se a roupa está limpa, se tem merenda, se tem material, às vezes escapa alguma coisa. Haja responsabilidade! (iv) Instituição de ensino atual Chegada à escola atual. História pessoal vivida na escola. Grau de satisfação com a escola. A chegada na atual escola (Nabuco) foi normal, é uma escola pequena , tenho todo o material didático que peço, tenho autonomia no meu trabalho, me relaciono bem com os colegas e equipe diretiva, só não gosto das fofocas que são freqüentes. Eu também pertenço a um projeto de banda musical do qual sou integrante. Sou muito elogiada pelo trabalho que faço na sala de aula. A chegada no Pelotense foi normal, mas é outro ambiente, muito mais elitizado. Sou meio “Xepa”, no início senti que era avaliada pela aparência, mas depois que muitos descobriram que eu trabalhava com surdos, lugar que muitos gostariam de estar, começaram a me respeitar. Minha relação com os colegas é boa. Nas duas escolas o me grau de satisfação é bom, faço o que me cabe. Momento profissional. Acho este momento bom, tenho bastante oferta de trabalho, costumo dizer que se tivesse turno das horas às 6 horas da manhã também trabalharia. Costumo me impor como professora de artes (Educação Artística como dizem), tenho que ser vigilante no meu discurso tanto com os alunos como com os colegas. Nas escolas de séries iniciais, por incrível que parece as professoras titulares acham que as especializadas são para “dar folga”. Acham também que tenho que trabalhar as datas comemorativas, enfeitar a escola, mas não faço nada disso. No Nabuco uma professora falou ”brincando” que eu era uma incompetente porque não fazia isso, respondi a ela que tina feito um curso universitário regular, que não tinha 285 feito meu curso superior “nas coxas” como muitas que fizeram pedagogia porque o governo tinha oferecido, e ainda cursos especialização paga com trabalhos de conclusão encomendados, também falei que não tinha tirado curso de decoração de ambientes, se tivesse estaria animando festas de aniversário e talvez ganhando mais do que professora. Procuro estar atualizada no interesse dos alunos, estudar e rever a minha prática. Estou começando a registrar sobre minha prática e resultados, isso antes eu não fazia, mas como as pessoas me incentivam, dizem que meu trabalho é bom, se não registro meu trabalho se perde no tempo. Gostaria de publicar coisas que fiz e deu certo. Às vezes leio em artigos sobre trabalhos que já fiz e não me dei conta que era bom, aí pensei, mas isso eu faço, e na publicação está como uma grande novidade. Estou numa fase que quero que um nome cresça e apareça por pura vaidade e reconhecimento do meu trabalho, é o ditado. “Se eu não gavo...”. Acho muito coerente este momento. PROTOCOLO DE REGISTRO DE ENTREVISTA PROFESSOR: Paulo IDADE: 43 anos DATA: 11/08/2008 HORA: 14 horas INÍCIO: 14 h TÉRMINO: 16h30min Nº DO PROTOCOLO: 06 IMAGEM VIAJANTE DO PROFESSOR Nº 6 Detalhe da obra Nascimento de Vênus - Sandro Botticelli – 1483 Galeria degli Uffizi, Florença Alguém certa vez disse: “que a melhor parte da viagem acontece justamente quando pomos de lado os mapas” e nos deixamos ir ao sabor das sensações, para tanto a minha viagem por estes questionamentos terá como ponto fixo apenas o local da partida, uma imagem, com múltiplos significados e infindas interpretações. Na verdade não se trata de uma imagem, mas de um detalhe muito peculiar de uma famosa obra de um dos grandes mestres da renascença. Resolvi escolher o rosto da personagem tema da obra “O Nascimento de Vênus” de Botticceli mesmo antes de ter posto meus olhos sobre a entrevistadora, na verdade acho que ela me escolheu. Em uma de muitas das minhas andanças virtuais pela rede de computadores a procura de imagens significativas da historia da arte, deparei-me com aqueles olhos. Olhos que me fizeram viajar mais além, em busca talvez de mim mesmo, ou quem sabe o que mais. A partir daquele momento o pano de fundo da área de trabalho do meu computador havia se transformado numa ponte, numa janela, onde ela, a Venus, me levava ao encontro de vários pensamentos, tais como, beleza, arte, educação e renascimento. Uma imagem, um rosto, um olhar secular, que apesar de toda a sua beleza e significação traz consigo séculos de história desgastada em seus pequenos craquelados, marcas que o tempo foi talhando, modificando-a em sua forma, tornando-a um pálido reflexo daquilo que os olhos do mestre haviam concebido. Terão os anos alterado também a sua essência? 287 1. Esboço biográfico geral: dados relevantes na história de vida Idade e anos de docência: 30 anos de vida e estou no meu quinto anos de docência. Nome do Curso: Licenciatura em Artes - Habilitação em Desenho e Computação Gráfica – IAD/UFPel. Ano da formatura: 2002. Data de início da docência: 14 de fevereiro de 2004. Algumas mudanças radicais ao longo da carreira: Deixar para trás boa parte dos “pedagogismos” da academia para poder sobreviver ao mundo real sem ser esmagado por ele. 2. Primeira etapa biográfica: ensino básico e de licenciatura Experiência na infância: algumas lembranças significativas da escola. Como transcorreu a escolaridade? Nunca fui à maioria, sempre tive um gosto diferente pelas coisas, era o único garoto da sala que preferia a biblioteca ou as aulas de artes ao futebol, gostava de brincar de imaginar mundos alternativos onde poderia ser qualquer coisa ou qualquer um e adorava escutar música, muita música, como é até hoje. Em que tipo de instituição estudou a educação básica e a licenciatura? Cursei o ensino fundamental em escola publica estadual, iniciei o ensino médio em uma escola publica federal e o conclui numa escola municipal, também publica. Completei meus estudos fazendo a licenciatura em uma universidade federal. Influências de professores e colegas na educação básica e na licenciatura. Tenho pouquíssimas lembranças do período relativo à minha educação básica, o pouco que consigo recordar é o sentimento de estar sendo obrigado a fazer algo de que eu não gostava nenhum pouco, mas todos diziam que era para o meu bem e que eu tinha de fazer quilo. Esse sentimento de obrigação só foi se dissipar na faculdade, onde encontrei pessoas com os mesmo interesses, onde se podia falar, debater, aprender e até mesmo questionar, discutir, discordar sobre artistas, visionários e acima de tudo – apaixonados. O que acha que mais influiu dessa etapa de sua carreira? (matérias, professores, colegas, família). O ambiente como um todo, na verdade os ambientes, pois minha trajetória pela faculdade de artes começou na antiga Escola de Belas Artes, um prédio do século XIX, com escadarias de mármore e vitrais de tirar o fôlego, onde nos dois primeiros anos da licenciatura podíamos conviver com “os fantasmas do passado” e suas glórias. Já os dois últimos anos tiveram como palco o novo Instituto de 288 Letras e Artes, hoje IAD, um prédio de arquitetura contemporânea, teto abobadado feito de fibras tecnológicas que mais parecia um Shopping Center. Posso dizer que com toda a segurança que o que mais me marcou nessa caminhada por entre mundos, foram as pessoas que trilharam verdadeiramente o caminho e não aqueles que acreditando possuir bagagem suficiente para encher seus passaportes somente fingiram caminhar. 3. Segunda etapa biográfica: opção de estudos e anos de carreira (i) Opção de estudos Porque decidiu seguir essa carreira? Na verdade, minha paixão sempre foi a arte, em suas muitas áreas de expressão, musica, poesia, cinema, pintura, entre tantas outras; logo fazer um curso ligado a essa área foi a única escolha, apesar de a licenciatura ser um campo desconhecido até então. Que fatores foram mais determinantes? (instituição de ensino, família, professores, amigos, nível econômico familiar). O desejo de aprender as muitas formas de expressão artísticas, pintura, gravura, cerâmica, etc. e a possibilidade de poder aprende a lidar com os diversos materiais envolvidos em seus processos de criação. Em que grau as expectativas pessoais/profissionais realizaram? Ou se geraram outras novas? se Minhas expectativas profissionais nesse momento se voltam em duas direções, uma primeira trabalhar noções de patrimônio e memória cultural no recém inaugurado laboratório de informática da escola onde trabalho, e uma segunda é a possibilidade de entrar no curso de mestrado em Memória e Patrimônio fornecido pela Universidade Federal de Pelotas. (ii) Anos de estudo na universidade Onde estudou, anos que estudou, houve algum professor ou matéria mais influente ou preferida? Minha faculdade durou exatos quatro anos cursados na integra no Instituto de Letras e Artes da UFPel, onde dentre muitas disciplinas cursadas destacaram as que eram relacionadas ao “pensar sobre arte” como Estética, Projeto em Artes I e II. O que mais ajudou em seu exercício profissional posterior: matérias ou professores? Sem duvida nenhuma, o que mais me auxiliou na trajetória profissional foi exemplo de alguns professores que ao invés de ficarem repetindo o velho 289 discurso empoeirado da academia, nos davam noções de como era o mundo real, em se tratando do ensino da arte e da educação em geral vigente no país, nos preparando para as dificuldades que inevitavelmente enfrentaríamos. Quais as lembranças (melhores ou piores) que tens de seus estudos? As maiores lembranças que tenho dos meus estudos são da oportunidade que tive de poder observar as diversas maneiras de se dar uma aula. Lembro-me dos professores pretensiosos, que não sabiam absolutamente nada sobre o que sua disciplina tratava; aqueles que sabiam muito, mas guardavam o conhecimento apenas para si com medo de que algum aluno roubasse o seu intocado lugar ao sol glorioso que brilha sobre o panteão das artes e, principalmente, aqueles que eram tidos como loucos, pois sabiam, pouco ou muito, mas tinham o dom de compartilhar e que me deixaram uma valiosa lição: compartilhar conhecimento é construir saber. (iii) Formação prática de ensino Quais as lembranças que tens da formação prática? Que aspectos mais ajudaram quando se defrontou pela primeira vez com o ensino? Meu período de estágios supervisionados foi o momento em que realmente pude colocar em pratica muitos dos conceitos vistos em sala de aula e onde pude constatar também que os ensinamentos mais validos vieram de alguns professores do nosso Instituto de Artes que aparentemente sabiam muito mais sobre realidade e educação do que os “mestres” da faculdade de educação que passaram semestres a fio delirando sobre um mundo hipotético do qual pouco ou nada sabiam, pois o viam através dos olhos de outros autores e não com os seus próprios. Exemplo lamentável! Avaliando esse momento, que tipo de formação acredita ter necessitado (teórica, prática) Como avalia a formação recebida? Acredito que todos os erros ou deslizes cometidos no inicio da minha decência poderiam ter sido em grande parte evitada, se tivesse tido uma preparação melhor no sentido de discussões a respeito do universo que cerca a escola, como comunidade, família, cultura local, ética... 4. Acesso ao ensino e exercício profissional (i) Acesso à profissão Razões pela opção pela docência e influências. Como chegou a profissão (concurso). Como avalia essa etapa. 290 Pouquíssimo tempo depois da conclusão do curso e da formatura, surgiu à possibilidade de fazer um concurso para o município em que quase todos da nossa turma se lançaram. Inscrição, provas, aprovação, exames médicos, físicos e mentais e aproximadamente com seis meses de formado eu era professor da rede municipal de ensino. Para minha surpresa, nessa fase em que imaginei que iria ensinar, foi onde mais aprendi. (ii) Primeiros anos de docência Onde começou a exercê-la? Descrever o significado dos primeiros meses como professor. Comentar as impressões, aprendizagem e mudanças durante esse período. Explicitar as principais preocupações profissionais durante esse período. Meu ingresso no município se deu em fevereiro, ou seja, já entrei comecei em férias, com a escola funcionando parcialmente, onde recebi a ordem da diretoria para me apresentar somente no inicio das aulas. Em março quando tudo começou me dei conta realmente que estava em uma escola publica, de ensino fundamental incompleto, ate a quinta série situada do outro lado do muro invisível aos olhos, mas que separa a periferia dos bancos da academia. Socialização profissional. Como planejou as primeiras aulas, de quem recebeu apoio, como foi aprendendo. Preocupações principais: disciplina, gestão de classe, programa da disciplina, relacionamento com colegas, alunos e pais. Estar em uma escola é antes de qualquer coisa um exercício de diplomacia: um universo de situações e realidade conflitantes que se entrelaçam e caminham lado a lado. Relações: Professor x aluno Como se portar em sala de aula, o nível de absorção intelectual relativo a cada idade, o tipo de linguagem a ser usada segundo a idade, classe social e cultural de cada grupo. Professor x pai de aluno O que o pai espera da disciplina, do professor e do próprio filho. Como esse pai vê seu filho e como ele realmente é na escola, seu comportamento e suas capacidades. Pais ausentes, filhos problemáticos; pais super protetores que projetam uma serie de frustrações nos pequenos e pais que acham que o filho sempre esta sendo injustiçado, por não tirar sempre dez, afinal, é somente artes! Professor x colega de profissão Nunca sabemos ao certo com que estamos lidando. Existem os bons colegas, que são competentes naquilo que fazem e sabem reconhecer a 291 competência nos outros. Existem aqueles que são competentes e não conseguem ver isso em mais ninguém, bem como há aquele tipo de professor que em minha opinião é o pior, o incompetente, que não realiza nada, critica a o trabalho de todos e ainda usa o seu tempo ocioso pra servir de leva e traz dentro da escola minando todas as relações. Professor x funcionário Alguns funcionários são excelentes, verdadeiros companheiros, auxiliares valiosos no processo de construção da escola como um todo, mas também existe o funcionário que não pretende fazer nada alem daquilo que ele mesmo imagina ser atributo de sua profissão e mais acredita que o professor por ter um salário mais alto esta lá somente para fazê-lo de seu empregado. Professor x direção da escola Direção da escola, cargo temporário, muitas vezes pode ser confundida com poder e quando isso acontece é preciso saber equilibrar os quocientes de uma delicada equação. Ate onde se pode ir, o que se pode dizer, como e onde e principalmente, para quem dizer. Escola x comunidade A escola tem o dever de ser um fator de transformação na comunidade, gerando uma transformação para melhor nas formas de pensar, agir e viver utilizando da educação como veiculo desse processo. O problema se encontra quando a comunidade tem um conjunto de valores extremamente distintos dos da escola e tenta reverter o processo transformando negativamente a escola para atender os seus interesses. Escola x academia Professores da rede de ensino geralmente não são vistos como colegas pelos professores da academia, me parece que não se recordam que um dia já sentaram nos mesmo bancos e partilharam das mesmas idéias. A impressão que se tem é de que os acadêmicos se cercaram tanto por de trás dos conceitos e teorias, que hoje em dia não conseguem mais dialogar com o professor que esta lá na periferia vivenciando a realidade do dia a dia (iii) Exercício profissional Cargos ocupados no exercício profissional; lugares, instituições, mudanças. Em que lugares se sentiu mais à vontade, comprometido e com disposição para trabalhar? Por quê? Em que lugares foi pior? Nesses cinco anos de já passei por quatro escolas, a primeira onde sou lotado é uma instituição de periferia, voltada para a comunidade, mas com os pés fincados no chão, atende as necessidades do seu publico alvo, mas não deixa de enxergar os profissionais que lá trabalham como seres humanos que possuem uma vida particular que vai bem mais alem dos muros da escola e não tenta fazer da educação uma utopia meramente ilusória e sem resultados práticos. 292 A segunda onde comecei a fazer meu primeiro desdobramento de carga horária também era uma escola situada na periferia, mas com um diferencial, uma população carente, mas com ascendência étnica forte, na sua maioria de origem alemã, fato que contribuía para uma visão de escola transformadora e formadora de indivíduos. O meu segundo desdobramento se deu em uma escola rural onde a comunidade era mais forte que a direção da escola e apesar de serem também de origem alemã, nesse caso a comunidade via a escola como o quintal de casa, um lugar para atender suas necessidades e uma inesgotável fonte de oportunidades. Finalmente no meu terceiro desdobramento consegui fincar banco e me estabelecer. Trata se de uma escola situada em um balneário da cidade, um local violento, onde a comunidade vive em total desagrega mento familiar, e a própria família não vê a escola como um local de aprendizado e modificação, mas sim um deposito onde atiram as crianças para poderem ter algum tempo livre para fazer seja lá o que for, mas surpreendentemente foi o local onde fiz amigos. Desenvolvimento como docente; fatores e marcos a destacar (colegas curso, experiências) Posso afirmar que aquele recém formado que pretendia se utilizar da arte como uma forma de transformar, criar e aprimorar já não existe mais, após seis anos me transformei em um profissional ciente de meu dever como educador, mas também ciente de que somente a minha vontade não é capaz de auxiliar um indivíduo a crescer e caminhar com as próprias pernas, ele tem que antes de tudo desejar caminhar, meu papel é mostrar a estrada e caminhar com ele, nunca por ele. Também não tenho mais a pretensão de caminhar com todos, o caminho pode ser de todos, mas não é assim que as coisas são e não é assim que todos pensam. Para mim o importante é acender a chama em alguns e que esses alguns possam sentir o mesmo desejo que eu senti, o desejo de ir além, de ver, de conhecer mais e de perceber que as fronteiras do mundo podem ir muito mais longe do que a cerca do quintal. Momentos críticos vividos na carreira profissional. Descontinuidade na carreira profissional. Acontecimentos da vida profissional ou familiar que influíram no seu ensino ou no transcorrer da sua carreira. Gênero: Como o fato de ser mulher/homem afetou a sua carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes? Ser professor é também atender expectativas, sonhos e fantasias, tanto de alunos, como de pais e colegas de trabalho. O fato de ser homem me diferenciava do conceito de “tia” pseudo projeção da imagem da mãe, ser jovem, me colocava em uma posição de irmão mais velho o que sempre dava margem a um não reconhecimento da figura do professor e principalmente o fato de ser gay e no me parecer nenhum pouco com o estereotipo de uma criatura cheia de afetações e que deveria em tese se vestir de mulher foram três barreiras em uma que tive de 293 aprender a conviver para mais tarde transpor. Hoje sou o professor de artes em qualquer uma das escolas e sou respeitado como tal, não importando o que mais eu sou ou deixo de ser. (iv) Instituição de ensino atual Chegada à escola atual. História pessoal vivida na escola. Grau de satisfação com a escola. Momento profissional (como professor, como professor de Arte e a situação desse ensino) Acredito já ter respondido de forma satisfatória essa unidade toda no transcorrer do meu relato. Continuo lotado na mesma escola onde comecei e estou fazendo desdobramento de carga horária em uma escola de um dos balneários da cidade há três anos local este onde me encontro realizado pelas amizades que fiz e pelos ensinamentos que obtive dos mais experientes que me tornaram um educador visivelmente melhor do que aquele visionário de cinco anos atrás. PROTOCOLO DE REGISTRO DE ENTREVISTA PROFRSSORA: Jenice IDADE: 51 anos DATA: 13/08/2008 HORA: 14 horas INÍCIO: 14h30min TÉRMINO: 16 h Nº DO PROTOCOLO: 07 IMAGEM VIAJANTE DA PROFESSORA Nº 7 Mona Lisa Leonardo da Vinci, 1503-1507 Museu do Louvre - Paris Solitária, observando o mundo, mas com um entendimento mais profundo de tudo isso... por isso o meio sorriso. 1. Esboço biográfico geral: dados relevantes na história de vida Idade e anos de docência: 51 anos e 21 anos de docência. Nome do Curso: Licenciatura Plena em Educação ArtísticaHabilitação em Artes Plásticas Ano da formatura: 1985 Data de início da docência: 1986 Algumas mudanças radicais ao longo da carreira: 295 Sim. Em dezembro de 1992 pedi demissão e fui morar em outro país, na Espanha, onde fiquei dois anos. 2. Primeira etapa biográfica: ensino básico e de licenciatura Experiência na infância: algumas lembranças significativas da escola. Como transcorreu a escolaridade? Sim, só lembro que tocava acordeon nas festas juninas para o grupo dançar e de apresentações cantando com um colega. Lembro de um grito de uma professora comigo. Não lembro mais nada, só a partir da 5ª série primária. Em que tipo de instituição estudou a educação básica e a licenciatura? Sempre estudei em instituições públicas. O segundo grau fiz na ETFPEL. Influências de professores e colegas na educação básica e na licenciatura. Nenhuma. O que acha que mais influiu dessa etapa de sua carreira? (matérias, professores, colegas, família). Gostar de artes em geral. 3. Segunda etapa biográfica: opção de estudos e anos de carreira (i) Opção de estudos Porque decidiu seguir essa carreira? Não escolhi foi por conseqüência. Eu queria entrar na Arquitetura, mas entrei na licenciatura, foi mais fácil, depois ia pedir reopção, mas não pude, acho que não foi permitido. Fui gostando do curso e fiquei. Que fatores foram mais determinantes? (instituição de ensino, família, professores, amigos, nível econômico familiar). Gostava de algumas matérias e de outras não, fiz todo o curso sem influência de família ou outras, foi por opção, minha a família sempre me deixou escolher o que 296 eu quisesse. Lembro que não sabia o que queria fazer no futuro, mas sabia que não queria ser professora, não gostava de escolas e continuo não gostando dessa “entidade” Em que grau as expectativas pessoais/profissionais realizaram? Ou se geraram outras novas? se Mas no estágio percebi que foi tranqüilo, resolvi trabalhar então. Após formada me descobri criativa, com idéias criando todos os meus trabalhos, gostando do contato com os alunos, mas muito decepcionada com a “entidade”. Acho que a variação da rotina me agradou, cada dia é diferente. (ii) Anos de estudo na universidade Onde estudou, anos que estudou , houve algum professor ou matéria mais influente ou preferida? Estudei durante cinco anos no Instituto de Letras e Artes da UFPel, As disciplinas de Música com a Ceci Hirch e a Ane, História da Arte com a Maria Luiza, de Desenho gostava de todas. O que mais ajudou em seu exercício profissional posterior: matérias ou professores? Na prática profissional tive dificuldade nos primeiros anos com a realidade onde eu fui trabalhar (escolas municipais) eram bem diferentes em recursos materiais umas das outras. O que mais me ajudou foi a minha facilidade de entender e gostar de Música, Desenho. História da arte, Teatro. Assim eu pude trabalhar conforme a realidade que tenho, sou uma professora polivalente, que tantos condenam, mas eu gosto, sou interdisciplinar. Quais as lembranças (melhores ou piores) que tens de seus estudos? Odiava as aulas de História no ginásio. Odiava ter que jogar handebol na Escola Técnica no 2º grau. Odiava gincanas nas festas juninas. As lembranças boas foram algumas amizades, alguns professores. A Professora Eni Zambrano no 2º grau. (iii) Formação prática de ensino Quais as lembranças que tens da formação prática? Que aspectos mais ajudaram quando se defrontou pela primeira vez com o ensino? 297 Eu sempre segui construindo meu conhecimento. Sou uma pesquisadora, estou sempre aprendendo e buscando novos conhecimentos. Acho que isso deve ser incentivado na formação do professor. Deve ter a base, mas o professor não pode parar, deve acompanhar a evolução e entender que as gerações se modificam e aceitá-las. Avaliando esse momento, que tipo de formação acredita ter necessitado (teórica, prática) Como avalia a formação recebida? Na época, questionei a interação que os professores pediam na didática, pois então isso deveria existir também durante toda a formação por parte dos professores 4. Acesso ao ensino e exercício profissional (i) Acesso à profissão Razões pela opção pela docência e influências. Não sei ao certo, fui indo. Como chegou a profissão (concurso). Contrato depois, muito mais tarde, por concurso. Como avalia essa etapa. Difícil, muito difícil. (ii) Primeiros anos de docência Onde começou a exercê-la? Descrever o significado dos primeiros meses como professor. Comentar as impressões, aprendizagem e mudanças durante esse período. Explicitar as principais preocupações profissionais durante esse período. Numa escola do município – no Sítio Floresta. Fase de experimentação, descobertas e aprendizagem. Descobri que eu podia criar aulas, ia refazendo após, vendo o que tinha que modificar. Socialização profissional. Como planejou as primeiras aulas, de quem recebeu apoio, como foi aprendendo. Preocupações principais: disciplina, gestão de classe, programa da disciplina, relacionamento com colegas, alunos e pais. 298 Tive problemas dos alunos. Me diziam na escola - “ a entidade” - que eu tinha que ter “pulso de classe” (Que raiva!), como lidar com a emoção, com os alunos punidos ao mesmo tempo (Que difícil!) (iii) Exercício profissional Cargos ocupados no exercício profissional; lugares, instituições, mudanças. Em que lugares se sentiu mais à vontade, comprometido e com disposição para trabalhar? Por quê? Em que lugares foi pior? Sempre fui professora, por um ano no Morro Redondo no município; por 2 anos numa escola do estadual em Pelotas; um ano no município de Florianópolis em Santa Catarina e 5 anos em Porto Alegre, onde fiz concurso e fui funcionária da Prefeitura e da Fundação Rubem Berta (Quase pirei!). Na verdade é muito cansativo e desgastante ser professora de Artes. Cada vez está pior. Porto Alegre foi importante conhecer os projetos que a cidade oferece para as escolas, coisa que não acontece em Pelotas. Desenvolvimento como docente; fatores e marcos a destacar (colegas curso, experiências) Eu caminhei sozinha. Momentos críticos vividos na carreira profissional. Descontinuidade na carreira profissional. Acontecimentos da vida profissional ou familiar que influíram no seu ensino ou no transcorrer da sua carreira. Tive várias crises, de não ter vontade de ir dar aula, mas saí sozinha disso. De 1992 a 94 não exerci a profissão, morei na Espanha. Gênero: Como o fato de ser mulher/homem afetou a sua carreira e o exercício da docência: filhos, responsabilidades familiares ou de outro tipo, casos concretos e mais relevantes (ou como vês esta situação na escola e na docência) Optei por não ter filhos, não vivi o tradicional que toda a mulher vive. A opção foi casual e penso que seria mais feliz em outra profissão. Não gosto de escolas, mas estou lá, talvez para transgredir (iv) Instituição de ensino atual Chegada à escola atual. História pessoal vivida na escola. 299 Vim permutada para duas escolas: uma de ensino fundamental e a outra foi um desafio, pois é um Curso de Magistério para formação de professores para a Educação Infantil lá no Colégio Pelotense. Tive que estudar, aprender muitas coisas, pois nunca havia me dedicado a essa faixa etária, tive que construir meus conteúdos e definir como trabalhar. Grau de satisfação com a escola. É a experiência mais “legal” de todas. Mas é um grupo coeso, onde trabalhamos juntas com o mesmo propósito e objetivos. O curso é um projeto, para alunos que já concluíram o 2º grau. Tive momentos de insegurança, mas agora estou bem, todos se ajudam e temos a liberdade de ir e vir, uma escola boa de trabalhar. Momento profissional (como professor, como professor de Arte e a situação desse ensino) Meu momento profissional é o melhor da minha trajetória, mas também uma época difícil, eu percebo que a escola está muito defasada, está atrasada no tempo. Não acompanhou a evolução, temos uma escola que prepara o individuo para o vestibular e não para a vida. Os alunos não querem aprender, vão para a escola para socializar, namorar e jogar futebol. Trabalhar arte é quase impossível.