Escravos, marinheiros, embarcadiços e pescadores negros no mundo atlântico de Rio Grande/RS (século XIX) Vinicius Pereira de Oliveira* No dia 19 de abril de 1846 os marinheiros José e Manoel chegaram ao porto da cidade de Recife a bordo do brigue Mentor. Ambos eram escravos e oriundos do Rio Grande do Sul. No dia seguinte desapareceram sob a bruma da noite e, cinco meses depois, ainda não haviam sido capturados. Segundo a imprensa da cidade, o sucesso da fuga devia-se ao fato do escravo José conhecer muito bem Pernambuco por ter vivido lá antes de ser vendido para a província sulina (Silva, 2001: 191). Não sabemos mais detalhes sobre a vida destes indivíduos, porém elas faziam parte de um universo amplo de múltiplas e complexas vivências de escravos e negros livres que ao longo da história do Brasil dividiram suas existências entre o convés de navios, o balançar de canoas e a terra firme, desempenhando papel fundamental na marinha mercante e militar do país, quer fosse na pesca, no transporte de gêneros diversos ou na condução de passageiros. Este artigo propõe-se a relatar algumas das primeiras considerações a respeito de nossa pesquisa de doutorado em História iniciada no presente ano e que tem como foco a análise da presença negra – escrava, liberta e livre – nas atividades relacionadas ao mundo náutico no Porto de Rio Grande/RS ao longo do século XIX: marinheiros, pescadores, marítimos, remadores, carregadores dos cais e trapiches, calafates, etc, envolvidos com a navegação interna, de longo curso, cabotagem e pesca. Entender o desenvolvimento do Brasil colonial e imperial exige a análise do papel fundamental desempenhado pelo transporte náutico, seja marítimo, lacustre ou fluvial, frente às deficiências do transporte terrestre. Toda uma rede de atividades comerciais e transporte de mercadorias, pessoas e idéias não pode ser entendida sem observar esta forma de deslocamento que articulava diferentes localidades do país entre si e com outras nações e continentes. A cidade de Rio Grande, único porto marítimo da província, configurou-se como uma das principais praças de comércio do Brasil ao longo do século XIX., desempenhando um papel de entreposto para um significativo comércio de importação e exportação, articulando a província com diversas localidades do Brasil e do mundo atlântico, como Estados Unidos, Montevidéu, Buenos Aires, portos da Europa, e eventualmente localidades da África. * Mestre em História/UNISINOS. Doutorando em História/UFRGS – [email protected] 1 Rio Grande igualmente articulava um universo amplo de localidades da província, através de redes de transporte hidroviário que incluía uma teia de rios e lagoas, aproximando-o de localidades como a charqueadora Pelotas, a fronteiriça e comercial Jaguarão e a capital Porto Alegre, as quais por sua vez estabeleciam conexões com outras redes hidroviárias (Rio Sinos, Rio Jacuí, Rio Taquari, Lagoa Mirim/Uruguai, etc)1. Dessa forma, as dinâmicas da cidade de Rio Grande estavam significativamente vinculadas com o mundo atlântico, aqui entendido como o conjunto de processos econômicos, sociais e culturais resultantes da interação e movimento entre diferentes localidades e culturas mediadas entre si pelo Atlântico e que incluíam a Europa, América do Norte, América Central, África, províncias do Brasil e região platina. Nesta cidade comercial e cosmopolita a escravidão era peça fundamental, como pode ser verificado no quadro abaixo: Ano 1814 1819 1842 1858 1872 População de Rio Grande ao longo do século XIX Livre Escravos Total N° % N° % N° 2245 62,53 1119 31,17 3590 2855 61,73 1770 38,27 4625 3866 58,24 2772 41,76 6638 15541 78,02 4369 21,98 19910 16605 79,5 4282 20,50 20887 Scherer (2008) Os dados sobre origem ou grupos de procedência dos escravos revelam ainda uma significativa taxa de africanidade, comparável a outras cidades negras Brasil: CLASSIFICAÇÕES Mulatos Crioulos Africanos Menores de 1 ano Menores de 14 anos Total Resumo da população escrava em 18422 MASCULINO FEMININO TOTAL N° % N° % N° % 115 8,42 67 4,76 182 6,57 219 16,03 238 16,93 457 16,49 659 48,24 684 48,65 1343 48,45 78 5,71 89 6,33 167 6,02 295 21,60 328 23,33 623 22,47 1366 100 1406 100 2772 100 1 Muitos charqueadores da cidade de Pelotas, por exemplo, possuíam suas próprias embarcações para transportar o produto até Rio Grande, nas quais havia presença de escravos como tripulantes (Gutierrez, 2001, p. 81). Sobre escravidão em Pelotas, ver ainda Maestri (1984), Assumpção (1995), Mello (1994) e Al-Alam (2007). 2 Fonte: Arquivo Histórico do Rio Grade do Sul (doravante AHRS), Fundo Polícia – Delegacia de Polícia, maço 24, Correspondência expedida, Mappa Statistico ou Breve notícia da Cidade do Rio Grande do Sul, Província de S. Pedro, organizado nesta Subdelegacia. Produzido pelo subdelegado Antônio Bonone Martins Vianna em 22/07/1843. Citado por Scherer (2008). 2 Neste universo escravista e intimamente relacionado com as águas, os negros desempenharam um papel fundamental em atividades diretamente ligadas ao ramo náutico. Certamente a faina do mundo fluvial e marítimo no Brasil não era executada somente por este grupo, já que as tripulações que circulavam no país desfrutavam do cosmopolismo já apontado por estudos referentes a outras partes do mundo à época (Linebaugh, 1984; Rodrigues, 2005). Porém, os Relatórios de Presidentes de Província do Rio Grande do Sul, a partir de meados do século XIX, possibilitam visualizar dados importantes para pensarmos a composição deste setor de atividade. Estes documentos apresentam dados quantitativos sobre os trabalhadores envolvidos com as lides marítimas e fluviais matriculados a partir da criação das Capitanias dos Portos em 12 de agosto de 18453. Analisando as informações referentes à navegação de longo curso, cabotagem e navegação interna constantes nos Relatórios dos anos de 18584 (com dados referentes ao ano de 1857), percebemos o fundamental papel desempenhado pelos escravos na atividade náutica no Rio Grande do Sul5: Pessoal empregado na navegação de longo curso em 1857 Condição Nº indivíduos Percentual Livres 29 39,19% Escravos 22 29,73% Estrangeiros 23 31,08% Total 74 100% Pessoal empregado na navegação de cabotagem em 1857 Condição Nº indivíduos Percentual Livres 571 33,85 Escravos 824 48,85% Estrangeiros 292 17,30% Total 1687 100% Pessoal empregado na navegação fluvial e tráfego de portos (navegação interna) em 1857: Condição Nº indivíduos Percentual Livres 660 65,21% Escravos 271 26,77% Estrangeiros 81 8% Total 1012 100% 3 Para algumas províncias as matrículas foram organizadas com base em cinco categorias: brancos, escravos, estrangeiros, negros livres e índios. Para o Rio Grande do Sul, porém, contamos somente com classificação nas três primeiras categorias. 4 Todos os dados referentes a relatório de Presidentes da Província do RS citados neste artigo foram acessados em http://www.crl.edu/content/brazil/gras.htm - acessado em 15/01/2008. 5 Ainda que sujeitas ao sub-registro devido a falhas na matrícula – algo reconhecido pelas próprias autoridades –, estas listagens possibilitam visualizar os negros escravos como agentes essenciais no setor. O percentual de negros nestas atividades possivelmente fosse superior já que entre a população matriculada como livre certamente havia negros, além de indígenas e mestiços, existindo ainda a possibilidade de africanos libertos terem sido matriculados como estrangeiros. Agradecemos a Jovani Scherer por esta última observação. 3 A ausência de estudos mais especializados sobre a significativa presença de negros no setor náutico no Rio Grande do Sul nos levou a propor o tema como objeto de pesquisa. Para além da sua presença demográfica, buscaremos analisar suas vivências e seus papéis na conformação da cultura popular de Rio Grande, aqui entendida como uma cidade negra e atlântica. As conexões estabelecidas através da navegação de longo curso e cabotagem, onde marinheiros de diferentes regiões do Brasil entravam em contato, propiciavam variadas situações de circulação cultural no contexto do mundo atlântico6. Escravos do interior da província, ao efetuarem uma viagem ao porto de Rio Grande como membros de tripulações, certamente entravam em contato com negros livres e escravos oriundos de embarcações do Rio de Janeiro ou Pernambuco, ou mesmo da África. Não era raro ainda que um escravo matriculado como marinheiro em uma província fosse natural ou tivesse vivido anteriormente em outra (Silva, 2001: 186). Na documentação analisada são recorrentes as referências à presença de marinheiros – muitos deles negros – em espaços de convívio social como tabernas, trapiches, mercado público, fontes d’água e praças, ou mesmo andando e bebendo pela rua. Acreditamos que estas vivências faziam parte, para os embarcadiços, da busca de socialização e reterritorialização, já que os longos períodos embarcados, a constante mobilidade espacial e o afastamento das relações sociais anteriores eram características da vida dos “homens do mar”. As péssimas condições de vida a bordo e a severa disciplina – traços que contribuíam para afastar a sociedade branca e livre dessas atividades, tornando-a espaço onde a presença negra era significativa – transformavam os momentos de folga em terra especiais para a vivência de alguma margem de autonomia. Os períodos entre uma viagem e outra propiciavam o convívio e troca de experiências entre marítimos de diferentes origens e nacionalidades que ocorria, primeiramente, no próprio atracadouro. Estas experiências, porém, não se restringiam ao cais ou trapiches, mas se articulavam com outros espaços de convívio popular das cidades por onde passavam. Em uma cidade negra como Rio Grande, estes espaços urbanos eram cotidianamente vivenciados não somente por marinheiros, mas também por escravos, negros livres, brancos pobres, quitandeiras, etc., por motivo de lazer ou trabalho, situação que colocava em contato uma diversidade de sujeitos portadores de idéias, sentimentos, expectativas, projetos e visões particulares 6 Além da referência em Ginzburg (1987), tomamos emprestado o conceito de ‘zonas de contato’ de Mary Pratt (1999: 27), entendido como “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, freqüentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação como o colonialismo, o escravagismo”. 4 de mundo, moldadas por uma diversidade de variáveis como cor de pele, condição jurídica, religião e trajetória pessoal. Dessa forma, propomos analisar os nexos entre estes dois mundos: de um lado os marinheiros negros e as especificidades de suas vidas embarcadas e em trânsito; de outro o universo social popular, negro e cativo da cidade de Rio Grande. A circulação de escravos pelas ruas e becos das cidades, muitas vezes longe do olhar dos senhores e misturando-se a negros livres, mestiços e outros populares, era cena comum nas cidades negras e fazia parte das próprias características das atividades por estes desempenhadas. Perguntamos em que medida esta situação propiciava a conformação de redes de sociabilidade? A questão adquire sentido por acreditarmos que as mesmas possibilitavam aos cativos vivenciarem uma ampla gama de experiências, muitas vezes articuladas com o universo social dos embarcadiços, e que envolviam práticas de resistência, solidariedade, conflito, afetividade, religiosidade, lazer, bem como acesso à complementação alimentar e a bens materiais diversos. Para os embarcadiços, o urbano era oportunidade de vivenciar situações sócio-afetivas das quais estavam privados quando a bordo. Acreditamos que as experiências no convés guardavam semelhanças com o mundo do cativeiro mesmo para os homens livres, uma vez que seus níveis de disciplina e coerção física aproximavam-se significativamente. Cabe questionar em que medida o compartilhamento de um cotidiano muito semelhante contribuía para o estabelecimento de laços de identidade, solidariedade e até mesmo conflito entre os grupos. A noite representava um momento privilegiado para as pretensões populares de vivências “autônomas”, por ser quando mais facilmente se escapava da repressão policial e senhorial. Mesmo que proibida por legislações diversas, a presença de negros em ruas ou tabernas era uma cena comum nas cidades negras. Em 08/10/1838, o Juiz de Paz de Rio Grande informava ao Presidente da Província que, tendo saído à noite para exercer funções policiais pelas ruas da cidade, encontrou “o sossego e tranqüilidade pública inteiramente alteradas” devido a “multidão de negros e negras cativos pelas ruas e tabernas, como por vadios turbulentos”.7 Exemplo interessante para se pensar a relação entre uma cultura negra atlântica e a sociabilidade cativa foi o ocorrido na noite de 30/04/1850 na Praça da Geribanda8, envolvendo a luta da capoeira entre um escravo e um liberto uruguaio, sob o olhar de grande quantidade de negros. Os pequenos detalhes revelados pela documentação são carregados de significado. 7 AHRS, Fundo Justiça, Maço 33, Juiz de Paz Manuel de Souza Azevedo, datado de 10/07/1838 (Sede). Segundo FIGUEIREDO, Candido. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Vol. II, Lisboa, 1922, geribanda significa o mesmo que sarabanda e apresenta duas definições: dança antiga, popular e desenvolta; ou ainda repreensão, censura. Alguns dicionários ainda definem estas palavras como tumulto, agitação, descompostura. 8 5 Primeiramente, a presença de grande quantidade de negros numa cena noturna da cidade, em um espaço predominantemente popular próximo à zona portuária onde se situavam as principais fontes d’água da cidade utilizadas por escravos, lavadeiras e marinheiros9. Soma-se a isto a presença da prática atlântica da capoeira, tida por Gomes ( 2006: 77) como “o maior exemplo de reinvenção cultural urbana na diáspora” Uma interface interessante para se pensar o mundo da sociabilidade popular atlântica referese à atividade das quitandeiras, serviço urbano fortemente marcado pela presença de africanas e negras livres e que ocupava, da mesma forma que a atividade do ganho, espaço privilegiado no que se refere a possibilidades de socialização. O Largo São Pedro, área central de Rio Grande, era conhecido também como Largo das Quitandeiras, visto a “multidão de negras quitandeiras” que preparavam “comedorias [...] de grande utilidade para a pobreza”10, além de ocuparem espaços na Praça do Mercado, em frente aos principais trapiches da cidade. O Mercado Público – igualmente próximo aos trapiches, Praça da Geribanda e Largo das Quitandeiras – era outro ponto de confluência de grupos populares, embarcadiços, pescadores e cativos. Assim como em outras cidades atlânticas, neste estabelecimento de Rio Grande existiam “casas de pasto”, locais que serviam almoços, jantares e refeições ligeiras para onde, segundo a documentação da Câmara, confluíam trabalhadores urbanos diversos. Ao longo da década de 1850 a municipalidade inicia ofensiva tentando eliminar estes estabelecimentos, que neste contexto eram denominados pejorativamente de botequins. Seus proprietários reivindicavam permanência alegando a importância social das mesmas, pois serviriam de [...] abrigo aos pescadores e quitandeiras que quase sempre (e algumas vezes corridas de tempo) chegam aos portões do mercado tiritando de frio sem casa aonde se possa recolher com os frutos de seus sacrifícios.11 Diversos documentos do período revelam a preocupação da municipalidade com a presença de quitandeiras, negros urbanos e pescadores nestes espaços de acolhimento que podem ter adquirido significados muito próximos ao dos zungús ou casas de angú, redutos que serviam de moradias ou local de refeição coletiva e para onde convergiam africanos, crioulos, libertos, homens 9 Conforme Cunha (s/d). Gomes (2006: 78) refere-se ao papel das fontes nas cidades negras, onde a grande concentração de negros freqüentemente dava origem a conflitos e a formação de grupos que disputavam o controle de diferentes espaços. 10 Arquivo da Prefeitura de Rio Grande, Documentos da Câmara Municipal, Caixa 237, documentos de julho de 1855, onde o negociante Victorino Ferreira da Silva refere-se a tal espaço. 11 Arquivo da Prefeitura de Rio Grande, Documentos da Câmara Municipal, Caixa 237, Remetido por Benito Marechal em 13/07/1853. 6 e mulheres em busca de alimento, repouso, solidariedade, vida lúdica ou práticas religiosas. Chamados ainda de calogi em Belém e Recife (Gomes, 2006: 85), eram elementos característicos da realidade atlântica presentes também em Rio Grande: Jornal Echo do Sul, 02/03/1866, Rio Grande. “Atenção. Fugiu há três dias da tipografia desse jornal onde trabalhava, um crioulo de nome Agostinho, moço alto, magro, bonita figura, com queda para a valentia; intitula-se livre e costuma andar em companhia de um escravo do Sr. TenenteCoronel Mesquita, que o tem introduzido em diversas associações de que é principal personagem este escravo. Sabe-se que este crioulo anda homiziado por diversos ZUNGUS da rua Formosa, onde até hoje, não tem penetrado a polícia. Gratifica-se a quem der notícias certa, ou agarrá-lo e entregá-lo ao proprietário deste jornal”. Indiferente da denominação pela qual o poder repressivo identificou estes espaços, o que importa é problematizar seu significado para a população negra e pobre que buscava recriar e ressignificar práticas culturais por entre os labirintos das cidades negras, seja em casas de libertos, porões, senzalas, ou nos quartos do mercado público de Rio Grande, onde micro comunidades eram forjadas em perspectiva atlântica. A documentação revela indícios da existência de uma geografia negra e popular da cidade que será igualmente objetivo de análise desta pesquisa, buscando captar as formas como a mesma foi escrita e inscrita nos espaços urbanos, redefinindo-os e produzindo novas territorialidades. Todo esse emaranhado de fios, que teciam as redes sociais das cidades negras, exige que redimensionemos o entendimento das fronteiras étnicas e jurídicas que demarcavam limites e lugares, precavendo-nos de que as definições a esse respeito não podem ser tão rígidas como aquelas elaboradas pelo prisma da sociedade branca dominante, nem pressupondo elementos essencialistas na constituição de identidades (Barth, 2000). Como as fontes evidenciam, marinheiros de diferentes origens, brancos pobres, escravos e negros livres conviviam e compartilhavam espaços de trabalho e sociabilidade, em terra ou mar, onde fronteiras eram relidas, redefinindo significados de liberdade e nos conduzindo a entender o universo social pesquisado – negros náuticos - como integrante do amplo e complexo grupo dos populares. Cabe problematizar as formas como se davam o convívio destes homens embarcadiços nos espaços de vivência popular. De forma mais específica, nos ateremos aos embarcadiços negros e seus contatos com a comunidade negra, escrava ou livre e aos significados e práticas culturais reinventados na diáspora, acreditando que suas ações não podem ser reduzidas à simples introjeção das normas sociais da cultura dominante. 7 Acreditando que as identidades são constituídas de forma situacional e contrastiva (Cunha, 1987); buscaremos apreender a cultura marítima como experiência forjada não somente em alto mar, mas também nas cidades atlânticas por onde atracavam embarcações, articulando-se a elementos destas localidades, fornecendo e recebendo influências. Cabe ressaltar que esta pesquisa não se propõe a efetuar uma etnografia histórica dos modos de vida no mar, como proposto por Geraldo Silva (2001), mas sim a uma abordagem focada especificamente na experiência cativa e popular da cidade de Rio Grande a partir da análise da presença negra nas atividades ligadas a navegação12. Uma aproximação comparativa entre singularidades e recorrências da vivência de negros marinheiros, escravos ou livres em cidades atlânticas como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Salvador certamente contribuirá com a apreensão da cultura popular brasileira do oitocentos. A análise documental e bibliográfica até aqui esboçada permite-nos propor que as peculiaridades da escravidão em Rio Grande consistiam nos seguintes aspectos: a) significativa presença de marinheiros negros (livres e escravos); b) uma considerável taxa de africanidade entre escravos e negros livres; c) pertencimento ao mundo atlântico enquanto uma cidade negra voltadas para as águas, situação propiciadora do estabelecimento de nexos com outras localidades da província, do Brasil e de outros continentes; aspecto que marcava a cultura e vivências populares da cidade. A documentação pesquisada é sugestiva, ainda, das estratégias acionadas pelas camadas dirigentes e senhorial na busca de controlar e normatizar os consideráveis níveis de autonomia pretendidos pelos populares. Medidas legais e ações estatais indicam que o setor náutico, os botequins, as praças e largos centrais concentravam atenção especial, particularmente no que tange a presença de escravos, quitandeiras e marinheiros13. 12 Isso nos levará, certamente, à necessidade de integrar diferentes escalas de análise que propiciem dar conta de aspectos múltiplos constitutivos da realidade marítima, negra e popular daquele momento. Buscaremos assim captar aspectos demográficos da presença negra na cidade e nos portos a que esta se relacionava mais intensamente (percentual de população escrava, grupos de procedência predominantes e sua relação com o mercado de trabalho, papel das alforrias, espaços de convívio e sociabilidade populares e negros, etc). Estaremos atentos ainda às realidades correlatas ao tema central deste projeto, tais como as redes de comércio da cidade com o interior da província e outras localidades do mundo; o universo popular em Rio Grande, que incluía negros livres, indígenas e brancos de diferentes origens étnicas; as transformações na relação da cidade com seu espaço; as relações com os grupos dominantes, etc. 13 Neste sentido, Silva (2001) refere a Criação das Capitanias dos Portos e das matrículas das “gentes do mar” como medida que buscava controle sobre este universo social. O assassinato do patrão de uma embarcação por seus escravos nas proximidades de Rio Grande no ano de 1847 contribuiu com a aprovação da Lei Provincial nº. 84, de 18/11/1847, a qual estabeleceu que “Nenhuma embarcação, cuja tripulação constar de mais de três marinheiros escravos, poderá navegar no interior da Província sem que tenha o patrão e um camarada, que sejam pessoas livres [...]” (Conforme: Moreira, 1993; Al-Alam, 2007). A Câmara Municipal de Rio Grande também atuou no sentido de exercer controle sobre o mundo das águas, sobre a organização do espaço urbano e circulação de escravos através do Código de Posturas 8 Estes cuidados adquirem sentido particular em cidades negras atlânticas, já que uma soma significativa de fugas cativas ocorria de forma embarcada através das teias de rios, lagoas ou oceano. Existem relatos de escravos oriundos de Rio Grande acoutados em Recife, Rio de Janeiro, Uruguai, Pelotas, além de cativos de outros pontos do país refugiados nesta província14. Segundo análise de Gattiboni (1993: 58), 21,05% dos escravos fugidos em Rio Grande entre 1861-1867 que tiveram suas profissões identificadas eram marinheiros, e 45,83% dos locais destas fugas eram embarcações. Nesta perspectiva, a presente proposta se torna uma possibilidade interessante de relacionar o universo da escravidão de Rio Grande com a questão do mundo atlântico e das sociabilidades forjadas no espaço urbano. Ademais, permite apreender este mundo atlântico como possibilidade de resistência15. A vigilância dos espaços e indivíduos considerados suspeitos e perigosos visando um controle sobre seu cotidiano e o regramento do urbano segundo critérios de moralização e ordem dos dirigentes municipais transparece na análise de documentos policiais, judiciários e da Câmara Municipal. Uma das formas de controle de setores socialmente indesejados (“vadios”, arruaceiros, libertos, populares em geral) foi o recrutamento forçado para a Marinha de Guerra, o que podia ter sua contraface na tentativa de cativos buscarem a liberdade engajando-se como homens livres16, o que torna a questão igualmente foco de análise desta pesquisa. Para atingir os objetivos propostos recorreremos metodologicamente ao uso de documentos produzidos pela burocracia do estado imperial como forma de obter acesso a indícios, pistas e fragmentos de significado sobre a temática proposta. Frente à quase total inexistência de testemunhos diretos produzidos por parte de escravos e populares sobre seus comportamentos e atitudes, estas fontes representam um espaço privilegiado de estudo. e leis diversas (AHRS, Autoridades Municipais/Câmara de Rio Grande, Maço 205-A - Arquivo da Prefeitura Municipal de Rio Grande/Câmara Municipal, Caixa 237, 12/01/1853). 14 O espaço urbano tem sido percebido como potencializador das fugas escravas, e a ocupação de marinheiro apontada como um nicho particular entre os fugitivos visto a recorrência documental da assertiva em cidades e áreas portuárias. (Gomes, 2006: 45-47). A inserção do Rio Grande do Sul no cenário das fugas atlânticas de escravos foi constatada nos trabalhos de Silva (2001: 186) e Gomes (2006: 45). 15 Outra possibilidade de fuga que se relacionava diretamente com a cidade de Rio Grande era a fronteira com o Uruguai, onde a escravidão havia sido abolida em meados da década de 1840, seja via o distrito do Taim, ou através das redes hidroviárias que articulavam a cidade comercialmente com Jaguarão e com o Rio da Prata (AHRS, Fundo Requerimentos, Maço 89, Grupo Polícia, 1849). Sobre fugas embarcadas, verificamos recorrentes situações em “Relação dos proprietários que tem escravos fugidos no Estado Oriental” (AHRS, Fundo Polícia/Subdelgacia, Correspondência Expedida pelo Subdelegado Florêncio J. Corrêa dos Reis, Maço 50). Ver ainda maço 25 do mesmo Fundo, onde consta listagem de escravos fugidos para o Uruguai elaborada em 1849. Cabe destacar que as fugas poderiam contar ainda com acolhimento de populares ou negros forros residentes nas cidades. Um exemplo pode ser visto no jornal rio-grandido Echo do Sul de 01/09/1866, relativo a fuga de Guilherme, escravo de nação. Sobre fugas no RS, ver Petiz (2006: 127). 16 São diversos os exemplos de recrutamento forçado de negros libertos e populares. Em 1870 o liberto Saturnino é remetido pela polícia do pecuarista município de Bagé para Rio Grande afim de ser incorporado à Marinha (AHRS, Fundo Polícia, Maço 2). Para uma abordagem da temática, ver Nascimento (2001). 9 Posição de destaque ocuparão os processos-crimes, documentação judicial e policial que, mesmo geradas como fruto de situações de repressão, possibilitam leituras totalmente afastadas da violência e vislumbres das culturas e experiências populares e escravas17. Caracterizam-se por informações que, se lidas a "contrapelo”, propiciam ao pesquisador aproximar-se de aspectos do cotidiano e da experiência dos atores sociais ali retratados18. Tais documentos podem ser vistos como “minas de dados involuntários”, para usar a expressão com a qual Ginzburg (1989c: 182) se referiu ao considerável arcabouço de informações tangenciais ao interesse das autoridades que o historiador pode obter nos processos. Metodologicamente, destacamos nossa preocupação em apreender quaisquer indícios, pistas e sinais apresentados pelas fontes, pois acreditamos que mesmo os detalhes aparentemente mais insignificantes e ocultos podem ser reveladores de informações preciosas (Ginzburg, 1989). Estes vestígios do passado, combinados entre si, propiciam densificar a análise e elaborar leituras mais próximas do real e do vivido (Geertz, 1978). O uso intensivo de corpos documentais diversos e o cruzamento de fontes quantitativas e qualitativas serão os recursos utilizados frente a fragmentação e teor rarefeito pelos quais os grupos estudados são retratados nesta documentação. Mediante a adoção do método micronominal (Ginzburg, 1989b: 173-174), diversos estudos têm conseguido encontrar, através de séries documentais que se sobrepõem no tempo e no espaço, um mesmo indivíduo ou grupo em diferentes contextos, possibilitando analisá-los frente à complexidade das relações sociais e de poder em que suas vidas estavam inseridas. Buscamos na micro-história os elementos teórico-metodológicos para lidar com a diversidade de ações individuais dos cativos e homens livres que emergem da documentação, dentro de uma perspectiva que busca transpor a questão meramente estatística e valoriza a percepção desses indivíduos enquanto sujeitos ativos da história que, mesmo limitados pelos condicionamentos estruturais, eram capazes de agir estrategicamente, planejando ações e visualizando limites e possibilidades (Lévi, 2000: 45). Privilegiar o estudo do individual e a redução da escala de análise não pressupõe, porém, que os agentes eram livres para fazer o que quisessem e estivessem imunes aos condicionamentos estruturais. Suas ações só podem ser entendidas a partir da articulação com os contextos mais 17 Recorreremos, igualmente, ao uso de documentos da Câmara Municipal de Rio Grande, Relatórios do Presidente da Província do RS, documentos de diversos órgãos da Marinha como a Capitania dos Portos, Matrículas de equipagens e embarcações, inventários post-morten e fontes jornalísticas. 18 Tratar destas experiências sociais multifacetadas certamente remete à influência do marxista inglês E. P. Thompson (1984; 1987; 1998; 2001). 10 amplos onde estavam inseridas, pois estrutura e experiência não são enfoques excludentes, mas, pelo contrário, necessariamente complementares19. A experiência dos indivíduos é inseparável dos processos mais amplos, sendo moldada dentro de um campo de possibilidades historicamente delimitadas (Lévi, 2001: 176). Algumas considerações bibliográficas: O estudo do mundo atlântico ainda é um campo fértil para análise. Se durante certo tempo diversos trabalhos desenvolveram com profundidade a análise da dimensão econômica do tema20, recentemente pesquisas têm contribuído com a reconstituição de sua dimensão sócio-cultural, composta de idéias e personagens portadores de culturas e experiências específicas que articulavam diferentes localidades do mundo. Desde o importante artigo de Linebaugh (1984), trabalhos como o de Alencastro (2000), Gilroy (2001), Silva (2001), Costa e Silva (2003), Thornton (2004) e Rodrigues (2005) abordaram a questão, considerando o atlântico como elo e não como fronteira entre mundos21. É válido referir o estudo de Gilroy (2001), onde o mundo atlântico é entendido enquanto um sistema de comunicações globais marcado por fluxos e trocas culturais no qual as embarcações desempenhariam um papel mais complexo do que um simples meio de transporte. O autor considera o navio como o mais importante canal de comunicação pan-africano “até o aparecimento do disco long-play”, entendendo-o como meio vivo através do qual eram unidos pontos distantes do “atlântico negro” (Gilroy, 2001: 38, 56 e 60). A noção de diáspora negra na modernidade proposta por Gilroy possibilita romper com uma perspectiva essencialista de identidade ao propor que as estruturas transnacionais, forjadas no mundo atlântico negro, teriam propiciado a emergência de identidades que não eram unicamente africanas, afro-brasileiras ou afro-americanas, mas sim articuladas mediante um circuito de comunicação que ia além das fronteiras dos estados-nação e referenciavam-se nas experiências da escravidão vivenciadas em escala atlântica. Mesmo tendo adotado uma perspectiva centrada no 19 Para uma análise da relação entre estrutura e experiência, a partir da historiografia do trabalho na América Latina, ver Costa (2001). Sobre a relação entre estrutura e evento ver Sahlins (1990). 20 Exemplos, entre muitos outros, podem ser encontrados em: Florentino (1997), Osório (1999). 21 Podemos citar ainda outros trabalhos que acompanham o fluxo de idéias e personagens no mundo atlântico: Gomes (2002) analisou a repercussão da revolta de escravos no Haiti sobre o imaginário das elites no Brasil. A coletânea organizada por Pantoja e Saraiva (1999) busca reconstituir a história do Atlântico Sul a partir das relações e intercâmbios entre Brasil e Angola. Mesmo regiões não banhadas pelo oceano estão sendo pensadas a partir de suas relações com outros pontos do Império português (Furtado, 2001). Já os africanos Baquaqua (Lovejoy, 2002), Rufino (Reis et. al, 2004) e Manoel Congo (Oliveira, 2006) são exemplos de personagens atlânticos que tiveram suas vidas rastreadas pela pesquisa. 11 mundo de língua inglesa, não estendendo sua análise para as áreas lusitanas, hispânicas ou mesmo para a costa da África, as reflexões deste autor abrem importantes perspectivas para o estudo da diáspora e das identidades negras e marítimas no Atlântico Sul. A conformação de uma cultura marítima foi alvo particular de alguns estudos. Segundo Gomes (2006: 47), os navios, portos e conveses eram locais propícios ao surgimento de personagens e idéias atlânticas, pois configuravam-se como “espaços improvisados de comunicação, gestação de culturas étnicas, criação de linguagens e percepções políticas originais”. Rodrigues (2005: 187) destaca que um aspecto importante na formação deste arranjo foi a presença marcante das culturas africanas e escrava a bordo. A cultura dos marinheiros escravos incluía diversos aspectos particulares como a música, arte e literatura, os modos de comer, falar, andar, vestir, silenciar; ou seja, ações e noções subjacentes à vida cotidiana, somando-se à composição de um ethos próprio destes sujeitos (Silva, 2001: 194). Ponto comum nestas abordagens é a referência ao cotidiano marcado pelo sofrimento e privações, ao caráter masculino das tripulações, a multiplicidade de religiões, nacionalidades e etnias, bem como a mobilidade no espaço que conduzia ao contato com outras práticas culturais ao redor do mundo. Estes estudos apontam, porém, para a necessidade de falar em “culturas marítimas” no plural, visto a heterogeneidade e multiplicidades de recortes identitários e de classe internos às tripulações (Rodrigues, 2005: 197; Barreiro, 2006). Alguns trabalhos têm apontado que a presença de negros e escravos nas tripulações dos séculos XVIII e XIX era uma realidade do mundo atlântico, e sua ocorrência se dava tanto na armada como nos navios mercantes de diversos países, inclusive em embarcações negreiras, além da pesca artesanal e transporte em pequenas canoas (Rodrigues, 2007: 160; Silva, 2001: 65). Particularmente sobre o Brasil, Silva (2001: 12, 181) demonstra terem sido sobretudo pessoas de origem africana que desenvolveram entre os séculos XVII e XIX a maior parte do trabalho marítimo e navegação fluvial, substituindo paulatinamente os indivíduos de origem portuguesa e indígena, ao menos no Nordeste. O autor considera o uso de mão de obra escrava nos navios como um aspecto chave para a compreensão da navegação interna no Brasil. A historiografia atual tem estado atenta igualmente para as estratégias senhoriais e estatais de controle e disciplinarização da mão-de-obra cativa e popular. Temor de insurreições ou outras ações escravas contestatórias e o estigma dos marinheiros como grupo geralmente associado a comportamentos criminosos e turbulentos tornava os atores sociais abordados nesta pesquisa alvo particular destas ações, especialmente pelos níveis de autonomia que buscavam construir. 12 Uma referência neste sentido pode ser encontrada na dissertação de Moreira (1993), onde são analisados os cenários sociais da criminalidade na Porto Alegre negra do século XIX, bem como as ações estatais e repressivas que buscavam disciplinar os grupos populares que vivenciavam experiências diversas no espaço urbano. Entre os cenários que se destacavam em termos de comportamentos considerados transgressores estavam os bares e os trapiches. O autor aponta a “face transgressora da zona portuária”, analisando diversos aspectos das experiências de embarcadiços e marítimos na cidade, por entre praças, bares, casas de prostituição e locais de trabalho. Em relação ao mundo dos homens náuticos, Silva (2001) examina a criação ao longo do século XIX, de um conjunto de “dispositivos legais que tendiam a disciplinar os modos de vida e o cotidiano do trabalho de marinheiros, canoeiros e pescadores livres e cativos”. A criação das Capitanias dos Portos e de suas matrículas faria parte, segundo o autor, de um projeto de construção de uma reserva naval entre a população marítima nacional, bem como de mecanismos de controle, já que depois de listados os pescadores e trabalhadores marítimos deveriam se apresentar mensalmente nas capitanias, ficando sujeitos ao serviço militar na Marinha de Guerra. Dessa forma, a obrigatoriedade da matrícula tinha por função primordial conhecer o grupo profissional em questão para depois recrutá-lo a contento. Gomes (2006: 09) utilizou-se do conceito de cidades negras para definir “espaços sociais com considerável concentração de população afro-descendente”, entre os quais destacou o Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luis e Porto Alegre. Acreditamos que com o exposto até o momento podemos considerar Rio Grande como integrante deste rol. Entretanto, apesar do peso da escravidão na formação histórica desta cidade, poucas obras até o momento se dedicaram a analisá-la. Rita Gattiboni (1993), em sua dissertação de mestrado, buscou traçar um perfil do escravo rio-grandino a partir da análise de cartas de alforria, Relatórios do Presidente da Província e jornais da década de 1860, destacando a questão das fugas, aluguéis e venda de cativos. Apesar de traçar uma quantificação sobre diversos aspectos da presença escrava na cidade, a autora não avança na análise destes dados, omitindo-se da problematização dos números apresentados e pouco acrescentando sobre os escravos enquanto agentes. A própria análise quantitativa das cartas de alforria, por exemplo, carece de um rigor empírico maior, já que a autora trabalhou com um período de somente 6 anos. Alguns trabalhos mais recentes têm buscado abordar a escravidão em Rio Grande a partir de um diálogo maior com a História Social. Fábio Goulart (2005) analisou a questão da fuga escrava a partir de periódicos locais dos anos de 1848 a 1853, buscando reconstituir a relação entre cativeiro 13 urbano e esta forma de resistência. Márcia Kuniochi (2005) buscou estabelecer o perfil do escravo de Rio Grande mediante quantificação e cruzamento de registros de batismo e óbito e anúncios de compra e venda de cativos, objetivando identificar as condições de vida, trabalho, doenças e opressão desta população. Já Daiane Molet (2007), a partir da constatação de que a maior parte dos presos na cadeia de Rio Grande que tinham profissão declarada eram escravos marinheiros, busca relacionar a vivência deste grupo com aspectos diversos da experiência escrava urbana e marítima. A autora sugere ainda que este grupo apresentava peculiaridades que os diferenciava dos demais escravos, tais como maior mobilidade e possibilidades de socialização. O estudo mais aprofundado sobre a presença escrava em Rio Grande é a dissertação de mestrado de Jovani Scherer (2008), onde são analisadas as experiências de busca de liberdade na localidade ao longo do século XIX. Particularmente, o autor se debruça sobre as cartas de alforria de um largo período demonstrando terem sido as mulheres e africanos os que alcançavam com maior freqüência a manumissão. Cruzando estes documentos com inventários, processos criminais e testamentos, Scherer recorre ao uso de diferentes escalas de observação para apreender as experiências cotidianas de luta pela liberdade, transparecendo influência teórico-metodológica da História Social e da micro-história. Acreditamos que este conjunto de estudos já demonstrou a importância da presença escrava em Rio Grande, e que o desafio passa a ser, no nosso entendimento, o de proporcionar vida e protagonismo histórico aos cativos que viveram nesta região, conferindo visibilidade às suas experiências e atitudes frente ao sistema e aos indivíduos que os oprimiam. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS AL-ALAM, Caiuá Cardoso. A negra forca da princesa: Polícia, Pena de morte e Correção em Pelotas (1830-1857). Dissertação de Mestrado em História. Unisinos: 2007. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 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