A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO O PROCESSO DE DESTERRITORIALIZAÇÃO DO QUILOMBO SANTANA, MUNICÍPIO DE QUATIS - RJ ALINE DA FONSECA SÁ E SILVEIRA1 Resumo: O Quilombo Santana está localizado na zona rural do distrito de Ribeirão de São Joaquim, município de Quatis, estado do Rio de Janeiro. Atualmente o quilombo é composto por 21 famílias, sendo 17 auto reconhecidas, de acordo com as normas estabelecidas pela Fundação Cultural Palmares e titulado, pela mesma instituição, desde 14 de julho de 2000. No entanto, até a presente data, não houve a desapropriação das fazendas que estão no território quilombola, como prevê o artigo 216 da Constituição Federal Brasileira de 1988, que se encontra nucleado e impossibilitado de realizar suas práticas tradicionais, bem como sua subsistência. O objetivo do presente trabalho é compreender de que maneira a inação do poder público e a posse das terras circunvizinhas ao território do Quilombo Santana influenciou o processo de desterritorialização da comunidade. Palavras-chave: Territorialidade quilombola; Desterritorialização; Quilombo Santana. Abstract: Quilombo Santana is located in a rural area of the district of Ribeirão São Joaquim, in the city of Quatis, state of Rio de Janeiro. The Quilombo is currently composed of 21 families, 17 of them self-recognized in accordance with the standards established by the Palmares Cultural Foundation. And it is titled by the same institution since July 14, 2000. However, until the present date, there was still no expropriation of the farms that are in the Quilombo territory - according to the Article 216 of the Brazilian Federal Constitution - which is making the Quilombo insulated and unable to carry on with their traditional practices as well as their livelihood. The aim of this work is understanding how the lack of action of local government and ownership of the surrounding land the Quilombo Santana Territory influenced the process of community desterritorialization. Key-words: Quilombola’s Territoriality; Desterritorialization; Quilombo Santana. 1 – Introdução O reconhecimento e titulação de terras das comunidades remanescentes de quilombos é um processo que tem como objetivo resgatar a memória, a identidade e a história de resistência negra diante da opressão e discriminação sofridas ao longo do processo de colonização do território brasileiro. Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal Brasileira de 1988 reconhecem as manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras, como patrimônio brasileiro e portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da 1 - Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail de contato: [email protected] 6149 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO nossa sociedade e, também por isso, devem-se buscar medidas definitivas para a regulamentação e titulação dos territórios dos grupos destacados. O presente trabalho tem por objetivo compreender a formação das comunidades quilombolas, bem como apresentar a influência dos agentes externos que visam a (re)valorização dessas identidades quilombolas, secularmente subalternizadas. A partir deste entendimento, procurar-se-á definir os conceitos de território, territorialidade e o processo de desterritorialização sob a perspectiva do Quilombo Santana. Para tanto, a pesquisa se apoiou na revisão bibliográfica na busca da construção de um arcabouço teórico-metodológico que sustentasse as premissas aqui apresentadas, bem como a pesquisa qualitativa utilizada nos diversos campos realizados: no Quilombo Santana, nos distritos envolvidos, na Prefeitura da cidade de Quatis e nos demais lugares abarcados na pesquisa. O Quilombo Santana está localizado na zona rural do distrito de Ribeirão de São Joaquim, município de Quatis – RJ (Figuras 1 e 2). Atualmente, o quilombo é constituído por 21 famílias, das quais 17 são auto reconhecidas, de acordo com as normas estabelecidas pela Fundação Cultural Palmares, e titulado pela mesma instituição desde 14 de julho de 2000. Figura 1 - Localização do município de Quatis e o estado do Rio de Janeiro Fonte: Modificado do IBGE, 2014. 6150 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Figura 2 - Município de Quatis e a localização do Quilombo Santana Fonte: Modificado do IBGE, 2014. O quilombo se formou a partir da Fazenda Santana, propriedade de Manuel Marques, um dos maiores produtores de café da região ao longo do século XIX. Com o declínio da cafeicultura no vale do Paraíba2, a então dona da Fazenda Santana, Maria Isabel de Carvalho (filha de Manuel Marques Ribeiro e Anna Esmeria Nogueira), assinou a doação de parte das terras de sua fazenda, mais especificamente no entorno da Capela de Santana, aos escravos que serviam à família e o restante das terras foram vendidas para Leôncio Ferreira da Silva. Há muitas controversas nessa afirmativa, mas de acordo com o Relatório Antropológico, assinado por Osvaldo Martins de Oliveira, este afirma que analisou o documento cedido por Ana Maria Gouvêa e que a premissa é verdadeira. Desta maneira, os trabalhadores descendentes de escravos construíram suas casas no lugar da doação e também em outras partes da propriedade. No entanto, a comunidade rural negra recém-formada encontrou grandes dificuldades para se 2 Entre os anos de 1830 e 1880, o café do Vale do Paraíba era exportado para o continente europeu sem concorrências. No entanto, devido à produção de forma exaustiva, a fertilidade da região ficou comprometida e as lavouras entraram em declínio. 6151 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO manter, principalmente pelo esgotamento do solo e dificuldade de comércio com as cidades vizinhas. 2 – Os processos de formação das comunidades quilombolas Em território africano, os quilombos eram acampamentos militares, com estrutura altamente hierarquizada e protegida por várias paliçadas, que se deslocavam conforme as necessidades do grupo (BRACS, 2010). Antonio Risério afirma que a palavra quilombo veio dos bantos e que em África “tinha o sentido geral de aldeamento ou rancharia – e o sentido específico de acampamento de guerra (...)” (2012, p. 162). De acordo com Campos (2010, p. 32), a denominação quilombo surgiu em função de uma consulta realizada pelo Conselho Ultramarino (1740) ao Rei de Portugal que, em sua resposta, dava o nome de quilombos para toda habitação composta por mais de cinco negros, geralmente em regiões despovoadas. Por ser uma denominação oficial, a definição de quilombo a partir do Rei passou ser considerada de forma abrangente, pelo povo e estudiosos. No entanto, não compartilhamos desse mesmo conceito, mas sim àquele resgatado por Bracs e Risério e, também aquele proposto por Sodré (1988, p.64) onde, “o quilombo não foi apenas o grande espaço de resistência guerreira, mas representava recursos radicais de sobrevivência grupal, com uma forma comunal de vida e modos próprios de organização”. Esses territórios, em solo brasileiro, são entendidos como independentes e forjados através da comunhão de um ideal comum: onde a liberdade (do regime escravocrata) e os laços de solidariedade formaram um dos pilares para a reconstrução da identidade negra. É preciso enfatizar que muitos desses grupos se formaram antes da abolição da escravatura, mas houve aqueles que se constituíram após esse momento. O governo, por sua vez, não elaborou nenhuma política de integração dos remanescentes de quilombos, o que obrigou os quilombolas a desenvolverem suas próprias formas de organização. Esse isolamento trouxe muitas dificuldades para a sobrevivência e inserção dos negros na sociedade brasileira, como um todo. 6152 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO As principais características das comunidades remanescentes de quilombos são: predominantemente rural, onde são realizadas atividades de subsistência e extrativistas, agricultura, pesca e pecuária tradicional, artesanato e agroindústria tradicional. Geralmente, as comunidades conjugam territórios individuais, para cada família, e áreas de uso comum, onde se configuram as atividades produtivas de maior porte e/ou atividades de caráter extrovertido, como, por exemplo, a venda de excedentes para a compra de produtos que não são produzidos na comunidade. Essas características são imanentes de grupos bem organizados e com certas facilidades que não são comuns a todos os quilombos. Em Santana, não é possível observar a produção desta forma por diversos motivos: conflitos internos e externos, falta de espaço vital e baixa capacidade produtiva da terra. Diversas comunidades quilombolas, diante do isolamento, das diferentes formas de discriminação, das ações globalizantes, entre outras adversidades, foram se afastando de suas características fundantes – muitas se diluíram no espaço urbano, outras se adaptaram ao modelo imposto pelos grandes proprietários de terra. No entanto, a partir da última década do século XX, as comunidades tradicionais passaram a ocupar um lugar de destaque em projetos e ações de ONG’s e prefeituras, a fim de se reconstruir territórios, saberes e práticas silenciadas pelo tempo. Rompe-se, portanto, com a antiga metodologia de não intervenção e se passa a desenvolver repertórios culturais a partir de folcloristas, grupos de fomentos de culturas tradicionais – em outras palavras, agentes externos passam a intervir nas comunidades tradicionais, numa tentativa de retomada das tradições, práticas e saberes ancestrais, mesclando a tradição com a modernidade. Para Alejandro Lifschitz, essas comunidades podem ser denominadas neocomunidades. O conceito reconstrução das de neocomunidades tenta comunidades tradicionais na alcançar os processos de contemporaneidade, como determinados grupos recriam certas tradições na modernidade. A este fenômeno, Lifschitz e tantos outros, se valem do termo denominado etnogênese, que seria o recente surgimento de povos considerados originários. No caso das comunidades negras rurais isso se dá juntamente com a ressemantização do termo quilombo, que por muitos anos foi considerado um local de fuga de escravos negros, mas com a criação do Art. 68, da Constituição de 1988, ressignificou-se o termo quilombo como 6153 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO “remanescente de quilombo”, ou seja, comunidades negras com ascendência ao passado escravocrata. As neocomunidades devem ser compreendidas como aquelas que se definem por uma auto compreensão de suas identificações, ou por seus contrastes diante de outros grupos. Essa definição busca não apenas “estabelecer” identidades numa comunidade de sangue ou de lugar, mas principalmente distinguir as relações estabelecidas entre ela. Neocomunidades “São territórios, onde se atualizam questões como ancestralidade, parentesco, cultura material e proximidade face a face, mas em contextos relacionais que reconfiguram a relação entre interior e exterior” (LIFSCHITZ, 2011, p.91). Em Santana é possível observar esses dois momentos: na lida com a terra e suas relações sociedade-natureza (saber tradicional) e a retomada do Jongo relembrado por alguns encontros entre os quilombolas de Santana e São José, saber moderno trazido nas últimas duas décadas por representantes do quilombo São José3, Valença – RJ. 3 – Território e territorialidade quilombola: o caso do Quilombo Santana As questões territoriais sempre estiveram presentes na Ciência Geográfica, o mesmo não pode ser dito para o estudo das relações etnicorraciais que começa ganhar corpo quando abarca, em suas análises, os questionamentos sobre território, territorialidade e desterritorialização das comunidades quilombolas e a(s) cultura(s) hegemônica(s) nestes cenários. A leitura do território utilizada para compreender o processo de desterritorialização do Quilombo Santana foi aquela, denominada de integralista, que é forjada transversalmente à perspectiva materialista e idealista, em que a natureza, a sociedade e a relação sociedade-natureza têm valores equivalentes. Inúmeros autores discorreram sobre esta temática e o conceito de hibridismo foi amplamente 3 O Quilombo São José, Valença - RJ está localizado próximo ao Quilombo Santana, mas o diálogo entre as comunidades ainda é tímido. É importante relatar que São José também está passando pelo processo de titulação das terras, mas já possui destaque na mídia por sua desenvoltura e promoção de festas comemorativas. No dia dos Pretos Velhos, o Quilombo São José promove um grande festejo que recebe centenas de pessoas. Desta maneira, muitos quilombolas de São José se colocam disponíveis para fomentar a cultura do jongo em outros quilombos. 6154 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO aceito para explicar a perspectiva integradora, pois esta noção (território híbrido) permite a concepção do território a partir das múltiplas relações de poder e nos elementos supracitados (relação sociedade-natureza e suas imbricações no espaçotempo). Haesbaert (2011, p. 76) ratifica essa análise a fim de contemplar as diferentes análises sob a perspectiva integralista, mas, que se sabe, tem um objetivo comum. O trecho abaixo exemplifica a ideia do autor: Partindo de um ponto de vista mais pragmático, poderíamos afirmar que questões ligadas ao controle, “ordenamento” e gestão do espaço, onde se inserem também as chamadas questões ambientais, têm sido cada vez mais centrais para alimentar este debate. Elas nos ajudam, de certa forma, a repensar o conceito de território. A implementação das chamadas políticas de ordenamento territorial deixa mais clara a necessidade de considerar duas características básicas do território: em primeiro lugar, seu caráter político – no jogo entre os macropoderes políticos institucionalizados e os “micropoderes”, muitas vezes mais simbólicos, produzidos e vividos no cotidiano das populações; em segundo lugar, seu caráter integrador – o Estado em seu papel gestor-redistributivo e os indivíduos e grupos sociais em sua vivência concreta como os ambientes capazes de reconhecer e de tratar o espaço social em todas as suas múltiplas dimensões. A territorialidade pode ser entendida como uma forma espacial de comportamento social, relacionada à utilização local por uma determinada sociedade que se estabelece de forma histórico-social. Sua organização no espaço e no tempo garante particularidade e permite o entendimento das relações entre a sociedade e o espaço (SACK, 1986). Para somar a compreensão do inglês Robert Sack, Marcelo José Lopes de Souza apresenta três definições do conceito de território, mas o autor é evidenciado pela ideia de território como “o espaço concreto em si (com seus atributos naturais e socialmente construídos) que é apropriado, ocupado por um grupo. (...) um grupo não pode ser mais compreendido sem o seu território” (p. 84). Uma definição do conceito de território mais compreensiva, que abarca as dimensões precisas deste trabalho pode ser destacada ainda em Souza (2007:86): Aqui, o território será um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a diferença entre “nós” (o grupo, os membros da 6155 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO coletividade ou “comunidade”, os insiders) e os “outros” (os de fora, os estranhos, os outsiders). Compreende-se que o território é também provedor de recursos e que possibilita a manutenção de determinadas práticas que se faz reconhecer uma comunidade tradicional, como a agricultura coletiva, amplamente praticada por grupos afro-indígenas. Além de prover recursos, considera-se, sobretudo, a dimensão simbólica do território que articula símbolos que se imbricam com a identificação local – e que muitos autores denominam como identidade local. Essas categorias devem ser lidas de forma transversal, ambas são tidas como importantes para a identificação de um determinado grupo com o seu território. A relação entre o homem e o meio e as relações entre os indivíduos, não são necessariamente sempre venturosas, mas é possível observar similaridades do grupo e, não excluindo, a particularidade intrínseca de cada indivíduo que compõem este grupo. Portanto, o território é, também, político-cultural: a geopolítica do território incide diretamente nos seus sujeitos e nas suas representações sociais, bem como nos fenômenos particulares deste grupo e seu lugar. Não se deve ignorar, pois, as relações de poder existentes dentro e fora do território. No quilombo Santana estas relações se dão de maneira muito parcial, onde os quilombolas enfrentam outros grupos mais “poderosos”, seja pelo apoio da Igreja, pelo poder aquisitivo que cria tendências diante do Poder Público e/ou a questão cultural local que vê os remanescentes de escravos de forma pejorativa. Mas, inclusive, as relações de poder existentes entre os quilombolas que, ao definir um líder comunitário, delega funções e poderes àquele elegido que, nem sempre, irá compartilhar dos mesmos ideais de toda comunidade. A problemática que se impõe é o que leva ao conflito na grande maioria das comunidades quilombolas, pois estas comunidades se entendem como um território negro, com forte laço de pertencimento e identidade com o lugar e os não quilombolas se valem de títulos de propriedade adquiridos através de contratos comerciais (compra e venda) que não dão conta da compreensão da relação dos 6156 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO quilombolas e seus territórios. O que se vê, diante deste cenário, é o conflito quase sempre secular que induz à desterritorialização dos quilombos. 4 – O processo de desterritorialização do Quilombo Santana A comunidade Santana recebeu o título de território quilombola ainda sob a vigência da Fundação Cultural Palmares em 14 de julho de 2000, quando na época a comunidade era composta por 28 famílias e a área demarcada como propriedade coletiva dos quilombolas foi estabelecida com 828,1200 ha. Todavia, a área ocupada pelos quilombolas, hoje, de acordo com o INCRA, não passa de 10 ha. Em abril de 2006, o próprio INCRA recalculou as terras a serem tituladas em nome do Quilombo Santana, traçou um novo polígono, seguido do seu memorial descritivo, com as dimensões: área: 722.8845ha e perímetro: 10.741.50m. Contudo, o processo não foi validado, a titulação está em contraditório e os quilombolas continuam nucleados. Como explicar a morosidade na execução da titulação das terras demarcadas ainda sob a vigência da Fundação Palmares e documentada, posteriormente, pelo INCRA? Quais são as diferentes relações de poder estabelecidas entre os demais atores/agentes que inviabilizam a concretização do projeto idealizado há mais de 14 anos? Em Quatis é possível observar três grandes agentes responsáveis pela verticalização das relações, são eles: a Prefeitura Municipal, que busca atender os interesses dos proprietários de terra, ainda que estas não sejam produtivas, a Igreja, que não reconhece Santana como um quilombo e os próprios proprietários de terra que, diante do relatório elaborado por diversas instituições públicas, como a Fundação Palmares, INCRA, Universidade, entre outros, se uniram a favor da manutenção das suas fazendas. Os estudos e análises demonstraram que o cenário é composto por uma comunidade negra rural discriminada e nucleada, diferentes produtores rurais com realidades distintas: pequenos proprietários que dependem da terra para viver e médios e grandes proprietários que subutilizam a terra - especulando-a -, uma 6157 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO população extremamente preconceituosa e um grupo político despreparado e parcial. O território contíguo da comunidade tem sido, histórico e gradualmente, reduzido por uma série de fatores, dentre os quais podemos elencar: a posição hierárquica dos fazendeiros adjacentes, a posição parcial do poder público local, a desmobilização e o desconhecimento das leis pelos quilombolas, entre outros. O que se observa nos dias atuais é um território não contíguo, mas que busca dialogar nos espaços de convivência que se transformam também em espaços de resistência. Sendo assim, muitas famílias migraram para a cidade em busca de melhores condições de vida, outros se tornaram empregados das fazendas que se estabeleceram no território quilombola e adjacências e algumas poucas famílias que se mantiveram em suas casas, em condições miseráveis e pouco espaço para a prática da agricultura de subsistência. Dessas famílias que se mantiveram no quilombo é possível observar a reciprocidade em determinadas atividades estruturais do quilombo e também nos “ajuntamentos”, o que, mais uma vez, evidencia as relações solidárias entre os moradores. Encara-se o território santanense como aquele evidenciado por Lefebvre: esforços são observados num movimento de construção – desconstrução – e reconstrução, onde o velho é recriado no novo num movimento (des)contínuo, pois o velho não é suprimido, ele coexiste com o novo. A comunidade passa a ser encarada como uma neocomunidade, num movimento natural de sobreposição de identidades e territorialidades, numa confluência dos seres e saberes quilombolas até as urbanidades que agora chegam com muito mais força no meio rural. 5 – Considerações Finais É possível, portanto, afirmar que o Quilombo Santana sofre o processo de desterritorialização, que é definido, por hora, como o afastamento do território, onde há a perda de controle dessas territorialidades, pessoais ou coletivas. Para Rogério Haesbaert, a desterritorialização é um termo utilizado para explicar a precarização territorial de determinado grupo, em geral os subalternos, através da perda de 6158 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO controle e de suas referências simbólicas do seu território. Fato que pode ser observado na comunidade quilombola da região definida. É possível observar a saída dos quilombolas em direção aos municípios vizinhos, além de tantos outros problemas acarretados acerca deste conflito entre quilombolas e proprietários de terras. Os problemas no Quilombo Santana são muitos, mas é importante destacar que a comunidade é desacreditada pela população do município e vive certo ostracismo diante da invisibilidade negra rural estabelecida. As demais adversidades decorrem, em grande parte, desse não reconhecimento e do preconceito acerca de suas características étnicas e sociais. 5 – Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. 144 p. ______. Decreto Lei no 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 227, nov. 2003. p. 4-5, 21. CAMPOS, A. 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