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I CONACSO
I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
GT 04 - DESENVOLVIMENTO, CONFLITOS
SOCIOAMBIENTAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS
Coordenadores:
Prof.ª Dr.ª Aline Trigueiro (UFES)
Prof.ª Dr.ª Winifred Knox (UFRN)
Debatedores:
Prof.ª Ms. Flavia Amboss (UFES)
Prof.ª Dr.ª Raquel Oliveira (UFES)
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IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DA VIA EXPRESSA SOBRE A COMUNIDADE
VINHAIS VELHO1
Aerica Souza Malheiros
Graduanda do Curso de Ciências Sociais na UEMA e bolsista de Iniciação Científica
PIBIC/FAPEMA.
Resumo: A seguinte pesquisa tem o intuito, a partir da observação dos sujeitos em disputas pela
apropriação e uso da cidade de São Luís, de refletir sobre a problemática existente na Comunidade
Vinhais Velha com a implantação da via-expressa, a saber, conflitos ambientais e socioespaciais.
Tais conflitos se deram devido ao planejamento de vias que caracterizam novas formas de estruturas
no espaço e que intensificaram desordens em áreas valorizadas. A pesquisa delineia entendimentos
diversos acerca do direito à cidade, do direito de morar e do direito ao meio ambiente, expressando
situações de conflito socioambiental. Com isso, propõe identificar os transtornos causados pelo
planejamento urbano e estratégias utilizadas pela comunidade para o enfrentamento das mudanças
que ocorreram após a construção da via expressa. Dessa forma, compreende uma metodologia
específica para reflexão da pesquisa, levantamento e coleta de dados referentes à localidade
observada. Além disso, aborda a mobilização da comunidade nos relatos dos impactos e exprime o
contexto de vulnerabilidade social, na qual ela se insere, no espaço urbano.
Palavras-chave: conflitos socioespaciais; cidade; meio ambiente.
Abstract: The following research aims to observe subjects in disputes over ownership and use of the
city of St. Louis, thus reflecting the observation in the issue of Old Vinhais Community with the
implementation of the road-expressed, environmental conflicts and socio-spatial due to the process
of planning that characterized new forms of structures in space, intensifying disorders in valuable
areas. The research outlines different understandings about the right to the city, the right to live and
the right to the environment, expressing situations of environmental conflict. Thus, the research
proposes to identify the disorders caused due to urban planning and strategies used by the community
to face the changes that occurred after the construction of the expressway. Thus comprises a specific
methodology to reflect the research, survey and data collection related to the locality observed.
Including community mobilization in the reports of impacts and vulnerability expresses the social
context in which it is inserted in the urban space.
Keywords: socio-spatial conflicts; city; environment.
Introdução
O trabalho tem como objetivo visualizar a configuração de planejamentos urbanos
na cidade de São Luís. Dessa forma, os objetivos específicos são verificar o planejamento
da Via Expressa e os seus impactos sobre uma região que guarda consigo aspectos
tradicionais. E, por meio disso, problematiza os impactos, decorrentes da Via, causados na
“Comunidade Vinhais Velho”.
1
Trabalho orientado pela Profª Drª Rosirene Martins Lima, por meio de bolsa de iniciação científica da
Universidade Estadual do Maranhão.
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A Comunidade Vinhais Velho é atualmente considerada como o bairro esquecido
pela cidade de São Luís. Assim o local é expresso pelos moradores e pelas pessoas que
acompanharam o transtorno da implantação da Via Expressa.
A cidade é um círculo entre mediação e comportamentos críticos de grupos que
estruturam o espaço. Grupos dominantes concentram a autoridade em outros grupos
individuais que moldam a estrutura. Segundo Lefebvre, a cidade se divide em grupos que
estruturam a urbanização, entre ordem distante, sendo as grandes instituições, e ordem
próxima, presente nas relações sociais que se reestruturam a partir de planejamentos urbanos
favorecendo os grupos dominantes (LEFEBVRE, 1991).
Em se tratando do planejamento governamental, a antiga administração do governo
estadual projetou o desenvolvimento de um plano de trabalho, com ênfase em melhorias para
as vias urbanas da região metropolitana de São Luís. Porém não considerou uma
comunidade, de aproximadamente 400 anos, que atualmente sofre com os impactos que a
implantação da Via expressa gerou na apropriação da região.
O crescimento da cidade de São Luís alimenta novos setores e a necessidade de
urbanização. De certa forma, analisar o conflito socioambiental nas cidades reproduz na
observação uma nova forma de viver além do ambiente urbano, que respectivamente constrói
uma rivalidade entre agentes e serviços. Na medida em que a cidade cresce e se expande, a
valorização e apropriação do espaço urbano demarcam medidas que restringem o espaço e
excluem pessoas de classes inferiores, levando-as a residir em dados locais em prol da
urbanização dos centros e da lógica da produção (LIMA, 2008).
Esta pesquisa teve o intuito de identificar as medidas e procedimentos da urbanização
planejada pelo governo do Estado do Maranhão. Como ponto de partida, analisou-se a
situação dos residentes da comunidade Vinhais Velho, identificando os impactos deixados
pela Via Expressa na comunidade e os conflitos gerados por ela entre agentes e moradores a
respeito da questão urbana.
Considerando as diferentes formas como a sociedade se reproduz no espaço, o
objetivo desta pesquisa foi visualizar os conflitos socioespaciais existentes na comunidade
observada, e de certa forma identificar os pontos estratégicos desempenhados pela
comunidade. A partir do exposto foi possível relatar sobre os dados observados na
comunidade e refletir empiricamente a respeito da situação socioespacial.
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1. Notas sobre a história da comunidade Vinhais Velho
A “comunidade Vinhais velho” abrange um título histórico de região indígena e
dominação europeia. E, de certa forma, deveria ser garantido a ela o direito à memória de
viés histórico com repercussão nos primeiros momentos da ilha de São Luís, valorizando-a
entre todos os moradores do estado, não somente os da comunidade.
A dominação europeia sobre o estado do Maranhão coincidiu com a expansão
marítima, no processo de expansão do capitalismo comercial na Idade Moderna,
estabelecendo uma competição na Europa para alcançar regiões com riquezas naturais
acumuladas. A respeito do primeiro alcance europeu na região do Maranhão há uma
discussão duvidosa entre os espanhóis, portugueses, franceses, holandeses e noruegueses.
Assim sendo, por se tratar de uma região de valorização pela aproximação geográfica da
costa africana e os portos europeus (BOTELHO, 2008).
A Aldeia de Eussauap, respectivo nome da Comunidade Vinhais Velho, no período
indígena estruturou a primeira missa e capela, como forma dos franceses dominarem os
residentes por meio da religião. Inicialmente a região era habitada por grupos indígenas, que
formaram a aldeia conhecida como Uçaguaba. Os franceses visitaram a região em busca da
identificação do espaço por Daniel De La Touche, e a partir do momento que estabelecem
vínculos, passaram a explorar as riquezas naturais da região.
Para os exploradores, a ilha era denominada como “MiganVille”, em referência ao
David Migan. Entretanto, a aldeia constitui vários nomes e denominações. O nome Vila
Vinhais advém dos portugueses com o objetivo de homenagear “os vinhedos”, um aspecto
de sua terra natal. Em cada momento histórico da região pode-se identificar um tipo de
dominação diferenciado, por isso passou por várias mudanças de nomes e consequentemente
de explorações e identidades. Assim, o grupo dominante do momento denominava a região
a seu modo, no intuito de caracterizar a dominação (MATOS, 2014).
Vinhais Velho, por exemplo, sofreu sete alterações toponímicas desde que
foi criada (Aldeia de Eussauap > Vila Uçaguaba > Aldeia da Doutrina >
Aldeia de São João dos Poções > Vila dos Vinhais > Freguesia do Vinhais
> Freguesia de São João Batista dos Vinhais > Vinhais Velho), mas mesmo
que cada denominação tivesse uma motivação específica, o elemento que
permaneceu até a atualidade não resgata a Aldeia de Eussauap ou os índios
que foram aculturados, mas o povo que os dominou, os lusitanos, daí a
permanência do topônimo Vinhais, que homenageia uma região dos
vinhedos de Portugal (MATOS, 2014, p. 53).
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Com a constituição da França Equinocial da colonização, criam necessidades para a
exploração das riquezas nativas do local. A partir desse vínculo, a Rainha Regente
demonstrou o interesse de implantar a fé católica na região. Por meio da presença dos
missionários capuchinhos na região de Uçaguaba, é rezada a primeira missa no dia 20 de
outubro de 1612. Nesse dia é comemorada pelos moradores a fundação de “Vila Vinhais
Velho” e dos bairros que constituem historicamente a comunidade.
Segundo estudos realizados na região, com na construção da Via Expressa foram
encontrados vestígios dos primeiros povos a habitar aquele espaço, ou seja, objetos
encontrados em escavações. Pode-se ainda realizar pesquisas arqueológicas e desempenho
através do instituto do patrimônio histórico e despertou interesse de pesquisadores com
olhares na antropologia, arqueologia e história, tudo isso permitiu revelar os interesses e as
formas de viver dos habitantes da comunidade.
Através da observação dos resultados da escavação arqueológica e dos objetos encontrados
pertencentes aos primeiros povoados, ficaram comprovados os indícios da existência de pessoas
no local em estudo desde o período pré-histórico. Foram identificados Povos Sambaquieiros,
Agricultores e Tupinambás na região. Cerca de 2.600 grupos formavam a região. Neste contexto,
é possível afirmar que com a projeção da Via Expressa, acidentalmente foram encontrados
resquícios das primeiras comunidades que habitavam a região de São Luís.
Figura 1 - Exposição Vinhais Velho: arqueologia, história e memória
Foto: Aerica Souza Malheiros.
Por meio do encontro do viés histórico inerente à comunidade, pensou-se em abrir ao
público a possibilidade de ver as relíquias encontradas nas escavações, assim como os registros
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realizados em torno delas numa exposição. Como local estratégico, escolheu-se um espaço ao lado
da igreja, ponto de entrada da comunidade. A exposição arqueológica da comunidade Vinhais
velha é denominada “Vinhais Velho: arqueologia, história e memória”. O projeto tem o apoio do
governo estadual do Maranhão, com a governadora Roseana Sarney, em parceria com a secretaria
de Estado de Infraestrutura, no período de dezembro de 2014. O “Memorial do Sítio Arqueológico
do Vinhais Velho” demostra como o fator político está inserido como ato de poder institucional na
região, com a capacidade de ganhar prestígio ao realizar tais trabalhos arqueológicos, no entanto
falha no que tange aos impactos gerados pelo mal planejamento da obra de expansão.
A partir da análise bibliográfica e da observação em campo, verificou-se na Igreja
São João Batista a identidade despertada por ela, no que tange à memória histórica da cidade
de São Luís, enquanto uma ilha que por muito tempo foi explorada e é referência de uma
linha histórica em toda a região do Maranhão. Segundo os moradores, atualmente a
administração da igreja é responsabilidade deles próprios. Como ato de resistência e
identidade familiarizada se autodenominam “filhos do vinhais velho”. Vale salientar que a
região carrega consigo amigos como o padre Jadson Borba, que há dois anos está presente
como administrador da igreja e é um grande amigo da comunidade.
Figura 2 - Igreja São João Batista
Foto: Aerica Souza Malheiros
O valor simbólico que a igreja, o porto e o cemitério reflete na memória dos “filhos
do vinhais velho” não tem preço ou valor calculável. A população residente tem uma
construção histórica e social na região, com ênfase em suas relações sociais, em caráter de
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seus laços familiares, onde pessoas do mesmo vínculo familiar fazem questão de morar no
mesmo local. Lá a separação é vista como uma desapropriação da memória construída ao
longo de anos e que se perde, acima de tudo, em favor do progresso.
Por meio de entrevista concedida a um jornal pequeno, no período do planejamento
da Via Expressa na Comunidade Vinhais Velho, o secretário de infraestrutura do governo
estado do Maranhão, o senhor Max Barros, identificou a problemática da estrutura do projeto
em questão. Em resposta, o secretário admitiu a necessidade da retirada de oito casas para a
construção da estrutura da Via Expressa, em contrapondo apontou os benefícios urbanos,
como ligar a região metropolitana de São Luís, retirando os engarrafamentos de outras
avenidas como a Jerônimo de Albuquerque, a qual interliga os bairros ao centro da cidade.
Finalizou a entrevista ressaltando os 400 anos da cidade de São Luís, e a necessidade do
projeto como um presente aos seus residentes.
A implantação da Via Expressa conduz implicações na comunidade, dessa forma
assemelha-se com a exploração dos colonizadores da comunidade Vinhais Velho, região que
sofreu e sofre impactos. Depois da implantação da Via o bairro foi cortado no meio e os
moradores mudaram a rotina, devido ao fluxo intenso de carros e também da falta de segurança.
Segundo um morador local, Seu Raimundo, que mora a 37 anos na comunidade, o fluxo
de carros na região é intenso, deixando a mercê do trânsito as crianças que saem da escola Dr.
Oliveira Roma, situada próximo ao seu comércio – o “Coisa nossa”. Relatou que depois da Via
Expressa, uma criança sofreu um acidente. No local não foi encontrado nenhum mecanismo
estratégico ou semáforo para indicar aos motoristas a necessidade de diminuir a velocidade.
Segundo os moradores a área verde da região estava sendo retirada, sem nenhuma
licença ambiental. O local também era utilizado pelos moradores para plantações, pois alguns
viviam da pesca e da roça. Como uma das moradoras mais antigas, Dona Mercedes, contou:
“aqui já foi bom de morar”. Segundo ela devido às mudanças no local, as pessoas não tinham
condições de viver da forma como viviam antes, somente da pesca e da roça. Além disso,
atualmente, a aproximação de invasões como a kubanacan aumenta a violência na região.
A retirada dos moradores de seus locais de origem gera neles receios e insatisfações,
sobretudo porque são remanescentes os primeiros moradores e descentes indígenas. Seu
Talma, o dono de um bar, relatou que 18 casas foram retiradas, inclusive a de seus familiares.
A insatisfação pela expropriação de um espaço, que antes era habitado por indivíduos e
memórias, gera a perda da valorização em meio ao progresso.
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A manifestação e insatisfação dos moradores, incialmente com o planejamento da
construção da Via Expressa, foram também motivadas pela indenização de baixo custo. Segundo
o blog “Tribunal Popular do Judiciário”, os moradores recorreram à justiça devido aos valores
oferecidos para indenização do governo estadual que estavam entre R$ 25 mil a R$ 35 mil em
média. Alguns moradores afirmam que ocorreu uma mudança de valores. Os retirados, atualmente,
moram em outros bairros próximos, porém alguns recorreram às ocupações próximas.
Figura 3 - Observação da Via Expressa
Foto: Aerica Souza Malheiros.
Figura 4 - Projeto da implantação da Via Expressa
Fonte: Pesquisadora Danielle Nogueira.
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Por meio da visualização do projeto em questão, a “Secretária de Estado de Infraestrutura
do Maranhão” (SINFRAN) concedeu uma entrevista e relatou os fatos e seus respectivos impactos.
Segundo o planejamento governamental, como pode ser observado na figura 4 acima, tinha como
perspectiva a demarcação do território e o mapeamento dos moradores afetados. Já na figura 3
pode-se observar a demarcação da via. A indenização dos moradores mobilizou a região durante
certo período, impedindo a construção da via. Todos os residentes retirados foram reavaliados a
partir da valorização da residência. Por meio de normas éticas não foi informado o valor estimado
em cada casa. Eles estão compondo um quadro histórico do local.
2. Mudanças nas relações sociais da comunidade Vinhais Velho
A modificação do espaço caracteriza o lugar e sua linha histórica, ou seja, novas
estruturas são atribuídas ao conceito de lugar e desse modo o espaço se redefine. Segundo
Santos, é possível identificar o lugar por meio da estrutura de técnicas que interagem e o
moldam. Assim, a subjetividade que abrange o espaço dá ênfase ao fenômeno histórico,
considerando a origem do lugar.
A materialidade artificial pode ser datada, exatamente, por intermédio das
técnicas: técnicas da produção, do transporte, da comunicação, do dinheiro,
do controle, da política e, também, técnicas da sociabilidade e da
subjetividade. As técnicas são um fenómeno histórico. Por isso, é possível
identificar o momento de sua origem. Essa datação é tanto possível à escala
de um lugar, quanto a escala do mundo. Ela é também possível à escala de
um país, ao considerarmos o território nacional como um conjunto de
lugares (SANTOS, 2006, p. 35).
O espaço sempre modifica de acordo com a necessidade humana, modificam a natureza e
reproduzem espaços que dialogam com a urbanização. O homem intensifica técnicas que
reproduzem a materialidade artificial. Com o avanço do sistema capitalista, o ser humano,
enquanto ser social em interação com suas relações de produção, esteve apto a distribuir o espaço,
por meio de técnicas que levam em consideração cada aspecto da sociedade, técnicas agrícolas,
industriais, comerciais que são de certa forma administradas por grupos dominantes.
No caso da Comunidade Vinhais Velho, há uma análise que específica os aspectos
centrais da região, dessa forma caracterizam um planejamento como a Via Expressa, que
segundo autoridades públicas atuaria como fator urbano importante para o desenvolvimento
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na cidade de São Luís, ou seja, de acordo com a justificativa das autoridades, seria um plano
urbano benéfico a todos os Ludovicenses.
Na medida em que gradativamente os centros crescem, se expandem, a urbanização
consequentemente vai se enquadrando nas cidades como técnicas, em resposta às crises
espaciais, e concentra a fundação de novos aspectos que especificam a ordenação espacial
na problemática urbana. A necessidade do urbanismo estabelece planejamento em favor de
uma nova realidade que surge e acarreta mudanças que estão enraizadas na espera econômica
da cidade (LEFEBVRE, 2001).
Essa nova realidade urbana modifica o espaço e seus fatores históricos, reconstrói a
identidade dos indivíduos que estão inseridos nesse espaço, demarcando o território. As
transformações da cidade realizam a modificação nas relações sociais, conduzindo a novos
ordenamentos, através de outra construção histórica. A sociedade condiciona novos aspectos
que delimitam técnicas na apropriação do espaço, consequentemente conflitos
socioespaciais e socioambientais na reprodução desses aspectos.
A cidade é a obra a ser associada mais com a obra de arte do que o simples
produto material. Se há uma produção da cidade, e das relações na cidade, é
uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mais do que
uma produção de objetos. A cidade tem uma história; ela é uma obra de uma
história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa
obra de condições históricas. As condições que simultaneamente permitem e
limitam as possibilidades, não são suficientes para explicar aquilo que nasce
delas, nelas, através delas (LEFEBVRE, 2001, p. 52).
A cidade configura a produção material, dessa forma nela situam ordens que
configuram as características da sociabilidade no espaço, quesito de grandes planejamentos
efetuados por instituições com relação aos grupos que lideram as relações individuais. Essas
mesmas instituições, modificam o espaço reproduzindo as relações de produção, dessa forma
a cidade é intensamente condicionada a novas mediações.
A configuração do planejamento urbano na comunidade vinhais velho tem como
ênfase inserir novos fluxos, no intuito de intensificar a expansão urbana e esse aspecto
modifica espaço geográfico. A partir da configuração do eixo da Via Expressa são
reproduzidos conflitos espaciais por meio da sustentação do modelo urbano. Nesse sentido,
o poder público ausenta a análise da produção da cidade como lugar.
O processo de metropolização como viés de planejamento urbano se intensifica no
âmbito da expansão econômica e apropria espaços. A partir desse ponto de vista, a reprodução
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de um modelo urbano insuficiente, impõe políticas administrativas ao setor urbano, esse
processo fragmenta o espaço e gera conflitos na reprodução desses modelos (LIMA, 2008).
A reprodução da mancha urbana na cidade estabelece o pensamento subjetivo
particular dos residentes quanto ao conceito de lugar associado ao pertencimento e quanto
ao processo intenso de vias urbanas, em um pequeno local que até então antes visualizava
experiências divergentes. Atualmente, os moradores vivenciam conflitos decorrentes da
metropolização e decorrentes da perspectiva do desenvolvimento da sociedade. A
apropriação do espaço redireciona novos processos espaciais que demarcam territórios e
configuram aspectos de desenvolvimento urbano.
Figura 5 - Configuração de novos empreendimentos
Foto: Aerica Souza Malheiros.
Na comunidade Vinhais Velho, a partir da observação em campo, foram analisadas
mudanças sofridas pela rotina dos moradores, a partir da configuração da Via Expressa. A
demarcação do espaço redireciona dimensões e dinâmicas urbanas configurando a
apropriação
do
setor
privado
como
shoppings,
condomínios
empresariais
e
empreendimentos imobiliários. Por meio dessa transformação espacial, novas relações
produtivas se apresentam na concepção econômica.
O espaço é entendido como construção social, por meio da concentração de todas as
dimensões que administram o espaço social. A abordagem da produção social, segundo
Gottdiener, compreende observar os intensos problemas de natureza espacial unificando campos
de análise do urbano, para compreender as diferentes produções no meio ambiente, tornando um
pensamento social objetivo. Dessa forma, essa nova abordagem produz ênfase nas novas relações
socioespaciais que transformam categorias da vida da comunidade (GOTTDIENER, 1997).
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A produção do espaço intensifica formas de estrutura na vida da comunidade,
modifica e fragmenta as diferentes formas de relações sociais. Por meio disso gera conflitos
sociais específicos que transformam o espaço e reconstroem as atividades referentes ao
sistema social e ao plano urbano, por meio da dominação metropolitana em expansão.
O conhecimento da produção social do espaço urbano na sociedade moderna
fragmenta conceitos em decorrência do aumento gradativo das produções econômicas e a
consequente modificação do espaço. As diferentes abordagens teóricas constroem
pensamentos que investigam e analisam os conflitos sociais aplicando no espaço as devidas
críticas à ineficiência de planejamentos urbanos.
Conclusão
O presente trabalho analisou os impactos que a Via Expressa ocasionou na
Comunidade Vinhais Velho e como os moradores e pessoas próximas se mobilizaram contra
a implantação da Via, dessa forma, possibilitou a análise de organizações contra o
planejamento, estando em luta pela identidade do espaço, enquanto sociedade. Estes outros
meios, foram fontes de pesquisa os blogs e sites de indivíduos que observam a reprodução
dos conflitos e denunciam a conduta do poder público na região, pois segundo suas
afirmações deve-se garantir o devido respeito à localidade que concentra na região
metropolitana de São Luís um forte viés histórico.
Dessa forma foi necessário considerar outros pontos de vista para o devido diálogo
em diferentes abordagens. O planejamento urbano, enquanto projeto que aborda melhorias
ao espaço urbano, em seu exercício, proporcionou conflitos ambientais e espaciais na
atuação da realidade urbana. O atrito entre as diferentes concepções originaram impactos de
proporções diversas na cidade.
A partir da referência bibliográfica sobre a comunidade Vinhais Velho e da análise
histórica, mostrou-se o espaço e as diferentes identidades que já habitaram a região, através
de algumas características, como o nome das apropriações espaciais na região enquanto
local, que inicialmente foi explorado de diferentes formas e que ao ser reconstruído,
modificou também as relações sociais. Atualmente, esse quadro não é diferente dos outros,
tratando da observação já mencionada. A região, enquanto “lugar” configura a modificação
espacial, em favor da urbanização, gerando novos conflitos nas relações sociais.
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A expansão da região metropolitana de São Luís atinge parâmetros na perspectiva de
diferentes mudanças na questão urbana. Pela análise teórica no campo da pesquisa, foram
visualizados planejamentos com a iniciativa do poder público, que ao implantá-los
ocasionou e ocasiona um desenvolvimento desordenamento. Pois os espaços não são
devidamente observados enquanto configuração espacial e ambiental.
A cidade se expande rapidamente, seus espaços são preenchidos por aglomerações
urbanas, ocasionando conflitos entre classes. Grandes empreendimentos são construídos nas
proximidades da região da Comunidade, impactando outros locais, sendo importante, por
isso, perceber os fatores conflitantes da região e apurar os aspectos da apropriação espacial
na concentração do âmbito do desenvolvimentismo dos aspectos urbanos.
Foi necessário um diálogo entre os dados bibliográficos e a análise da problemática,
levantada através da pesquisa em campo. Esse método proporcionou uma reflexão em
diferentes interpretações teóricas sobre processo de expansão da cidade e sobre os conflitos
provocados pelo aspecto do crescimento econômico.
Outras características analisadas na região partem do acompanhamento do processo
de metropolização da região com a implantação da Via Expressa, sendo primordial suprir a
análise dos aspectos urbanos que cortam um espaço visualizado como “lugar” e reconstrói o
espaço, definindo outras realidades. Essa problemática urbana configura os conflitos que
decorrem da apropriação pública do espaço e a configuração de novos modelos de
urbanização na cidade de São Luís. A observação dos conflitos sociais, a partir da
implantação da projeção da Via Expressa, reflete a perspectiva da infraestrutura, assumindo
a fundamentação da urbanidade, na discrição do crescimento econômico da cidade, mas esse
parecer delimita conflitos ambientais e socioespaciais.
Referências
BOTELHO, Joan. Conhecendo e debatendo a história do Maranhão / Joan Botelho. São Luís: Fort Com. Gráfica e Editora, 2008.
GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano / Mark Gottdiener. - São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. 2ª ed. (Ponta; 05).
LEFEBVRE, Henri. 1901-1991. O direito à cidade. Henri Lefebvre. Tradução Rubens
Eduardo Frias. São Paulo: Centauro 2001.
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LIMA, Rosirene Martins. Conflitos sociais urbanos: o lugar como categoria de análise da
produção de Curitiba - Jardim Icaraí / Rosirene Martins Lima - Imperatriz: Ética / São
Luís: Editora UEMA, 2008.
MOTA, Antonia da Silva. Resistência no Vinhais Velho põe em xeque a Via Expressa.
Disponível em: <https://tribunalpopulardojudiciario.wordpress.com/tag/vinhais-velho/>.
Acesso em: 12 de janeiro de 2015.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção / Milton
Santos. 4 Ed. 2. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. (Coleção
Milton Santos).
VAZ, Leopoldo. 400 anos da Vila Vinhais Velho e sua Igreja de São João Batista.
Jornal O ESTADO. São Luís, 11 de dezembro de 2011. Disponível em:
<http://www.blogsoestado.com/leopoldovaz/2011/12/11/400-anos-da-vila-de-vinhaisvelho-e-sua-igreja-de-sao-joao-batista/>. Acesso em: 12 de janeiro de 2015.
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POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À ÁGUA NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO:
ENTRE CONFLITOS E SOLUÇÕES
Alcemi Almeida de Barros
UFES/GESAN/CONSEA-ES
Irio Luiz Conti
PGDR/UFRGS/NESAN/CONSEA Nacional
Francisca Malvinier Macedo
ASA-CE/CONSEA-CE
Resumo: Este estudo trata do processo de construção de políticas públicas de acesso à água no
Semiárido brasileiro. A negligência e o descaso com as populações do Semiárido, as medidas
paternalistas e paliativas de “combate à seca” e a fragilidade das políticas públicas para a região
perpetuaram desigualdades e injustiças estruturais, com concentração da terra e recursos naturais nas
mãos de grandes proprietários, num ambiente de conflitos, opressão e exploração. O poder público
tem a obrigação de formular e implementar políticas públicas, com participação social, qualificadas
à população. Em contraposição às políticas oficiais, emerge um jeito de ser, fazer e viver no
Semiárido com a criação da Articulação no Semiárido (ASA). Ela propõe novas formas de relação
social e de organização da produção, baseadas na mobilização social pela construção de cisternas de
placas para a coleta e armazenamento da água de chuva como mote de um paradigma de convivência
com o Semiárido. Dessa experiência da ASA, até 2014, resultou a construção de 750.000 cisternas
de placas, 25.917 cisternas-calçadão, 8.736 cisternas-enxurrada, 1.053 barragens subterrâneas, 827
tanques de pedra, 6.560 barreiros-trincheira, 1.813 barraginhas e 503 bombas d´água populares
comunitárias instaladas, garantindo condições de soberania, segurança alimentar e nutricional para a
população rural do Semiárido brasileiro.
Palavras-chave: acesso à água; políticas públicas; movimentos sociais.
Abstract: This study deals with the building public policies process for access to water in the
Brazilian Semi-arid. The neglect and disregard for Semi-arid people, paternalism and palliative
measures of “drought relief” and the fragility of public policies for the region perpetuated inequalities
and structural injustices, with the concentration of land and natural resources in the hands of large
landowners, in an environment conflict, oppression and exploitation. The government has an
obligation to formulate and implement public policies with social participation, qualified to the
population. As opposed to official policies, emerges a way of being, doing and living in this region
with the creation of the Semi-Arid Articulation (ASA, in Portuguese, Articulação do Semiárido). It
proposes new forms of social relations and organization of production, based on social mobilization
for the construction of tanks plates for collection and storage of rain water as a theme of a paradigm
of coexistence with semiarid conditions. Until 2014, this experience of ASA resulted in the
construction of 750,000 cisterns plates, 25,917 tanks boardwalk, 8,736 tank-flood, 1,053
underground dams, 827 stone tanks, 6,560 trenches pits, 1813 “barraginhas” and 503 popular
community water pumps installed, ensuring conditions of food and nutritional sovereignty and
security for the rural population of the Brazilian semi-arid.
Keywords: access to water; public policy; social movements.
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Introdução
A escassez de chuvas no Semiárido brasileiro, atrelada à negação do acesso aos bens e
aos direitos fundamentais como a água, terra, moradia e educação, constituiu-se em terreno fértil
para um cenário de fome, sede, desestruturação social, econômica, ambiental e cultural da região.
Em grande parte isso se deve à fragilidade na adoção de políticas públicas de prevenção e de
garantia dos meios para uma convivência sustentável com esta situação que é recorrente,
desconsiderando a diversidade de formas de vida e as reais necessidades da população.
A negligência e descaso com populações do Semiárido, medidas paternalistas e
paliativas de “combate à seca”, a nefasta “indústria da seca”, a inexistência de políticas
públicas para a complexidade dos problemas, perpetuaram desigualdades e injustiças
estruturais com concentração da terra e recursos naturais nas mãos de grandes proprietários,
num ambiente de conflitos, opressão e exploração.
Nascer e viver no Semiárido brasileiro traz desafios e possibilidades. Requer
capacidade para enfrentar dificuldades, como a irregularidade de chuvas, em que as
populações esperam a água que vem do céu para encher os reservatórios, dar início ao
plantio, colher boas safras e garantir alimentos para as famílias e os animais. Implica
acompanhar pacientemente as mudanças da paisagem, que trocam o esbranquiçado da
caatinga adormecida, pelas cores vivas renascidas pela mágica provocada por aquilo que os
povos do Semiárido chamam de inverno.
Com frequência percursos de vivências dolorosas eram expressos em canções, livros,
peças teatrais e nas telas de cinema, mostrando o drama da vida levada pelas famílias
sertanejas, especialmente as mulheres, que precisavam percorrer longas distâncias até as
fontes para buscar água para o preparo dos alimentos, o cuidado da casa, das roupas e dos
animais, bem como do quintal e do derredor de casa. No primeiro verso da clássica canção
“Asa branca”, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira cantam: “Quando olhei a terra ardendo,
qual fogueira de São João. Eu perguntei a Deus do céu, por que tamanha judiação”. Os
autores exclamam um clamor dolorido, seguido de uma interrogação por que da seca chegar
e trazer consigo tanto sofrimento.
Por sua vez, Patativa do Assaré (1964) descreve a saga de uma família enxotada do
Nordeste para o Sul do país, no poema “Triste partida”, musicado por Luiz Gonzaga:
“Setembro passou, outubro e novembro. Já tamo em dezembro, meu Deus, que é de nós. Meu
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Deus, meu Deus. Assim fala o pobre, do seco Nordeste. Com medo da peste, da fome feroz.
Ai, ai, ai, ai”. O poeta inicia com o lamento sobre a passagem do tempo e manifesta sua
desesperança porque as chuvas não chegam. Desse modo, ir embora da terra natal, empurrado
pela seca e a falta de meios de sobrevivência, pela negação de direitos como a terra, a água e
aos alimentos, foi, durante muito tempo, a única alternativa encontrada por quem vivia no
sertão nordestino, para tentar melhores condições de vida em outras regiões do país. Conforme
Rios (2001), chegou-se ao extremo que, no Ceará, em 1932, a solução adotada por governantes
foi a ereção de sete campos de concentração para barrar a marcha dos flagelados da seca em
direção à Fortaleza e outras regiões do país. Aí, milhares de retirantes recebiam do governo, a
promessa de comida e assistência médica, mas ficavam encurralados nesses campos e muitos
deles morriam em decorrência da fome e de doenças. Este tema foi amplamente analisado por
Josué de Castro nas décadas de 1930 e seguintes (CASTRO, 2008).
Foi para alterar estruturalmente esse contexto iníquo que, no início deste século,
nasceu um movimento de transformação a partir da mobilização e do protagonismo dos
pobres, especialmente das populações rurais, que fizeram ecoar sua voz por meio de
movimentos e organizações da sociedade civil que se uniram e criaram a Articulação no
Semiárido (ASA), para incidir na realidade e produzir mudanças na vida de milhares de
famílias no Semiárido brasileiro. E a partir da disponibilidade de programas públicos de
acesso à água, transferência de renda, educação contextualizada, assistência técnica e
inclusão produtiva, o povo do sertão levanta a cabeça e canta: “É lindo ver a caatinga
iluminada. É lindo ver a terra toda prateada. E a Via-Láctea brilhando no sertão. É São Tiago
caminhando ao coração” (MALVEZZI, 2007).
1. Direito humano à alimentação e à água no Semiárido brasileiro
O direito humano à alimentação foi consignado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, que afirma que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz
de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação e cuidados médicos” para garantir vida digna (ONU, 2015c, art. 25). Na sequência,
o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), de 1966,
confirmou este direito ao deixar claro que os Estados que ratificaram esse Pacto1 também
1
O Brasil ratificou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em 1992.
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reconheceram “o direito de toda a pessoa a um nível de vida adequado para si e sua família,
inclusive alimentação, vestuário e moradia” (ONU, 2015a, art. 11). No entanto, para avançar
em sua efetivação, em 1999 o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU
(CDESC/ONU) aprovou o Comentário Geral nº 12, que assim define este direito:
O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher
e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e
econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para
sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto, ser
interpretado num sentido estrito ou restritivo, que equaciona em termos de
um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. O
direito à alimentação adequada deverá ser resolvido de maneira
progressiva. No entanto, os estados têm a obrigação precípua de
implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, como
estipulado no parágrafo 2 do artigo 11, mesmo em épocas de desastres,
naturais ou não (ONU, 2015b, § 6º).
No Brasil, após ampla mobilização social, o Congresso Nacional alterou o artigo 6º da
Constituição Federal para introduzir a “alimentação como direito social” (BRASIL, 2011, art.
6º). Com a alimentação como direito social constitucional, definitivamente, dirimiu-se uma
dúvida de interpretação jurídica – especialmente utilizada por aqueles que resistem à
ampliação da realização de direitos que não estejam explicitamente expressos na Constituição
– e se estabelece uma vinculação harmônica entre os instrumentos internacionais de direitos
humanos e a legislação interna na garantia de direitos.
Cabe frisar que tanto a legislação internacional como a brasileira deixam claro que a
alimentação adequada inclui, obrigatoriamente, o acesso à água, de tal forma que sempre
que se fala em direito humano à alimentação adequada se compreende que a água é alimento,
logo, é um direito humano inalienável que se efetiva mediante a garantia do seu acesso e do
acesso aos meios para produzir ou adquirir os alimentos seguros e saudáveis (CONTI, 2013).
O PIDESC (ONU, 2015a, art. 11 e 12) vincula, respectivamente, o direito a um nível de vida
adequado e o direito à saúde ao direito humano à água e à alimentação adequada. Esta
compreensão foi estabelecida pelo Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das
Nações Unidas, em seu Comentário Geral nº 15 (ONU, 2015d), de 2003.
Com base nesses princípios, o mesmo Comitê define que “o direito humano à água é o
direito de todos a dispor de água suficiente, potável, consumível, acessível e a preço razoável
para o uso pessoal e doméstico” (ONU, 2015d, § 2). Outro aspecto a ressaltar é que “a água deve
ser tratada fundamentalmente como um bem social e cultural e não como um bem econômico”
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(ONU, 2015d, § 11), o que significa aceitar que há uma clara hierarquia de escolhas, de modo
que os interesses coletivos devem prevalecer sobre os interesses privados. Ou seja, que nenhum
interesse ou dinâmica econômica pode se sobrepor ao interesse e à dinâmica social e cultural,
conforme tem ocorrido no Semiárido, sendo este um parâmetro objetivo para orientar as políticas
públicas que se constroem e executam em arenas de disputas de interesses. Desse modo, o Estado
brasileiro – União, estados e municípios – é obrigado a realizar ações para garantir a efetivação
dos direitos à alimentação e à água a todos os brasileiros e brasileiras.
Em relação às obrigações do Estado para a garantia do direito à água e à alimentação,
o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas entende que estes
integram os direitos econômicos, sociais e culturais estabelecidos no PIDESC e, por isso,
devem seguir a orientação comum (ONU, 2015a, art. 2º) a todos os direitos nele
estabelecidos e serem realizados de forma progressiva, sem retrocesso na sua garantia. O
Estado tem a obrigação de respeitar, proteger e efetivar o direito à água e à alimentação.
O Brasil possui diversos instrumentos que explicitam que a água é um direito humano
e orientam suas políticas públicas de acesso à água. O principal deles é a lei que regulamenta
o inciso XIX do artigo 21 da Constituição Federal, institui a Política Nacional de Recursos
Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Lei nº
9.433/1997). Esta lei ressalta que “a água é um bem público limitado” e que “em situações
de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação
de animais” (BRASIL, 1997, § 3).
Da mesma forma, existe consistente legislação interna sobre a alimentação. A Lei
Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346/2006) realça que a
“alimentação é um direito humano fundamental inerente à dignidade da pessoa humana e
que cabe ao poder público adotar medidas para promover e garantir a segurança alimentar e
nutricional da população” (BRASIL, 2006, art 2º).
2. Convivência com o Semiárido: um novo jeito de ser, fazer e viver
Procede a afirmação de que emerge um novo jeito de ser, fazer e viver no Semiárido,
cabe destacar que ele emerge com a criação da Articulação no Semiárido e com a construção
de relações sociais de gênero que questionam e ultrapassam os modelos tradicionais e
patriarcais nas formas de organização da produção e de reprodução social. A ASA nasceu a
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partir da articulação de organizações da sociedade civil que já possuíam longa história de
atuação no espaço rural do Semiárido e conheciam suas dificuldades e potencialidades.
Reunidas no Fórum Paralelo da Sociedade Civil, por ocasião da realização da 3ª Conferência
das Partes da Convenção de Combate à Desertificação e à Seca (COP 3), em 1999, na cidade
de Recife - PE, essas organizações tinham como denominador comum a necessidade de se
reinventar e recriar as condições socioeconômicas, políticas e culturais do Semiárido a partir
de uma visão de que ele é viável e possível como um lugar bom de se viver.
Desse modo, esta articulação surgiu baseada na concepção e convicção de que a
coleta e o armazenamento da água de chuva é o mote desse paradigma2 da convivência com
o Semiárido. E nasceu com o objetivo de mobilizar a construção de um milhão de cisternas
de placas para captar água da chuva caída no telhado das casas de igual número de famílias
de agricultores e agricultoras familiares e melhorar as condições de sua soberania e
segurança alimentar e nutricional.
No Semiárido, mesmo em época de estiagem, chove. Mas se essa água não for
recolhida, infiltra, vai embora ou evapora rapidamente pela ação do calor do sol. Conforme
estudos de Schistek (2001, p. 58), considerando-se uma precipitação média de 505
milímetros, “um hectare de terra, recebe mais de 5 milhões de litros de água por ano. Numa
casa de 80 metros quadrados caem 40.400 litros e numa casinha de 40 metros quadrados se
acumulam mais de 20 metros quadrados ou 20.000 litros”.
A iniciativa de construir as cisternas veio contribuir para corrigir esse desperdício
de água, seguido de sua escassez. Com a chegada das cisternas, a discussão sobre a coleta e
o armazenamento da água de chuva entrou na casa e na vida das pessoas, e elas cantam que
o Semiárido vive uma nova situação: “No pé da casa você faz sua cisterna, e guarda a água
que o céu lhe enviou. É dom de Deus, é água limpa é coisa linda. Todo o idoso, o menino e
a menina, podem beber que é água pura e cristalina” (MALVEZZI, 2007).
Ao estimular a implantação de tecnologias sociais e a diversidade de experiências da
agricultura familiar e camponesa, a noção de convivência com o Semiárido propagada pela
ASA se contrapõe à visão de combate à seca, secularmente imperante no Semiárido, que
beneficiou as elites da “indústria da seca”, em detrimento das necessidades das populações
excluídas do sertão. Com tecnologias simples e de baixo custo, que captam e armazenam a
água da chuva e/ou aproveitam águas dos rios e riachos e águas subterrâneas, como: cisterna
2
Ver CONTI e PONTEL (2013, p. 29-40), “Transição paradigmática na convivência com o Semiárido”.
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de placas de dezesseis mil litros (primeira água ou água de consumo), cisterna-calçadão,
cisterna de enxurrada, barreiro trincheira, barragem subterrânea, tanque de pedra ou
caldeirão, bomba d`água popular, barraginha, barragem sucessiva (segunda água ou água
para a produção), a indústria da seca e o combate à seca, aos poucos, são suplantados e o
sertão se transforma em lugar da convivência com o Semiárido.
Esta é uma tarefa difícil e contínua porque implica confrontar um modelo de
desenvolvimento moldado em grandes obras, cujos resultados não chegam aos que fazem a
agricultura familiar e camponesa, que trazem danos sociais e ambientais com as
monoculturas irrigadas, uso intensivo de agrotóxicos, desrespeito à cultura local e destruição
da biodiversidade. Ou seja, implica na desconstrução de imagens secularmente construídas
e difundidas, de um lugar sem perspectivas, órfão de oportunidades, cujas pessoas eram
dependentes e a vida se resumia ao solo rachado pela falta de chuvas, poeira, cactos e
famílias de retirantes da seca. Aos poucos essas ações da ASA se ramificam e frutificam no
meio rural, gerando vida e resgatando a voz de agricultores e agricultoras que se fizeram
reconhecer como sujeitos que se organizam e protagonizam transformações sociais, lutam,
produzem, trocam saberes e experiências e propõem novas formas de vida e organização.
Para operacionalizar a execução de programas e ações a ASA foi estruturada em
articulações estaduais (ASAs Estaduais), municipais (Comissões Municipais) e comunitárias
(Comissões Comunitárias). Essas são integradas por sindicatos de trabalhadores e
trabalhadoras rurais, associações comunitárias, federações de associações comunitárias,
federações estaduais de agricultores e agricultoras, paróquias, dioceses, igrejas protestantes,
organizações não governamentais, grupos e redes de agricultores e agricultoras
agroecológicos. Por meio desses espaços se torna possível alcançar as populações rurais,
mesmo aquelas que residem em lugares distantes e de difícil acesso, mobilizando-as para a
interação na dinamização das tecnologias e em outras atividades que representam reais
melhorias em seus modos de vida.
Especialmente no campo da produção se multiplicam iniciativas como as casas ou
bancos de sementes comunitárias3, os quintais agroflorestais e ações de preservação
ambiental, o trabalho em mutirão, o uso de plantas medicinais, a produção de silagem para
os animais, o incremento da produção de animais de pequeno porte adaptados à região e o
3
Em março de 2015 a ASA firmou um Termo de Parceria (TP 014/2014) com o Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome para implantar 640 bancos comunitários de sementes na região semiárida até fevereiro de
2016, com o objetivo de fomentar a inclusão produtiva de 12,8 mil famílias de agricultores e agricultoras familiares.
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turismo rural. Muitas dessas experiências são compartilhadas em encontros de agricultores
e agricultoras experimentadores, sistematizadas e divulgadas em boletins, banners,
programas de rádio, redes sociais e atividades de intercâmbio. São formas de conhecer novas
técnicas de fazer agricultura, criar animais, armazenar sementes, guardar recursos para
tempos de pouca água, aproveitar os recursos de forma sustentável e que convergem na
ampliação da soberania e da segurança alimentar das famílias. Ao se tornarem guardiãs de
sementes vegetais e animais, adaptadas, as famílias também reforçam seus mecanismos de
resistência diante das investidas dos modelos agroindustriais insustentáveis que ameaçam
seu direito à alimentação adequada, preservando suas características culturais e regionais.
É como parte dessa estratégia de desenvolvimento sustentável que os direitos à
alimentação e à água entram na agenda de trabalho das organizações que integram a ASA e, aos
poucos, passam a fazer parte do cotidiano das famílias que acessam uma ou mais tecnologias
sociais de armazenamento da água. Água humaniza. Água é fonte de vida, sacia a sede,
possibilita a produção de alimentos saudáveis e a criação de pequenos animais no Semiárido.
3. Objetivo
Analisar o processo de construção de políticas públicas de acesso à água no
Semiárido brasileiro.
4. Metodologia
O presente artigo caracteriza-se como um estudo bibliográfico e empírico, tendo
como base o trabalho realizado no Estado do Ceará e o banco de dados da Articulação no
Semiárido (ASA) brasileiro.
Contrapondo as políticas oficiais emerge um jeito de ser, fazer e viver no Semiárido. Os
movimentos e organizações da sociedade civil, que já possuíam longa história de atuação no
espaço rural do Semiárido e conheciam suas dificuldades e potencialidades, uniram-se e criaram a
ASA, incidindo na realidade e produzindo mudanças na vida de milhares de famílias, construindo
relações sociais com novas formas de organização da produção e de reprodução social.
A atuação da entidade viabiliza a instalação de tecnologias de captação e
armazenamento da água de chuva, beneficiando famílias e garantindo o direito ao acesso à
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água para beber e produzir alimentos. Desde sua origem, a ASA participa da formulação e
execução de programas de acesso à água, alguns deles foram institucionalizados como parte
das políticas públicas do Estado brasileiro, como o Programa de Formação e Mobilização
Social para a Convivência com o Semiárido – Programa Um Milhão de Cisternas Rurais
(P1MC), que proporciona às famílias a cisterna para o consumo humano. E o Programa Uma
Terra, Duas Águas (P1+2), que viabiliza tecnologias de armazenamento de água para a
produção e dessedentação animal; além do Programa Cisternas nas Escolas, que garante a
coleta e armazenamento de água para o consumo humano nas escolas rurais.
5. Resultados
A sistematização de experiências incentivadas e desenvolvidas pela ASA, baseada nas
práticas de educação popular, tornou-se um mecanismo eficaz para estimular trocas de
experiências e saberes entre as famílias. As 1.280 experiências já sistematizadas e divulgadas
demonstram que a população está resgatando e promovendo uma diversidade de formas de vida
e ressignificando o que é viver com qualidade e perspectivas de vida no Semiárido brasileiro.
Em 2014, o P1MC alcançou a meta de construção de 750.000 4 cisternas de placas
para água de consumo humano. E até março do mesmo ano o P1+2, iniciado em março de
2007, construiu 25.917 cisternas-calçadão, 8.736 cisternas-enxurrada, 1053 barragens
subterrâneas, 827 tanques de pedra, 6.560 barreiros-trincheira, 1.813 barraginhas e instalou
503 bombas d’água populares comunitárias.
Além destes números está a força da mobilização social em torno do paradigma da
convivência com o Semiárido, cujas populações têm um papel fundamental como partícipes das
mudanças em suas vidas e em suas realidades. Pois, são centenas de milhares de pessoas,
especialmente mulheres, que deixaram para trás a sina de gastar algumas horas por dia para carregar
pesadas latas de água sobre suas cabeças para garantir seu pão de cada dia. Hoje elas podem gastar
esse tempo em atividades que lhes trazem maior retorno e realização pessoal e familiar.
A desigualdade de oportunidades para a participação das mulheres em atividades que
não sejam aquelas “naturalizadas” como suas responsabilidades ou “tarefas de mulher”
4
A estas, somam-se outras mais de 300 mil cisternas de polietileno implantadas em parceria entre os governos
federal e estaduais. A ASA mantém posição contrária à adoção dessas cisternas, tanto pela qualidade do produto
utilizado (polietileno) como pela metodologia empregada em sua implantação, pois não favorece a participação
e o protagonismo social das famílias que as recebem passivamente.
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precisa ser continuamente refletida e discutida por elas, a partir delas e com os homens, para
alterar as estruturas geradoras dessas relações entre mulheres e homens e na sociedade. Pois,
muitas vezes ainda prevalece a visão de que o que é feito por elas é sua obrigação e o que é
feito pelos homens é trabalho produtivo e, por isso, reconhecido e valorizado. Arantes
menciona o trabalho doméstico como “não percebido como trabalho (muitas vezes por elas
próprias), trabalho não remunerado, desvalorizado, trabalho de mulher, trabalho que não as
coloca no caminho da humanidade” (2010, p. 110). Visões desse quilate, resultantes da
herança patriarcal e machista, reforçam desigualdades nas relações entre homens e mulheres,
tanto em tempos de escassez de recursos quanto de fartura na mesa e no paiol.
Ao longo da realização de cursos de capacitação em Gerenciamento de Recursos
Hídricos, Gestão de Água para a Produção de Alimentos e de Sistema Simplificado de
Manejo da Água, ao receberem seus certificados, algumas participantes comentaram com
alegria que foi a primeira vez na vida que receberam um “diploma”. Porém, aos poucos as
condições do viver no sertão estão mudando. Segundo Arantes (2010, p. 114):
Na roda que gira, as mulheres dos sertões estão em movimento de
mudança, em resistência, inventando novos jeitos de estar no mundo,
transformando o produzir e o consumir em ato político. São elas as novas
proprietárias de suas moradas; as responsáveis formais pela gestão dos
benefícios dos programas de transferência de renda. É em nome delas que
se consolidam parte das justificativas das novas tecnologias aplicadas nos
sertões e das iniciativas públicas que se colocam como alternativas ao
desenvolvimento nessa região. Foi o modo como ocupam o mundo que
também se somou à construção da “convivência com o semiárido”, um
novo jeito de ser, fazer e viver nos sertões, que transformou escassez em
sustento e o que antes era sinal de morte, em vida.
Entretanto, além dos entraves que não podem ser ignorados, é notória a participação
de mulheres e homens na adoção de diferentes estratégias que visam fortalecer o acesso à
água e à segurança alimentar e nutricional no Semiárido. Elas e eles se tornam líderes de
comunidades, integram comissões, mobilizam pessoas para participarem de reuniões e
cursos de capacitação e, em alguns casos, elas mesmas se tornam cisterneiras e construtoras
de saberes e processos que ultrapassam a dimensão da cozinha e alcançam o mundo,
externalizando sua emancipação social.
Ao romper com os “territórios femininos”, as mulheres exercem um papel relevante
na organização sociopolítica e na produção de alimentos para suas famílias e para a
comercialização nas feiras. Entre as estratégias de incremento à produção sustentável de
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alimentos saudáveis encontra-se o cuidado das sementes, por meio da difusão das casas ou
bancos de sementes comunitários. Eles são mecanismos de proteção e preservação da
diversidade do patrimônio genético vegetal do Semiárido, contra a invasão das sementes
transgênicas e a erosão genética vegetal que ameaçam a soberania alimentar da população.
Muitas mulheres participam de grupos organizados de bancos de sementes, como
geradoras, cuidadoras e multiplicadoras das sementes da vida, que por sua vez fortalecem
sua autonomia e a soberania e segurança alimentar e nutricional das famílias. Entretanto,
necessita-se avançar para que esse cuidado seja cada vez mais discutido e assumido por toda
sociedade, sendo primordial reconhecer e valorizar os conhecimentos e as experiências
historicamente construídas pelas mulheres no cotidiano do campo da alimentação, mas
também é preciso lutar para fazer com que as questões da alimentação sejam preocupações
de toda a sociedade e não permaneçam restritas apenas às mulheres (SILIPRANDI, 2003).
Considerações Finais
A introdução de um conjunto de políticas e programas de acesso à água, à terra, à
alimentação, com transferência de renda, democratização de informações e assistência
técnica para a produção agroecológica resulta, não só na produção e ingestão de alimentos
saudáveis para a segurança alimentar e nutricional, mas também no crescimento da
autoestima e do senso de pertencimento da população a essa região que historicamente foi
ignorada pelas políticas públicas. A valorização da agricultura familiar, a busca de igualdade
de gênero, a necessidade de valorização da mulher e a redefinição do seu papel junto à
família e/ou sociedade, os conflitos advindos diante dessa nova mulher, e o reconhecimento
das experiências e saberes do povo, com a preservação dos recursos naturais da
biodiversidade, a comida na mesa e água na cisterna, configuram um novo jeito de ser, fazer
e conviver com o Semiárido a partir do protagonismo de seu povo.
Nas duas últimas décadas o Semiárido brasileiro vem passando por grandes
transformações em termos de acesso à água e à alimentação. E percebê-las significa reconhecer a
força e a criatividade de seu povo, que, por meio de uma diversidade de organizações e
movimentos sociais, está criando formas sustentáveis de convivência, baseadas no respeito às
relações de gênero e na diversidade ambiental, social, econômica e cultural de sua população.
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Para tanto, uma das estratégias a serem fortalecidas em cada município e comunidade é
a discussão sobre a importância e a necessidade de se consolidar o Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), tendo a agricultura familiar agroecológica como
um elemento integrante, para garantir de forma efetiva e permanente o acesso à água e a
soberania e segurança alimentar da população do Semiárido. Os programas públicos são
importantes, mas é preciso avançar em sua articulação e institucionalização para que se
transformem em políticas permanentes, implementadas pelo poder público e com a participação
ativa da sociedade civil, para garantir vida digna a todas as populações do Semiárido.
Apesar dos enormes avanços ocorridos ao longo dos últimos anos, ainda permanecem
desafios para que as políticas públicas efetivamente universalizem o acesso à água e realizem
o direito humano à alimentação e segurança alimentar e nutricional do povo do sertão como
sujeito de sua história. A consolidação do SISAN facilitará a garantia políticas públicas
destinadas aos reais interesses das comunidades.
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O SANEAMENTO AMBIENTAL DE ORIXIMINÁ (PA): UM ESTUDO DE CASO
SOBRE SANEAMENTO AMBIENTAL, VULNERABILIDADE E OS DIREITOS
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Alessandra Dale Giacomin Terra
Professora da UFRJ e Mestre pelo PPGSD/UFF.
Jamille Medeiros de Souza
Professora da FGV- Rio e Doutoranda do PPGSD/UFF.
Bárbara Terra Queiroz
Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UVV e Bolsista de Iniciação Científica pela FAPES.
Resumo: A presente pesquisa tem por tema o Saneamento Ambiental do Município de Oriximiná,
município paraense situado na região da Amazônia brasileira. A questão sanitária oriximinaense se
mostra preocupante por sua precariedade e deficiência, o resultado disso é que os índices de mortalidade
infantil, em decorrência de doenças infecto-parasitarias, são alarmantes. Para desenvolvê-la
primeiramente, traçamos um breve panorama do saneamento ambiental de oriximanaense, à luz da
Justiça ambiental. Em seguida, buscamos levantar um breve histórico a respeito do Saneamento
Ambiental brasileiro, principalmente no que se refere ao Plano Nacional de Saneamento (PLANASA),
tentando refletir sobre outras questões que contribuem para a precariedade do Esgotamento Sanitário
no Brasil, a fim de desmitificar o problema de saneamento ser apenas decorrente da falta de recursos
financeiros e sim fruto da falta de planejamento e da mercantilização de um serviço tão essencial para
a consecução de direitos humanos. Por fim, analisou-se como a ausência de tais políticas públicas
afronta a legislação relativa aos direitos da criança e do adolescente, apesar dos mesmos serem
reconhecidos pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Palavras-chave: urbanismo; saneamento ambiental; direitos da criança e do adolescente.
Abstract: This research theme is Environmental Sanitation of the Municipality of Oriximiná,
municipality located in the state of Pará, a brazilian Amazon region. The health issue of Oriximiná is
worrying because of its precariousness and disability, resulting in infant mortality due to infectious and
parasitic diseases are alarming. To develop this research, first we draw a brief overview of
environmental sanitation of this city, in the light of environmental justice. Then we seek to raise a brief
history about the Brazilian Environmental Sanitation, especially with regard to the National Sanitation
Plan (PLANASA, in portuguese, Plano Nacional de Saneamento). We try to reflect on other issues that
contribute to the precariousness of sanitary sewage in Brazil in order to demystify the sanitation
problem as only due to the lack of financial resources, as also the result of poor planning and a
commodification of such an essential service achievement of human rights. Finally, it was examined
how the absence of such public policies confront the legislation on child and adolescent rights, despite
they are recognized by the Constitution and the Statute of the Child and Adolescent (ECA).
Keywords: urban planning; environmental sanitation; rights of children and adolescentes.
Introdução
O presente artigo se trata de um estudo de caso a respeito do Saneamento Ambiental
do Município de Oriximiná, município paraense situado na Mesorregião do Baixo
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Amazonas, que possui uma área de 107.602 km² e cerca de 62.794 habitantes, segundo o
Censo de 2010. Para tanto, esta investigação utilizou-se da pesquisa empírica para a análise
da situação do saneamento ambiental orximinanese, com visitas in loco, análise de
documentos e estudos técnicos, além de basear-se na bibliografia básica sobre o tema.
A questão sanitária oriximanense se mostra preocupante por sua precariedade e deficiência.
Contudo, isto não é um problema restrito a Oriximiná. Conforme o relatório "Progressos sobre
Saneamento e Água Potável” (2010), elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mais
de 2,6 bilhões de pessoas, ou seja, quase 40% da população mundial, carecem de saneamento básico
e mais de um bilhão continuam a usar fontes de água impróprias para o consumo.
A falta de infraestrutura sanitarista mundial é tamanha, que quatro em cada dez
pessoas no mundo carecem de acesso a uma simples latrina de fossa não-asséptica, e são
obrigadas a defecar a céu aberto, e quase 20% da população mundial, ou seja, mais de um
bilhão de pessoas, não têm nenhuma fonte de água potável segura. As consequências disto
são preocupantes: cerca de cinco milhões de pessoas, na sua maioria crianças, morrem todos
os anos de doenças relacionadas à qualidade da água.
Esses dados mostram-se alarmantes, uma vez que a falta de esgotamento sanitário
adequado constitui uma das principais causas de contaminação do solo e das fontes de água,
contribuindo também para uma proliferação de doenças infecto-parasitárias. O saneamento
ambiental, portanto, está ligado não só ao controle da poluição e preservação do meio
ambiente, como também à saúde pública. Reflexo disso são os alarmantes índices de
mortalidade infantil em razão de doenças infecto parasitárias.
Nesse contexto, o presente artigo visou analisar a grave problemática social
decorrente da precariedade do saneamento ambiental em tal município da Amazônia
brasileira, buscando refletir sobre como isso atinge diretamente (e muitas vezes fatalmente)
um determinado grupo social, ou seja, as crianças e adolescentes do município, que devido
a sua vulnerabilidade física e sócio-econômica têm violados seus direitos fundamentais
garantidos pela legislação pátria e por tratados internacionais.
1. O saneamento ambiental de oriximiná
Em Oriximiná, a Companhia de Saneamento do Pará (COSANPA) presta apenas
serviço público de fornecimento de água, uma vez que não há esgotamento sanitário. Em seu
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portal eletrônico, a referida concessionária informa que atende cerca de 23.084 pessoas (74%
da população oriximinaense), e que o atendimento de esgoto é de 0%, funcionando
basicamente por meio de fossas individuais.
Segundo o Relatório Dinâmico dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM), em Oriximiná, em 2010, 36,7% dos moradores tinham acesso à rede de água geral
com canalização em pelo menos um cômodo e 34,5% possuíam formas de esgotamento
sanitário consideradas adequadas.
Conforme as informações do Plano Diretor do Município de Oriximiná (2007), na
zona urbana, o abastecimento de água realizado pela COSANPA, no entanto, em sua maioria
esse é irregular, ocasionando com isso, a necessidade da população armazenar água em
reservatórios inadequados, visando o consumo e utilização.
O estudo realizado durante a elaboração do plano diretor destacou ainda, que a Estação de
Tratamento de Água (ETA), por insuficiência de investimentos, não sofria manutenção ao longo
de vários anos, bem como a rede de distribuição, tornando-as obsoletas e passíveis de
contaminação, e que os Microssistemas de Abastecimento gerenciados pelo município (cerca de
60% da rede e apenas 20% de percentual de fornecimento) estariam dispostos nas áreas periféricas,
conduzindo ao fornecimento de água nas áreas não contempladas pela rede da COSANPA.
Os microssistemas também possuem irregularidades no fornecimento, sendo que
além de não atenderem a demanda, não realizam tratamento de água, só captação e
distribuição. O Tratamento de Água é um conjunto de procedimentos físicos e químicos que
são aplicados na água para que esta fique em condições adequadas para o consumo, ou seja,
para que a água se torne potável. Assim, não basta que haja canalização de água, é
impreterível o tratamento a fim de possibilitar salubridade aos consumidores.
Conforme Stela de Souza Santos, que avaliou a qualidade da água por meio de análise
físico-química e microbiológicas das amostras dos sistemas de abastecimento de água do
município (dentro da área urbana):
O município possui vários sistemas de abastecimento de água: na zona
urbana um sistema de abastecimento convencional (COSANPA), 12 (doze)
micro-sistemas, abastecimento por carro-pipa e poços individuais e na
zona rural 3 sistemas de abastecimento convencionais (Mineração Rio do
Norte), centenas de miro- sistemas e centenas de poços individuais1.
1
SANTOS, Stela Souza. Diagnóstico da qualidade das águas para consumo humano da zona urbana do
município de Oriximiná-PA. UFLA. Larvas-MG. 2005.
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Este estudo concluiu que os parâmetros de turbidez estavam dentro dos padrões de
potabilidade, exceto em certas épocas do ano em que os índices chegam a 28UT (enquanto a
FUNASA estabelece que para fins de potabilidade a turbidez deve ser inferior a 5); baixo índice
de cloração da água; alto índice de coliformes totais na maioria dos micro-sistemas; PH com
índices médios de 3,2 a 5,66 nos Micro-sistemas e 5,41 na ETA da CONSANPA, enquanto a
FUNASA prevê como ideal o pH de 6,0 a 9,5, havendo, portanto a necessidade de correção2.
Nas Estações de Tratamento de Água, o processo ocorre em sete etapas, mas, na ETA de
Oriximiná, nem todas essas fases são realizadas, o que pode comprometer a qualidade da água3.
Legenda: Estação de Tratamento da COSANPA em Oriximiná (PA), Fotos de Alessandra Terra.
Além disso, conforme o próprio diagnóstico aponta, a água fornecida por meio dos
micro-sistemas não recebem tratamento, exceto a aplicação de hipoclorito, fornecido pelos
agentes comunitários de Saúde e que seria supostamente aplicado pela própria população, o
que não ocorre no dia a dia.
2
SANTOS, Stela Souza. Diagnóstico da qualidade das águas para consumo humano da zona urbana do
município de Oriximiná-PA. UFLA. Larvas-MG. 2005.
3
A primeira fase é a Coagulação. Nela a água, em sua forma natural (bruta), entra na ETA, e recebe, nos tanques, uma
determina quantidade de sulfato de alumínio. Esta substância serve para aglomerar (juntar) partículas sólidas que se
encontram na água como, por exemplo, a argila. Na visita realizada na ETA, fomos informadas que o sulfato de alumínio
havia acabado, e que não havia previsão de quando o produto seria enviado. Na segunda etapa, a Floculação, as partículas
sólidas se aglutinam em flocos maiores em tanques de concreto com a água em movimento. Essa etapa não ocorre em
Oriximiná. Na Decantação, em outros tanques, por ação da gravidade, os flocos com as impurezas e partículas ficam
depositados no fundo dos tanques, separando-se da água. No momento da visita ao ETA, o aparelho estava quebrado, sem
previsão de conserto. Na Filtração – a água passa por filtros formados por carvão, areia e pedras de diversos tamanhos.
Nesta etapa, as impurezas de tamanho pequeno ficam retidas no filtro. Contudo, durante a visita observou-se na ETA que
os filtros estavam sujos, tendo em vista que a água estava com uma coloração barrosa. Na Desinfecção é aplicado na água
cloro ou ozônio para eliminar microorganismos causadores de doenças. Conforme funcionário da ETA, não há medição
para a aplicação do cloro, que pode ser aplicado em demasia ou de forma insuficiente, o que pode ser prejudicial para o
organismo humano. Na fase da Correção de PH é aplicada na água certa quantidade de cal hidratada ou carbonato de sódio.
Esse procedimento serve para corrigir o PH da água e preservar a rede de encanamentos de distribuição. Essa fase também
não estava ocorrendo na ETA do referido município por falta do insumo.
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Um funcionário da CONSANPA entrevistado afirmou que:
Ah eu não entendo muito destas coisas não. Eu sou só o zelador da ETA. Eu fico
só aqui vigiando e coloco o cloro e o cal, mas o cal acabou faz tempo, deve ter
uns quatro messes já. [...] Ah não tem como medir [a quantidade de cloro] não.
Coloco de cabeça. Na verdade isso aqui tá meio abandonado sabe? Aquele
aparelho ali tá quebrado faz tempo [apontando para o decantador] e o filtro deve
tá sujo. A água tá amarela, tá vendo? [...] Ah, mas isso não tem problema não.
A água tá tratada. Tá boa de beber. O que num pode é aquilo ali. Todo dia vem
um aqui encher o galão de água Ai pega aquela mangueira e enche. Aquela água
é de quando chega aqui. Num tá tratada inda não. Ai eles pega e bebe. Por isso
que o povo reclama da água. Mas a água que sai daqui é boa [sic].
Em relação ao lixo, segundo dados do Censo de 2010, 50,2 % do lixo da área urbana é
coletado, 38,0% é queimado (na propriedade), 9,2% é jogado e 2,1% é enterrado (na propriedade).
Conforme o Plano Diretor, no município a coleta de lixo doméstico, vegetal e de entulhos é
diferenciada. Em três bairros centrais ou parte deles a coleta é realizada diariamente, em cinco outros
bairros ou parte deles, é realizada 2 (duas) vezes por semana, em 4 (quatro) outros bairros a coleta é
realizada 1 (uma) vez por semana, e, em 3 (três) bairros de ocupação irregular não há coleta de lixo.
O lixo doméstico coletado no município é depositado em um “Lixão”, que consiste no
lançamento de resíduos sólidos ou rejeitos in natura a céu aberto, sem qualquer tratamento, o que
é vedado pelo Art. 47, inciso II da Lei 12.305/2010 (Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos).
Trata-se de um grave problema ambiental, uma vez que o lixo em decomposição atrai
animais como ratos, baratas e moscas, que auxiliam na proliferação de doenças, e produz o
chorume, substância que contamina o solo e a água. Além disso, o lixão envolve uma séria
questão social, uma vez que diversas famílias vivem no entorno do lixão.
Legenda: Lixão, Foto de Alessandra Terra.
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Em relação ao sistema de esgoto e de drenagem e manejo de águas pluviais, convém
destacar que Oriximiná não possui serviço de esgotamento sanitário. Na sede do município,
a maioria das casas possuem fossas próprias, das quais 14,2% são fossas sépticas, 71, 2%
rudimentar, 3,1% valas e 0,1 despeja diretamente no rio, 3,3% não tem qualquer tipo de
esgotamento sanitário conforme os dados do IBGE (Censo de 2010).
A fossa funciona como medida simplória a fim de evitar o despejo de esgoto “in
natura” nas vias públicas, mas ainda é uma técnica muito arcaica e que pode ser danosa ao
meio ambiente e à Saúde pública, caso ocorra contaminação do solo e dos lençóis freáticos.
O esgotamento caseiro oriximanense conta ainda com redes de encanamento que correm
das residências rumo às vias públicas, cuja função é escoar os resíduos provenientes de pias e
tanques, enquanto os resíduos de banheiros iriam para as fossas. Esses dutos escoam em “valas”
que existem entre as calçadas e as ruas, e que posteriormente deságuam no Rio Trombetas.
Além dessa função, estes dutos também servem para a drenagem das águas pluviais.
Diversos relatos afirmam, contudo, que esta drenagem é insuficiente durante o período de
chuvas, sendo comuns enchentes na área urbana. E são nestes períodos que as valas se
tornam perigosas. Conforme Sr. José Francisco da Silva:
Ah, todo ano enche aqui tudo. Ai isso vira um perigo, sabe? A água sobe e aí
num dá pra vê a vala. Tem que ficar muito esperto. Até eu já cai uma vez... Ano
passado um menino caiu ali e morreu afogado. Divia ter uns três anos só. Triste.
Mostra-se oportuno, destacar que estes espaços, além de perigosos, também
comprometem acessibilidade, principalmente de crianças, idosos e pessoas com dificuldade
de locomoção, numa localidade que já é problemática, em razão de ter uma topografia
marcada por ladeiras e morros.
O esgotamento sanitário é um direito do cidadão a ser garantido pelo Estado,
consubstanciando um serviço público essencial cuja execução pode ser prestada diretamente pela
administração pública ou pode ser delegada a iniciativa privada mediante concessão ou permissão.
Contudo, Ana Paula Barcelos entende que, apesar do saneamento ser um direito
fundamental e de compor o mínimo existencial, não seria possível ao judiciário determinar
que o Poder Executivo implementasse a infraestrutura básica necessária para a prestação de
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tal serviço. Somente seria possível a inclusão desse elemento no orçamento seguinte, pois
caberia ao administrador público a escolha de como prestar tal serviço4.
2. A injustiça ambiental envolvendo o saneamento ambiental brasileiro
A história do Saneamento Ambiental brasileiro está diretamente ligada ao Plano
Nacional de Saneamento (PLANASA). Criado em 1969, no contexto da Ditadura Militar, o
PLANASA destinava recursos para os estados criarem suas próprias companhias de
saneamento. Para obter o financiamento, cada estado da federação deveria criar, com base
em seus recursos orçamentários, um Fundo de Financiamento para Águas e Esgotos (FAE)
e uma companhia estadual de saneamento.
Com o PLANASA foram criadas as Companhias Estaduais de Saneamento Básico
(CESBs) em cada um dos estados da federação. Contudo, para que as CESBs pudessem
operar em seus respectivos estados, foi necessária a concessão municipal para a exploração
dos serviços, através de contratos de longo prazo, porque a Constituição já estabelecia que
o poder da concessão dos serviços públicos de saneamento pertence ao município.
Com este Plano privilegiou-se investimentos nas regiões mais ricas do Sul e Sudeste
do país, e no serviço de fornecimento de água, visto que este representa menores custos e
propicia retornos mais rápidos através de tarifas.
Conforme o relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Secretaria de Planejamento
e Investimentos Estratégicos (IPEA), há uma grande disparidade entre as regiões do país em
relação ao saneamento ambiental: enquanto o Sudeste e o Sul, as regiões mais ricas do país,
apresentam níveis próximos de 90% e 80%, respectivamente, o Nordeste e no Norte, as regiões
mais pobres, a proporção chega a cerca de 60% e 40%, respectivamente.
O referido estudo do IPEA relaciona esses elevados déficits de saneamento observados em
municípios do Norte e do Nordeste com as elevadas taxas de mortalidade infantil dessas regiões.
Oriximiná não é uma exceção a esta regra, possuindo sérias deficiências sanitárias,
que resultam as condições favoráveis ao desenvolvimento de doenças de veiculação hídrica,
que acometem principalmente crianças.
4
Barcelos, Ana Paula. O direito a prestações de saúde: complexidades, mínimo existencial e o valor das abordagens
coletiva e abstrata. Revista da Defensoria Pública de São Paulo. Ano 1, n. 1, jul. 2008. p. 131-160.
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O Município apresenta elevadíssimos índices de mortalidade infantil e de doenças
decorrentes de parasitoses e zoonoses, provavelmente em razão da precária política
sanitarista da cidade, já que diversas doenças decorrem da má qualidade da água e da falta
de esgotamento sanitário, como hepatite A, dengue, cólera, diarreia, leptospirose, febre
tifoide e paratifoide, esquistossomose, infecções intestinais, dentre outras.
Segundo os dados do SIH/SUS (Situação da base de dados nacional em 03.05.2010),
a porcentagem de morbidade hospitalar decorrente de doenças infecto-parasitárias (divididas
por faixa etária), seria de:
Menor 1 1 a 4 5 a 9 10 a 14 15 a 19 20 a 49 50 a 64 65 e mais 60 e mais Total
20,3
33,1
26,9
12,0
3,5
3,7
8,5
11,2
9,4
10,0
Desta forma, verifica-se que 20,3% das crianças menores de um ano com atendimento
médico morrem vítimas de doenças infecto-parasitárias, enquanto a taxa de mortalidade é de
33,1% para crianças de 1 a 4 anos e de 26,9 % para os menores com idade de 5 a 9 anos.
A Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), realizada entre os anos de 2000
e 2008, mostrou que 134 cidades paraenses continuavam sem ter sistema de esgotamento
sanitário em 2008. Em 78 delas a solução alternativa ainda era feita por fossas sépticas e
sumidouros. Em outros 53 municípios a população utilizava fossas rudimentares.
Outrossim, cumpre aqui refletir sobre esse processo de mercantilização do serviço de
saneamento básico no Brasil. Notamos que, ao orientar as políticas públicas por uma lógica
de mercado caracterizada pela busca por lucro e retorno de investimentos, o Estado permitiu
uma transmutação de um serviço tão essencial em mais uma mercadoria, cujo acesso e
distribuição são condicionados ao interesse do setor privado.
A busca pela acumulação de capital imposta pelo modelo capitalista vem resultando
em uma Mercantilização em todas as esferas da vida, escanteando para um segundo plano a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, a preocupação com a saúde e o meio ambiente, e
a própria vida humana. Esta lógica mercantil tem feito preponderar uma preocupação maior
pelo lucro do que com a vida e com o ser humano.
Na Declaração de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, a injustiça
ambiental foi destacada como característica do modelo de desenvolvimento dominante no Brasil.
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O movimento da Justiça Ambiental surgiu nos EUA, na década de 1960, como um
movimento em busca da defesa de direitos civis, ou melhor, tal como nos descreve Herculano,
a partir de experiências dos movimentos sociais, das lutas dos cidadãos pobres e etnias
socialmente vulneráveis e discriminadas, quanto à sua maior exposição aos riscos ambientais5.
Robert Bullard apud Herculano conceitua Justiça Ambiental como:
[...] a busca do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas as
pessoas, independentemente de sua raça, cor, origem ou renda no que diz
respeito à elaboração, desenvolvimento, implementação e reforço de políticas,
leis e regulações ambientais. Por tratamento justo entenda-se que nenhum
grupo de pessoas, incluindo-se aí grupos étnicos, raciais ou de classe, deva
suportar uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas
resultantes de operações industriais, comerciais e municipais, da execução de
políticas e programas federais, estaduais, locais ou tribais, bem como das
consequências resultantes da ausência ou omissão destas políticas6.
Deste modo, a Justiça Ambiental defende um tratamento justo e igualitário nas
decisões sobre acesso, ocupação e uso dos recursos ambientais dos grupos sociais
independente de sua etnia, origem, renda cor.
No caso em tela, nota-se uma forma de tratamento diferenciado a toda uma população
localizada em uma região sócio-política, razão pela qual entendemos ser oportuno refletir
sobre o tema a partir da perspectiva da Justiça Ambiental, e que convém destacar o seguinte
fragmento da Declaração de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental:
Estamos convencidos de que a injustiça ambiental resulta da lógica
perversa de um sistema de produção, de ocupação do solo, de destruição
de ecossistemas, de alocação espacial de processos poluentes, que penaliza
as condições de saúde da população trabalhadora, moradora de bairros
pobres e excluída pelos grandes projetos de desenvolvimento. Uma lógica
que mantém grandes parcelas da população às margens das cidades e da
cidadania, sem água potável, coleta adequada de lixo e tratamento de
esgoto. Uma lógica que permite que grandes empresas lucrem com a
imposição de riscos ambientais e sanitários aos grupos que, embora
majoritários, por serem pobres, têm menos poder de se fazer ouvir na
sociedade e, sobretudo, nas esferas do poder.
5
HERCULANO, S. O clamor da justiça ambiental e contra o racismo ambiental. InterfacEHS - Revista de
Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Ambiente, v. 3 n. 1, p. 2.
6
Herculano, Selene. Resenhando o debate sobre Justiça Ambiental: produção Teórica, breve acervo de casos e criação
da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Desenvolvimento e Meio Ambiente – riscos coletivos – ambiente e saúde, n.
5, 2002. Curitiba: Editora UFPR. Co-edição com a Revista Natures, Sciences, Sociétes, p. 144.
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3. Da vulnerabilidade das crianças oriximanense em contraposição com o sistema
protetivo de Direitos da Criança e do Adolescente pós Constituição de 1988
Importante destacar que a partir da Constituição de 1988, e posteriormente com a
edição do ECA, houve uma mudança de paradigma passando a viger no Brasil a doutrina da
proteção integral, que além de reconhecer as crianças e os adolescentes como sujeitos de
direitos e deveres, destacou os mesmos como titulares de direitos subjetivos oponíveis ao
Estado e merecedoras de especial tutela deste, devido a sua delicada condição de pessoa em
desenvolvimento. Desta forma, a partir da nova ordem constitucional as crianças e
adolescentes passaram a condição de sujeitos de direito, beneficiários e destinatários
imediatos da doutrina da proteção integral, deixando de ser meros objetos de proteção7.
A Carta Magna garantiu, além dos mesmos direitos fundamentais garantidos a todos
os cidadãos, outros direitos, em razão da delicada condição de pessoa em desenvolvimento,
isto é, em processo de formação psíquica, mental e física. Foram assim reconhecidos direitos
especiais e específicos a todas as crianças e adolescentes8.
A Constituição de 1988 também estabeleceu que era dever do Estado e da sociedade
zelar pela efetivação de direitos fundamentais da criança e do adolescente, garantindo a estes
absoluta prioridade no art. 227. Tal princípio é reproduzido no ECA nos artigos 4º art. 100,
parágrafo único, inciso, II, e estabelece a preferência na formulação e na execução das
políticas sociais públicas, além da destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Conforme Amin o referido princípio:
Estabelece a primazia em favor de crianças e dos adolescentes em todas as
esferas de interesse. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo,
social ou familiar, o interesse infanto-juvenil deve preponderar. Não
comporta indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em
primeiro lugar, já que a escolha foi realizada pela nação por meio do
legislador constituinte [...].
Ressalte-se que a prioridade tem um objetivo bem claro: realizar a proteção
integral, assegurando primazia que facilitará a concretização dos direitos
fundamentais enumerados no art. 227. Caput, da Constituição da República
e renumerados no caput, do art. 4 do ECA.
7
Amin, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In MACIEL, Kátia
Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 8ª
ed. Saraiva, São Paulo, 2015.
8
ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente. Doutrina e Jurisprudência. Atlas, São Paulo, 2014.
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Mais. Leva em conta a condição de pessoa em desenvolvimento, pois a
criança e o adolescente possuem uma fragilidade peculiar de pessoa em
formação, correndo mais riscos que um adulto por exemplo9.
Assim cabe ao Executivo destinar recursos para promoção de direitos e interesses das
crianças e adolescentes, de modo a não se mostrar razoável a alegação de insuficiência de
recursos ou ausência de previsão orçamentária para a adoção das medidas necessárias a
promoção e defesa dos direitos infanto-juvenis.
Desta forma, ainda que pese de forma majoritária o entendimento defendido por Ana
Paula de Barcelos, no sentido de não ser cabível a judicialização da problemática da ausência
de saneamento ambiental a fim de obrigar o executivo a realizar a implementação do sistema
de saneamento, no caso em tela, por envolver de forma expressiva a violação aos direitos
mais basilares da criança e do adolescentes que moram no município, como o direito a vida,
a saúde e a dignidade, não se mostra razoável à luz de uma interpretação sistemática do texto
constitucional e do ECA, que não possa o Judiciário determinar que a administração pública
tome medidas basilares.
O próprio ECA estabelece ainda no Art. 7º que a criança e o adolescente têm direito
a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam
seu nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Considerações Finais
No caso concreto vimos, como que os efeitos nocivos da inércia estatal em
implementar, realizar ou fiscalizar as concessionárias responsáveis por este serviço público
são muitos e atingem de forma ainda mais perniciosa as crianças e adolescentes. A
danosidade de tal problemática é evidenciada pelos altos índices de mortalidade do
município, o que acaba por significar uma afronta às garantias e direitos fundamentais
previstos na Constituição e no ECA.
No presente artigo discutimos que em razão da mercantilização do serviço de saneamento
ambiental no Brasil, este é prestado de forma extremamente díspar no território nacional. O reflexo
9
Amin, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In MACIEL, Kátia
Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 8ª
ed. Saraiva, São Paulo, 2015. p. 62.
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das condições precárias do saneamento ambiental que caracterizam algumas regiões do país tem
reflexos não só ambientais, mas também no âmbito da saúde pública.
O município de Oriximiná é um exemplo disso. A carência de uma infraestrutura
básica de saneamento ambiental acaba por refletir em alto s índices de veiculação de doenças
infecto-parasitárias, que atingem de forma mais contundente às crianças do município,
conforme os altos índices de mortalidade infantil supracitados.
Refletindo sobre esta problemática, analisou-se bibliografia de Justiça Ambiental,
movimento, que ao aproximar a discussão social da ambiental, explicita que há uma desigual
distribuição entre acesso, uso dos recursos e dos danos ambientais. Por fim, concluiu-se que
apesar de envolver os princípios da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde;
de ser um tema importante no que tange à saúde pública e à mortalidade infantil; de ter
destaque no que se refere à questão ambiental; de ser uma preocupação crescente da opinião
pública, e da existência de diversas normas de proteção à criança e adolescente, o
saneamento ambiental ainda figura timidamente na pauta de políticas públicas.
Assim, destacou-se que apesar da existência de todo um sistema protetivo, ainda há
uma situação de vulnerabilidade das crianças localizadas em municípios sem saneamento
ambiental adequado, cujos direitos acabam por não encontrar efetividade em razão da inércia
estatal. Em razão disso, defende-se nesta pesquisa a possibilidade da judicialização da
questão, a fim de que seja o Executivo compelido a implementar o saneamento ambiental.
Referências
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AMIN, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do direito da criança e do adolescente. In
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PROJEÇÕES DO AGORA E RELATOS DO PORVIR: REPRESENTAÇÕES E
IMAGINÁRIOS SOCIAIS SOBRE A CHEGADA DE UM PROJETO DE GRANDE
ESCALA EM LINHARES-ES
Bruno Curtis Weber
PPGCS/UFES
Resumo: Em 2011 o governo do Espírito Santo anunciou um dos maiores investimentos da história
do estado: R$6,7bi provenientes da Petrobrás, a serem investidos na região de Palhal, município de
Linhares-ES. O empreendimento consistirá em um complexo industrial para produção de derivados
do gás natural, compreendendo estruturas extramuros como uma adutora de água desde o Rio Doce,
redes de alta tensão e um gasoduto até o porto mais próximo. Ocorre que os investimentos estão
suspensos desde 2013 e as atividades de instalação sequer foram iniciadas. No intuito de avaliar as
transformações já desencadeadas naquela comunidade ante a iminência da chegada do
empreendimento, torna-se imperativa uma compreensão das representações sociais e do imaginário
social ali engendrados e que, por seu turno, engendram as referidas transformações. Buscar-se-á
apreender, através de entrevistas aprofundadas e da “objetivação participante”, as mudanças
percebidas pelos habitantes de Palhal desde a circulação de informações imprecisas quanto ao futuro
dos investimentos, e, especialmente, as projeções que fazem para a comunidade assentados na
contingência da efetivação do empreendimento.
Palavras-chave: Petrobrás; Estado do Espírito Santo; megaempreendimento; imaginário social.
Abstract: In 2011 Espírito Santo’s government announced one of the biggest investments in the
state’s history: R$6,7bi from Petrobras, to be invested in Palhal, rural area of Linhares city. The
project consists in an industrial complex for production of by-products of natural gas, including offsite structures, like a water main from Rio Doce, a high-voltage network and a gas pipeline to the
nearest port. However the investments are suspended since 2013 and the activities has not even
started. In order to evaluate the transformations already unleashed in that community in view of the
imminence to the enterprise’s arrival, it becomes imperative an understanding of the social
representations and the social imaginary created over there which on the other hand had engendered
those transformations. Also, it is intended to apprehend through deep interviews and “participant
objectivation” the changes perceived by the habitants of Palhal, from the circulation of inaccurate
informations, regarding to the future of the investments, and specially the projections made to the
community grounded on the eventual establishment of the enterprise.
Keywords: Petrobrás, Espírito Santo State, mega project, social imaginary.
Introdução
As reflexões aqui apresentadas fazem parte de nossa pesquisa de mestrado em Ciências
Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), atrelada ao Grupo de Estudo e Pesquisa
em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES). Nosso interesse
recai sobre a chegada de um Projeto de Grande Escala (PGE) na comunidade de Palhal, uma zona
rural do sul do município de Linhares-ES, onde ainda não existe qualquer tipo de atividade industrial.
Trata-se de um dos maiores investimentos da história do Espírito Santo: R$ 6,7 bi a serem investidos
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na instalação de uma Unidade de Fertilizantes Nitrogenados (o UFN-IV), que teria papel estratégico
no processo de substituição de importações de fertilizantes e demais derivados químicos feitos a
partir do gás natural, como o ácido fórmico e o ácido acético. Além da planta industrial, algumas
intervenções off-sites estão previstas, como a adução de água desde o Rio Doce, a 13km do local, a
instalação de linhas de transmissão de energia, o sistema de descarte de efluentes – também dirigido
ao Rio Doce – e a construção de um gasoduto até uma base portuária que dista aproximadamente
19km do complexo, onde deverão ser feitas adaptações ao já existente Terminal Aquaviário da Barra
do Riacho, município de Aracruz (ESPÍRITO SANTO: 2011, p. 2.5.5).
Até 2012, Palhal era considerada Zona Rural pelo Plano Diretor Municipal de
Linhares, e a partir da Lei Complementar 11/2012, que dispõe sobre o Plano Diretor
Municipal (PDM), passou a ser considerada Zona Industrial II, ou seja, que admite indústrias
de pequeno, médio e grande porte. O Complexo Gás-químico UFN-IV é considerado o vetor
dessa Zona Industrial, isso é, é o empreendimento maior da área e que pressupõe a instalação
de diversos empreendimentos satélites, como indústria de fertilizantes, empresas de
logística, entre outras (ESPÍRITO SANTO: 2011). Abaixo podemos ver cartograficamente
o local de instalação do empreendimento, bem como suas ramificações off-site.
Figura 1 - localização do Complexo Gás-químico UFN-IV.
Em destaque a localização de Palhal.
Fonte: EIA Complexo Gás-Químico UFN-IV.
De acordo com o cronograma aprovado pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente (IEMAES), as obras deveriam ter sido iniciadas em novembro de 2012, porém a Licença Prévia somente
foi obtida em julho de 2013, atraso não excepcional tendo em conta o curso das tramitações para
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obtenção de licenciamento, especialmente em se tratando de um grande projeto. Ocorre que o
desenvolvimento das demais ações previstas no cronograma não foi realizado, o que propiciou
boatos de que o projeto da UFN-IV teria sido suspenso, ou que não seria mais implantado no local
inicialmente destinado, ou que as denúncias de corrupção envolvendo dirigentes da petrolífera
teriam bloqueado os investimentos do complexo gás-químico, ou, ainda, que os aguaceiros na
região em dezembro de 20131 teriam demonstrado que o solo não seria propício para a sustentação
do empreendimento, ou, sabe-se lá, que as obras teriam sido simplesmente adiadas. Fato é que o
empreendimento não ganhou corpo até o momento e, em maio de 2015, o presidente da estatal,
Aldemir Bendine, informou à Comissão de Assuntos Econômicos do senado federal que o
complexo industrial de Linhares não é uma prioridade no momento, dado à redução dos
investimentos da empresa (G1, 28.04.2015, acessado em 02.07.2015).
Independentemente das conjecturas aventadas sobre as causas da paralisação do projeto,
o que procuraremos avaliar é como as expectativas construídas, as interpretações sobre o que
será quando e se o empreendimento chegar, enfim, que as projeções do agora elaboradas pelos
moradores da comunidade de Palhal, por si só, trazem alterações substantivas nas relações entre
os sujeitos e dos sujeitos com o território a partir das representações e dos imaginários que
provocam. Para tanto, intentamos compreender quais representações circulam sobre o
empreendimento e como os atores agem segundo tais representações. Nossa pesquisa vem
desenvolvendo reflexões nesse sentido, assim, recorremos a um oxímoro da concretude do
imaginário social, da efetiva atuação das mentalidades na conformação da organização social
cotidiana, tendo como permanente referência o debate desenvolvido pela teoria das
representações sociais (JODELET: 2002; MOSCOVICI: 1978; MOSCOVICI: 2004) e,
especialmente, a discussão de Castoriadis em A instituição imaginária da sociedade (2007).
1. A importância do “antes” dentro do campo do desenvolvimento
Dentro da ampla literatura sobre o discurso do desenvolvimento, bem como nos inúmeros
estudos de caso que a alimentam, achamos relevante refletir sobre um recorte específico e até aqui
pouco explorado, qual seja, as representações que circulam e seus correspondentes fazeres sociais
no momento que antecede a efetivação do empreendimento, mais especificamente, num momento
1
Em dezembro de 2013, o Espírito Santo foi vítima de uma das maiores tempestades já registradas na história.
As regiões próximas à bacia do Rio Doce foram as mais atingidas, causando longo período de alagamento.
Palhal foi uma dessas localidades.
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em que as representações se referem ao incerto e as respectivas decisões indexam-se na turbidez
do porvir. O que esperamos é que as reflexões suscitadas sobre os “relatos do porvir” – as
representações de um grande empreendimento que não se sabe se irá chegar e as ações que daí
decorrem por parte dos sujeitos locais – possam fomentar reflexões subsequentes sobre o
momento2 que escolhemos fazer o recorte dentro dos debates acerca do desenvolvimento.
É preciso salientar que tal recorte foi pensado e construído com a mudança imposta pelo
campo de pesquisa. Em princípio, nossa intenção era analisar o processo de transformação social –
abarcando, então, a questão territorial – que seria iniciado com a chegada do empreendimento. No
entanto, com a suspensão das atividades, uma nova configuração do campo se constituiu,
impossibilitando a primeira proposta e abrindo duas possibilidades imediatas: ou manteria recorte
similar e procuraria outro local onde um Projeto de Grande Escala estivesse para chegar em uma
zona ainda não industrializada, ou manteria Palhal como campo de pesquisa, mas me debruçando
sobre as novas relações que se estabeleciam com a suspensão do projeto industrial. A segunda
alternativa oferecia uma perspectiva particularmente importante, pois sugeria que as representações
sociais que circulam acerca do empreendimento sob o véu das incertezas de sua efetiva realização, o
momento em que essas representações surgem deve, ele mesmo, entrar para o cômputo da literatura
sobre os conflitos e as transformações concernentes às práticas desenvolvimentistas.
Ora, se falamos no momento em que surgem representações, podemos inverter a
sentença e falar das representações que caracterizam o momento. Daí a necessidade de se
investigar o conteúdo das representações que têm como referente o Complexo Gás-químico e
tudo que esteja a ele atrelado e verificar quais são os sentidos emprestados pelos sujeitos a esse
referente. Mas não só: quais as dúvidas suscitadas por sua iminência? Devemos descobrir
também quais as “certezas” então construídas, ou, posto de outra forma, quais as respostas
oferecidas pelos sujeitos a essas dúvidas. Lembrando, com Castoriadis, que o representar nunca
está apartado de um fazer social (Castoriadis: 2007, p. 177), como esses sentidos, essas dúvidas
e essas respostas são expressadas praticamente nas decisões dos sujeitos e dos grupos?
Mas urge fazer duas ressalvas acerca da dimensão material atual do empreendimento
em Palhal. Primeiro: a Petrobrás já adquiriu 400 há previstos para a construção da matriz
industrial, ou seja, a área prevista no Estudo de Impacto Ambiental para as operações on-site.
Se observarmos a figura acima, referimo-nos à metade sul do limite do perímetro dentro do
Do latim momentum “instante, poder de mover algo”, contração de movimentum, que é “deslocar, mover”
(Nascentes: 1955).
2
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destaque. Isso implicou a indenização e realocação de cinco famílias que moravam dentro
daquele limite. Essas famílias compraram lotes nas cercanias da área do empreendimento e
construíram suas novas casas, que são, segundo os próprios moradores, mais modestas que as
anteriores assim como a área de plantio, devido ao recurso limitado que lhes foi repassado,
segundo alegam membros das famílias entrevistados. As outras seis famílias que moravam
dentro do mesmo limite têm pessoas empregadas na fazenda de um grande proprietário da
região que acatou a indenização ofertada pelo estado e construiu novas casas para seus
empregados do lado oposto da estrada. O segundo fato concreto, não desvinculado do
primeiro, é que seis famílias, de primeiro grau de parentesco entre si, recusaram a indenização
proposta e persistem no local, travando uma disputa judicial para viabilização de sua
permanência ou, alternativamente, um aumento significativo da proposta indenizatória.
Essas ressalvas nos indicam uma importante questão de fundo das informações de campo
que apresentaremos na próxima seção. Reparemos que as decisões sobre o que será do território
são tomadas de fora, mas sobre o mesmo. Ou seja, a decisão se o local será de fato transformado
em um ponto estratégico da produção de fertilizantes e todas as transformações sociais que
decorreriam de uma complexa planta industrial em Palhal e nas comunidades vizinhas não
depende das mesmas. Santos conjugou os conceitos de teleação (Moles in. Santos: 2014, p. 110)
e hipertelia (Simondon in. Santos: 2014, p. 198) para caracterizar os espaços povoados por
objetos técnicos, típicos dos canteiros desenvolvimentistas. Por teleação devemos compreender
que os comandos – administrativos, técnicos e mesmo operacionais – são efetuados numa
localidade distinta daquela em que se concretizam, e que, por conta disso, os agentes locais não
conseguem alcançar devido às barreiras burocráticas e à distância geográfica de onde estes
comandos são emanados (idem, p. 110, p. 149). São decisões tomadas administrativamente
alhures que, mesmo que seja de um local determinado – possivelmente internacional –, é uma
posição geográfica e burocraticamente inalcançável para os atores que vivem no território onde
os efeitos das decisões tornam-se reais.
Quanto ao conceito de hipertelia, poderíamos aplicá-lo àqueles espaços que se tornam,
no limite, espaços unicamente funcionais (Santos: 2014, p. 198), espaços que passam a
prescindir das demais dimensões que constituem o território, como o elo afetivo, a identificação,
a memória coletiva que o significa, entre outros. Se recorrermos aos radicais que compõem o
conceito, “hiper” funciona como partícula de intensificação de “telos”, que nos remete à
finalidade. O espaço hipertélico é o espaço reduzido à sua funcionalidade, e esta é definida e
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comandada por agentes que não participam do território em sua concretude, senão através de
suas “teledecisões”. É justamente num espaço tão utilitário quanto uma unidade de fertilizantes
que as dimensões citadas acima estão apartadas ou, no máximo, secundarizadas.
Visto que o controle das transformações territoriais passa daqueles que afetiva e
cognitivamente se identificam com o lugar3 para uma esfera blindada de interferência dos
atores locais, temos uma clara relação assimétrica constituída. Essa assimetria está expressa
naquilo que Gustavo Lins Ribeiro chamou de campo do desenvolvimento (RIBEIRO: 2008).
Dentro do quadro conceitual de Bourdieu, o que caracteriza o campo é a estrutura de relações
objetivas das posições sociais que determinam a forma de interação entre os agentes segundo
práticas e valores específicos, cuja legitimidade é objeto de disputa entre os agentes (Bourdieu:
2012, p. 66). Quando falamos em “campo do desenvolvimento” estamos, pois, falando de
relações de tensão, cujo produto é inconcebível fora dessas relações, fora das diferenças que
marcam as posições sociais na disputa de um “desenvolvimento” legítimo. Nessa lógica,
Ribeiro diz que “‘desenvolvimento’ abarca diferentes visões e posições políticas, variando do
interesse em acumulação de poder econômico e político a uma ênfase em redistribuição e
igualdade” (Ribeiro: 2008, p. 111). No campo existem aqueles que estão “satisfeitos” com a
posição que ocupam, justamente porque sua posição atual é privilegiada em termos de poder,
em termos de “criar e organizar cenários que constrangem as possibilidades de ação das
pessoas e de especificar a direção e distribuição de fluxos de energia” (idem, p. 110), e por
isso as redes que constituem servem para favorecer a reprodução do campo com a forma de
suas relações e com seus valores atuais. Um exemplo típico é o fato de todos os moradores de
Palhal e da comunidade vizinha, Lagoa do Aguiar, com a exceção daqueles que resistem
juridicamente contra a realocação, desconhecerem que o local onde moram passou a ser Zona
Industrial do tipo II4, sem ter garantida a participação das audiências sobre o Plano Diretor
Municipal e, mesmo se o tivessem, sabemos que a prerrogativa para aprovação do PDM é da
Câmara dos Vereadores. A Zona Industrial onde está situada Palhal tem como projeto âncora
justamente a Unidade de Fertilizantes Nitrogenados, em nome da qual governador, senadores,
deputados e poderes executivo e legislativo municipais lutam para ver concretizada.
Aqui nos auxiliaria o conceito de lugar tal como definido por Augé, como um espaço “identitário, relacional e
histórico” (Augé: p. 73), mas o aprofundamento dessa discussão nos distanciaria do objeto principal do presente
trabalho. Apenas acrescentemos a contribuição de Y-fu Tuan, para quem “lugar é uma pausa no movimento, a
pausa permite que uma localidade se torne um centro de valor conhecido” (Tuan: 1983, p. 153). Aqui lugar é um
local experienciado e valorado, positivamente valorado, diga-se, a ponto de se criar philia, a ponto de se identificar
um centro, a ponto de identificar-se em relação a alter e identificar o aqui em relação a alhures.
4
Nem mesmo o líder local, morador de Lago do Aguiar, sabia dessa mudança até minha chegada a campo.
3
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2. Projeções do agora e relatos do porvir5
Até o ano de 2013 a senhora “N” morava na área que hoje pertence à Petrobrás. Sua casa
fora construída há 40 anos por ela, seu marido e sua avó com o massapê que se tinha em
abundância naquela parte do terreno. Ao redor de sua casa moravam três de seus filhos, que em
janeiro de 2014, quando o estado indenizou as famílias para disponibilização da área para a
empresa, tiveram que se mudar para uma zona urbana próxima em busca de emprego. A sra.
“N” e seu marido sentiam falta dos filhos próximos deles, pois pela primeira vez não os tinham
vivendo no mesmo terreno. Ela disse que até então não havia conseguido terminar sua casa.
Considerava o valor injusto, assim como seus dois novos vizinhos de lote, e sequer havia
conseguido comprar todo o material de obra necessário para terminar o banheiro. A indenização
não compreendeu o pomar plantado há mais de quarenta anos por ela e seu marido, fato bastante
lamentado e compartilhado pelos outros moradores realocados. “Antes o vizinho ficava lá longe,
agora toda manhã eu vejo a cara desse aí”, brincou com o morador vizinho, presente na ocasião
da entrevista, para se referir ao lote atual como de menor proporção que o anterior.
Um ponto que todos os moradores realocados estão de acordo é que a qualidade da água
no novo sítio é de melhor qualidade, o que tem ajudado o desenvolvimento das culturas de
pequeno e médio ciclo, como a de milho, mandioca e feijão. O que temem é que a qualidade dos
poços artesianos seja prejudicada quando “eles começarem a cavar para passar o petróleo”. Outra
dúvida presente é se poderão permanecer no local escolhido quando as obras começarem e as
atividades da empresa estiverem sendo realizadas, e ainda, se caso não puderem, se receberão
nova indenização para se acomodarem em outro lugar. Quando voltei a campo meses depois, a
sra. “N” me perguntou se poderiam permanecer ali naquele sítio, resposta que procurei junto à
prefeitura de Linhares. A resposta é que somente teriam que sair se e quando a empresa viesse,
coisa que não daria para saber com certeza, mas que segundo informação que eu tinha
conseguido na internet – referindo-me ao Plano Plurianual de investimentos da Petrobrás –
deveria demorar alguns anos até que o projeto “saísse do papel”. Não saberia dizer nem mesmo
se a empresa de fato chegaria. “Deus está do nosso lado”, respondeu a sra. “N”.
Mas não foram todas as famílias que aceitaram a indenização. Dentro da área solicitada
pela estatal, onde ficaria o tanque de armazenamento de água da indústria, existe uma mercearia
5
Preferimos resguardar os nomes dos entrevistados buscando fazer referências genéricas, inspirados no estilo
de Clifford Geertz apresentado especialmente em A interpretação das culturas, 1989.
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cujo proprietário se recusa a deixar o terreno herdado de seu pai há trinta anos e onde criou seus
filhos. “O que eu quero mesmo”, diz o merceeiro, “é ficar aqui, porque o terreno era do meu pai,
todos os meus seis filhos foram criados aqui e eu já estou acostumado. Mas se não tiver jeito
mesmo, que pelo menos eles me deem dinheiro para construir alguma coisa maior do que eu já
tenho”. O merceeiro não está só na resistência contra a realocação, já que seus filhos, que
habitam o mesmo lote com seus respectivos núcleos familiares, também se recusaram e brigam
juridicamente contra a empresa para a permanência no local.
Aliás, antes da chegada do empreendimento (talvez melhor fosse dizer a “chegada” do
empreendimento, ou a não chegada do empreendimento) os filhos do merceeiro criavam seus
gados na área que atualmente pertence à empresa. Com as indenizações que ocorreram na área e
o cercamento da mesma, a consequência legal óbvia seria a retirada do gado, o que de fato, não só
os filhos do merceeiro como os demais donos de gado que davam pasto às suas criações naquela
área, fizeram. Com exceção do filho mais velho e seus consociados. Ele não só manteve seu gado
na área, mas também, quando recebeu notificação da empresa para retirá-lo, não o fez. E não o fez
pelo seguinte arrazoado: “tiraram a dona ‘N’ daí e um monte de família humilde porque sabe que
eles são humildes e vão aceitar o que oferecerem. E agora fica essa terra parada aí, sem aproveitar
para nada e o pessoal lá nem água encanada não tem. E ali tem pasto bom e terra boa para plantar”.
Figura 2 - cabeças de gado na área do empreendimento
Certo dia, em visita à mercearia, lá estavam o merceeiro e um outro senhor a
conversarem. Apresentei-me a este senhor que ainda não conhecia e logo em seguida um
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jovem vaqueiro entrou no estabelecimento perguntando se tínhamos visto o novo rio que tinha
se formado dentro do lote da Petrobrás. Alguns dias antes uma forte chuva havia encharcado
o solo, de modo que o pasto situado à beira da estrada que dá acesso ao lote, na margem oposta
deste, estava alagado e um fluxo considerável de água desenhava um “rio” dentro da área do
empreendimento, provavelmente por ser relativamente mais baixa que o pasto. Nós três, eu, o
merceeiro e o outro senhor, dissemos que havíamos visto e então perguntei se era comum que
corresse o “rio” daquela forma em épocas de chuva. O merceeiro disse então:
Daquele jeito igual está ali eu nunca vi não. E nem choveu tanto. Sabe o que
é? Não tem uma semana que o pessoal da Petrobrás foi exatamente ali e fez
piquete, piqueteou tudo. Parece que estão querendo fazer uma estrada ali. A
gente procurou saber o que era, mas eles não falam nada, nada. Aí eles vieram
e piquetearam tudo, não tem uma semana, dez dias. Choveu e formou aquele
riozão bem em cima dos piquetes que eles fizeram, mas está no trajeto certinho
dos piquetes. É Deus, é Deus que está por nós. Na Bíblia está escrito que Deus
está do lado dos mais fracos e foi ele que mandou aquela água pra mostrar pra
eles que eles estão errados, eles estão no lugar errado (dono da mercearia de
Palhal, morador de Palhal).
“Bem feito”, disse o jovem. “Bem feito”, repetiu o senhor.
Apesar de não existir na região nenhuma organização formal, como uma associação
de moradores, “Z” foi apontado por diversos atores como uma liderança local. O motivo
pelo qual “Z” é considerado uma liderança deve-se a diversas ações suas, segundo os relatos
dos próprios moradores e posteriormente confirmados por ele. Por exemplo, em caso de
enfermidade ou morte de algum morador é a “Z” que recorrem; foi ele quem construiu a
igreja católica de Palhal; foi ele também quem organizou o mutirão para a construção da
única escola daquela zona rural6. Eu mesmo presenciei uma ocasião em que ele deixou de ir
a uma missa dominical para levar um morador até o município de Fundão para que ele
pudesse se encontrar com seu pai que há muito não via. O que notamos é que a liderança de
“Z” não deriva propriamente de uma representatividade política, conotação dada de costume
ao epíteto “líder”, mas dessas suas ações dadas na ordem do dia e, claro, do reconhecimento
das mesmas por parte dos demais moradores.
Na primeira conversa que tive com “Z”, perguntei então se ele havia acompanhado
o processo de discussão sobre o empreendimento, como as audiências públicas e o
6
Depois de deferida pela prefeitura a solicitação para a construção de uma escola para a região, moradores
relatam que ante a morosidade do serviço público em atender o pleito eles próprios tomaram a iniciativa de
construir com recursos próprios e de apoiadores a escola que hoje oferece ensino básico.
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desenvolvimento das pesquisas para o Estudo de Impacto Ambiental. Quanto às pesquisas
ele disse que por algumas semanas estiveram contratados da Petrobrás na área realizando
entrevistas com os moradores, mas quanto ao acompanhamento das discussões públicas
disse não ter tido conhecimento das audiências e que por duas vezes “chegou gente do estado
de helicóptero com gente da empresa, pousaram bem aí do lado da escola montaram uma
tenda, serviram lanchinho e tudo. Mas eles chegaram com a coisa toda pronta já, você está
entendendo? Eles não vieram negociar com a gente, não vieram discutir. Chegaram,
apresentaram, montaram no helicóptero e foram embora”. E em seguida:
Ninguém aqui é contra o desenvolvimento não, sabe, Bruno. Mas a gente
quer que as coisas sejam feitas do jeito que têm que ser. Ninguém sabe de
nada, a gente é o último a saber de tudo. Outro dia andando em Linhares
encontrei com um amigo meu que mora lá e ele disse que eles vão fazer até
trilho de trem e puxar água lá do Rio Doce. Poxa, ninguém falou nada disso
com a gente. E agora ninguém nem sabe se o negócio vai ser levado pra
frente mesmo. Muita gente vendeu casa, vendeu lote, se mudou. Muita gente
colocou os lotes pra vender por quinze, vinte mil e agora já está valendo
doze, dez, até menos (“Z”, morador de Lagoa do Aguiar e líder local).
Tempos depois, em minha sexta viagem a campo, sentados na mesa de café de sua
casa ele diria “graças a Deus esse povo parece que desistiu de vir para cá” e quando eu
lembrei que ele havia me dito não ser contra o empreendimento em nosso primeiro encontro
ele respondeu “ainda não te conhecia, né? Não sabia quem você era”.
Uma outra senhora, frequentadora das missas de domingo na igreja construída por
“Z”, acredita que existe um lado bom e um lado ruim com a chegada do empreendimento:
O lado ruim é que vai passar muito caminhão na beira de casa, vai levantar
muita poeira e quando eles começarem a cavar o poço do petróleo a água
vai ficar toda barrenta. A água fica preta, não presta mais não. O lado bom
é que eles colocaram a torre de celular. Antigamente para pegar celular
aqui era uma luta, agora pega até dentro de casa. Todo dia eu converso com
meu filho que mora lá em BH. Meu filho e meu neto moram lá em BH. Eu
tenho medo de que se eles desistirem mesmo eles levem a torre embora
(senhora moradora de Palhal).
Aliás, a expectativa sobre o empreendimento também pauta a abordagem do celebrador
das missas da igreja católica de Palhal. Certa vez, o estudo bíblico foi sobre o capítulo 25 do
livro de Mateus, versículos 31-46 e a reflexão do orador foi no seguinte sentido:
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Essa passagem fala sobre a importância de separarmos as ovelhas dos cabritos,
ovelhas à direita e cabritos à esquerda. Estes são teimosos, insubmissos, solitários
e as ovelhas dóceis, obedientes e sempre estão unidas. Então é importante
sabermos separar o bem do mal, o ruim do bom. As comunidades de Palhal e
Lagoa do Aguiar estão livres dos perigos da cidade, das angústias do mal do
capitalismo, por enquanto. Para continuarmos livres é preciso que nos
mantenhamos unidos. O capitalismo faz com que a gente não enxergue o essencial
e peça a Deus apenas o supérfluo em nossas orações, o que a gente não precisa de
verdade. Ele sempre nos dará o que a gente precisa, o que faz com que a gente às
vezes fique chateado quando Ele não nos dá aquilo que é supérfluo e que nós
pedimos. O capitalismo quer que a gente peça sempre mais e mais e é por isso que
o homem da cidade não vive em paz. Nós temos que nos manter unidos, sempre
unidos, unidos aos nossos irmãos, unidos à nossa terra para resistirmos à ganância
do capitalismo que tenta tomar as nossas terras. A chuva é essencial para que tenha
pasto, para que tenha plantação. Vamos pedir por chuva para nós e para nossos
irmãos e não vamos nos preocupar com o que não é essencial (celebrador da igreja
católica de Palhal, morador de Lagoa do Aguiar).
Fui em mais duas missas e em cada uma delas o celebrador guiou ao menos parte de
sua reflexão em sentido similar ao exemplo trazido aqui: clamando pela união e organização
das comunidades de Palhal e Lagoa do Aguiar para enfrentar “as turbulências que não foram
causadas por ninguém daqui de dentro [da comunidade], mas que nós temos e teremos força
para atravessar se nos mantivermos unidos” (missa em 7 de dezembro de 2014).
Mas a suspensão do empreendimento é também percebida com apreensão por aqueles
que investiram recursos, preparando-se para a chegada massiva dos empregados na região.
Quando a sra. “O” e seu marido souberam da chegada de um empreendimento com o porte
anunciado, fizeram alguns investimentos importantes: construíram um galpão para
manutenção e garagem de carros da empresa, fizeram um segundo piso em sua casa com
quitinetes para os eventuais trabalhadores e lotearam algumas propriedades anexas à área de
sua moradia. “Foram anos de poupança que a gente esperou para o melhor momento de
investir. E quando a gente investe acontece isso. São anos de dinheiro jogados na lata de
lixo”. Aqui fica bem claro o distanciamento entre aqueles que pretendem permanecer no
local e os que trataram o empreendimento como uma oportunidade econômica:
Se eles tivessem começado a obra logo nada disso tinha acontecido. Mas o
que acontece. Tem gente que parece que não tem visão para o que é o
progresso. Porque se todo mundo tivesse recebido a indenização certinho
como está escrito na lei, as obras tinham começado. Mas aí atrasou tudo
por conta disso, porque teve gente que não quis sair. Aí deu tempo de
descobrirem a roubalheira toda da Petrobrás e agora a Petrobrás
simplesmente não pode mais fazer a obra. Não pode mais porque o dinheiro
está todo travado na justiça (sra. “O”, moradora de Palhal).
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O sr. “I” também investiu em uma outra área dentro de Lagoa do Aguiar, a qual foi
dividida em trinta lotes com o intuito de vendê-los para empregados da Petrobrás. Se a
princípio a ideia era regularizar os lotes para oferecê-los a um preço entre R$ 15mil a
R$20mil, agora alguns lotes já foram vendidos a R$ 5 mil para moradores de Rio Quartel
bem como de outras zonas rurais de Linhares e de Aracruz:
O preço que a gente oferece não dá para pagar nem a burocracia. A gente
faz mais para ajudar o pessoal que precisa da terra mesmo e não tem
dinheiro para construir sua casinha e fazer a roça. Não faz sentido a gente
manter a terra parada sem ninguém usar sabendo que tem gente que precisa
e ficar esperando a boa vontade da Petrobrás se resolver. Agora, que é um
prejuízo, é sim (esposa do sr. “I”, moradora de Lagoa do Aguiar).
Muitos jovens investem, alguns há mais de dois anos, em cursos técnicos com a
expectativa de ingressarem nas obras do complexo industrial e, enquanto isso, trabalham
eventualmente em parques industriais do próprio município de Linhares ou do município de
Aracruz. Como a maior parte destes trabalhos é de contratos temporários, no período em que estão
desempregados, ou até mesmo em dias de folga quando empregados, auxiliam suas respectivas
famílias nos afazeres da roça e da criação de gado. A chegada da empresa é vista como uma forma
de, ao menos, reaver o dinheiro gasto na preparação técnica. “A gente vai fazendo curso, fazendo
curso, fazendo curso. Mas essa desgraça dessa Petrobrás não decide o que ela quer da vida”. Foram
esses jovens que mais frequentemente me tiveram como funcionário da Petrobrás, e quando eu
então me apresentava, diziam coisas do tipo “achei que era você que ia resolver esse problema
para nós”, em tom de brincadeira, ou “achei que fosse gente da Petrobrás fazendo mais pesquisa,
porque pesquisa eles fazem bem, agora obra mesmo que é bom, nada”.
Com essa compilação dos dados de campo que aqui apresentamos é possível
reconhecermos quatro grupos distintos que amparam suas respectivas explicações sobre o
empreendimento a partir de sua condição:
a) Moradores realocados:
Aqui se encontram tanto os atores que receberam indenização diretamente sobre a
pequena propriedade quanto os empregados de fazenda cujo patrão acatou a indenização e
construiu novas casas do outro lado da estrada de terra. Ressaltamos que os empregados são
também moradores locais desde sempre, e a maior parte deles há mais de uma geração.
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b) Moradores em contenda jurídica por permanência:
Tratam-se da família do merceeiro e das famílias de seus filhos, único conjunto de
moradores que optou por uma posição política positiva ante a empresa. O empreendimento
é visto como uma permanente ameaça e como um objeto a ser enfrentado com ações
positivas, como o recurso jurídico e a persistência em manter o gado dentro da área mesmo
quando já notificado pela empresa para que o retirasse.
c) Moradores que investiram recursos com expectativas sobre o empreendimento:
Aqui encontram-se aqueles que enxergam o empreendimento como uma
oportunidade econômica ou uma oportunidade de trabalho. Não deve passar despercebido
que aqueles que investiram recursos em áreas, melhoramento de lotes e construções são
pessoas que ou têm Palhal ou Lagoa do Aguiar como moradia esporádica ou são moradores
relativamente novos da localidade, quando comparados aos atores dos outros grupos. Mesmo
a sra. “O” e seu marido, que criaram sua filha entre Palhal e Baixo Quartel, são moradores
há “apenas” vinte anos do local: “apenas”, quando comparamos com moradores de quarenta,
cinquenta anos, cujas famílias já moravam na região antes de nascerem e que,
sintomaticamente, não se enquadram, nem uma exceção sequer, neste grupo. Ademais,
atualmente estão na zona rural apenas em finais de semana e feriados, assim como outros
investidores que têm a fazenda como uma segunda atividade. Acrescentamos nesse grupo
também os jovens que investiram tempo e dinheiro na realização de cursos técnicos tendo
em vista o ingresso nas obras de instalação da empresa.
d) Moradores que não tiveram relação direta com o empreendimento:
Nos vimos na obrigação de acrescentar um quarto grupo, em que as pessoas não foram
realocadas, não participam de disputa judicial e nem mesmo investiram qualquer recurso com
vistas à chegada do empreendimento, mas que cotidianamente enfrentam o desafio de significálo. Não é por não terem, ainda, sofrido interferências materiais sobre sua existência que este
último grupo possa ser tido como não afetado. Até porque aqui a ameaça constante das
transformações prometidas pelo projeto são ameaças ao território, em todas as suas dimensões,
onde essas pessoas construíram suas vidas. O celebrador da missa católica e o líder “Z” estão
aqui contemplados. O empreendimento e todas as transformações que venham a reboque são
considerados ameaças ao estilo de vida, à história do local, da qual participam, ao controle sobre
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a terra, às relações profundamente pessoais que hoje existem. Não seriam essas apreensões,
impostas pelo referente externo, por si só impactos a serem levados em conta? Afinal, quando
vemos essas apreensões compartilhadas numa missa, no balcão da mercearia, no café de fim de
tarde, quando reparamos o esforço constante dos atores para encontrarem um resposta àquilo
que se lhes impõe sem que tenha exatamente uma aparência ou uma materialidade precisa, uma
dimensão precisamente delimitada, e quando fazem circular, através das conversas diárias, as
representações que pretendem dar conta dessas dúvidas, e quando essas representações supõem
uma ameaça iminente ao território, ao modus vivendi presente e à história local: não seria o
próprio processo de decifração do referente, nestes termos, um impacto considerável?
Lembrando que o referente em questão – o empreendimento da Petrobrás – é um produto
teleacionado, seguindo a terminologia de Moles, incorporada por Milton Santos. Ou seja, de
onde quer que estejam vindo os comandos para sua realização/suspensão, esses comandos
ignoram por completo as minudências das representações assentadas nas aflições, apreensões e
expectativas geradas neste momento. Acreditamos que a dimensão apresentada por este quarto
grupo seja transversal a todos os outros que já testemunharam transformações materiais em suas
vidas por conta do empreendimento.
3. Sobre o esforço de significar o não-familiar
Para Serge Moscovici, nome fundamental na teoria das representações sociais, a
função fundamental destas representações é tornar familiar aquilo que ainda não é familiar:
A presença real de algo ausente, a “exatidão relativa” de um objeto é o que
caracteriza a não-familiaridade [...]. O não-familiar atrai e intriga as
pessoas e comunidades enquanto, ao mesmo tempo, as alarma, as obriga a
tornar explícitos os pressupostos implícitos que são básicos ao consenso
[...]. O medo do que é estranho (ou dos estranhos) é profundamente
arraigado (MOSCOVICI: 2004, p. 56).
Nas famosas vinhetas que precediam os episódios do seriado Super-Homem, os
transeuntes surpresos com o corpo que sobrevoava a cidade se perguntavam: “é um pássaro? Um
avião? ” O que faziam nada mais era do que localizar um evento não-familiar dentro do quadro de
categorias então disponíveis, revelando as duas funções centrais das representações sociais, quais
sejam, convencionalizar e prescrever, que, num sentido similar ao de Durkheim, dispõem uma
estrutura de sentido antes mesmo que nos ponhamos a pensar, que, na verdade, “decreta o que
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deve ser pensado” (idem, p. 37, grifo no original). Denise Jodelet, aluna e colega de Moscovici,
diz-nos que representações sociais são “sistemas de interpretação, que regem nossa relação com o
mundo” (Jodelet: 2002, p. 32). Interpretar é significar. Significar é ordenar signos disponíveis –
em que a linguagem é o maior exemplo e a base para derivar os demais signos – para emprestar
sentido para o mundo. Assim morreu o capitão Cook, como uma divindade ao retornar ao Havaí
por conta do mastro partido do seu Resolution (Sahlins: 1990, p. 140). O evento do retorno de
Cook foi interpretado segundo o universo simbólico do qual dispunham os havaianos.
A psicologia social parte, pois, da hipótese de que o ser humano tem uma predisposição
psíquica para operar segundo os mecanismos da coerência e estabilidade (Jodelet: 1984, pp. 167; Moscovici, 1978, p. 15; Moscovici: 2004, pp. 103-4), num contexto em que o não-familiar é
uma iminente ameaça. Porém dois desafios aí surgem de imediato. Primeiro, se nos satisfizermos
com a explicação do “não-familiar” em “familiar”, toda significação e todo fazer seriam
puramente reativos e as representações presentes seriam eternamente suficientes, ao aguardo da
próxima ameaça para fagocitá-la e processá-la. Como explicar as rupturas, os saltos, as
transformações? Como compreender o caráter inextricavelmente diacrônico (histórico)
evidenciado em toda realidade sincrônica (social) (Castoriadis: 2007, p. 205)?
A solução para essa questão é oferecida justamente por Castoriadis, que define três
tipos de significação na ordem social:
 Pode corresponder ao percebido (ou real), em suas palavras, “à existência distinta do
significante” (Castoriadis: 2007; p. 170), aquilo que se apresenta à percepção, à
experiência sensível, interna e externa, e recebe, a partir daí uma interpretação;
 Ao conceitual (ou racional), que é a interpretação a partir dos conceitos pré-existentes,
cujo exemplo mais facilitado está nos verbetes dos dicionários;
 Ao imaginário, que é a elaboração criativa de uma interpretação ainda não existente, cujo
núcleo criador está na representação original individual, a partir da qual representações
derivadas poderão ser elaboradas.
Diz-nos o autor, referindo-se ao momento de criação significativa:
“Mas esta arrealidade última como captá-la? Ela só se dá, de um certo
modo, como as ‘coisas em si’, a partir de suas consequências, de seus
resultados, de seus derivados” (Castoriadis: 2007; p. 172).
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O imaginário radical, fundante de um novo signo, é uma prerrogativa do imaginário
individual, assentada na representação-afetividade-intenção localizada no inconsciente.
Exposta essa proposta do filósofo greco, chegamos ao segundo desafio. Pois se de um
lado reconhecemos a capacidade criativa dos atores em criar os significados acerca dos
problemas que se lhes impõem, o que haveria nesse processo inventivo que pudéssemos alcunhar
de “social”? Se o imaginário radical é próprio dos indivíduos que participam de uma determinada
região de sentido, as significações imaginárias coletivas “não denotam nada, e conotam, mais ou
menos tudo” (Castoriadis: 2007; p. 173), o que quer dizer que a sociedade não funda
significados, mas antes disponibiliza um universo simbólico suficientemente amplo para que o
real (percebido) e o racional (conceitual) se balizem, ao mesmo tempo que oferece os termos de
uma significação imaginária radical, mas não encerra todos os significados possíveis que
poderão surgir no jogo criativo com estes termos. Num movimento inverso, as significações
imaginárias radicais modificam o universo simbólico, ainda que essas modificações, na maioria
das vezes, só possam ser apreendidas numa mudança de escala temporal: “basta mudar a escala
de tempo e as estrelas dançarão loucamente” (Castoriadis: 2007; p. 211).
Elas [as significações imaginárias coletivas] só podem ser captadas de
maneira derivada e oblíqua: como a separação ao mesmo tempo de delimitar
exatamente entre este primeiro termo: a vida e a organização efetiva de uma
sociedade, e este outro termo igualmente impossível de definir: esta vida e
esta organização [...] como o cimento invisível mantendo unido este imenso
bric-à-brac de real, de racional e de simbólico que constitui toda sociedade
como princípio, que escolhe e informa as extremidades e os pedaços que aí
serão admitidos (Castoriadis: 2007; p. 173).
A nova significação social, por sua vez, caracteriza (ipseidade) e individualiza (heccedidade)
o grupo, em outras palavras, identifica-o. Portanto, a conformação dessa ontologia própria se dá com
os jogos possibilitados pela rede simbólica específica do grupo, e essas possibilidades instituídas são
o que Castoriadis chama de elemento conjuntista-identitário. Os signos que daí são elaborados
pertencem à lógica conjuntista-identitária. Por isso Castoriadis chama a atenção para o lapso,
tradicionalmente negligenciado, entre a denotação e o uso identitário de um sentido.
Se para Moscovici “quando estudamos representações sociais nós estudamos o ser
humano, enquanto ele faz perguntas e procura respostas ou pensa e não enquanto ele
processa informação ou se comporta” (Moscovici: 2004, p. 43), para Castoriadis:
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Até aqui toda sociedade tentou dar uma resposta a algumas perguntas
fundamentais: quem somos nós? Que somos nós, uns para os outros? Onde e
em que somos nós? Que queremos, que desejamos o que nos falta? [...]. Não se
trata de perguntas e de respostas colocadas explicitamente e as definições não
são dadas na linguagem. As perguntas não são mesmo feitas previamente às
respostas. A sociedade se constitui fazendo emergir uma resposta de fato a essas
perguntas em sua vida, em sua atividade. É no fazer de cada coletividade que
surge como sentido encarnado a resposta a essas perguntas, é esse fazer social
que só deixa compreender como resposta a perguntas que ele próprio coloca
implicitamente7 (Castoriadis: 2007, p. 177, grifo no original).
Portanto, por mais centrífugos e até dispersos que os exemplos retirados de nosso trabalho
de campo, apresentados ao longo desse artigo, possam parecer, com o auxílio teórico de
Castoriadis podemos perceber que é justamente a criação de significados, virtualmente infinitos
dentro de uma dada região de sentido, que constitui a individualidade histórica de uma dada
coletividade. No caso apresentado, focamos as interpretações referidas pelo empreendimento de
grande porte, alteridade em cuja relação podemos apreender um “nós” da comunidade de Palhal e
de Lagoa do Aguiar, exatamente nos termos expostos por Jodelet em A alteridade como produto
do processo psicossocial (JODELET: 2004), para quem o reconhecimento de uma alteridade
pressupõe a identificação de um “eu”, lógica estendível à coletividade e que nos remete a um “nós”.
E mais: vejamos, a partir da última citação de Castoriadis, que as “respostas” às “questões”
que se apresentam àquela coletividade, supõem um movimento de interpretação e até invenção de
novos significados, mas que esse movimento nunca está apartado de um fazer social, que, também
virtualmente infindável, conforma a ipseidade e hecceidade, a substância e a individualidade
histórica de uma dada coletividade. Por isso criar gado na área hoje pertencente à Petrobrás, e que
até então era uma prática cotidiana, ganha o sentido de afirmação ante a ameaça de despejo; por
isso investimentos superlativos em loteamentos têm como base o grande contingente populacional
e a valorização do solo imaginado com a chegada da indústria; por isso, o menor sinal de fracasso
da empresa significa que Deus está do nosso lado e que por isso até brigaremos na justiça para que
permaneçamos na terra; por isso temos que nos manter unidos, para resistirmos à ganância do
7
Recentemente defendida a dissertação Produção da Cultura e mediação social do ambiente nas pescas
artesanais das comunidades vizinhas de Ubú e Parati no Espírito Santo, pelo Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais da UFES, em que Gustavo Rovetta demonstra como os modos de vida dos pescadores
artesanais estão inextricavelmente ligados a uma dimensão política, justamente porque o fazer daquelas
coletividades “respondem” aquelas “perguntas” num contexto de forte pressão industrial que, direta ou
indiretamente, mas de maneira constante, “replicam” ao fazer da pesca artesanal (Rovetta: 2014).
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capitalismo. E é justamente essa diversidade criativa de respostas – representacionais e práticas –
que nos permite identificar o “nós” que chamamos comunidade de Palhal.
Conclusão
Na abordagem que aqui apresentamos buscamos valorizar a criatividade dos atores
na construção dos diversos sentidos elaborados, pelos mesmos, buscando revelar o fazer
social que está aí embutido. Não obstante, não devemos ignorar a diferença posicional entre
os atores locais e os atores de decisão sobre a implantação ou não do empreendimento, a
apresentação ou não deste referente “não-familiar” para aqueles primeiros. Energeticamente
estratégica para o país8, economicamente interessante para investidores e politicamente
relevante para o município, o complexo gás-químico constitui motivo típico para a formação
das consorciações, processo em que agentes de diversas escalas distintas (local, regional,
nacional e transnacional) se articulam para a realização de um grande projeto (RIBEIRO:
2010). Pelo compartilhamento de um objetivo preciso, os consórcios presumem alto grau de
integração entre seus partícipes: uma espécie de “força tarefa” dos grupos de poder que se
alinham para potencializar suas ações em prol daquele objetivo e são estes grupos que, ao
cabo, decidirão sobre a concretização do projeto.
Nossa pesquisa procura justamente conjugar estas duas dimensões: a criatividade dos
atores em lidar com o problema que se lhes apresenta; e o distanciamento destes mesmos
atores do lugar de decisão e controle sobre esse problema. Sugerimos que essa tensão existe
antes mesmo da concretização do empreendimento e que as incertezas engendradas neste
momento, contingência está controlada pelos grupos de poder, geram, por si só,
transformações sociais bastante concretas, ainda que gozem de pouca atenção das
sociologias que se debruçam sobre o discurso do desenvolvimento.
Referências
BRASIL. 3º Balanço do PAC 2 - Eixo 5: Energia. [pdf], 2011.
8
As UFN-III (Três Lagoas-MS), a UFN-IV e a UFN-V (Uberaba-MG) fazem parte da carteira de investimentos do
Programa de Aceleração do Crescimento 2011-2014 (PAC 2) dentro do grupo de projetos de energia (BRASIL: 2011).
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23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
ESTRATÉGIAS DE COMUNICAÇÃO EM REDES SOCIAIS: A REDE ALERTA
CONTRA O DESERTO VERDE
Erick Alessandro Schunig Fernandes
UFES
Resumo: O objetivo deste estudo foi analisar as estratégias de comunicação por uma rede de
movimentos sociais e organizações não governamentais, denominada Rede Alerta Contra o Deserto
Verde, no ano de 2002. Neste período foram realizadas diversas ações de comunicação visando
transpor a influência do setor empresarial de celulose na mídia e chamar a atenção para os impactos
causados pela expansão dos plantios de eucalipto no Espírito Santo. Para este estudo foi realizada
uma pesquisa bibliográfica, levantamento documental e entrevistas com fundadores das organizações
integrantes desta rede. Os resultados mostraram que apesar da influência do setor de celulose, o
planejamento executado pela Rede conseguiu atrair a atenção da mídia e da população em relação
aos impactos da monocultura de eucalipto.
Palavras-chave: rede; movimentos sociais; comunicação.
Abstract: The objective of this study is to analyze the communication strategies of a network of
social movements and non-governmental, called Alert Against the Green Desert Network, in 2002.
In this period were carried out various communication actions to overcome the influence of the
business sector cellulose in the media and draw attention to the impacts caused by the expansion of
eucalyptus plantations in the Espírito Santo state. For this study a literature search was conducted
documental research and interviews with founders of the organizations in this network. The results
show that despite the influence of the cellulose sector, planning executed by this network has
attracted the attention of the media and the public regarding the impacts of eucalyptus monoculture.
Keywords: network; social movements; communication.
Introdução
A atuação de movimentos sociais e organizações não governamentais (ONG’s) vem
se constituindo num dos principais mecanismos para a construção da cidadania, através da
atuação junto aos grupos de excluídos dentro da sociedade. Uma exclusão provocada pela
imposição de um pensamento, com base num modelo de crescimento econômico desigual,
onde a natureza é transformada em commodity e a diversidade cultural é ignorada.
Nesse contexto, a questão ambiental tem se constituído num dos principais temas de
discussão mundial e vem sendo fomentada por agentes que caracterizam o chamado movimento
ambiental. Esses agentes tem se destacado pela introdução de novas temáticas sobre a relação
entre homem e natureza, bem como o questionamento referente à imposição de um modelo de
desenvolvimento baseado na exploração dos recursos naturais em prol do consumo.
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Na busca de maior visibilidade e difusão de suas ideias, o movimento ambiental vem
buscando criar e assimilar novas estratégias de comunicação com intuito de promoção do
debate, compromisso social e diálogo com a sociedade, numa escala maior do que é proposto
pelos grandes veículos de mídia.
O objetivo desse trabalho foi desenvolver uma análise das estratégias de
comunicação desenvolvidas por uma rede de movimentos sociais e ONG’s, denominada
Rede Alerta Contra o Deserto Verde ou Rede Alerta. O estudo analisou as atividades
desenvolvidas pela referida Rede entre os meses de julho a agosto de 2002, ano em que foi
inaugurada a terceira unidade fabril da empresa Aracruz Celulose S.A1.
As ações tiveram o intuito de divulgar os impactos causados pela referida empresa e
do setor de celulose no Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia. Nesses estados a monocultura
de eucalipto ou deserto verde2 vem causando uma série de impactos socioambientais em
comunidades indígenas e quilombolas, bem como de agricultores, pescadores e carvoeiros.
Em virtude da influência do setor de celulose, a maioria dos veículos de comunicação
nesses estados, em especial no Espírito Santo, ignorava os problemas causados pelo deserto
verde. Tal situação levou as entidades que integram a Rede Alerta a criarem estratégias de
comunicação visando chamar a atenção da população para esses impactos.
Para a realização deste estudo de caso, trabalhamos com as informações oriundas
de levantamento documental, entrevistas semiestruturadas com fundadores da Rede Alerta,
além de pesquisa bibliográfica com autores que deram suporte teórico para discussão
desenvolvida neste estudo.
1. O movimento ambiental e a comunicação
O movimento ambiental vem desde o século XX, ocupando lugar de destaque através
de sua organização e atuação a fim de conseguir visibilidade. Contudo, autores como Castells
(2001) e McCormick (1992) ressaltam que, ao falarmos de movimento ambiental, estamos
nos remetendo à grande diversidade de ações coletivas, políticas e de discursos agrupados
sob o debate ambiental, o que impede de considerá-lo um único movimento. A diversidade
1
Em 1º de Setembro de 2009 foi oficializada uma fusão entre os grupos Aracruz e Votorantim Celulose e
Papel, quando então a empresa passou a ter a denominação de Fibria.
2
O termo deserto verde utilizado para designar a monocultura de árvores em grandes extensões de terra para a
produção de celulose.
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que envolve o movimento ambiental não se caracteriza apenas pelos agentes que o integram,
mas também pela sua forma de organização, dotada de características como descentralização
e atuação em rede, além do alto grau de penetração junto a sociedade.
Podemos situar o movimento ambiental inserido num contexto mais amplo e que
envolve uma gama de agentes que questionam o modelo de sociedade existente. Autoras
como Scherer-Warren (1996) e Ghon (2002) identificaram, no final do século XX, o
surgimento de novos grupos e mediadores que almejam atuar no sentido de estabelecer um
novo equilíbrio de forças entre Estado e sociedade civil, assim como no interior da própria
sociedade civil no que tange às relações de força entre dominantes e dominados.
Uma das principais características desses agentes, que emergem no final do século
XX, está relacionada à ideia de um projeto alternativo em construção, da qual resultará numa
ruptura com o tipo de modelo econômico de desenvolvimento estatal e cultural. Essas
modificações visam a elaboração de um plano de ações concretas da sociedade civil,
representando sua possibilidade de fortalecimento em relação ao próprio aparelho de Estado
e à forma tradicional da ação política através dos partidos.
Scherer-Warren (1994, p. 54) observa que a atuação desses agentes parte da noção
de existência de um autoritarismo relacionado com a ação das elites e que também é
reproduzido pelas classes dominadas em suas práticas cotidianas. Para a autora, esses novos
grupos almejam atuar no sentido de estabelecer um novo equilíbrio de forças entre Estado e
sociedade civil, sendo que esta última também é passível de mudanças através das relações
de força entre dominantes e dominados. No Brasil, esses agentes emergem com objetivo de
redefinir o espaço da cidadania, abalada principalmente durante o regime militar, devido a
uma exclusão relativa aos aspectos econômicos, políticos e cultural/ideológicos.
O surgimento desses novos agentes é considerado por Scherer-Warren (1994) como um
fenômeno mundial e envolve uma discussão sobre direitos que ainda não foram alcançados em
sua totalidade ou negados. Nesse aspecto, ganha destaque o debate que envolve a necessidade
de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, considerando a qualidade de vida como um
direito fundamental para todos os indivíduos da sociedade. Na luta por esse direito, o movimento
ambiental vem utilizando estratégias que visam realizar denúncias, divulgar ações, mobilizar e,
acima de tudo, chamar a atenção da população para a questão ambiental.
Um dos aspectos, em relação a essas estratégias, é a atuação em Rede. Podemos aqui
entender o conceito de rede a partir da perspectiva de Castells (1999, p. 566), que a entende
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como um conjunto de nós interconectados. Contudo, é interessante destacar a definição de
Rabelo (2004, p. 5), que trabalha a ideia de rede como consequência de gente, encontros,
projetos e desejos comuns. Nesse aspecto, os movimentos sociais, em específico o
ambiental, percebem que atuação e organização em Rede trazem novas possibilidades de
estratégias e formas de mediações junto ao público, a fim de atingir os seus objetivos.
Ao desenvolver suas ações em Rede, o movimento ambiental vem concedendo a
comunicação um status especial, tanto para difusão de suas pautas quanto para mobilização
e organização. De acordo com Castells (2001), o referido movimento vem demonstrando
grande capacidade de adaptação às condições de comunicação e mobilização apresentadas
pelo novo paradigma tecnológico. Fator que eleva as práticas de comunicação à categoria de
elemento estratégico e fundamental para adquirir visibilidade. Para conseguir o seu intento,
esses agentes passaram a agir na perspectiva de produção de conteúdos, mobilização e
interatividade a partir do ciberespaço ou de novas tecnologias de informação e comunicação.
Para autores como Castells (1999), o movimento ambiental integra uma nova
sociedade que se caracteriza por novas práticas sociais e utilização das tecnologias da
informação. Essa nova sociedade vem se caracterizando pelo surgimento de novas
formações sociais, onde o processo de comunicação cria uma interface entre campos
tecnológicos a partir de uma linguagem digital comum. Nela, a informação pode ser
intercambiada e difundida numa velocidade cada vez maior, trazendo uma perspectiva que
abarca tanto a busca por conhecimento e informação, quanto a ideia de autogestão.
Cabe ressaltar que, ao falarmos de comunicação neste estudo, não estamos nos limitando às
possibilidades do uso ciberespaço. Peruzzo (1998) chama a atenção para a importância de outras
formas de comunicação que se estabelecem a partir da comunidade denominada, pela autora, de
comunicação alternativa. Segundo essa autora, a comunicação considerada alternativa se estabelece
num contexto onde a padronização e a impregnação pelo consumo propicia o esgotamento das
formas e das opções. Nesse cenário, cresce a inserção de novos atores informativos e novas propostas
comunicacionais alternativas que visam questionar as grandes redes de informação.
A partir da utilização da tecnologia e de formas alternativas de comunicação, questões locais,
referentes à uma comunidade localizada num território, passaram a ganhar uma dimensão mundial.
Na ótica do movimento ambiental e de outros movimentos sociais, a comunicação passou a ser
encarada como expressão de um contexto de luta, voltada ao combate à degradação das condições
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de existência e pela defesa da vida. Constitui-se numa necessidade de expressão e organização,
enquanto recurso para existência desses agentes e da construção de uma nova sociedade.
2. O surgimento da Rede Alerta Contra o Deserto Verde
A Rede Alerta Contra o Deserto Verde tem sua origem ligada à luta das comunidades
indígenas pela demarcação de suas terras no início da década de 90. Segundo o Relatório Sobre a
Implantação e Atividades do Grupo Aracruz, no Território Capixaba (REDE ALERTA CONTRA O
DESERTO VERDE, 2002), durante a implantação da monocultura de eucalipto e do complexo
industrial da empresa Aracruz Celulose, a partir da década de 60, o referido grupo empresarial ocupou
uma grande concentração de terras no Espírito Santo. Segundo esse documento, uma parte dessas terras
pertencia a pequenos agricultores ou a comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas, cujas
famílias foram expulsas ou sofreram impactos causados pela atividade da empresa.
O relatório ressalta que essa ocupação foi legitimada pelo Estado e seguiu uma lógica
desenvolvimentista imposta no Brasil durante a ditadura militar. Essa situação foi alvo de
uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa do Espírito Santo, em
2002, quando foi constatada uma série de violações dos direitos dessas comunidades.
O processo de violação de direitos deu origem a um movimento ambiental contrário
à lógica desenvolvimentista patrocinada pelo Estado. A partir de relatos de entrevistas
realizadas com fundadores da Rede Alerta, Fabio Villas (ex-integrante do Conselho
Missionários Indigenista do Espírito Santo - Cimi-ES) e Winfried Overbeck (ex-técnico da
Federação de Órgãos Para Assistências Social e Educacional - Fase-ES), em 2004, foi
possível identificar o contexto e os motivos que derem origem ao seu surgimento.
Segundo os entrevistados a iniciativa de formação da Rede Alerta teve início com a
participação das comunidades indígenas capixabas no fórum “Campo e Cidade”, um encontro que
reuniu vários de movimentos sociais, ONG’s e sindicatos do Espírito Santo, na década de 90.
De acordo com Fabio Villas (Cimi-ES), o objetivo inicial foi promover uma articulação
entre os agentes participantes, não se caracterizando especificamente como um espaço que se
restringia à questão ambiental. Além da discussão sobre diversas temáticas existentes no Brasil e
no mundo, o fórum abordava desde o tipo de apoio que seria dado a uma entidade até a estrutura
de uma manifestação. Villas relata que inicialmente existia uma coordenação composta de
representantes de várias entidades, como: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
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(MST), Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), Movimento de Luta pela Moradia
(MLPM), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Federação de Órgãos Para Assistência
Social e Educacional (Fase-ES), Central Única dos Trabalhados (CUT), sindicatos, além de
representantes de gabinetes de deputados estaduais.
Villas ressalta que esse fórum encerrou suas atividades em 1998, devido ao que ele
considera ter sido ser uma crise na luta política nesse período, o que acarretou numa retração dos
movimentos populares. Segundo ele, essa retração estava ligada ao momento político do Espírito
Santo no final da década de 1990, com o fim do Governo Vítor Buaiz. Um governo cercado de
grandes expectativas por parte dos movimentos sociais, mas que na prática não se concretizou.
A ideia de atuação em rede começou em 1999, a partir da criação do Movimento Alerta Contra
o Deserto Verde. Segundo Winfried Overbeck (ex-técnico da Fase-ES), essa iniciativa teve origem
depois de um decreto do então governador José Inácio Ferreira, cuja finalidade era duplicar as áreas de
plantio de eucalipto no Espírito Santo. Segundo ele, isso gerou uma reação da sociedade civil,
especificamente entre os índios, carvoeiros, ONG’s e movimentos sociais. Esses agentes organizaram
uma mobilização contra esse decreto, culminando num protesto em frente a antiga sede Assembleia
Legislativa do Espírito Santo, localizada nesse período no Centro de Vitória, além da elaboração de
uma carta com a assinatura de várias entidades contrárias à medida do governo estadual.
Para Overbeck, o movimento institucional que deu origem a Rede Alerta foi uma reação
a esse projeto de expansão do plantio de eucalipto, que levou a uma série de impactos sobre
comunidades locais. A reação tinha também por objetivo estabelecer uma regulamentação
desses plantios no Estado do Espírito Santo. Segundo ele as entidades que participaram dessa
mobilização concluíram que o aumento dos plantios de eucalipto foi uma demonstração do
poderio econômico e da articulação política da empresa Aracruz Celulose. Dessa forma, as
entidades decidiram que era hora de aumentar a sua articulação e resistência, o que na percepção
de suas lideranças poderia ser feito por meio de ações organizadas através de uma Rede.
Assim a ideia de atuação em rede surgiu com o objetivo de aumentar a parceria entre
comunidades tradicionais e as associações, ONG’s e movimentos sociais que as apoiavam.
Ao mesmo tempo revelava-se como uma proposta alternativa de atuação e uma maneira de
criticar a existência de um terceiro setor vinculado às empresas e instituições financeiras.
Ainda de acordo com Overbeck, a ideia que envolve o debate promovido pela Rede
Alerta visa não se restringir à questão ambiental. Desde a sua origem, a Rede teve o objetivo
de promover uma discussão sobre o modo de vida das comunidades que foram impactadas,
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apresentando um questionamento da ideologia de que o desenvolvimento do Espírito Santo
está apoiado em grandes projetos econômicos, como o apresentado pelo setor de celulose.
Nesse processo de construção da Rede Alerta, a comunicação passou a ser encarada como
uma necessidade a ser debatida entre seus integrantes. Um dos motivos está relacionado ao
envolvimento de várias comunidades e à diversidade de ações promovidas pela Rede Alerta, o que
levou os agentes que integram a referida rede a pensar numa forma eficaz de comunicação entre os
segmentos que a compõem. Outro aspecto diz respeito à falta de visibilidade dos eventos promovidos
pela Rede Alerta, o que levou os membros da Rede à conclusão de que seria necessário estabelecer
uma estratégia de comunicação com intuito de superar aquilo que eles definem como boicote da
mídia do Estado do Espírito Santo sobre as notícias divulgadas pelo movimento.
3. A primeira quinzena de resistência ao Deserto Verde
Para melhor compreensão das estratégias de comunicação elaboradas pela Rede Alerta
analisaremos as ações desenvolvidas durante a “I Quinzena de Resistência ao Deserto Verde”,
realizada em 2002. A Quinzena de Resistência consistiu numa série de atividades realizadas pela
rede nos quinze dias que antecederam a inauguração da terceira fábrica da empresa Aracruz
Celulose, localizada em Barra do Riacho, bairro do município capixaba de Aracruz (Figura 1).
Figura 1 - localização do município de Aracruz e de Barra do Riacho, local que
concentra o complexo industrial de celulose.
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A Quinzena teve o objetivo de protestar contra a inauguração desse empreendimento, o que
na ótica da Rede Alerta configurava-se num símbolo dos avanços dos impactos socioambientais no
Espírito Santo e outros estados. As manifestações procuraram mostrar o repúdio dos movimentos
sociais a essa iniciativa, além de realizar uma grande divulgação junto a mídia nacional e
internacional referente a luta contra a expansão da monocultura de eucalipto e seus impactos.
A partir de um cronograma desenvolvido pelas entidades, as manifestações foram
realizadas nos três estados que concentravam entidades membros da Rede Alerta: Espírito Santo,
Rio de Janeiro e Bahia. No Espírito Santo, um dos locais escolhidos foi o município de São Gabriel
da Palha, cidade onde a empresa Aracruz havia aumentado sua área de plantio de eucalipto.
O município de Vitória foi outro local escolhido para a realização de manifestações, devido
à sua importância política envolvendo a concentração de instituições representantes do Poder
Público e por abrigar sedes de investidores no setor de celulose, como o Banco Safra (Figura 2).
Figura 2 - Manifestação em frente ao banco Safra, no Centro de Vitória, durante a I
Quinzena de Resistência ao Deserto Verde.
O ponto alto da Quinzena foi a manifestação realizada no município capixaba de
Aracruz, quando foram reunidas, em frente à área industrial da empresa, cerca de 800
pessoas no dia da inauguração da sua terceira unidade fabril (Figura 3). Esse ato teve o
objetivo de chamar a atenção das autoridades políticas estaduais e federais, como o então
presidente Fernando Henrique Cardoso, que esteve presente na inauguração do
empreendimento, além de veículos de comunicação de alcance nacional.
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Figura 3 - Manifestação em frente ao complexo industrial da empresa Aracruz
Celulose, durante a inauguração da nova unidade.
Dentro da proposta de chamar a atenção da população para os impactos causados
pela monocultura de eucalipto, a Rede Alerta elaborou ações de comunicação a partir dos
seguintes objetivos: esclarecer a comunidade sobre o problema envolvendo o deserto verde;
contratar um estagiário de comunicação para elaborar textos e materiais para divulgação;
reforçar e estabelecer algumas alterações da identidade da Rede Alerta Contra o Deserto
Verde através de símbolos já existentes (como a logomarca); desenvolver formas atrativas
de comunicação que envolvessem a sociedade (por meio de campanhas e eventos); divulgar
cartas e relatórios falando sobre os impactos causados pelo deserto verde no Espírito Santo.
A partir desses objetivos, a Rede Alerta elaborou uma série de ações e produção de
materiais para divulgação. Para melhor identificá-los, os dividimos da seguinte maneira:
I. Boletim informativo
A Rede Alerta elaborou durante esse período um boletim informativo (Figura 4) com
matérias e textos de integrantes da rede, cujo conteúdo relata os impactos causados pelo
deserto verde. Apesar da existência de edições anteriores, a Rede Alerta observou a
necessidade de se fazer um boletim com textos menores, de fácil leitura, congregando
informações de todas as comunidades impactadas.
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Figura 4 - Layout do boletim informativo da Rede Alerta elaborado para
a Quinzena de Resistência.
O layout do jornal também foi modificado, apresentando apenas chamadas com uma foto
que trouxesse um impacto ao leitor e despertasse a curiosidade sobre o conteúdo. Além das matérias
principais falando da inauguração da terceira fábrica da Aracruz Celulose, da divulgação de um
relatório do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC), documento
elaborado por organizações não governamentais em parceria com governos de países do continente
americano. O documento denuncia os impactos socioambientais causados pela empresa Aracruz
desde a sua instalação, cobrando reparações às comunidades que foram atingidas. Também foi criado
um espaço para matérias curtas, de no máximo quatro linhas, que informavam os impactos do deserto
verde em outros estados. Foram confeccionados dez mil unidades desse boletim.
II. Assessoria de imprensa
A partir da contratação de um estagiário, foram criados textos como: releases,
matérias para jornal e sites, com o objetivo de serem divulgados na mídia e por outras ONG’s
e movimentos sociais. A necessidade de um estagiário teve o objetivo de conceder um
melhor tratamento relativo às informações a serem divulgadas na imprensa e junto ao público
em geral. Além da produção de textos, como press release e matérias para o jornal, o
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estagiário também se encarregou de realizar o contato com os meios de comunicação e
elaboração de um clipping de notícias.
III. Material audiovisual e publicitário
Foram produzidas cópias do documentário “Cruzando o Deserto Verde”, do diretor
Ricardo Sá, que se tornou um importante instrumento de difusão dos efeitos do deserto verde no
Espírito Santo. Durante a Quinzena de Resistência foram realizadas sessões desse documentário
em lugares como Vila do Riacho (local próximo a planta industrial da empresa Aracruz Celulose),
São Mateus (município onde a referida empresa detém grandes plantações de eucalipto) e em
eventos organizados por estudantes da UFES no campus de Goiabeiras. A repercussão desse vídeo
rendeu ao seu diretor o prêmio de melhor documentário no “III Festival Internacional de Cinema
Etnográfico”, realizado no Rio de Janeiro, em 2002.
Em relação ao material publicitário, foram elaboradas camisas com a logomarca da
Rede Alerta e com fotos onde chamam a atenção para o deserto verde. A Rede Alerta
também se valeu da utilização de outdoors nos municípios de Vitória (Figura 5) e de Aracruz,
além de adesivos, banners e faixas utilizados nos eventos e manifestações e um cartaz. Sobre
os cartazes, foram reproduzidas seis mil unidades para serem distribuídas para a população,
imprensa e entidades do Brasil e do exterior através da internet.
Figura 5 - Outdoor na avenida Fernando Ferrari, em Vitória, durante
a I Quinzena de Resistência ao Deserto Verde.
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Conclusão
Ao analisar as estratégias desenvolvidas pela Rede Alerta no ano de 2002,
consideramos que houve sucesso em relação aos objetivos pretendidos. Com base nos
depoimentos de entrevistados e na análise de jornais desse período, é possível notar que as
mobilizações e a divulgação do material informativo chamou a atenção da população e
promoveu um debate sobre os impactos causados pelo deserto verde no Espírito Santo.
Um exemplo do alcance desse objetivo foi a cobertura dada por veículos de comunicação
de alcance nacional, como: O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo.
Esses veículos realizaram divulgação, tanto na versão impressa quanto na digital, sobre a
manifestação realizada na porta da fábrica da empresa Aracruz Celulose, bem como as denúncias
envolvendo os impactos causados pela monocultura de eucalipto e a violação de direitos humanos.
Diante do interesse da mídia nacional, os maiores veículos de comunicação capixabas, que até
então ignoravam essa temática, foram obrigados a noticiar as motivações da manifestação.
Outro aspecto importante a ser destacado tem relação com a produção e divulgação do
material informativo e publicitário. Esse material foi fundamental para a difusão das ideias da Rede
Alerta e divulgação dos efeitos causados pelo deserto verde nas comunidades impactadas. A
distribuição de cartazes, adesivos, panfletos, jornais, dentre outras peças, possibilitou que vários
segmentos da população tivessem acesso às informações sobre a temática envolvendo o deserto
verde, o que despertou interesse e ao mesmo tempo a busca de informação sobre o tema.
A combinação dessas estratégias de comunicação não apenas deu visibilidade aos
impactos causados pelo deserto verde, como também gerou uma resposta por parte da
Aracruz Celulose, que percebeu uma mudança em relação à opinião pública. Um indício
dessa reação foi o investimento maciço em campanhas publicitárias com intuito de transmitir
uma ideia positiva sobre o plantio de eucalipto. Mecanismo que segundo os representantes
da Rede Alerta não era utilizado com tanta frequência pela referida empresa.
Atualmente a Rede Alerta Contra o Deserto Verde tem procurado estabelecer laços
com outras entidades e com o poder público, empreendendo esforços para combater os
impactos causados não somente pelo deserto verde, mas também por outras atividades que
vem degradando o meio ambiente e violações de seus direitos.
Este estudo de caso envolvendo a Rede Alerta mostra a importância da comunicação
como elemento estratégico para a atuação de movimentos sociais. Observamos que a
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comunicação produzida por vários agentes do movimento ambiental vem procurando
associar formas de comunicação oriundas da comunidade com a utilização de recursos
tecnológicos, articulando-se através de uma rede. Essa comunicação vem contribuindo para
a propagação de uma crítica ao modelo de desenvolvimento implantado no Espírito Santo e
em todo mundo, além de produzir um questionamento referente ao modelo de comunicação
produzido pela grande mídia e os interesses aos quais está atrelada.
Referências
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Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar]. Rio de Janeiro: Relume-Durnará, 1992.
OVERBECK. Winfried. Winfried Overbeck: depoimento [jul. 2004]. Entrevistador:
Erick Alessandro Schunig Fernandes. Vitória, 2004. Entrevista concedida para elaboração
de monografia do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do
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PERUZZO, Cicilia Maria K. Comunicação nos Movimentos Populares: a participação
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SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. 2. Ed. São Paulo: Loyola. 1996.
SCHUNIG F. Erick A. Estratégias de comunicação em redes sociais estudo de caso da Rede
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VILLAS. Fabio. Fabio Villas: depoimento [jul. 2004]. Entrevistador: Erick Alessandro
Schunig Fernandes. Vitória, 2004. Entrevista concedida para elaboração de monografia do
Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo.
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NAS TRAMAS DO CONVENCIMENTO E DA RESISTÊNCIA À MINERAÇÃO
DO URÂNIO E FOSFATO
Francisco Hélio Monteiro Júnior
Mestre e doutorando em Sociologia - PPGS-UFC. E-mail: [email protected]
Resumo: Este artigo traz resultados parciais de minha tese de doutorado, em andamento pelo
Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (PPGS-UFC). Ele
problematiza as estratégias discursivas do convencimento e da resistência, respectivamente
favoráveis e contrárias ao Projeto Santa Quitéria de mineração e beneficiamento do fosfato e urânio
no semiárido do Estado do Ceará. As estratégias de convencimento utilizadas pelo Consórcio
englobam os discursos políticos da abundância e da necessidade e os discursos ambientais da
sustentabilidade do empreendimento. Respectivamente, os argumentos se referem às reservas
uraníferas existentes no país, à necessidade de explorá-las visando a diversificação da matriz
energética brasileira e, por fim, à sustentabilidade da energia nuclear. Essas razões são questionadas
pelos movimentos sociais e lideranças comunitárias, que se organizam na Articulação Antinuclear
do Ceará com o intuito de democratizar o debate e discutir os riscos, silenciados pelo empreendedor,
que envolvem a mineração do urânio para as comunidades diretamente impactadas pelo
empreendimento. As suas estratégias incluem a produção de um debate público, com ações
construídas coletivamente, como cartilhas acessíveis ao público em geral e contra relatórios técnicos,
realçando os problemas ambientais e sociais que provocará o empreendimento e apontando “falhas”
no processo de licenciamento ambiental.
Palavras-chave: discursos; convencimento; resistência.
Abstract: This article presents the partial results of my PhD thesis in progress by Postgraduate
Program in Sociology at Universidade Federal do Ceará (PPGS-UFC). It discusses the persuasion
strategies and resistance, respectively for and against the Santa Quitéria project on mining and
improvement of phosphate and uranium in the semiarid region of Ceará. The persuasion strategies
used by the Consortium include political speeches about abundance and need, and environmental
discourses based on the sustainability of the enterprise. Respectively, the arguments deal with
existing uranium reserves in the country, the need to exploit it aimed at diversifying the Brazilian
energy matrix and, finally, the sustainability of nuclear energy. These reasons are questioned by
social movements and community leaders, who are organized in Ceará Antinuclear Articulation in
order to democratize the debate and discuss the risks, silenced by the entrepreneur, involving uranium
mining to the communities directly impacted by the project. Its strategies include creating a public
debate, with collectively constructed actions, such as booklets accessible to the general public and
against technical reports, highlighting the environmental and social problems that will result in the
project and pointed "faults" in the environmental licensing process.
Keywords: discourses; persuasion; resistance.
Introdução
Este artigo problematiza as estratégias discursivas do convencimento e da resistência,
respectivamente, favoráveis e contrárias à construção, pelo Consórcio Santa Quitéria, de um
grande complexo mínero industrial de mineração e beneficiamento do fosfato e urânio no
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semiárido do Estado do Ceará. Trata-se de um projeto econômico de grande escala (PGE) como
discutido por Baines (2014), Santos (2013) e Ribeiro (1985; 2008), que acarretará diversos
impactos socioambientais para os grupos diretamente afetados por essa grande obra econômica.
O Projeto Santa Quitéria está sob a responsabilidade do Consórcio Santa Quitéria que
é uma parceria público privada (PPP) entre a Indústrias Nucleares do Brasil S/A (INB)1,
empresa de economia mista, vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que
integra o consórcio juntamente com a empresa privada Galvani Indústria, Comércio e Serviços
S. A., responsáveis pela instalação e operação da mina de urânio e fosfato de Itataia. O governo
estadual, através da ADECE2, investirá em obras de infraestrutura como pavimentação das
estradas que dão acesso ao local da mina, adutora de água e fornecimento de energia.
O empreendimento é justificado pelas lideranças políticas locais e nacionais e
empresariado pela necessidade de alavancar a produção de fertilizantes, tão cara ao
agronegócio e ampliar a produção de energia nuclear no país. O uso da competência do
discurso técnico-científico ou fala autorizada e especializada é a principal estratégia de
convencimento utilizada pelo Consórcio. São planos de ação e documentos que apresentam
cálculos de percentagem e estatísticas organizados em gráficos e tabelas que minimizam os
riscos, quantificam os bens naturais e os traduzem em recursos que geram investimentos e
lucros, disponíveis em relatórios técnicos, científicos e no estudo de impacto ambiental que
se investe da mesma competência.
Com o discurso da redenção do semiárido pelo desenvolvimento, o Consórcio e
apoiadores do Projeto Santa Quitéria (PSQ)3 defendem a sua execução pela geração de mais
de 2.000 empregos, segundo estimativas do próprio Consórcio. Essas razões que se
colocariam como imperativas são questionadas pelos movimentos sociais e lideranças
comunitárias, que se organizam na Articulação Antinuclear do Ceará (AACE), com o intuito
de democratizar os riscos que envolvem a mineração do urânio para as comunidades
diretamente impactadas pelo empreendimento. As estratégias de resistência da AACE
1
A INB possui monopólio do urânio no Brasil (Artigo 177 da Constituição Federal/1988), atuando em toda
sua cadeia produtiva que vai da mineração a fabricação do combustível que gera energia elétrica nas usinas
nucleares. Criada em 1988, a INB substituiu as Empresas Nucleares Brasileira S/A (Nuclebrás).
2
Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará S.A. - ADECE, Sociedade de Economia Mista sob o
controle acionário do Estado do Ceará, criada pela Lei nº 13.960, de 04 de setembro de 2007 e constituída pela
Assembleia Geral de 28 de setembro de 2007, é uma Sociedade Anônima regida pelas disposições da Lei das
Sociedades por Ações, por seu Estatuto e pela legislação especial que lhe for aplicável, vinculada ao Conselho
Estadual de Desenvolvimento Econômico - CEDE. Fonte: Estatuto Social, abril de 2014. Disponível em:
<http://www.adece.ce.gov.br/index.php/sobre-a-adece>. Acesso em: 07.04.2015.
3
Daqui em diante o Projeto Santa Quitéria será referido apenas pela sigla PSQ.
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incluem a formação de uma arena coletiva e pública sobre o PSQ, que abrange a produção
de cartilhas acessíveis ao público em geral, organização de grandes seminários sobre energia
nuclear, agronegócio, mineração de urânio e fosfato com moradores das comunidades
atingidas; elaboração de contra relatórios técnicos que também utilizam a competência da
fala autorizada e especializada, apontando os problemas ambientais e sociais que provocará
o empreendimento bem como “falhas” no processo de licenciamento ambiental.
1. As produções discursivas
A análise dos discursos assume um papel central na ecologia política e na antropologia
do desenvolvimento, como recurso metodológico para compreender as percepções
conflituosas das concepções4 de natureza e desenvolvimento presentes nos conflitos
socioambientais (HANNIGAN, 2009; ESCOBAR, 1999). A antropologia do desenvolvimento
em sua orientação pós-estruturalista afirma que linguagem e discurso não são reflexos da
realidade social, mas parte dela mesma, constituindo vias analíticas importantes para a
compreensão dos elementos constitutivos da realidade (ESCOBAR, 1999). Assim, o
desenvolvimento não é exclusivamente uma realidade traduzida em números e grandes
projetos econômicos com um fim em si mesmo. O desenvolvimento depende da linguagem
que o quantifica e tenta isolá-lo das suas construções simbólicas/nativas.
Para Escobar (1999), o conceito de discurso permite ao pesquisador ir além das
dualidades que apartam o ideal do real, o simbólico do material, a produção do significado,
permitindo descortinar as estratégias de legitimação discursivas presentes nas lutas discursivas
sobre a viabilidade, os riscos, perigos dos projetos de desenvolvimento, como o PSQ. Analisar
a produção discursiva (Foucault, 2004; 2006) é atentar para estratégias e ações, para o dito e
não dito que são acionados pelos sujeitos sociais em concorrência, a fim de estabelecer
“verdades” e “des-verdades” sobre o PSQ. Como assevera Veyne (2011, p. 26), explicitar um
discurso ou uma prática discursiva consiste em interpretar o que as pessoas fazem ou dizem,
em compreender o que supõe seus gestos, suas ações, suas palavras e suas instituições.
Segundo Veyne (2011), os caminhos da aventura humana são compreensíveis pela
utilização de algumas grandes palavras como universalismo, individualismo, identidade e
4
Concepções aqui se refere a um conjunto de ideias, hipóteses, obsessões, julgamentos, discursos e posições políticas
que classificam o mundo real revelando as estruturas de significado em que se dá a luta por essa realidade.
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racionalização. Eu acrescentaria a palavra desenvolvimento que, em conjunto com as outras
palavras, se tornou um clichê que pouco explica os fatos. Deve-se observar que sob cada
uma dessas palavras podem-se colocar coisas. São essas coisas que procuro explicitar a partir
das “causas” e “efeitos” do Projeto Santa Quitéria, alocadas em dois conjuntos
complementares: da problematização dos discursos do convencimento e da resistência. No
primeiro conjunto, temos os discursos do desenvolvimento em que está presente a crença no
crescimento econômico, na modernização, na industrialização pela exploração dos bens
naturais; no segundo, os discursos do desenvolvimento como ameaça em que a ideia de
desenvolvimento ganha outros sentidos como o de risco e perigo.
2. Nas tramas do convencimento: os discursos políticos da abundância e da necessidade
e os discursos ambientais da sustentabilidade do desenvolvimento
Em se tratando de um tema que envolve a geração de energia nuclear que tem na
exploração do urânio sua matéria-prima e a produção de fertilizantes a partir do fosfato, a
competência do discurso técnico-científico ou fala autorizada e especializada5 revelada em
cálculos de porcentagem, probabilidades e estatísticas alocados em gráficos e tabelas que
quantificam os bens naturais e os traduzem em recursos naturais que geram investimentos e
lucros, disponíveis em relatórios técnico-científicos e em estudos de impactos ambientais,
acionados pelo Consórcio Santa Quitéria para legitimar sua posição.
Com isso objetivam minimizar os impactos socioambientais da mineração do urânio
e do fosfato, que são apontados pelos movimentos sociais, e persuadir a população de Santa
Quitéria, as lideranças políticas e comunitárias locais ainda não convencidas e a opinião
pública de que vale a pena investir no PSQ como caminho mais acertado para garantir
emprego e auferir maior arrecadação para o município de Santa Quitéria, com condições de
revertê-la em conquistas estruturais para os distritos da zona urbana e rural.
5
Bourdieu (2013, p. 95-102) afirma que a competência do médico ou do jurista é uma competência técnica
instituída e garantida juridicamente, que lhe dá autoridade para se servir de saberes científicos que estão
subordinados a um poder social que organiza o campo no qual são construídos e reproduzidos. O saber médico
que diagnostica a partir de indícios corporais e verbais fornecidos pelo paciente, é construído por uma relação
social dissimétrica em que é feita uma tradução dos relatos daquele nos termos que institui o campo médico,
relativamente autônomo. Muito próximo ao mecanismo que institui essa competência está aquela que é
delegada e que se investem acadêmicos que ocupam um lugar na burocracia técnica e especializada, autorizados
para fazerem medição, testes, catalogação; convocados a darem pareceres, construir relatórios e estudos que
estão investidos de legitimidade para construir e orientar uma leitura do mundo social.
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Nota-se que para fortalecer o discurso da promoção do desenvolvimento local/regional
acima mencionados, o Consórcio, favorecido pela parceria público-privada com a INB, trata
o Projeto como de interesse público (e bom para todos) ainda que seja de iniciativa mista
(público-privada) com participação do capital transnacional. A visada ampliação da produção
de fertilizantes pela Galvani S. A. com a produção do fosfato de Santa Quitéria, atenderá aos
interesses econômicos da multinacional norueguesa Yara Agrofértil, líder mundial na
produção de fertilizantes. Esses interesses se concentram na ampliação da produção de
commodities para exportação, beneficiando as redes de empresas que conformam um
emaranhado de interesses econômicos e políticos em torno da expansão da produção do
agronegócio, alavancando sua posição na produção de fertilizantes no Brasil e no Mundo.
Em agosto de 2014, a Galvani. S. A. anunciou um acordo de joint venture6 com a
Yara Agrofértil. Nesse acordo a Galvani se disponibilizou a vender 60% de suas ações,
abrindo a participação do Grupo Yara no seu Conselho de Administração e Gestão. O
referido Grupo atua na produção e comercialização de fertilizantes e matérias primas e na
operação de um terminal portuário no Rio Grande (RS). Assim, embora essa “compra” não
seja mencionada, a Yara Agrofértil é parceira na execução de projetos como o de Santa
Quitéria e em Salitre7, onde estão investidos cerca de US$ 900 milhões de dólares. O
presidente da Yara Brasil afirmou sobre a formação da joint venture que “a parceria irá
contribuir para o desenvolvimento de uma agricultura ainda mais rentável e sustentável,
ajudando a reduzir a dependência de fertilizantes no Brasil”8 (Grifo nosso).
Esse discurso ecologicamente interessado se ajusta à defesa do empreendimento pela
sua sustentabilidade e necessidade, partilhado com naturalidade pelos representantes do
Consórcio. Em uma audiência pública promovida pela Câmara Municipal de Santa Quitéria
6
Joint venture é um tipo de cooperação tecnológica que visa a transferência de tecnologia entre empresas
estrangeiras e nacionais (privadas ou estatais). Esse tipo de acordo regulou, por exemplo, a cooperação
tecnológica proposta no Acordo Nuclear Brasil/ Alemanha para a construção dos reatores nucleares de Angra
I e II. Para Vidal (1988) esse tipo de cooperação confere vantagens à penetração do capital transnacional,
mantendo as economias nacionais numa posição periférica. Em princípio os cooperados dividem a propriedade,
os lucros, o processo de tomada de decisões e os riscos. Mas pelo domínio tecnológico aliado a maior
rentabilidade obtida depois da cooperação, as empresas estrangeiras acabam exercendo o controle e os rumos
da “nova” empresa. Para mais detalhes sobre os tipos de cooperação presentes no Acordo Nuclear
Brasil/Alemanha cf. ROSA et al, 1988, p. 64-69. Sobre as joint ventures como estratégia de penetração
estrangeira ou formas de dominação cf. VIDAL, 1988, p. 128-160.
7
Trata-se do Projeto Serra do Salitre de mineração de fosfato no município de Serra do Salitre, localizado no
Alto Paranaíba, em Minas Gerais.
8
Cf. Raízes, informativo do grupo Galvani, Ano XII, n. 68, julho/agosto de 2014. Disponível em
<http://www.galvani.ind.br/pdfs/raizes-68.pdf>. Acesso em: 20.08.2015 e “Cade aprova compra de controle
da Galvani pela Yara Agrofértil” disponível em: <http://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/
2014/10/cade-aprova-compra-de-controle-da-galvani-pela-yara-agrofertil.html>. Acesso em: 20.08..2015.
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em parceria com a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, realizada no dia 07 de abril
de 2014, onde estiveram presentes diversas lideranças políticas, membros do MST, da
Associação Antinuclear do Ceará - AACE, o Dr. Zé Roberto, funcionário da INB no Ceará
fez, em sua fala, referência ao Plano Nacional de Energia (PNE-2030), que prevê maior
investimento na diversificação das fontes de energia no país, para justificar a “importância
nacional” do empreendimento.
Após a exibição de um vídeo institucional, que teve a intenção de esclarecer o
empreendimento desde a perspectiva do Consórcio, aliás os vídeos e apresentações em Power
Point cumprem com uma formalidade institucional, mas são pouco didáticos e eficazes em
levantar problemas e propor soluções, o Dr. Zé Roberto continuou, com o uso de uma linguagem
técnica e pouco familiar aos grupos que estão fora das redes “tecnocientíficas”, quantificando a
capacidade de produção da rocha fosfática, do ácido fosfórico, dos fertilizantes, do fosfato
bicálcico e do concentrado de urânio (yellowcake) pela mina de Itataia.
Ao seguir sua fala, chega-se a uma miríade de documentos e planos elaborados sobre
encomenda do Governo Federal, como a Matriz Energética Nacional - MEN 2030 (2007, p. 143)
que compõe com o Plano Decenal de Energia 2007/2016 e o Plano Nacional de Energia - PNE
2030, o documento basilar dos rumos que deverá seguir a política energética nacional e que afirma:
As expectativas de expressivo aumento do consumo mundial de energia,
especialmente, as preocupações crescentes com a segurança energética e
as pressões ambientais, sobretudo com relação às emissões de gases de
efeito estufa, têm realocado a opção nuclear na agenda dos fóruns mundiais
de energia, em geral, e dos países.
E segue em sua proposta de ampliação da geração de energia nuclear, justificando-a
por meio de uma leitura da abundância, que aponta a “razão do Brasil possuir uma das
maiores reservas mundiais de combustível nuclear, o urânio, que não tem atualmente
nenhum outro uso industrial corrente que não seja a geração de energia elétrica” (2007, p.
216-218). Outro argumento é o da sustentabilidade em que aparece a “necessidade de
redução de níveis de emissões de CO2 provocadas pelas demais fontes de geração térmicas”.
As redes de um “sistema de convencimento”9, que produzem e reproduzem esses
dois discursos, perpassam instituições acadêmicas, repartições burocráticas do Ministério de
9
Expressão utilizada por Bruno Latour (2000, p. 295) para se referir às nações, instituições, laboratórios,
cientistas, engenheiros, envolvidos na produção e reprodução em rede da tecnociência, responsável por
substituir crenças subjetivas por conhecimentos “objetivo” e “verdadeiros”.
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Minas e Energia, publicações científicas e planos governamentais que, comparativamente,
argumentam que as emissões de dióxido de carbono da cadeia energética nuclear são muito
baixas, situando-se entre 10g e 50g de CO2/KWh, próximo ao nível emitido pela cadeia
energética eólica e muito inferior às taxas de dióxido de carbono da cadeia energética dos
combustíveis fósseis, que variam de 450 a 1200g CO2/KWh.
Dessa forma, o discurso da abundância e da sustentabilidade fornece legitimidade
ao empreendimento, tratado como produto de um cálculo racional trazido pelo relatório da
Empresa de Pesquisa Energética - EPE, que é favorável à expansão da energia nuclear, sem
a qual a Eletronuclear, subsidiária da Eletrobrás, não terá viabilidade econômica.
O PNE veio à tona em 2007 e desde então suscita um amplo debate acadêmico sobre
os termos em que a geração de energia é colocada. Moralez e Favareto (2014), Magalhães
(2014) e Moralez (2010) afirmam que o Plano corrobora a ideia de que desenvolvimento é
sinônimo de crescimento econômico e que para se desenvolver é preciso ter mais energia
disponível. Segundo Moralez (2010, p. 67), o texto do PNE - 2030 “condiz com a promoção
do crescimento incondicional. Como não há discussão sobre a interdependência dos problemas
sociais e ambientais perante este tipo de crescimento, a área econômica aparece como bastante
autônoma, deslocada de seu enraizamento nas estruturas sociais e no meio-ambiente”.
Portanto, é a rentabilidade econômica, associada à ideia de sustentabilidade,
proveniente do modelo de gestão que se pauta na modernização ecológica, que orientam as
ações a serem planejadas e executadas pelo Governo Federal, a despeito da dimensão
socioambiental que se afirma estar presente e orientando a construção do PNE.
A defesa da “sustentabilidade” da geração de energia elétrica nuclear, aparentemente
“mais limpa” do que outras fontes não renováveis como o carvão, o petróleo e seus derivados,
silencia sobre a relação da mineração do urânio com a degradação do meio ambiente e
comprometimento dos bens naturais que garantem a manutenção e reprodução da vida de
pequenos agricultores e comunidades rurais de Caetité, na Bahia e de Santa Quitéria, no Ceará.
De fato, o discurso da sustentabilidade encontra-se com a legitimidade daqueles que
o afirmam. Na audiência pública, que difere da anteriormente citada, pois faz parte do
processo de Licenciamento Ambiental do PSQ, que ocorreu em Santa Quitéria, em
novembro de 2014, os representantes da INB e membros do Conselho Nacional de Energia
Nuclear (CNEN) se investiam constantemente da autoridade trazida pelos dados construídos
por essa rede de instituições credenciadas para diagnosticar, planejar e estabelecer metas,
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recorrendo a seus dados e informando aos ouvintes de sua formação científica e de seus
títulos de doutoramento para estabelecer uma linha assimétrica de distanciamento dos
interlocutores de outras áreas do saber e de todos os “outros” despossuídos dos códigos
dominantes, portanto descredenciados para afirmarem algum conhecimento “verdadeiro”.
Utilizavam-se também de um discurso comparativo superficial que toma como
referência unidades produtoras que estão em operação em outras localidades do país.
Naquele momento a mina de urânio de Caetité foi apresentada como referência na gestão
dos riscos ambientais e promoção do desenvolvimento local pela alocação de mão de obra10.
Um meio de comunicação acionado pelo Consórcio como instrumento de “democratização
das informações” é a circulação de um Boletim Informativo impresso e disponível online11,
que, curiosamente, não chegou ao segundo número e algumas cartilhas esclarecendo a partir
de seus interesses o que é radiação e a importância da exploração do uranio e fosfato. Ambos
têm, portanto, um alcance bastante limitado para aquilo que se propõem: informar e
promover um debate qualificado sobre a mineração do urânio e fosfato.
Somando-se aos discursos favoráveis para fomentar a mineração do fosfato de Santa
Quitéria, tem-se ainda a produção da necessidade imposta pelo discurso produtor, que
responde aos interesses do agronegócio de produzir fosfato para atender ao mercado interno.
O Brasil é o quarto maior consumidor mundial de fosfato que atende principalmente ao setor
agrícola vertidos em fertilizantes, mas produz somente 4% dessa produção. Com a mineração
do fosfato, em Santa Quitéria, pretende-se que o Brasil assuma sua autossuficiência na
produção de fertilizantes. Aquilino Senra, presidente das Indústrias Nucleares do Brasil (INB),
afirmou recentemente em entrevista ao jornal O Povo, sobre Itataia:
É uma mina de fosfato, só que esse fosfato está associado ao urânio, já que os
dois estão juntos na rocha. O Brasil é altamente dependente de insumos para
fertilizantes agrícolas. O País é um gigante da área agrícola, mas é um gigante
pé-de-barro, porque a maior parte dos fertilizantes que usamos vem do
exterior: 75% do potássio do Brasil vêm da Rússia. E 50% da nossa demanda
de fosfato é importado. Isso cria vulnerabilidades. Além disso, os produtos não
10
Esse discurso é reiterado apesar de ter sido objeto de contestação pelo relatório da Plataforma DHESCA Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, em 2011, que
apontou que a mineração do urânio, em Caetité, provocou a diminuição da oferta de água, contaminou-a com
resíduos de urânio, ocasionou a desvalorização das terras agricultáveis e comprometeu o escoamento dos
produtos cultivados na região, uma vez que eram evitados pelos consumidores que temiam os efeitos da
radiação nos gêneros alimentícios. Essas denúncias foram recentemente reconhecidas pelo Ibama, que a pedido
da Ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, determinou a suspensão do consumo da água dos poços da
região de Caetité e Lagoa Real, na Bahia.
11
Disponível em: <www.consorciosantaquiteria.com.br>. Acesso em: 01.08.2015.
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são bem distribuídos no País, já que 75% da demanda dos fertilizantes estão
no Sudeste, 15% no Sul e 10% no Nordeste (MARQUES, Janaína. Modelo
inédito de extração será aplicado no Ceará. O Povo online, 27.07.2014).
De fato, destacando os argumentos técnicos e políticos da execução do Projeto Santa
Quitéria vê-se que ele é imprescindível no horizonte de expansão da geração de energia nuclear
e do programa nuclear brasileiro. As justificativas no atual momento para a exploração da
reserva mineral giram em torno das demandas estruturais de um modelo socioeconômico que
tem no crescimento econômico e no estímulo ao consumo a promoção do “desenvolvimento”.
3. Nas tramas da resistência: a construção do espaço público como espaço do diálogo
e das ações coletivas como estratégia de resistência ao desenvolvimento que chega
como ameaça
Objetivando a construção de outras perspectivas de avaliação do PSQ, os movimentos
sociais reunidos na AACE contestam o discurso da abundância, da sustentabilidade e da
necessidade, colocando em pauta modelos de desenvolvimento e gestão do território que
valorizam as atividades culturais e econômicas da população rural que tem um sentimento de
pertença com o lugar historicamente construído. Em encontros, seminários e audiências
públicas buscam-se discutir e ampliar a percepção dos moradores sobre os efeitos negativos
do empreendimento, que são minimizados ou negados pelo empreendedor.
Pode-se dizer que nos últimos cinco anos, vem se formando uma efetiva arena pública
de debate acerca do empreendimento a partir do momento em que passa a atuar nas comunidades
impactadas pelo PSQ movimentos sociais, com objetivo de auxiliá-las na construção de uma
resistência ao caráter impositivo da obra. Um marco nesse processo foi o Seminário sobre a mina
de Itataia, ocorrido entre os dias 04 a 06 de maio do ano de 2011, promovido pela AACE, que é
composta pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Comissão Pastoral da
Terra (CPT), Cáritas Diocesana de Sobral e Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde da
Universidade Federal do Ceará (Tramas/UFC), lideranças comunitárias das comunidades
impactadas e professores-pesquisadores da UFC, em que se discutiu os modelos de
desenvolvimento, o que é e para que serve o urânio, o que é energia nuclear, dentre outras
questões que são basilares na desconstrução dos discursos do convencimento.
A audiência pública realizada pelo Consórcio Santa Quitéria, em parceria com a
Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, em 07 de abril de 2014, já referida neste paper,
marcada pelo acirramento das posições dos interlocutores, também se constituiu em um
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momento de explicitação dos conflitos em que as posições sociais são assumidas, os
interesses revelados e as estratégias de atuação de cada grupo junto às comunidades são
acionadas para legitimar seus posicionamentos.
Elas se referem às formas de relação que são estabelecidas pelos grupos contrários e
favoráveis à mina com os moradores impactados pelo PSQ. Essas formas são pautadas, de
um lado, pelo distanciamento que trazem consigo o discurso da abundância, que só vê o
urânio e o fosfato em grande quantidade no semiárido cearense e os números de empregos
que serão gerados; de outro, pela relação de proximidade que AACE constrói com os
moradores, pautada na ação coletiva e tomando-os como sujeitos ativos e que são os
principais interessados nas razões e consequências do PSQ:
A Articulação trilha caminhos nas comunidades de base para fazer jus ao
planejamento. Escuta o povo, pergunta e constroem-se coletivamente
conceitos a partir do entendimento das pessoas e através da contribuição
dos/as facilitadores dos diversos momentos de reuniões. A principal ideia
foi e continua sendo desmistificar a ideia de desenvolvimento ressaltada
pelo governo e as empresas com a chegada do empreendimento e ao
mesmo tempo reforçar os modos de vida camponesa que historicamente
são enraizados nas comunidades e precisam ser valorizados respeitado
(Erivan, membro da AACE)12.
Nos seminários organizados pela AACE procura-se desconstruir mitos que são
construídos pelos argumentos do convencimento, como discutido anteriormente. Um deles
defende a necessidade do fosfato para alimentar a cadeia do agronegócio, tomado como um
modelo competente de produção que “resolveu o problema da produção de alimentos para o
povo brasileiro” (AACE, Ata de Seminário, 2011).
A AACE debate o agronegócio como um competente modelo de agricultura
industrial e química que depende do amparo do Estado, por meio de incentivos fiscais. A
agricultura familiar, por sua vez, gera mais trabalho e é, de longe, mais “sustentável” pela
geração de emprego e renda, que gera afinada com práticas de plantio e colheita menos
degradante ao ambiente (AACE, Ata de Seminário, 2011).
Trabalhando diretamente com a população rural, a AACE visa construir uma rede de
interlocutores que se constituam como articuladores locais autônomos e empoderados para
12
Disponível em: <http://brasilantinuclear.ning.com/profiles/blogs/atividades-desenvolvidas-pela-articulacaoantinuclera-do-ceara>. Acesso em: 22.08.2015.
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construir resistências (apesar da descrença de parte dos moradores que afirmam categoricamente
que contra o poder do Estado não podem nada), fortalecer a ação coletiva e a ideia de comunidade.
A Articulação utiliza também o espaço das redes sociais como meio de comunicação/interação,
para compartilhar informações relativas à mineração do urânio no Brasil e temas correlatos à
geração de energia nuclear. Se no primeiro caso a estratégia é de convencimento, nesse a estratégia
é denunciar as ameaças que representam os grandes projetos econômicos, incluindo aqueles
referentes à única mina de urânio em operação na América Latina, em Caetité, na Bahia, apontar
as lacunas no EIA e fomentar uma crítica ao encaminhamento dos debates, sobretudo, em relação
à postura adotada pelo Consórcio Santa Quitéria.
Na referida audiência do dia 07 de abril de 2014, ficou evidente como os grupos favoráveis
ao PSQ se apropriam estrategicamente dos lugares e dessas ocasiões de debate, afirmando que a
audiência representa um momento importante para a “avaliação dos desejos da população”, mas
que se converte em mais uma oportunidade para apresentar vantagens da mineração do urânio e
fosfato num clima crescente do acirramento das posições com os grupos contrários à obra.
Nas palavras da AACE, “utilizam-se [o Consórcio e seus apoiadores] de uma
democracia impositiva e chamam-na de participativa” (AACE, Ata de Seminário, 2011). A
própria dinâmica das audiências públicas desfavorece a participação democrática. Tomando
como referência as audiências públicas que debateram o PSQ, aqueles que falaram primeiro,
e esse raciocínio também é valido para as audiências do processo de licenciamento
ambiental, foram os legítimos representantes da fala autorizada, investidos da autoridade que
o cargo público, a formação científica ou a representatividade lhes conferem.
Diante da primazia de um discurso que impõe a necessidade da geração de energia nuclear
e, por sua vez, da extração de urânio, as denúncias se constituem numa alternativa para afirmar o
que não é dito. As denúncias geralmente são realizadas por entidades de defesa dos direitos
humanos ou ONG’s ambientalistas como o Greenpeace, que tem como bandeiras de atuação a luta
contra mineradoras, extração do urânio e produção de energia nuclear. Os movimentos sociais
produzem cartilhas acessíveis ao público em geral, organização de seminários envolvendo os
moradores das comunidades impactadas e contra relatórios técnicos realçando, os problemas de
ordem ambiental, social e de saúde pública que provocará o empreendimento 13.
13
Remeto o leitor a uma nota do TRAMAS - UFC que integra a Articulação Antinuclear, assinada em 16 de novembro
de 2014, se posicionando em relação ao PSQ em que apontava uma série de lacunas no EIA/RIMA, cobrava
procedimentos de caráter técnico e administrativo ausentes no referido documento e postura política mais democrática
por parte do IBAMA, responsável pela condução das audiências públicas, visando a licença prévia (LP). Disponível
em: <http://www.tramas.ufc.br/wp-content/uploads/2014/11/NOTA-TRAMAS_final.pdf>. Acesso em: 17.11.2014.
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A Cáritas Diocesana de Sobral (CDS), em colaboração com a Articulação Antinuclear,
moradores e lideranças comunitárias de Riacho das Pedras e Morrinhos, duas comunidades
das mais de 25 comunidades impactadas pelo PSQ, construíram uma cartilha intitulada: No
Ceará: a peleja da vida contra o urânio, em que procuram destacar o que é chamado de cultura
camponesa com seu modo de fazer e ver o mundo. Dividida em nove capítulos, a cartilha
procura responder questões sobre a mineração do urânio e fosfato e apontar caminhos
alternativos a exploração mineral14. Nela encontram-se contra-argumentos construídos numa
linguagem coloquial que não prescinde de dados quantitativos para se contrapor às
“interpretações oficiais”. Encontrei essa cartilha na casa de uma das lideranças comunitárias,
que a apresentou todo orgulhoso de ter contribuído para a sua construção.
Considerações Finais
Finalmente, tanto nas estratégias de convencimento quanto nas de resistência ao
PSQ, os discursos constituem um saber-poder com sua especificidade, suas técnicas e suas
táticas que balizam as vantagens econômicas, os riscos e perigos na manipulação de produtos
e artefatos potencialmente radioativos. De alguma forma, os discursos são incorporados na
fala do “outro”, pequeno agricultor, criador, desempregado, estudante que assimila e
significa os elementos constitutivos desse debate a partir de um lugar específico que ocupa
nas relações sociais de poder.
Existe um conflito explícito marcado pela produção e reprodução de verdades sobre
os riscos, os perigos, as vantagens e os impactos do Projeto Santa Quitéria. E um outro
conflito implícito que não é pelo estabelecimento de uma “verdade”, como haveríamos de
cogitar prontamente. Mas pelo domínio de um conjunto de orientações (racionais – técnicas;
ambientais – sustentáveis; capitalistas – econômicas) e procedimentos que legitimam as
interpretações favoráveis e contrárias acerca do PSQ.
Não foi minha intenção com esse artigo invalidar o conteúdo “objetivo” perseguido
pelos apoiadores do PSQ e por aqueles que se colocam contrários a ele. Muito menos avaliar
14
A cartilha está dividida nos seguintes capítulos: 1. O chão da beleza merece ser respeitado; 2. Territórios
ameaçados; 3. Urânio, fosfato e energia nuclear – o que é?; 4. Energia cara e perigosa: como o nuclear é
explorado no Brasil; 5. As ameaças do presente que temos em Caetité; 6. Caminhos de luta da Articulação
Antinuclear do Ceará; 7. Resistências camponesas; 8. Nas tramas da pesquisa-ação; 9. Alternativa camponesa
à Mina de Itataia. Disponível em: <http://caritas.org.br/wp-content/uploads/2014/01/No-Cear%C3%A1-APeleja-da-Vida-Contra-o-Ur%C3%A2nio-FINAL.pdf>. Acesso em: 12.08.2015.
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as estratégias discursivas adotadas ou cair num relativismo infrutífero afirmando,
ingenuamente, que os dados que põem frente a frente os discursos do convencimento e da
resistência são construções fictícias, no sentido de serem falsos.
Ao contrário, exatamente pelo fato do PSQ ter um papel econômico, político e
cumprir com uma função social segundo interesses e orientações econômicas e políticas,
ligadas à uma agenda nacional e transnacional de desenvolvimento, os discursos que se
confrontam estão lidando constantemente com o que é dito e como dizê-lo; o que é ocultado,
ignorado, revelado e para quem se dirige os dados, as interpretações e as (in) formações. O
que orientam essas questões são decisões políticas que munidas da linguagem técnicocientífica intentam sua legitimidade.
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CRISE HÍDRICA, GESTÃO AMBIENTAL E PERCEPÇÃO SOCIAL
Gabriel Keller Franci
Bacharel em Ciências Sociais - UFES
Aline Trigueiro
Professora - UFES
Resumo: O presente estudo visou identificar como moradores de dois diferentes condomínios
residenciais no município de Vila Velha/ES têm lidado com a temática da escassez de água. Pretendeuse identificar se houve mudanças de comportamento com o aumento da exposição do tema da escassez
na mídia. Para tanto, foi feita uma revisão bibliográfica considerando como referencial teórico o
conceito de risco. Em seguida, foram aplicados questionários aos dois empreendimentos em questão
com objetivo de identificar mudanças de comportamento, se a escassez de água era de fato um risco
para os entrevistados, além de avaliar o conhecimento dos moradores acerca de opções de conservação
de água. Também foram realizadas entrevistas com os síndicos dos prédios. Os resultados indicam que
a população está alarmada com as notícias que retratam casos de crise no abastecimento de água e de
escassez desse recurso em cidades vizinhas, e mostram também que houve mudanças individuais de
comportamento, porém, ainda sem um efetivo engajamento coletivo, ou movimento institucionalizado.
Portanto, esta pesquisa teve como objetivo contextualizar a discussão sobre a percepção social da crise
hídrica em dois condomínios residenciais em Vila Velha/ES, abordando aspectos que contribuam para
a melhoria dos processos de gestão e governança deste bem.
Palavras-chave: crise hídrica; risco; governança.
Abstract: This study aimed to identify how residents of two different residential condominiums in
the city of Vila Velha/ES have been dealing with the issue of water scarcity. It was intended to
identify if there were behavioral changes with increasing media exposure of the scarcity theme. To
that end, we made a literature review considering the concept of risk as a theoretical framework.
Then questionnaires were given to two projects in question in order to identify changes in behavior
if the water shortage was indeed a risk to respondents, and to evaluate the knowledge of residents
about water conservation options. Interviews were also conducted with the liquidators of the
buildings. The results indicate that the population is alarmed by reports that depict cases of crisis in
water supply and scarcity of this resource in neighboring cities, and also showed a significant
individual changes in behavior, however, still without an effective collective engagement, or
movement institutionalized. Therefore, this study aimed to contextualize the discussion about the
social perception of water crisis in two residential condominiums in Vila Velha/ES, addressing
aspects that contribute to the improvement of the management and governance processes of this well.
Keywords: water crisis; risk; governance.
Introdução
Vigorou nas sociedades urbanas, por boa parte de nossa história, o ideário de que a
água é um bem abundante e inesgotável. Recentemente este fato tem sido desmistificado
pela escassez e também pela má qualidade da água que tem chegado para os usuários de
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sistemas de abastecimentos públicos. Dessa forma, este bem, cujo acesso é definido pela
UNESCO como um direito universal, tem se mostrado cada vez mais indisponível.
O ‘mito’ da abundância hídrica no Brasil impediu que se formasse uma consciência
pública acerca da escassez de água entre a população e, consequentemente, contribuiu durante
anos para o afastamento dos indivíduos dos processos de tomadas de decisões. Contudo,
recentemente, casos divulgados pela mídia retratam diversas cidades brasileiras sofrendo com
a falta de água. Dentre os casos emblemáticos, o estado de São Paulo1. O risco, até então
novidade para maior parte dos brasileiros, chamou a atenção e gerou alarde para uma parte
significativa da população da região sudeste do Brasil. Portanto, a percepção social do risco, a
legitimação social da escassez como um problema ambiental e a democratização da tomada
de decisões, tornam-se pontos fundamentais para contribuir com essa discussão.
Considerando essa perspectiva, a presente pesquisa teve como motivação
compreender de que modo a problemática da escassez dos recursos hídricos tem afetado o
cotidiano e as percepções sociais de indivíduos habitantes do espaço urbano, alterando (ou
não) de modo substantivo seus estilos/modos de vida2. Como pano de fundo, pretendeu-se
problematizar as formas de gestão e uso desse bem, assim como refletir sobre os processos
sociais que tornam a questão da água um tema de destaque na atualidade.
Neste contexto, esse trabalho teve como objetivo geral:
 Identificar como moradores de dois diferentes condomínios residenciais no município de
Vila Velha/ES têm lidado com a temática da escassez de água, usando essa amostra como
um caso relevante para pensar a questão da crise hídrica em evidência na mídia.
Os objetivos específicos foram:
 Avaliar as percepções sociais dos moradores desses dois condomínios acerca da
escassez de água;
 Analisar possíveis interpretações sob a ótica do risco;
1
São Paulo registra pior seca da história (2014). Disponível em <http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/
2014/12/sp-registra-pior-seca-da-historia.html> visualizado em 04.08.15.
2
Esse estudo foi realizado a partir de uma análise comparativa entre o conjunto de moradores de dois
condomínios na localidade de Vila Velha/ES.
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 Avaliar a percepção dos moradores sobre a relevância de práticas individuais de
conservação da água perante o problema.
1. Revisão bibliográfica
Em São Paulo, de acordo com dados da Sabesp3, o sistema de abastecimento de água da
Cantareira atingiu no mês de Dezembro de 2014, 7,7% do total de sua capacidade. Notícias como
esta revelaram uma situação caótica e trouxeram à tona discussões sobre a escassez de água no
meio urbano brasileiro, principalmente no que tange a implementação de medidas necessárias
para reversão deste quadro. De fato, não se trata de uma realidade exclusivamente brasileira e
sim de abrangência mundial. Em nosso planeta, a quantidade de água doce disponível para o
consumo humano (presente nos lagos, rios e aquíferos de menor profundidade) representa menos
de 1% da disponibilidade hídrica mundial. Esta realidade está longe da abundância que sugere a
imagem reconfortante do “planeta água” (VARGAS, 1999, p. 109).
Gonçalves (2005, p. 2) destaca que há de se considerar ainda a importante
heterogeneidade na distribuição geográfica dos recursos hídricos no Brasil e no Mundo.
Mesmo sendo o Brasil detentor de cerca de 13,7% de toda a água doce superficial, 70% desse
recurso se encontram na região amazônica. Nas regiões Norte e Centro-Oeste concentra-se
a maior parte dos recursos hídricos do país, onde a densidade populacional é relativamente
pequena em comparação com as outras regiões. Em contrapartida, as regiões Sudeste e
Nordeste concentram a menor parcela de água e são responsáveis pelo abastecimento de
mais de 70% da população brasileira (IDEC, 2002).
A intervenção humana no ciclo natural da água deu origem a um ciclo menor, de
natureza antrópica, que acontece dentro das cidades, denominado ciclo urbano das águas
(SPEERS e MITCHELL, 2000, apud GONÇALVES, 2005, p. 31).
O consumo de água residencial pode constituir mais da metade do consumo total de
água nas áreas urbanas (GONÇALVES, 2005, p. 11). Na região metropolitana de São Paulo,
o consumo de água residencial corresponde a 84,4% do consumo total urbano (incluindo
também o consumo das pequenas indústrias). Na cidade de Vitória, a porcentagem desse
consumo é bem similar, correspondendo a aproximadamente 85% desse total (dados da
CESAN de 2002 e 2003) (RODRIGUES, 2005, p. 55).
3
Disponível em <http://super.abril.com.br/crise-agua/ofundodopoco.shtml> visualizado em 01.12.2014.
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2. Configuração do modelo atual de saneamento
A história revela que em geral as culturas humanas se estabeleceram
preferencialmente onde a água era abundante – junto aos lagos e rios. As primeiras grandes
civilizações surgiram nos vales de grandes rios – vale do Nilo no Egito, vale do TigreEufrates na Mesopotâmia, vale do Indo no Paquistão, vale do rio Amarelo na China. Todas
essas civilizações construíram grandes sistemas de irrigação, tornaram o solo produtivo e
prosperaram. Muitas dessas civilizações desmoronaram quando o abastecimento de água se
extinguiu ou foi mal aproveitado (BRUNI, 1993, p. 56).
Em algumas sociedades tradicionais brasileiras, a água é vista como um bem da
natureza, uma dádiva da divindade. Sua abundância e escassez são associadas a estas
entidades divinas. Dentre grande parte das comunidades indígenas a higienização corporal
era realizada na mesma frequência que em nossa sociedade atual, fator que nos leva a crer
de onde herdamos esse costume.
Vargas (1999, p. 132) destaca que antes do advento da sociedade urbano-industrial, que
emerge ao longo do século XIX, o abastecimento das cidades e vilas com água limpa não
constituía um problema coletivo de saúde pública e higiene, como veio a tornar-se
dramaticamente na época atual. Nos vilarejos pré-industriais da Europa medieval, como nas vilas
rurais da América, a água ainda podia ser considerada como um bem comum e as práticas
referentes à sua utilização serem tratadas como um assunto de ordem privada. Contudo, Georges
Vigarello, em sua obra “O Limpo e o Sujo” (1996), através de uma retrospectiva cronológica,
analisa os hábitos de higiene europeus desde a Idade Média. Ele destaca que a água sempre foi
motivo de controvérsias, e em algumas épocas era vista como fator de risco à saúde, devendo o
contato ser evitado ao máximo. O autor descreve outros sentidos como responsáveis pelo ideário
de higiene do velho continente na Idade Média, como a aparência e o cheiro.
De fato, o desenvolvimento do abastecimento de água limpa em domicílio não resolveria
por si só os problemas sanitários gerados pelo crescimento urbano ao longo da Revolução
Industrial, pelo contrário, esta evolução provocava um aumento significativo do consumo
doméstico sem que fosse encontrado um mecanismo eficaz para a evacuação do esgoto.
Goubert (1990, apud RODRIGUES, 2000) afirma que no século XVIII estimava-se
em 20 litros diários de água por pessoa para atender as suas necessidades básicas. No século
XIX, esse valor chega a 100 litros e, ao fim do século XX, essa estimativa varia de 300 a
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1000 litros por habitante por dia, dependendo, entre outros, do nível de desenvolvimento e
do padrão cultural de cada país, além do porte da cidade e dos tipos de atividades econômicas
exercidas. No ano de 2014, no estado do Rio de Janeiro, a média de consumo de água foi de
253 litros por habitante por dia. Já no estado do Espírito Santo o consumo médio foi de 191
litros por habitante por dia, enquanto a Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda
a utilização de 110 litros por habitante diariamente4.
3. Crise no abastecimento hídrico
Esses dados e informações nos permitem pensar que a questão da escassez dos
recursos hídricos não pode ser vista apenas em termos geofísicos e quantitativos, sendo uma
questão também social relacionada aos padrões de desenvolvimento econômico
(urbanização, industrialização, irrigação) e cultural, de demanda e de qualidade das águas
(VARGAS, 1999, p. 110).
O Brasil detém umas das maiores reservas de água doce no mundo, mas também
enfrenta internamente o paradoxo da escassez. A região Nordeste já sofre com a escassez de
água há centenas de anos. Ghisi (2005 apud GONÇALVES, 2005, p. 2) já alertava há uma
década que se fossem mantidas as práticas e políticas vigentes, a região sudeste chegaria a
condições catastroficamente baixas no que tange a disponibilidade hídrica. Este quadro foi
comprovado no ano de 2014, com diversas cidades de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro
e Espírito Santo5 decretando estado de calamidade pública devido à escassez de água.
4. A questão da governança
Segundo o Global Water Partnership, o Brasil não vive um colapso hídrico, mas sim
de governança. De acordo com o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano de
2014 foram identificados 127 conflitos por água em todo país, com cerca de 43 mil famílias
afetadas. Vale ressaltar que esse número se refere apenas a conflitos rurais, pois, ainda não
há, segundo a CPT, uma metodologia para mensurar esse problema no ambiente urbano.
Contudo, se fôssemos levar em consideração os conflitos entre federados, referente à disputa
4
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/02/05/rio-e-o-estado-que-maisconsome-agua-o-dobro-do-recomendado-pela-onu.htm> visualizado em 03.03.2015.
5
Cachoeiro de Itapemirim, Alegre, Guarapari, Linhares, Colatina.
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entre Rio de Janeiro e São Paulo pelo uso da água do rio Paraíba do Sul, conflitos entre
empresas urbanas de abastecimento de água e a população, como no caso de Itú/SP, e casos
de poluição que impediram o uso de mananciais, como no caso da represa Billings, os
números podem chegar a 37 milhões de atingidos6. Segundo José Galizia7, sem água, a
população pode ir às ruas em manifestações mais violentas do que as de 2013.
Gonçalves (2005, p. 5) aponta que a Cúpula da Terra ou Rio-92 (Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento - CNUMDAD ou UNCED) apresentou um
capítulo específico sobre a sustentabilidade hídrica das populações. Trata-se do Capítulo 18 da
Agenda 21, intitulado: “Proteção da qualidade e do abastecimento dos recursos hídricos;
Aplicação de abordagens integradas para o desenvolvimento, gestão e uso da água” (ONU,
1992). Uma série de programas foi proposta nesse sentido, compreendendo objetivos tais como:
 Desenvolvimento de novas fontes e alternativas de abastecimento de água, tais como a
dessalinização da água, a recarga artificial de aquíferos subterrâneos, o uso de águas com
menor qualidade e o reuso de águas residuárias e a reciclagem de água;
 Promoção de práticas conservacionistas de água através de programas mais eficientes de
aproveitamento de água e de minimização do desperdício, inclusive com o
desenvolvimento de mecanismos que resultem na poupança de água.
No dia 28 de julho de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução
A/RES/64/292, declarou a água como um direito universal. Este decreto foi um marco, pois
representou um posicionamento da Organização das Nações Unidas (ONU) acerca do acesso e do
direito humano à água, e não um bem ou um serviço providenciado a título de caridade.
O Relatório Mundial das Nações Unidas sobre o desenvolvimento de Recursos
Hídricos (WWDR4) defende que a água sustenta todos os aspectos de desenvolvimento: ela
é o único meio que liga setores distintos e pelo qual as principais crises mundiais podem ser
tratadas de forma conjunta.
“Já existe um consenso internacional de que água e saneamento são
essenciais para que muitos dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
6
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/03/1603417-conflitos-pela-agua-batemrecorde-no-pais.shtml> visualizado em 03.05.2015.
7
Disponível em: <http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/02/crise-da-agua-podemos-chegar-bumaconvulsao-socialb.html> visualizado em 03.05.2015.
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sejam atingidos. Eles estão indissoluvelmente ligados a questões como
mudança climática, agricultura, segurança alimentar, saúde, energia,
equidade, questão de gênero e educação. Agora, devemos olhar para a
frente, com vistas à mensurabilidade, ao monitoramento e à
implementação”, diz Michel Jarraud, presidente da UN-Water e secretáriogeral da Organização Meteorológica Mundial8.
Em outro trecho do Relatório, Angela Ortigara, oficial de Ciências Naturais da
Unesco da Itália, diz que:
Uma das questões que os países já estão se esforçando para melhorar é a
governança da água. É importante melhorar a transparência nas decisões e
também tomar medidas de maneira integrada com os diferentes setores que
utilizam a água. A população deve sentir que faz parte da solução.
José Esteban Castro (2007) afirma que a imensa lacuna entre as áreas técnica e social de
conhecimento, que vigora na sociedade moderna, reflete em avanços tecnológicos insustentáveis e
ineficazes que não suprem a problemática da gestão de recursos hídricos. Defensor de que o diálogo
é político, ele define que a gestão da água deve consistir em uma interação entre governo, grandes
empresas, partidos políticos e sociedade civil, representada por ONGs e a população em geral.
Com a intensificação da crise no estado de São Paulo, formou-se a Aliança pela Água,
uma coalização da sociedade civil formada com o intuito de contribuir com a construção da
segurança hídrica no estado por meio da estratégia de potencialização da capacidade da sociedade
de debater e executar novas medidas. Para tanto, a coalizão conta com 48 instituições parceiras dos
mais diferentes nichos da sociedade civil. Para dar partida na confluência de ideias e discussões,
foi realizado um evento denominado Água@SP, que reuniu 280 especialistas de 60 municípios.
Neste evento foram propostas 196 ações de curto prazo e 191 de longo prazo, além de apontarem
mais de 300 iniciativas inspiradoras para a gestão da água em São Paulo. A maioria das propostas
de ações tanto de curto quanto de longo prazo preconizam as discussões integradas entre os
governos e sociedade civil. Destacam-se como ações propostas pelo movimento:
Tabela 1 - Ações propostas pelo movimento a curto e a longo prazo
Curto prazo
Instalação de comitê de gestão da crise
Longo prazo
Transição para um novo
modelo de gestão da água
8
Disponível em: <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/urgent_need
_to_manage_water_more_sustainably_says_un_report/#.VUlOjvlViko> visualizado em 03.05.2015.
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Criação de espaços físicos para as discussões nas maiores
cidades atingidas pela crise
Informação para a população por meio da ampla divulgação de
dados e do destaque quanto a importância das particularidades
para que cada cidadão utilize a água racionalmente
Campanhas públicas de conscientização
Incentivos à redução do consumo
Multa para usos abusivos
Concessão e regulação dos
serviços de saneamento
Redução de perdas
Políticas de reuso
Fortalecimento dos comitês de
bacias
Recuperação e proteção dos
mananciais
Ações específicas para grandes consumidores
Recuperação florestal
Incentivo às novas tecnologias
Pagamento por serviços
ambientais
Adaptação climática
Coleta e tratamento de esgotos
e despoluição dos rios urbanos
As ações de curto prazo propostas pelo movimento frente à crise hídrica têm como
objetivo principal chegar ao próximo ano em situação segura para enfrentar novo período de
estiagem. Já as ações a longo prazo pretendem implementar um novo modelo de gestão da
água, que garanta um futuro seguro e sustentável para os moradores de São Paulo
(estabilidade social, econômica e ambiental).
5. A problemática ambiental: o risco
O planeta Terra já existia há bilhões de anos quando aqui habitaram os primeiros seres
humanos. Desde então os problemas ambientais fazem parte da relação homem-natureza. Para
o homem das cavernas, suas maiores preocupações giravam em torno da busca de um local
seguro de animais que pudessem lhe atacar, próximo a água, que lhe garantisse conforto
térmico e também alimentos. Com os adventos da modernidade, a humanidade convive com
cada vez mais riscos ambientais, que variam desde riscos derivados do avanço tecnológico,
risco da falta de água e alimentos e também riscos referentes ao mercado financeiro e falta de
moradia. Houve uma multiplicação dos riscos aos quais estamos submetidos.
As problemáticas ambientais passaram a ter maior visibilidade a partir do advento da
Revolução Industrial (século XVII-XIX) e das transformações instituídas, devido a diversos
fatores, dentre os quais merecem destaque: o crescimento populacional, os processos
modernizadores (ênfase para a urbanização, industrialização e o uso massivo de tecnologias) e a
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gênese de um modo de produção cuja mentalidade se baseia no consumismo. Tal período já expõe
uma forma social de oposição entre sociedade e natureza, sendo esta, estritamente concebida como
fonte de recursos naturais, essenciais à produção industrial (BECK, 2003 apud VIEGAS, 2007, p.
21). Neste período, vigorou o ideário antropocêntrico, que marca a superioridade do homem em
relação à natureza. Foram criadas fronteiras entre o mundo humano e o mundo natural, as quais
são visíveis por meio do modo como as culturas humanas ocidentais procuravam superar as
determinações da natureza, domesticando, controlando, produzindo, interferindo.
6. Risco: O conceito
Ulrich Beck (1944), sociólogo alemão, defende a tese de que hoje vivemos em uma
Sociedade de Risco. Segundo ele, os riscos sempre existiram, porém, enquanto na sociedade
industrial estavam ligados à questão da produção e distribuição de bens, na sociedade moderna
os riscos estão ligados à própria modernização. Na composição dos riscos modernos, Beck
inclui os ecológicos, os genéticos, os químicos, os nucleares, gerados industrialmente,
externalizados economicamente, individualizados pelas normas jurídicas, legitimados no
âmbito científico e subestimados politicamente (GUIVANT, 1998, p. 95). Segundo essa
autora, os riscos que a sociedade contemporânea corre, são em grande parte derivados da
própria intervenção humana no planeta (exigindo reflexividade), particularmente das
intervenções do sistema técnico-científico (GONÇALVES, 2004, p. 29-30).
A sociedade moderna legitima a ciência como solucionadora de problemas, porém,
Azevedo (2013) afirma que a ciência e a tecnologia não solucionam os problemas, mas se
transformam em suas causas [...], pois muitos dos problemas enfrentados pela ciência foram
criados por ela, a mesma por sua vez, não foi sempre capaz de oferecer soluções.
Segundo Poltroniéri (1996, p. 241), risco é:
[...] tudo o que ocorre no meio ambiente e causa prejuízos à vida humana,
sejam prejuízos sociais, materiais, deslocamentos de população ou, até
mesmo, perdas de vidas. Os riscos ambientais constituem um dos aspectos
do complexo processo de interação do sistema de eventos naturais com o
sistema de uso humano do meio ambiente e, desta interação, resultam
recursos e restrições ou riscos para os seres humanos.
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7. Risco: O significado
Mary Douglas (2012), em sua vasta literatura sobre a temática do Risco, ao afirmar
que estes são desconhecidos, apresenta três argumentos: 1. Os riscos são involuntários (não
os aceitaríamos de livre e espontânea vontade); 2. Irreversíveis (não há volta) e; 3.
Desconhecidos (não são reconhecidos quando os encontrarmos). Se os riscos são
involuntários, então podemos afirmar que estes são frutos de um constructo social. Isto se
deve ao fato dos indivíduos na sociedade de risco estarem sujeitos a uma infinidade de riscos,
porém, seu reconhecimento e classificação como tal, dependem de uma construção social.
São resultados de influências externas ao indivíduo, já que este por si só não o identificaria.
Logo, conclui-se que há um contexto histórico e um reconhecimento em torno de um risco.
Segundo Yvette Veyret (2007 apud SOUZA e ZANELLA, 2009, p. 14), o risco, objeto
social, define-se como a percepção do perigo, da catástrofe possível e, portanto, ele existe
apenas em relação a um indivíduo, a um grupo social, uma sociedade que o apreende e com
ele convive por meio de práticas específicas. Assim, segundo a autora, não há risco sem uma
população ou indivíduo que o perceba e que poderia sofrer seus efeitos. Acrescenta ainda que
[...] o risco e a percepção que se tem dele não podem ser invocados sem
que se considere o contexto histórico que o produziu e, especialmente, a
relação com o espaço geográfico, os modos de ocupação do território e as
relação sociais características da época (p. 26).
8. Perspectiva de análise construtivista
Em meio a uma infinidade de riscos, muitos desconhecidos, outros ignorados, gerouse uma discussão epistemológica do campo da Sociologia Ambiental, referente ao fato de
determinadas questões ambientais tomarem proporções de crise com engajamento da mídia,
população e comunidade científica, enquanto outras discussões eram marginalizadas e pouco
discutidas. Neste contexto, debatem posições realistas e construtivistas, tais como:
Os conceitos objetivistas implicam que os riscos e as suas manifestações
sejam reais e acontecimentos observáveis, enquanto os conceitos
construcionistas defendem que eles são artefatos sociais fabricados pelos
grupos sociais ou instituições (HANNIGAN, 1995, p. 128).
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Enquanto os realistas se baseavam basicamente em explicações científicas para
determinada questão, os teóricos construtivistas não levavam em consideração o que era
tecnicamente comprovado, e sim o que era socialmente significante para determinado grupo,
representando assim o que é valorativo para os atores sociais, e não terceirizando essa percepção.
[...] os problemas ambientais não se materializam por eles próprios; em vez
disso, eles devem ser ‘construídos’ pelos indivíduos ou organizações que
definem a poluição, ou outro estado objetivo como preocupante, e que
procuram fazer algo para resolver o problema (HANNIGAN, 1995, p. 11).
Vale destacar que:
Embora seja verdade que alguns construcionistas rigorosos vão
provavelmente demasiado longe ao incidirem exclusivamente sobre as
interpretações e práticas dos participantes na formulação dos problemas
sociais, os construcionistas contextuais como Best e Rafter encorajam
activamente a utilização de dados empíricos numa avaliação de exigências
onde isto é tido como apropriado (HANNIGAN, 1995, p. 244).
Hannigan busca então elencar os fatores necessários para a construção de um
problema ambiental. Este método construtivista para que tenha êxito deve passar pelo
julgamento da ciência, da opinião pública e pela política.
a) uma autoridade científica para a validação das exigências, o que eleva a
ciência à condição de protagonista na descoberta e formulação iniciais de um
problema ambiental; b) a existência de propagadores tem papel central no
estabelecimento de vínculos entre movimento ambientalista e ciência; c) a
atenção dos meios de comunicação social, onde o problema é estruturado
como novidade importante; d) a dramatização do problema em termos
simbólicos e visuais, com o uso de diversas estratégias retóricas de
convencimento; e) incentivos econômicos; f) presença de instituição que
assegure a continuidade da exigência ambiental (HANNIGAN, 1995, p. 75).
A relação ciência, opinião pública e política é um advento da modernização reflexiva. Este
tripé é um importante recurso para preencher o hiato entre constatação técnica e percepção social de
riscos. Ao integrar conhecimento científico, conhecimento leigo, meios de comunicação e aparatos
políticos, o reconhecimento de determinado risco de forma multidisciplinar, torna-se legítimo.
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9. Metodologia
A pesquisa foi realizada no município de Vila Velha. Foram escolhidos os edifícios:
Ile de France, localizado em Itapoã e o Ed. Venina, na Praia da Costa. A escolha se deu pelo
fato de terem em comum habitantes com mesma faixa de renda, além da proximidade
geográfica. Apesar das semelhanças, os prédios diferem no que se refere ao consumo de
água. O Ed. Venina foi concebido com um equipamento de reuso de águas, enquanto o Ed.
Ile de France não dispõem de tal tecnologia. Portanto, procurou-se, através de uma análise
comparativa, avaliar a percepção dos moradores desses dois edifícios no que se refere à crise
hídrica e seus modos de reconhecer o problema e lidar com o mesmo.
Foram elaborados questionários idênticos com 29 questões, dividas em: informações
pessoais; percepção individual e coletiva de problemas ambientais; percepção individual e
coletiva do relacionamento com a água; percepção individual e coletiva do risco da escassez
de água; percepção individual e coletiva no que tange questões de governança da água; e
questões referentes à exposição do tema na mídia.
Tabela 2 - Informações gerais
Edifício
Ed. Venina
Ed. Ile de France
Nº de apartamentos
60
48
População estimada
180
144
Nº de questionários distribuídos
60
48
Nº de questionários respondidos
36
24
60%
50%
Percentual de respostas
10. Resultados
Os resultados nos mostram que a população entrevistada apresenta certo grau de
preocupação com relação ao tema da escassez de água. A dramatização feita pela mídia com
relação à falta d’água parece ter gerado uma certa permeabilidade no âmbito individual das
mudanças de hábitos em alguns casos analisados. Isso nos remete às análises de Júlia Guivant
(1998), para quem os riscos que a sociedade contemporânea produz são, em grande parte,
derivados da própria intervenção humana no planeta, particularmente das intervenções do
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sistema técnico-científico. Deste modo, as repostas obtidas com a pesquisa, acerca da crise
hídrica em andamento na sociedade, nos mostra as posturas reflexivas na população estudada.
Os questionários mostram que a maior parte dos entrevistados diz preocupar-se com a
economia de água, o que provocou mudanças de comportamento individual, este fato foi
comprovado através da divulgação de dados da Companhia Espiritosantense de Saneamento
(CESAN), onde a população da Grande Vitória economizou 2 bilhões de litros de água no
primeiro trimestre, em comparação com o mesmo período do ano anterior9. Tais mudanças
concentram-se em atividades domésticas, como diminuir o tempo de banho, o melhor uso da
máquina de lavar roupas, assim como na pressão relatada por parte das pessoas que passam na
rua e questionam a procedência da água utilizada para limpeza de calçadas e rega de jardins.
A hipótese inicial, de que a água é um recurso inesgotável, não fez parte da percepção
e das ações narradas pelos entrevistados. Isso nos deu margem para pensar a construção de
um risco real acerca da escassez deste recurso pelos indivíduos. Os moradores dos dois
condomínios identificam claramente este problema, além de reconhecer a parcela de culpa
humana nessa questão. Não obstante, acabaram validando as atitudes individuais quando se
trata de superar a questão. É deste modo que observamos um hiato entre a percepção
individual e ações coletivas integradas, já que não foram citadas pelos entrevistados medidas
integradas de enfrentamento da questão.
Os questionários nos mostraram que, no ranking dos problemas ambientais locais, a
população pesquisada elege outros problemas ambientais como mais sérios, como as enchentes10
e o pó preto11. Os moradores da cidade de Vila Velha convivem há muito mais tempo com essas
questões, o que contribui para a classificação periférica dada à questão da falta d’água nessa
avaliação. Observa-se que ao mesmo tempo em que existem estudos científicos com
perspectivas catastróficas acerca da crise hídrica como um risco ao futuro humano, esta não
figura na mentalidade dos entrevistados como um problema ambiental primeiro.
A literatura nos mostra que a chave para o sucesso da gestão dos recursos hídricos,
por meio de tecnologias e decisões que efetivamente contribuam para o acesso e a
sustentabilidade do processo, está impreterivelmente associada à democratização das
9
Disponível em: <http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2015/05/populacao-economiza-2-bilhoes-delitros-de-agua-na-grande-vitoria.html> visualizado em 17.05.2015.
10
Caso típico do município de Vila Velha, por não dispor de drenagem urbana eficiente, apresentando
transtornos à população na época de chuva.
11
Decorrente das emissões das empresas que compõem o Complexo de Tubarão, em especial a Vale e a ArcellorMittal.
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decisões. Isto é, à participação e ao papel assumido pelos atores sociais nas ações e
mobilizações em prol dessa questão.
Conclui-se, pontuando que a população estudada já vive sob o risco da escassez,
ainda que suas interpretações coloquem essa questão em segundo plano. Sinalizamos para a
necessidade da formação de um coletivo, de acordo com as prerrogativas de Hannigan
(1997), a fim de democratizar a gestão da água frente a projeção de um cenário futuro hostil,
nada compatível com as práticas vigentes de nossa sociedade.
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898
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RECLASSIFICAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS SOCIAIS E IDENTIDADE
NACIONAL A PARTIR DO MITO: A ENERGIA ELÉTRICA
Jayme Karlos Reis Lopes
Faculdade Nacional
Resumo: Além de fazer possível uma ampla gama de produtos e serviços no Brasil, a eletricidade levou
ao desenvolvimento dos meios e ferramentas de comunicação, desenvolveu o urbano como local
verticalizado, trouxe novos comportamentos sociais e por fim, consolidou a identidade nacional. Neste
mesmo processo, a existência de condições de violência física e simbólica se definiu como comum em
projetos de produção de uma matriz baseada em hidroeletricidade. Este trabalho tem por objetivo
analisar a relevância do campo da energia elétrica como produtor dos mitos e simbologias pertencentes
à identidade nacional brasileira e entender como isso pode contribuir para a reclassificação das
experiências sociais, através de uma visão de mundo voltada para o progresso econômico.
Palavras-chave: energia elétrica; mito, identidade nacional.
Abstract: In addition to making possible a wide range of products and services in Brazil, electricity
led to the development of media and communication tools, developed the urban as a verticalized
local, brought new social behaviors and finally consolidated a national identity. In this same process,
the existence of conditions of physical and symbolic violence can be defined as common in
production projects from an array based on hydroelectricity. This study aims to analyze the relevance
of the electricity field as a myths and symbols producer belonging to Brazilian national identity and
how it can contribute to the reclassification of social experiences through a vision of the world
focused economic progress.
Keywords: electricity; myth, national identity.
Introdução
Os motivos de criação de um mito são diversos. Os mitos de origem, por exemplo,
por vezes são mascarados na historiografia oficial que estabelece uma versão dos
acontecimentos que dá sentido e legitimidade a situação presente, baseada na versão do
grupo social vencedor. Dentro deste contexto, os símbolos e os mitos de uma identidade
nacional podem se tornar receptores das projeções, dos medos, dos interesses e aspirações,
modelando comportamentos, condutas desde que partilhado por pessoas, criando uma
comunidade de sentidos e solidificando uma determinada visão de mundo.
Quando falamos da construção do campo da energia elétrica (produção, distribuição
e consumo) no Brasil, estamos falando da construção de uma visão de mundo, de um
processo de consolidação da identidade nacional. Consolidação que vem, sobretudo,
inicialmente através dos meios de comunicação, criados a partir da demanda do capital
(energético em sua maioria) que vão integrar as diferentes regiões do país (CENTRO DA
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MEMÓRIA DA ELETRICIDADE, 2003). A eletrificação se coloca como condição para o
crescimento das cidades, sua verticalização e para a construção de novos hábitos e
comportamentos de vida. A instalação de redes de distribuição de energia se seguiu da
propaganda e de campanhas educativas para a criação de novos consumidores em benefício
de grandes fabricantes de materiais elétricos mundiais: Siemens, General Electric, Arno,
Western House, AEG, OSRAM, Phillips y Philco. O espaço doméstico, principalmente nas
áreas urbanas, adquiriu as noções modernas de privacidade e comodidade, modificando a
arquitetura das casas e refletindo inclusive em uma nova divisão de seu espaço interno.
Isso coloca a questão da duplicidade do fato social como peça chave na questão da
energia, quando se pensa a sua referência a um real empírico e a sua função imaginária, isto
é, a sua posição ocupada no imaginário dos grupos sociais. Ainda mais, onde o campo do
imaginário partilhado por uma visão de mundo, como é o caso da identidade nacional, é
também um campo de enfrentamento político e econômico extremamente importante, como
é o campo da energia elétrica, quando se configuram estas “novas” identidades coletivas.
1. Mito, identidade nacional e energia
Identidades que no Brasil reforçaram no último século a ideia de bem comum,
colocando, por exemplo, os empreendimentos de produção de energia elétrica e de bens de
consumo, como o caminho da sacralização da agência e da fé no progresso como “um decreto
dos céus, um dom recebido, surgindo a gratidão como única forma plausível de reação
humana” (SZTOMPKA, 1998, p. 67). Sendo assim, o mito do Progresso constante ou
pensamento mítico do desenvolvimentismo mostram-se parte integrante da condição
identitária em nossa sociedade – e em várias outras –, eles surgem da necessidade de resolver
questões tais como a oposição entre os grupos de interesse e a ordem social.
Estes mitos se organizam em conjuntos e variações em torno de núcleos temáticos
como uma linguagem a ser traduzida, reconstruindo a sua lógica interna através de uma
interpretação onde a “linguagem apropriada para um domínio estende-se a todos os domínios
que poderia surgir um problema do mesmo tipo formal” (LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 179). A
estrutura básica que constitui o mito pode ser considerada como um modelo de funcionamento
do imaginário. Assim os conceitos de símbolo e de função simbólica são ampliados, Chartier
(1990) critica isso, considerando que dessa forma acaba se remetendo a eles “todos os signos
900
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graças aos quais a consciência constrói a realidade” (CHARTIER,1990, p. 20).
As críticas das tentativas de analisar os mitos e produções culturais coletivas na
antropologia passam também por Mary Douglas, que faz considerações importantes quanto
à construção do mito enquanto existência universal na mente humana, analisando que: (1)
Os critérios de análise dos mitos são externos à cultura que os produziu, “de fora”, (2) ocorre
uma redução dos diversos significados possíveis do mito, as unidades estruturais do mito são
definidas nos seus significados quando, muitas vezes são ambíguas e polissêmicas; (3)
segmentos dos mitos são selecionados para análise, mas o que não é selecionado pode ser
altamente significativo e (4) o mito é retirado do seu contexto cultural, suas unidades
estruturais podem possuir outro significado do que aquele atribuído pelo pesquisador por
meio de critérios “externos” à cultura do mito (DOUGLAS, 1980).
Lévi-Strauss analisa neste sentido que a noção de transformação é inseparável da noção
de estrutura (LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 159), agregando que, “o espírito humano se move em
um campo limitado de possibilidades, de forma que as configurações mentais análogas podem,
sem que seja preciso invocar outras causas, repetir-se em épocas e locais diferentes” (LÉVISTRAUSS, 1991, p. 166). Daí as estruturas não são deterministas e unívocas, permitem
diversas combinações e possibilidades gerando múltiplos significados possíveis.
Partindo destes pressupostos, quando falamos de imaginário em sua função social e
quando nos referimos aos seus aspectos políticos (luta política, ideológica e de legitimação de
um regime político, por exemplo), existe um complexo de elaboração de um imaginário por
meio do qual é possível mobilizar afetivamente as pessoas. Nele “as sociedades definem suas
identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro. O
imaginário social é constituído assim e se expressa por ideologias e utopias, por símbolos,
alegorias, rituais, mitos” (CARVALHO, 1987, p. 11). Portanto o campo do imaginário
também é um campo de luta política e pelo poder, poder este onde se cruzam interesses de
grupos sociais e ideologias distintas como no campo da energia elétrica no Brasil.
2. Simbolismo e política na questão da energia
No Brasil, a implementação gradual da eletrificação e a ampliação do número de casas
que tinham algum tipo de serviço que, em princípio, se produziu nos grandes centros urbanos
e na capital do país, mesmo que com um ritmo mais lento nas zonas rurais, permitiu o uso de
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equipamentos de eletrotécnicos e eletroeletrônicos, como o rádio e a televisão. Por tanto, o
desenvolvimento da eletrificação e a integração cultural e política do país, sobre a influência
do estado nacional, estavam estreitamente relacionados. A entrada do capital internacional na
atividade pode ser entendida à luz da confluência de circunstâncias históricas específicas
externas e internas ao país. Em primeiro lugar, a consolidação da indústria de energia e a
intensa competição dos mercados da economia capitalista central (LORENZO, 1997;
CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE no Brasil, 1988), que estimulou a
internacionalização dos investimentos produtivos no setor, tendo como resultado a inclusão
das economias periféricas no caminho do capital, estes, em busca de uma alternativa de
valorização (SZMRECSÁNYI, 1986). Caminhando junto ao desenvolvimento no Brasil, do
estado oligárquico-burguês antes dos anos 30 e do estado burguês depois dos anos 30 (SAES,
1989). No segundo lugar, as oportunidades econômicas oferecidas pelas grandes cidades
(LIMA, 1995, CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE NO BRASIL, 1988).
Este projeto de nação é um projeto hegemônico no cultural, no político e, sobretudo,
no econômico. A comunicação da cultura nacional é em princípio letrada e culta, sendo o
caminho pela qual chega a ser hegemônica, ou seja, orientadora da moral e da intelectualidade
da sociedade nacional. O que inclusive inclui a construção de uma simbologia implícita nos
símbolos nacionais como a bandeira nacional – ordem e progresso –, nos hinos, canções,
histórias e mitos, que constitui a representação entre a realização completa do desenvolvimento
econômico e a ideia abstrata do progresso necessário ao bem estar da nação.
Enquanto que as empresas produziam publicidade exaltando o desenvolvimento do
capital internacional e sobre as novas tecnologias trazidas do estrangeiro, muitas empresas
nacionais, incluindo a Doca de Santos em 1930, trataram de criar um sentimento nacionalista
em defesa das empresas Brasileiras, uma estratégia utilizada com o apoio político da aliança
nacionalista. Para estes, as campanhas das empresas nacionais apresentavam preços das
tarifas de eletricidade bem inferiores a dos competidores, acusando inclusive as companhias
estrangeiras de imperialistas e exploradoras. Por outra parte, os empresários Canadenses do
grupo Light acusavam, por exemplo, a empresa Doca Santos dos custos dos serviços
portuários. Nasceu então a partir dos jornais da época (1911) uma competição mítica: “o
polvo canadense” frente ao “minotauro de santos” (SAES, 2009).
É importante observar que a trajetória do grupo Light do Canadá, pode ser tomado
como emblemático no processo de inserção do capital estrangeiro no sistema elétrico, que
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começa com o estabelecimento no Canadá da São Paulo Traction, Light and Power Company
Limited – mais tarde, São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited – com o fim
de explorar não só a produção e comercialização de eletricidade, como também a
implementação e operação do transporte urbano, serviço de telegrafia e telefonia no Brasil
até 1945. A ação simultânea de outros serviços públicos foi uma característica recorrente nas
empresas de capital estrangeiro no campo da energia, dentro de uma estratégia que buscou
compensar mediante a diversificação da produção, o tamanho relativamente pequeno das
áreas de comercialização de produtos e serviços gerais. As outras empresas que operam na
geração, transmissão e distribuição de energia elétrica até a década de 1950 foram a
companhia American Foreign Power (AMFORP), controlada pela North Electric Bond and
Share Company (EBASCO).
Outra coisa importante é que, de fato entre 1880 a 1940, a disputa entre empresas
nacionais e internacionais era na realidade uma elite colonial, financiadas pelas oligarquias
agrárias do país e o capital internacional financiado pelos grandes grupos industriais e
bancários do centro do nascente capitalismo global. Ao fim deste processo, o capital e as
empresas internacionais saíram vencedoras desta disputa, bem pela sua capacidade de
financiamento, de organização e de sua penetração nos lugares de poder e decisão política.
3. A construção da experiência social como dádiva
Mas onde acaba a mitologia e onde começa a História (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 27)
da energia no Brasil? A difusão da Energia elétrica no Brasil é a prerrogativa das
transformações do mito em história oficial, é o momento que o modelo econômico se converte
em princípio organizador da prática governamental (FOUCAULT, 2007, p. 45), através da
incorporação do mercado na vida cotidiana, principalmente pela rádio e pela televisão. No
contexto da liberação e da afirmação da hegemonia cultural e econômica Estadunidense (dos
anos 40 e 50), os sonhos de consumo tinham como foco atualizar o país, com relação aos países
industrializados, buscando assim tudo o que fosse cosmopolita. A rádio cresceu na década de
50, com o apoio do aumento da publicidade, o cinema se estabeleceu como indústria e a
televisão teve sua largada em 1950 com a inauguração da TV Tupi. Na televisão, as próprias
empresas eram produtoras dos programas que patrocinavam (CENTRO DA MEMÓRIA DA
ELETRICIDADE, 2003). Depois da subida ao poder do presidente Juscelino Kubitschek em
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1956 e a aceleração da industrialização do país, a televisão e o automóvel se converteram no
sinônimo da modernidade e do progresso que se instalava.
La difusión de la modernidad que a la postre se impone universalmente,
como experiencia y como imagen del progreso y que lo hace posible
contradictoriamente bajo a modalidades del mercado internacional, el
estado interventor, la burocratización de la vida colectiva, la aplicación de
experiencias de control del medio, la secularización de la vida social y la
masificación del consumo cultural (BRUNNER, 1998, p. 189).
Tudo isso foi acompanhado por uma mudança importante com relação ao consumo,
principalmente pela opção da população – principalmente urbana – pelo consumo de alimentos
processados. Os consumidores preferiram comprar arroz, feijão e farinha da fábrica, já
embalados. Os alimentos como ervilhas, palmitos, milho, verduras processadas e leite
condensado começaram a ser vendidos em latas e em vidros, se estabeleceu aí a produção e o
consumo de leite em pó, biscoitos e macarrão industrializados, assim como pão.
O comércio varejista começou a substituir estes produtos nos armazéns, vendas e
açougues das grandes cidades já nos anos 50. Eles vieram com novas cadeias de lojas de
eletrônicos e de concessionárias de automóveis. Os usos e hábitos de limpeza também
mudaram radicalmente. Agora, se utiliza o detergente. Se propagou o uso da escova de dente.
Entre, 1950 e 1990, a população que vive nas cidades cresce de 36% para 75%
respectivamente (LEAL, FARIAS, ARAÚJO, 2008).
A mudança de padrão de acumulação, também neste sentido, enquanto mantém uma
continuidade de acordo com as tendências iniciadas nos anos 30, acentua a mudança a partir
dos anos 50, especialmente com Juscelino Kubitschek e a implementação do setor industrial
de bens de consumo duráveis. Na velha república, a cidade do Rio de Janeiro se fez metrópole
e modelo cultural para o Brasil, já que foi a sede do governo federal, centro cultural e a cidade
portuária do país, exercendo uma grande atração de imigrantes e estrangeiros. Do mesmo
modo, foi no Rio que se iniciaram novos hábitos surgidos com a modernidade e posteriormente
adotados em outros centros urbanos do país (CENTRO DA MEMÓRIA DA
ELETRICIDADE, 2003). Em 1980 a urbanização se refere a transformações que incluem
todos os aspectos da vida cotidiana na cidade, mudanças drásticas, na geografia, economia e
na sociedade, onde a urbanização e a industrialização se misturaram. Partindo do ponto de
vista destes eventos é importante incorporar Mary Douglas na discussão quando diz:
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O consumo, na verdade, produz o tipo de sociedade na qual o consumidor
vive. Consumo é o processo de transformar mercadorias em bem-estar.
Nem os bens, nem os objetos, mas a sociedade é o produto. As escolhas de
consumo são em relação a quem vai comer em nossa casa, quem será
excluído, com quem nossas crianças irão brincar, ir à escola, casar. São as
decisões mais importantes que podemos fazer (DOUGLAS, 2005, p. 26).
O consumidor no caso da energia elétrica é inerentemente um animal social
produzido pelas mudanças nas experiências de vida proporcionadas por esta mercadoria. O
consumidor não quer objetos para ele mesmo, é importante dizer, mas para dividir, dar, e
não só dentro da família muito além disso. Marcel Mauss nos mostra, sobre este aspecto,
como as grandes correntes da dádiva ligam todos da comunidade num ciclo de trocas de
longo prazo. As dádivas mantêm um padrão particular de relações sociais, por três
obrigações interligadas: dar, receber, retribuir (MAUSS, 2003, p. 200-243). Dar é uma
obrigação, sob a pena de provocar uma guerra (Ibid, p. 201) e o padrão de relações gera os
padrões de trabalho que produzem os materiais para as dádivas (DOUGLAS, 2005, p. 20).
Cada uma dessas “obrigações” cria um laço de energia espiritual entre os atores da
dádiva, segundo Mauss. A retribuição da dádiva seria explicada pela existência dessa força,
dentro da coisa dada: um vínculo de almas, associado de maneira inalienável ao nome do
doador, ou seja, ao seu prestígio. A essa força ou ser espiritual ou à sua expressão simbólica
ligada a uma ação ou transação (SABOURIN, 2008). Mauss identifica ainda nas prestações
totais das sociedades antigas ou primitivas uma forma de relação que ele chama de "dádivatroca" e que se diferencia da troca mercantil, na medida em que associa uma moral, um valor
ético, à transação econômica (Ibid, 2008).
A noção de dádiva de si leva à ideia de que a dádiva cria uma dependência para com o
outro. Portanto, aquele que receberia esse símbolo seria obrigado a restituí-lo ou a ficar sob a
sua dependência. Mauss percebeu a preeminência da obrigação de retribuir, mas não tirou
dessa observação o princípio de reciprocidade. Sua insistência em declarar essa obrigação
irredutível aos dois termos permite invocar uma estrutura mais fundamental que abraça entre
elas todo tipo de atividades, precisamente a estrutura de reciprocidade. Nas prestações totais,
tudo é simbólico, no entendimento de Mauss, e tudo é recíproco (MAUSS, 2003, SABOURIN,
2008). A devolução da dádiva é explicada pela força presente na coisa dada, pelo laço
espiritual ao qual se liga. Mauss dá o nome de mana ou hau dos Maori. O prestígio não
corresponde ao ego do doador, mas ao ser ao qual ele aspira, que não lhe preexiste e que deve
ser produzido mediante a relação de reciprocidade (TEMPLE, CHABAL, 1995).
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Esta sistemática proposta por Marcel Mauss se coloca ainda mais na questão da energia
elétrica quando muitos estudos que tratam dos impactos dos empreendimentos ligados a cadeia
de produção de energia apontam para a legitimação política e justificação econômica – muito
além do seu estigma social como produto final – dos projetos de energia dentro de uma
condição indiscutível ou inevitável de desenvolvimento econômico e de progresso.
4. Cidades, coisas e produção de experiências
Uma das principais mudanças no conceito de moradia no processo demonstrado até
aqui, se deve a especialização dos espaços domésticos, e a criação de uma separação cada vez
maior das questões de trabalho produtivo com relação a casa. Como resultado, se produziu a
divisão das grandes cidades em diferentes zonas urbanas, segundo sua utilização residência,
industrial e de serviços, mantendo alguns bairros de zoneamento misto com a inclusão de
hospitais, escolas e agências do correio por exemplo. Foi na década de 1930 que se intensificou
o zoneamento do espaço urbano com o surgimento de bairros residências, com alguns edifícios
de apartamentos cujas unidades eram destinadas unicamente à moradia (LEMOS, 1989).
Os anos 30 marcam também a chegada do modernismo art-deco. Em muitas das casas
da época começaram a surgir balcões e jardins, o que representava a interação entre o público
e o privado (VERRISSIMO, 1999). Nas casas e apartamentos construídos durante este
período, várias salas foram adicionadas ao espaço interno da casa, com a intensão de
socialização contínua do espaço doméstico, prática que vai persistir até a década de 1950,
quando a influência da estética estadunidense e a intenção de racionalização do espaço da
casa começaram a determinar a compressão das habitações (ibid, 1999). Nas casas de classe
média e do operariado, foram adicionadas a dispensa e a cozinha como centro da vida
familiar e o rádio agora estava colocado preferencialmente nestas partes da casa (LEMOS,
1989). O rádio se caracterizou em uma atividade secundária ao trabalhar e descansar. Nos
salões da classe média, agora, a função dos móveis era para definir o status familiar (ibid,
1989). Na mesma casa, para a contemplação coletiva, foram postas vitrolas, gramofones,
fonógrafos e reprodutores de disco, adquiridos pela classe média através de sistemas de
crédito e financiamento bancário.
Produziu-se assim, na configuração da cidade, as diferenças dentro do espaço
doméstico, do trabalho e entre as esferas do público e do privado (CENTRO DA MEMÓRIA
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DA ELETRICIDADE, 2003). Neste sistema, “pode-se dizer que o espaço não existe como
uma dimensão social independente e individualizada, estando sempre misturado, interligado
ou embebido como diria Polanyi – em outros valores que servem para a orientação geral”
(DA MATTA, 1997, p. 19-20), “donde el orden simbólico es precisamente esse orden formal
que complementa y/o altera la relación dual de la realidad factica ‘externa’ y la experiencia
‘interna’ subjetiva” (ZIZEK, 2014, p. 44-45).
A especialização do espaço doméstico faz com que ele se convertesse em um domínio
de experiência do trabalho da mulher, mesmo com a crescente influência destas no mercado
laboral durante o mesmo período – anos 50 e 60. A imagem resultante se projeta no
entendimento das campanhas publicitárias que mostram as vantagens da cozinha e do uso de
novas aplicações e características de utilização dos eletrodomésticos (PROST, 1987). Os
meios de comunicação foram utilizados pedagogicamente neste sentido, através de ações
deliberadas e planificadas inclusive levando em consideração que a maioria das pessoas
utiliza as construções simbólicas e imagéticas difundidas pelos meios de comunicação para
determinar suas decisões políticas e econômicas. O que proporcionou neste sentido, um
processo rápido de “americanização”, exercida pelas forças de mercado mundial (FARO,
SILVA, 2002, p. 92) e pela indústria eletrotécnica. Revistas como Seleções, com uma tirada
mundial de 5 milhões de cópias, foram lançados no Brasil em 1942, no mesmo período, a
Coca Cola também jogou um papel importante na difusão do estilo de vida Estadunidense.
A edição brasileira em português foi editada nos Estados Unidos e publicou uma seleção de
artigos e anúncios de outros meios de comunicação Estadunidense.
Depois da chegada ao poder do presidente Juscelino Kubitschek em 1956 e a
aceleração da industrialização do país, a televisão e o automóvel se converteram em
sinônimo de modernidade, progresso e status social que se instalava. Neste contexto,
inclusive a produção intelectual brasileira dos anos 50 daria lugar a uma reflexão sobre um
diagnosticado subdesenvolvimento, colocando como prioridade a discussão sobre a
existência na vida nacional de altos níveis de industrialização e urbanização, tecnificação da
agricultura, crescimento produtivo e adoção generalizada de uma educação e de valores
culturais modernos (ESCOBAR, 1996) como modelos de uma nova sociedade. A música
deste período foi um dos reflexos deste movimento, quando o erudito e o carnaval folclórico
deram lugar à Bossa Nova, símbolo de uma nova classe média urbana cosmopolita
(CENTRO DA MEMÓRIA DA ELETRICIDADE, 2003).
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A partir dos anos 40, a rápida construção e venda de unidades de moradia nas grandes
cidades deixou claro que se criou um enorme mercado. Desde então, os edifícios de
apartamentos no Brasil são também construídos para as populações pobres das cidades, o
que alterou significativamente os hábitos dos habitantes das cidades, antes acostumados a
espaços de trabalho e recreação existentes no interior, nas pequenas cidades e nas ruas dos
subúrbios (VERDÍSIMO, 1999).
Os anos 40, 50 e 60 registraram a afirmação do estilo de vida estadunidense, o que
elevou ao abandono, em parte, dos hábitos de inspiração francesa das elites brasileiras. Nas
plantas das novas casas e apartamentos construídos neste momento, se limita o setor social
à sala, que por sua vez, é conectada diretamente à cozinha. Por outro lado uma grande
mudança para a americanização se produziu quando as casas inclusive, passaram a ser
inspiradas nos filmes de Hollywood e nas revistas estrangeiras (CENTRO DA MEMÓRIA
DA ELETRICIDADE, 2003). Com a introdução da TV, este processo se acentua mais
principalmente entre os anos 60 e 80. Reafirma-se também que o acesso à eletricidade foi
condutor de algumas mudanças importantes da paisagem urbana, dentro do espaço
doméstico e inclusive pela expansão do crédito na economia. O que deixa claro que:
El rasgo essencial del fechismo de la mercancia no consiste en el famoso
remplazo de los hombres por las cosas, [...] sino que consiste, antes bien, en
un falso reconocimento con respecto a la relación entre red estruturada y uno
de sus elementos; aquello que es realmente un efecto estrutural, un efecto de
la red de relaciones entre los elementos [...] (ZIZEK, 2014, p. 50).
O papel da publicidade massiva por parte dos principais fabricantes eletrotécnicos
foi o de assegurar o aumento das vendas, como também, a formação de novos hábitos e
necessidades, transformando pouco a pouco o mercado – e o fetiche – em algo mais que um
simples acessório da vida econômica (POLANYI, 2000). A expansão da comercialização e
o uso de aparelhos eletrônicos dependeram de uma ação combinada entre fabricantes,
comerciantes e empresas publicitárias (CARDOT, 1987). A publicidade do século XX
abraçou a ciência como modelo de avanço industrial e de benefícios para a vida do
consumidor. Os grandes fabricantes, que queriam chegar a um mercado nacional,
descobriram os benefícios de substituir a confiança na capacidade de distribuição local, em
troca de uma apelação direta ao consumidor através de marcas anunciadas a nível nacional
(COTT, 1993) pela propaganda em rádio, TV’s, Jornais e por um novo estilo de vida.
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Na realidade, a produção de mercadorias é também um processo cultural e cognitivo,
onde não só deve se produzir materialmente os produtos, mas também, marcá-los
culturalmente como um tipo particular de coisas – no sentido de status. A cultura ajuda a
mente por meio do estabelecimento de uma ordem cognitiva compartilhada coletivamente
(APPADURAI, 1986, p. 89-96).
Um novo estilo de vida se oferece às pessoas baseado em uma política de
modernização – onde a ideia de uma retórica tradicional tem seu sinônimo ligado à ideia de
atraso ou pobreza – nos moldes clássicos, cujo modelo deve ser imitado por todas as
economias do mundo (SZTOMPKA, 2005). Este modelo clássico de modernização aposta,
sobretudo, na aceleração da industrialização, a urbanização e a superação das práticas locais
e dos valores sociais locais.
A imposição de uma lógica territorial hegemônica, de um espaço convertido em uni
funcional que se coloca fora do tempo vivido, múltiplo e complexo (LEFEBVRE, 1986, p.
411-412 apud HAESBAERT, 2005), foi marcada por uma série de abusos e problemáticas.
No caso da reorganização do espaço urbano, especialmente em termos de política de
habitação adotadas das décadas de 40 a 80 – e diria que até os dias presentes –, na construção
dos novos bairros urbanos, não houve nenhuma preocupação com os modos de vida
anteriormente estruturados e os laços sociais de vizinhança. Aflorando a busca por
identificação individual e coletiva, que intencionalmente é apenas conseguida através da
mercadoria. Ao final, corroborando com Zizek quando diz que a ideologia “se apodera de
nosotros realmente solo cuando no sentimos ninguna oposicion entre ella y la realidad – a
saber cuando la ideologia consigue determinar el modo de nuestra experiencia cotidiana de
la realidad (ZIZEK, 2014, p. 80-153).
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POR ENTRE ESTES MARES: UMA ETNOGRAFIA DOS CONFLITOS
SOCIOAMBIENTAIS ENTRE BRASIL/ARGENTINA1
Jerônimo Amaral de Carvalho
Doutorando em antropologia social IDAES/UNSAN - Buenos Aires, Argentina.
Resumo: O presente projeto tem como proposta a realização de uma pesquisa etnográfica
comparativa entre Brasil e Argentina, sobre os conflitos socioambientais em Áreas Marinhas
Protegidas, com grupos de pescadores artesanais. As áreas propostas são: a Reserva Extrativista
Marinha (REM) do Corumbau, localizada no extremo sul do estado da Bahia – Brasil; e a Área
Natural Protegida (ANP) Sistemas Península Valdés, localizada na província de Chubut ao norte da
região da Patagônia – Argentina. Esta pesquisa tem como intuito a identificação de singularidades,
similitudes e distinções no discurso global da conservação da biodiversidade aplicado em cada país,
contrastando com os contextos culturais, históricos, políticos e sociais locais. Presume-se que o
discurso global da conservação da biodiversidade, enquanto um aspecto da globalização, não se
traduz como uma força totalmente homogênea, pois sua heterogeneidade pode ser explicada tendo
em vista vários contextos e especificidades locais. Desse modo, com o foco nos conflitos
socioambientais entre Áreas Protegidas e pescadores artesanais, por meio dos processos de mudança
sociais e de práticas sociais locais, bem como o conjunto de narrativas e a construção social da
relevância destas áreas, podem evidenciar o discurso de conservação, global e heterogêneo.
Palavras-chave: áreas marinhas protegidas; discurso global da conservação; mudanças sociais;
conflitos socioambientais.
Abstract: In this project, we proposed to execute a comparative ethnographic research between
Brazil and Argentina, on the socio-environmental conflicts in Marine Protected Areas, with artisanal
fishermen groups. The proposed areas are: the Marine Extractive Reserve (REM) Corumbau, located
in the extreme south of Bahia - Brazil; and the Protected Natural Area (PNA) Systems Valdes
Peninsula, located in the province of Chubut north of Patagonia - Argentina. This research is intended
to identify singularities, similarities and distinctions in the global discourse of biodiversity
conservation applied in each country, in contrast to the cultural, historical, political and social sites.
It is assumed that the global discourse of biodiversity conservation as an aspect of globalization that
is not translate as a completely homogeneous force, and its heterogeneity can be explained
considering various contexts and local specificities. Thus, with a focus on environmental conflicts
between protected areas and artisanal fishermen, through social change processes and local social
practices as well as the set of narratives and the social construction of the relevance of these areas
may show the conservation of speech, global and heterogeneous.
Keywords: marine protected areas; global discourse of conservation; social changes; environmental
conflicts.
1
Projeto de tese de Doutorado apresentado para o Instituto de Alto Estudios Sociales (IDAES), Universidade
Nacional de San Martin (UNSAM), Buenos Aires - Argentina, sobre orientação do professor doutor Gabriel
David Noel e co-orientação da professora Winifred Knox - Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Introdução
1. Contextualização
Esta proposta busca ampliar o escopo de análise dos efeitos da criação de Áreas Marinhas
Protegidas (AMPs), para grupos de pescadores locais, evidenciando relações conflituosas entre
normas e instituições com grupos sociais específicos. Diante disso, optou-se dar continuidade a
essa análise, com base nos principais resultados da dissertação de mestrado O mar não está para
peixe: Uma etnografia dos conflitos socioambientais em torno da Zona de Proteção Marinha e
da comunidade pesqueira do Bugigão - RESEXMAR do Corumbau/Bahia, defendida no
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Espírito Santo.
Com base nisso, proporemos a realização de pesquisa etnográfica de cunho
comparativo entre duas realidades de Áreas Marinhas Protegidas, uma no Brasil e outra na
Argentina, partindo da premissa que as ações de conservação da biodiversidade são vistas
como um movimento globalizante que pode produzir cenários de conflitos singulares.
Neste sentido, esta proposta se soma a uma série de trabalhos e etnografias que vêm
ampliando esforços de análise em torno da temática de implantação de Áreas Protegidas
Marinhas, costeiras e terrestres e os efeitos sociais, materiais e simbólicos em grupos
específicos (WEST et al., 2006).
Consideram-se algumas das razões para o aumento de etnografias com grupos locais
afetados por Áreas Protegidas, segundo Brosius (1999):
 A ampliação do ambientalismo para várias áreas do conhecimento (transdisciplinar e
interdisciplinar), incluindo as três áreas das ciências sociais e dentre elas a antropologia;
 Uma aproximação, a partir da década de 1980, de entidades ambientalistas do terceiro
setor com grupos socialmente distintos;
 E, por fim, os estudos que visam o questionamento acerca do essencialismo de alteridades
de grupos locais permitindo certa cristalização de identidades.
Importante salientar que a interação global e local, na qual entidades ambientalistas
transnacionais se situam, atua em uma perspectiva de produção de um discurso estruturado,
de natureza vista a partir do Ocidente, caracterizando-se num viés neocolonialista
(CAJIGAS-ROTUNDO, 2007; ESCOBAR, 2005; LOBÃO, 2006; WEST et al., 2006).
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Nessa perspectiva, vemos uma colonização do lugar por estruturas globais expressas no
pensamento ecológico moderno, além de uma substituição destes lugares por espaços
especialmente protegidos, baseados em uma estrutura cognitiva moderna de tempos e
espaços desencaixados do lugar (GUIDDENS, 1991).
Contudo, os conflitos gerados entre grupos locais em Áreas Protegidas possibilitam
a evidencia de diversas concepções que se efetivam em diferentes relações com a natureza.
Por um lado, uma natureza única, pertencente a um campo cognitivo fundamentado por uma
visão moderna de natureza, cuja base filosófica produziu o par dicotomizado
natureza/cultura (LATOUR, 1994, 2004). Por outro lado, para o nativo é indivisível cultura
e natureza (CARVALHO, 2014; INGOLD, 2000).
A Union International for Conservation of Nature (UICN), organismo internacional
filiado à UNESCO, que estabelece marcos regulatórios e metas de conservação nos países
membros, divulgou em 2010 o relatório Superposición de territorios indígenas y áreas
protegidas en América del Sur – Resumo Ejecutivo a seguinte informação: cerca de 15%
das Áreas Protegidas da Argentinas estavam sobrepostas em territórios indígenas;
enquanto no Brasil, o número se eleva para 26% do total (UICN, 2010). Se considerar
Áreas Protegidas estaduais e ou provinciais, bem como a existência de outros grupos
sociais (ex. quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, varzeiros e pescadores artesanais) a
extensão do conflito socioambiental pode ser bem mais expressiva.
De modo geral, as Áreas Marinhas Protegidas (AMPs), também são vistas como
palco de conflitos entre grupos de pescadores artesanais diante do acesso direto de recursos
naturais. A maioria dos conflitos está localizada em áreas de estrita proteção, onde a pesca
não pode ser realizada ‒ nos Parques Nacionais Marinhos em ambos os países2.
Os conflitos nas Áreas Marinhas Protegidas apresentam como características, relações que
expressam a rigidez de uma política autoritária, sistema top-down das agências governamentais,
adoção de conceitos e categorias de manejos que não representam ou desconsideram as práticas
sociais locais. Outro ponto importante: o processo de criação destas áreas e de reconhecimento dos
direitos de acesso ‒ caso das Áreas Protegidas de Uso sustentável – é sempre realizado em um
processo de tradução das ciências naturais (ABAKERLI, 2001; ALMUDI; KALIKOSKI, 2009;
2
No Brasil, o caso mais emblemático foi a criação do Parque Nacional Marinho (PARNAM) dos Abrolhos, criado
no ano de 1983, tendo sido motivado por vários especialistas brasileiros e estrangeiros na área de biologia marinha.
Como na maioria dos Parques Nacionais criados nesta época foi de forma arbitrária, o PARNAM dos abrolhos,
possui relações bastante conturbadas com os pescadores artesanais de Caravelas. É sempre recorrente em vários
discursos dos pescadores locais sua insatisfação da falta de participação naquela época (NOGUEIRA, DE, 2009).
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BOWN; BRONDO, 2013; LOBÃO, 2006; SOWMAN et al., 2011; WEST et al., 2006).
Desse modo, uma proposição de realizar estudos comparativos de conflitos
ambientais em Áreas Marinhas Protegidas no contexto de América Latina, Argentina e Brasil
pode contribuir para o atual desenvolvimento do marco conceitual a respeito dos conflitos
socioambientais em Áreas Protegidas. Tal proposição se apresenta necessária, tendo em vista
que o tema “conservação da biodiversidade” é uma nova emergência global, e também um
dos aspectos da globalização (WEST et al., 2006).
Diante disso, buscou-se a escolha de duas Áreas Protegidas, uma em cada país, pertencente
ao grupo de Áreas Protegidas de categoria de manejo VI da UICN3. Segundo a IUCN:
As Áreas Protegidas de categoria – VI conservam ecossistemas e habitats,
junto com os valores culturais e os sistemas tradicionais de gestão de recursos
naturais associados a eles. Normalmente são extensas, com uma maioria da
área em condiciones naturais, ao qual uma parte conta com uma gestão
sustentável dos recursos naturais, e nas que se considera que um dos objetivos
principais da área é uso não industrial e de baixo nível dos recursos naturais,
compatível com a conservação da natureza (DUDLEY, 2008, p. 27).
Sendo assim, focaremos a nossa proposta na Reserva Extrativista Marinha (REM) do
Corumbau, BA ‒ Brasil, e na Área Natural Protegida (ANP) do Sistema Península Valdés, província
de Chubut ‒ Argentina (figura 1 e 2). Um ponto importante é que as duas áreas estão vivenciando
ações de co-manejo4. As duas áreas, possuem além dos órgãos gestores oficiais, organizações não
governamentais ambientalistas que atuam diretamente em ações de conservação e co-manejo.
Segundo a IUCN “A intenção original do sistema de categorias de gestão de Áreas Protegidas da UICN era
criar um entendimento comum e um marco internacional de referências para as Áreas Protegidas tanto entre
países como dentro deles. Hoje em dia, as categorias estão aceitas e reconhecidas por organizações
internacionais como as Nações Unidas e o Convênio sobre a Diversidade Biológica e Governos Nacionais
como o ponto de referência para definir, recordar e classificar as áreas protegidas”.
4
O co-manejo ou gestão compartilhada são terminologias bastante usuais dentro da literatura de Áreas
Protegidas nas quais os usos dos recursos são compartilhados, prevendo regras mínimas de práticas de captura
e uso dos recursos, respeitando períodos reprodutivos de espécies, de forma a manter um padrão que não esgote
os estoques. Em ações de co-manejo mais elaborados, monitoramentos dos recursos são realizados e existe
algum tipo de participação dos grupos sociais locais.
3
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Figura 1 - Mapa de localização da ANP Península Valdez.
Fonte: PLAN DE MANEJO DEL SISTEMA VALDÉZ. Plan de Manejo del Sistema Península
Valdés Plan de Manejo del Sistema Península Valdés.
Figura 2 - Mapa de localização da REM do Corumbau.
Fonte: Conservação Internacional do Brasil. <http://www.conservation.org> acessado em 08.09.2015.
A REM do Corumbau, localizada na porção do extremo sul do estado da Bahia (municípios
Prado e Porto Seguro), tem sua porção marinha situada na região do complexo dos Abrolhos5. O
processo de criação teve como motivação a percepção dos pescadores artesanais locais sobre a queda
5
Como sendo a maior aglomeração de recifes coralíneos da porção sul do Oceano Atlântico.
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dos recursos pesqueiros, sobretudo o camarão sete-barbas, uma das espécies alvo da pesca comercial
de Alcobaça (Bahia) e também de outros estados (Espírito Santo e Alagoas).
Diante desta situação, um grupo de pescadores locais do Corumbau se aliou (em
1997) às entidades ambientalistas buscando salvaguardar os recursos pesqueiros, tendo
como entidades a Associação Pradense de Proteção Ambiental (APPA) e, posteriormente a
Conservation International do Brasil (CI-Brasil)6, em parceria com a Coordenação Nacional
de Populações Tradicionais (CNPT), órgão vinculado ao Instituto Brasileiro de Meio
Ambiente e Recursos Naturais (IBAMA).
Contudo, logo após a criação da REM do Corumbau, a CI-Brasil, a partir de outras
experiências, em nível global, em manejo de recursos marinhos em Áreas Protegidas, deu
início à elaboração do plano de manejo e de uma Zona de Proteção Marinha (ZPM) no
território de pesca artesanal. Esta ZPM tinha como objetivo a garantia de proteção de
ambientes e espécies marinhas para, no longo prazo, aumentar a biomassa pesqueira
(quantidade de peixes), forçando a proteção de um terço do território de pesca enquanto os
pescadores utilizariam apenas as áreas adjacentes da ZPM7.
A proposta foi aprovada, mas utilizando-se de estratagemas de aproximação a
determinados grupos e intervindo nas relações micros sociais locais. Desse modo, após dez
anos de criação da REM do Corumbau, observou-se que ainda existia certa inconformidade
com a área de exclusão marinha por uma parte considerável dos pescadores artesanais locais.
Nesse sentido, a proposta de ações de manejo e gestão da REM do Corumbau se firmou
enquanto uma normatividade distanciada das demandas dos pescadores (CARVALHO, 2014).
A península de Valdés, Golfos Nuevos e San José são localizados na província de
Chubut, na região patagônica argentina no Oceano Atlântico. A Área Natural Protegida (ANP)
do Sistema Península Valdés, foi criada por meio de lei provincial nº 4722 de Chubut em 2001;
segundo esta mesma lei, tal categoria de manejo proposto se enquadra na categoria de recursos
6
A APPA trata-se de uma Organização Não Governamental (ONG) com atuação em nível local, criada no ano
de 1996 com objetivo de realizar ações de proteção e conservação dos manguezais do município de Prado. A
Conservation International trata-se de uma ONG de alcance transnacional, a qual iniciou no ano de 1994
atuando na região tendo como foco apoiar ações de manejo do Parque Nacional Marinho de Abrolhos. Durante
o período do processo de criação da REM do Corumbau, entre os anos de 1997 até 2000, a CI-Brasil conseguiu
estabelecer uma base no município de Caravelas, a partir desse momento, podendo atuar diretamente em ações
de manejo em nível local, porém com grande interface em nível global.
7
A justificativa apresentada pela CI-Brasil é que com o passar do tempo, e com o aumento da biomassa no
interior da ZPM, o pescado povoaria nestas áreas adjacentes permitindo a realização da pesca em nível local.
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manejados8 da IUCN (CHUBUT, 2001). Anterior a esta ANP, a região possuía áreas protegidas
mais restritivas, como a Reserva Natural Turística, Reservas de Punta Norte, Isla de los Pájaros,
Punta Piramide, Punta Delgada e Caleta Valdés, e posteriormente no ano de 1975 o Parque
Marinho Golfo San José (GOVERNO DE LA PROVINCIA DEL CHUBUT, 1998).
Esta Área Protegida, além de uma forte atuação do setor turístico, possui também
uma atuação de pesca artesanal em pequena escala. As pescarias se concentram, sobretudo,
nas de peixes e de mariscos. A pescaria é realizada tanto embarcada quanto desembarcada,
utilizando de algumas artes, como redes, linhas e ferramentas para extração de mariscos. É
considerado, como pescaria de baixa escala, para consumo próprio e também de acordo com
a demanda de comercialização local. A atividade da pesca artesanal é datada por
antepassados indígenas, fazendo parte do que denominam uma identidade cultural
patagônica (GOVERNO DE LA PROVINCIA DEL CHUBUT, 1998).
Obviamente, com a existência de Áreas Protegidas com categorias de manejo
bastante restritivas ao longo de mais de 20 anos, surgem conflitos de acesso aos recursos
marinhos, por parte dos pescadores artesanais locais. A pesca de mergulho no interior do
antigo Parque, no Golfo de San José, é datada com mais ou menos 76 anos, quando foi
eliminado a pesca de arrasto por pequenas embarcações advindo de Mar del Plata9.
Entretanto, encontramos também uma confluência de agentes externos (entidades do
terceiro setor ambientalista) realizando esforços para proteção e conservação da Patagônia
Argentina. Neste sentido, foi criado o Foro Patagônico em 2004, tornando-se uma rede de
Organizações Não Governamentais que, até o presente momento, realizaram dez reuniões
para discussão do Estado da Arte da Conservação desta região10. Neste caso, a atuação mais
direta é realizada pela Fundação Patagônia Natural.
Diante das especificidades locais em termos de atores, histórico local e nacional de
criação dessas Áreas Protegidas, assume-se que o conflito é algo inerente dentro de qualquer
8
Outro ponto importante a ser salientado, é que a mesma lei aprovou também o Plano de Manejo que foi
realizado no ano de 1998 por uma comissão de trabalho que envolvia setores governamentais da província de
Chubut, como Organismo Provincial del Turismo, Ministério de Produção, Câmara de Comércio de Puerto
Madryn, Empresas do Setor de Turismo e Associação de Pescadores.
9
Além disso, outro ponto importante sobre a pesca artesanal está também no conflito direto com a crise da pesca
industrial, na qual pescadores que apenas atuavam neste setor, retornaram para atividade da pesca artesanal,
aumentando assim o esforço de pesca e também uma grande demanda de licença de pesca para a região.
10
O Foro patagônico produziu dois materiais fruto de suas reuniões com as diversas entidades ambientalistas,
sendo o primeiro realizado em 2008 “Sintesis del Estado de Conservacion del Mar Patagonico y area de
influencia”, que tinha como objetivo traçar uma linha base de ações de conservação para a realização de ações
em um cenário entre proteção e uso sustentável dos recursos (FORO PARA LA CONSERVACIÓN DEL MAR
PATAGÓNICO Y ÁREAS DE INFLUENCIA, 2008).
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sistema social bem como uma categoria explicativa de processos de mudança, (FERREIRA,
2005). Assume-se também a característica das Áreas Protegidas, conduzida por uma
emergência global da conservação da biodiversidade, sendo também um dos aspectos da
chamada globalização. Neste sentido, a proposta deste projeto, a ser delineado a seguir, é
indagar sobre as particularidades do conflito socioambiental em nível local, tendo como
ponto de partida a conservação da biodiversidade enquanto uma normatividade global. Além
disso, cabe a indagação sobre tal normatividade e como ela se estrutura em nível local.
Partindo dos antecedentes apresentados anteriormente, o presente projeto tem como
objeto os conflitos socioambientais entre pescadores artesanais em Áreas Marinhas
Protegidas. O estabelecimento de Áreas Marinhas Protegidas produz relações de conflito e
tensões com grupos locais, por meio de conjunto de normatizações externas conduzidas por
entidades governamentais e não governamentais e também pela distinta estrutura de
cognição da noção de natureza (WEST et al., 2006). A noção ambientalista da natureza está
situada na construção de um discurso da emergência global das questões ambientais,
evidenciado por meio do interesse sobre a conservação da biodiversidade que desconsidera,
na base de suas formulações, a percepção da natureza, bem com as práticas e formas de ação
de pescadores artesanais (INGOLD, 2000).
Desse modo, o objetivo desta proposta é realizar uma etnografia dos conflitos
socioambientais vivenciados por pescadores artesanais em duas Áreas Marinhas Protegidas,
uma no Brasil e outra na Argentina, com o intuito de identificar singularidades, similitudes
e diferenças no discurso global da conservação da biodiversidade apresentado, em contraste
com contextos sociais, culturais e políticos distintos. Cabe ressaltar que serão comparadas
duas Áreas Marinhas Protegidas, consideradas áreas de proteção ambiental, ao mesmo tempo
áreas de garantia de acesso de recursos pesqueiros para os grupos locais.
2. Metodologia
2.1 Descrição metodológica
Como etapa importante desta proposta, aqui será apresentado o referencial teórico e
metodológico para a execução desta pesquisa. Tendo em vista que o problema central se
estrutura no aspecto global da conservação da biodiversidade e que a comparação de duas
experiências de Áreas Protegidas se dá com recursos manejáveis (Brasil e Argentina),
919
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seguirá o método de estudo de caso ampliado para etnografias que produzem respostas de
perspectivas locais que se interligam em estruturas mais globais (BURAWOY, 2000).
Segundo Burawoy (2000) o método de estudo de caso ampliado baseia-se em
observação participante, que permite extrapolar situações locais em um contexto histórico,
para além das fronteiras locais e nacionais. Esta metodologia possui quatro dimensões
necessárias para a realização de etnografias tidas enquanto globais.
 A primeira dimensão é a realização da observação participante, em que é necessário
diminuir a distância do observador com os sujeitos da pesquisa;
 A segunda dimensão se refere à extensão da observação em relação ao tempo e espaço. É
importante aqui que o pesquisador siga os seus sujeitos, tentando viver suas vidas,
apreendendo caminhos, decisões e também suas vontades;
 A terceira dimensão seria em expor os processos micros dentro de processos macro, situados
em um contexto geográfico e histórico do campo. Não se trata, segundo Burawoy (2000), de
tentar representar uma totalidade, mas sim uma estruturada relação macro e microssocial;
 A quarta e última dimensão é extensão da teoria. Ao invés da realização de indução por
meio de dados, busca-se estender a teoria de modo a acomodar lacunas ou então
anomalias observadas. Segundo Burawoy (2000) “o que faz o campo interessante é esta
violação de algumas expectativas, e uma expectativa é nada mais do que outra teoria
esperando para ser explicada” (ibidem, p. 28).
Com base nisso, será possível entender singularidades e multiplicidades dos conflitos
socioambientais em duas realidades diferentes, Brasil e Argentina, na medida em que
contrastam com o caráter global de motivação da criação e implantação de Áreas Marinhas
Protegidas em nível local, tendo como pressuposto básico o contexto histórico, buscando
também a historicização dos múltiplos atores atuantes no conflito.
Uma estratégia para se alcançar uma etnografia que tenha característica global é a
utilização do método da etnografia multi-situada. Tal método, utilizado em acordo com as
dimensões da metodologia de caso estendido, possibilita que as etnografias saiam da
perspectiva de trabalho de campo, focado em um espaço geograficamente delimitado,
“projetado para examinar a circulação de significado cultural, objetos e identidades difusas
no tempo e no espaço” (MARCUS, p. 96 1995).
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Tendo em vista que a ideia de Áreas Marinhas Protegidas (enquanto objeto) e os
discursos de sua emergência (enquanto um significado cultural ocidental) transpassam as
barreiras locais e nacionais, não seria apropriado ‒ em uma pesquisa que visa comparar duas
situações de conflito socioambientais com grupos locais ‒ a realização de uma etnografia em
lugares comuns da antropologia. Desse modo, a utilização desta metodologia ajuda a
interpretação e discussão sobre o binarismo entre local e global, bem como o sistema e o
mundo da vida (GATT, 2012). A etnografia multi-situada permite colapsar tal dicotomia,
possibilitando uma “etnografia de conexões complexas”, na qual os lugares são produzidos
de e em um sistema mundo, onde comunidades são imaginadas para dentro de mundos
imaginados (Ibidem, 2012).
Portanto, a operacionalização desta pesquisa buscará seguir a metodologia da
etnografia multi-situada utilizando-se de estratégias que deslocam o observador em relação
ao objeto estudado: Seguir o Conflito; Seguir as Pessoas; Seguir a Biografia; Seguir a
Metáfora e Seguir o Enredo.
3. Ambientalismo, áreas marinhas protegidas, conflitos socioambientais, mudanças e
práticas sociais locais
Nesta etapa é importante explicitar alguns conceitos como forma de articular o objeto
de pesquisa com as etapas metodológicas da tese de doutorado. Alguns conceitos centrais
nortearão a discussão teórica: conflitos socioambientais e visões de natureza; o
ambientalismo enquanto movimento global; os processos de mudanças sociais bem como as
práticas sociais locais.
O primeiro ponto a ser considerado é o conceito de conflitos socioambientais, visto
enquanto relações sociais de disputa entre grupos ou atores sociais em torno da apropriação de um
determinado recurso ambiental, podendo avançar entre um nível material para um nível simbólico
com embates mais diretos (VIÉGAS, 2009; VIVACQUA; VIEIRA, 2005; WEST et al., 2006).
Em relação ao nível simbólico do conflito é produzido conforme West et al (2006),
enquanto uma visão virtualizada da natureza. “Tal virtualização foi imposta por uma visão
europeia de Natureza/cultura, dicotômica sobre os lugares e pessoas onde a distinção entre
natureza e cultura previamente não existem” (WEST et al, 2006, p. 255).
Nesse sentido, as Áreas Protegidas, segundo este autor ‒ uma nova cosmologia do natural
como sendo um caminho em nova estrutura moral ‒ possibilitava a imposição de novas regras e
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também de conjuntos de normatizações (ex. acordos transnacionais, leis nacionais, planos de
manejo e acordos locais). Portanto, as áreas protegidas, um instrumento de ação protecionista do
estado, “[...] são um meio material e discursivo para qual o discurso da conservação e do
desenvolvimento, práticas e instituições possam remodelar o mundo” (Ibidem, p. 256).
Desse modo, as distintas visões de natureza possuem como componente importante
a separação da natureza e cultura. “[...] são amarradas em diferentes visões de mundos dos
atores envolvidos na conservação e em diferentes tipos de narrativas de sustentabilidade em
um discurso de escala global” (Ibidem, p. 256).
Tal separação entre natureza e cultura, um constructo ocidental, revela uma abertura do
domínio para o controle e colonização de um em relação ao outro (STRATHERN, 1980). A
própria noção de Áreas Protegidas, isto é, de espaços territoriais protegidos, é fruto da separação
conceitual natureza e cultura, tal como a reificação de uma natureza intocada, inexplorada
enquanto um constructo cultural ocidental. Esta natureza intocada se firma como um estatuto
ontológico e também um conceito abstrato, ou no campo das ideias. Tal abstração sobre a
natureza (a visão ocidental) é um movimento de transcendência, a primeira garantia moderna,
ou seja, ela está além de nós. Porém, invariavelmente, para garantir tal transcendência é
necessária a agência humana (moderna) na produção dos fatos em si, como sendo a segunda
garantia o movimento de imanência (LATOUR, 1994). A existência de Áreas Protegidas cumpre
este movimento dialético entre as duas garantias da modernidade – transcendência e imanência.
Deve-se destacar também o papel do ambientalismo enquanto agência humana, no que
tange à questão da construção do discurso da emergência da conservação da biodiversidade,
traduzidas nas Áreas Protegidas. Esta agência humana/política produz estruturas de dominação
reconfigurando um discurso global de acordo com as características locais. O ambientalismo,
por meio de suas organizações, busca o deslocamento de imperativos morais e políticos,
galvanizando o terreno político em um aparato institucional despolitizado, que muitas vezes
possuem aparato financeiro, burocrático e tecnocientífico (BROSIUS, 1999).
Nesse sentido, West et al (2006) afirma que as Áreas Protegidas são tidas como uma
forma instrumento para a penetração da globalização no local. Todavia, o foco contemporâneo
nos aspectos tecnológicos deste processo parece ter feito da preservação da natureza um campo
menos relevante para discussão do fenômeno da globalização (WEST et al., 2006).
Seguindo a premissa de West et al (2006) para o discurso global, o ambientalismo e
as Áreas Protegidas possuem um efeito discursivo e transformador nas questões locais, e
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ainda possuem forte possibilidade de intervenção por organismos nacionais e transnacionais:
ex. Estado, Sociedade Civil e Organismos Internacionais (BROSIUS, 1999). Esse efeito
discursivo é visto na forma de articulação do global com o local, sendo este um dos aspectos
do fenômeno da globalização.
Diante disso, o problema central da atuação de interação global está na tensão entre
forças de homogeinização e heterogeinização (APPADURAI, 1990). Esta tensão rompe com
a ideia de naturalização da globalização aprisionada em modelo centro-periferia, tendo em
vista que possam existir forças de acomodações e de contestações produzindo novas
conexões na dimensão global (BURAWOY, 2000). Ou seja, apesar da existência de um
conjunto homogêneo de ideias, a conservação da biodiversidade representa, num discurso
de emergência, sua adaptação ao contexto local que não é harmoniosa, podendo assim criar
as chamadas disjunções (APPADURAI, 1990).
Tais disjunções são uma constante quando se está analisando aspectos da
globalização em um determinado local. Segundo Appadurai (1990), presume-se a existência
do conflito em uma relação dialética entre o discurso global se adaptando ao local e viceversa. Desse modo, presume-se também que a condição do estabelecimento de Áreas
Protegidas ‒ uma das formas de realização de um fenômeno global ‒ implica em sua
adaptação conflitiva em relação ao contexto local e suas rugosidades espaciais
(particularidades sociais, culturais e políticas).
Contudo, a ideia de conflito também pode ser entendida como um elemento
necessário para a organização social, promovendo mudanças em nível local, com
possibilidades de negação da ideia de agregação de sujeitos em torno de uma ideia ou de
projeto específico (FERREIRA, 2004). Neste sentido, a noção de mudança social é
importante para verificar de que maneira a linguagem ambientalista pode permear a
linguagem local, tendo em vista que “os esforços de conservação mudam os modos das
pessoas que veem em si mesmo em relação ao seu entorno” (WEST et al. p. 261, 2006).
Entretanto, a categoria ou conceito de mudança social aplicado para o entendimento
do conflito deve ser investigado a partir do conjunto de eventos, tendo em vista que evidencia
os processos sociais e as influências (reverberações) nas relações macro e microssociais, que
são mediadas pelas relações institucionais. A ocorrência de acordos e desacordos sociais nos
níveis de instituições é diretamente relacionada com a hierarquia social e as relações de poder
construídas localmente (GLUCKMAN, 1987).
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Esta noção de mudança social em Gluckman (1987) possui validade dentro de um
quadro temporal, marcando estabilidades (ou modelo de equilíbrio) em processos
macrossociais, sendo apenas os acordos e desacordos em nível microssocial na contingência
do processo. Desse modo, ao estudar sistemas sociais em mudança, deve-se ter em vista que
o campo de estudo é complexo e que acaba sendo necessário o uso de diferentes abordagens
para análise, além de permitir que se aborde o sistema social, uma vez que torna evidente a
estrutura de seu sistema na realidade. Segundo Leach (1996), são estas incongruências e
contingências que permitem a compreensão dos processos de mudança social.
Ainda em relação às mudanças sociais, é importante que se trate de mudanças
estruturais internas dos grupos, que se traduzem em mudanças de estruturas políticas
internas, ou seja, mudanças de estrutura de poder permitindo uma fluidez de posições dos
indivíduos dentro de um sistema político maior e dominante, (LEACH, 1996). Neste sentido,
podemos observar que o conflito, elemento de organização social, produz novas
ressignificações acerca do conteúdo normativo da conservação da biodiversidade.
Sendo assim, a conservação da biodiversidade, materializada em Áreas Marinhas
Protegidas, induz à inserção de novas práticas sociais. As práticas sociais locais estão
diretamente vinculadas com as práticas do/no território. O território é produzido por meio
de práticas sociais, por meio de símbolos, linguagens e imagens, ou seja, “o mundo em nossa
volta como sendo uma experiência material e simbólica” (WEST et al., 2006 apud Lefebvre,
1991). Estas Áreas Marinhas Protegidas podem alterar as formas de grupos de pescadores
artesanais do Corumbau e de Chubut produzirem sentido com o seu entorno, reestruturando
e reorganização socioespacial ‒ ressignificação.
Ainda em se tratando das práticas sociais locais, no caso da pesca, é importante
mencionar a intenção e a funcionalidade de tais práticas que abarcam um conjunto de
habilidades de todo o sistema de relações da pessoa com o meio ambiente, envolvendo
qualidade, cuidado e destreza e, por último, sua transmissão realizada pela observação
prática e experimentável (INGOLD, 2000).
Para Ingold, os caçadores e coletores não se veem como sujeitos externos com a
consciência de atuar no mundo externo de objetos físicos, pois não existe uma separação de
suas mentes da natureza onde estão inseridos. Suas práticas e pensamento não possibilitam
tal distinção – esta (distinção) então é inscrita no conceito ontológico ocidental de natureza
e cultura. Para o autor, é importante pensar nestes grupos assumindo sua condição humana,
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“de um ser imerso, desde o início, com outras criaturas, em um engajamento prático e
perceptivo com habitar o mundo” (p. 42). Ainda segundo o autor, esta perspectiva de habitar
(dwelling), como sendo imersão em um ambiente ou mundo da vida, pode fornecer uma
forma de contrastar a natureza da existência humana (desses grupos sociais) com a
perspectiva ontológica ocidental, que persiste na separação mente e mundo.
O contraste, repito, não é entre visões alternativas do mundo, é sim entre
duas formas de apreendê-la, apenas um dos quais (o ocidental) pode ser
caracterizada como a construção de um ponto de vista, que é como um
processo de representação mental. Enquanto ao outro, apreender o mundo
não é uma questão de construção, mas de engajamento, não de construção
[mental desse mundo], mas de habitar [dwelling], não de construir uma
visão do mundo, mas de assumir uma visão nele (Ibidem, 2000, p. 42).
Diante disso, o conflito gerado a partir de uma Área Protegida forçando alterações de
formas de acesso aos recursos pesqueiros em lugares e territórios, pode reestruturar tais relações
de imersão deste grupo, forçando-os em uma nova configuração de suas práticas sociais locais.
Considerações preliminares
O foco analítico desta pesquisa ‒ a configuração do discurso hegemônico da conservação
da biodiversidade em relação às duas Áreas Protegidas (REM do Corumbau e da ANP do
Sistema Península de Valdés) ‒ nas contrastantes áreas escolhidas para o estudo, reflete as
diferentes realidades sociais, políticas e culturais dos dois países. Outro ponto a ser considerado:
como se comportam as mudanças sociais e a adaptação de práticas sociais nos grupos de
pescadores artesanais dos diferentes países (Brasil e Argentina), frente às estruturas
globalizantes e neocolonialistas das políticas de conservação de biodiversidade (CAJIGASROTUNDO, 2007; ESCOBAR, 2005; LOBÃO, 2006)? O que neste caso se limitará à análise
da criação e implantação de Áreas Marinhas Protegidas. Com base nestas reflexões indagativas
iniciais, espera-se elaborar uma tese de doutorado que reflita e possibilite a compreensão dos
efeitos de implementação de Áreas Marinhas Protegidas para os atores envolvidos nos processos
conflituosos, em especial os pescadores artesanais, evidenciando as tensões e a eficácia da
implementação de áreas de conservação nestes grupos sociais, no contexto sul-americano.
Sendo assim, a hipótese central assume que a ideia de conservação marinha é um dos
fluxos globais, nas Áreas Marinhas Protegidas; no entanto, em nível local a ideia não se
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traduz como uma força totalmente homogênea. Os casos específicos do Brasil e Argentina
em relação à criação de duas Áreas Marinhas Protegidas com propósitos similares podem
apresentar, dentro do contexto de globalização, o que Appadurai (1990) denomina ordem
disjuntiva, ou seja, que se sobrepõem ao contexto global, e que no nosso caso é uma política
global de conservação da biodiversidade marinha. Apesar de a temática apresentar uma
emergência global – conservação da biodiversidade marinha – sua estruturação em diferentes
contextos possibilita a constituição de forças heterogêneas, e mesmo enquanto disjunções se
corroboram de forma relacional com o contexto global da temática.
Partindo da hipótese central, a construção heterogênea da conservação da biodiversidade
marinha, acredita-se que o processo de mudanças sociais na aplicação dessas duas Áreas
Marinhas Protegidas, com o passar do tempo, possibilitou mudanças na estrutura social e
também nas relações de poder interno dos grupos, tendo como possibilidade a ocorrência de
assimetrias de poder entre agentes externos (setores governamentais e não governamentais).
Podemos também assumir que é possível que a atuação na aplicação desta política
pública, conteúdo normativo externo, reestruture também práticas locais de acesso ao uso
dos recursos naturais.
Ainda em relação à hipótese central, acredita-se também que a criação e implementação
das duas Áreas Marinhas Protegidas com possibilidade de manejo e garantia de acesso aos
recursos, passaram por um processo de purificação advindas de formas locais de apropriação e
manutenção dos recursos pela prática artesanal de pesca, podendo posteriormente ser traduzidas
em um contexto mais hegemônico, porém heterogêneo da conservação da biodiversidade marinha.
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APROPRIAÇÃO E USO DAS ÁREAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NA CIDADE
DE SÃO LUÍS1
Joallysson Desterro Bayma
Estudante do Curso de Ciências Sociais da UEMA e bolsista de iniciação científica da FAPEMA.
Resumo: A questão urbana está associada a padrões de comportamento presentes nas cidades. Esses
padrões caracterizam e modelam o espaço, o que resulta na compreensão da categoria “lugar”, que
enfatiza a existência de dinâmicas específicas nos ambientes urbanos. Esse parâmetro ressalta que as
necessidades de utilização do espaço são consubstancialmente diferentes e que os problemas urbanos
nem sempre estão relacionados à integração, mas sim a gestão do sistema social, ou seja, o controle
dos mecanismos que atendam ás necessidades daqueles que residem no espaço urbano. Netas
dinâmicas a análise das Áreas de Proteção Ambiental e dos seus processos de apropriação e uso
tornam-se favoráveis para a construção de um entendimento a respeito do processo de urbanização e
dos aspectos relacionados a questão socioambiental na cidade de São Luís.
Palavras-chave: apropriação e uso; áreas de proteção ambiental; desenvolvimento urbano.
Abstract: The urban issue is associated with behavioral patterns present in cities and those same
patterns characterize and shape the space, which results in understanding the category “place”, which
emphasizes the existence of specific dynamics in urban environments. This parameter points out that
the use of space needs are consubstantially different and that urban problems are not always related
to the integration, but the management of the social system, ie the control mechanisms that meet the
needs of those residing in the space is configured as urban. Granddaughters dynamic analysis of the
Environmental Protection Areas and its appropriation and use processes become favorable for the
construction of an understanding about the process of urbanization and aspects related social and
environmental issues in the city of St. Louis.
Keywords: ownership and use; environmental protection areas; urban development.
Introdução
As áreas de proteção ambiental têm reservado um importante número de recursos
naturais e sua existência é resultado de aparato ideológico e de políticas que visam à
manutenção da natureza e sobrevivência das próximas gerações. Embora haja dispositivos
jurídicos e um conjunto de procedimentos direcionados para a proteção desses espaços, eles
acabam sendo alvo de disputas que originam conflitos socioambientais. Este esforço
reflexivo foi desenvolvido como parte do projeto de pesquisa “Conflitos socioambientais
urbanos: apropriação e uso de áreas de proteção ambiental”, orientado pela professora Drª
Rosirene Lima, com o objetivo de reconhecer essas áreas de proteção ambiental e averiguar
os processos de apropriação e usos das mesmas, havendo o levantamento e articulação de
1
Trabalho produzido como resultado de pesquisa de iniciação cientifica. Orientado pela Professora Drª
Rosirene Martins Lima.
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compreensão de diferentes perspectivas quanto ao conteúdo pesquisado, leituras,
interpretações e compreensões a respeito dos conceitos e categorias relacionados à temática,
e as abordagens de conceitos como: urbanização, metropolização, cidade corporativa e
outros, com o propósito de compreender a relação entre as Áreas de Preservação e os
processos urbanos. Com base nesses estudos e reflexões a análise sobre as áreas de proteção
ambiental e a crescente expansão urbana, que se constitui como objeto em questão, pode ser
captado e delineado, enquanto, um recorte da cidade de São Luís.
Foram coletados junto a órgãos públicos dados e informações que pudessem auxiliar
o desenvolvimento do estudo sobre as Áreas de Proteção na cidade de São Luís. Dentre esses
órgãos, destaca-se a Secretária de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais - SEMA,
o Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos - IMESC, por meio dos
quais se identificou as APAS (Áreas de Proteção Ambiental) do Maracanã, Itapiracó e da
Lagoa da Jansen. A coleta desses dados junto a essas instituições possibilitou uma noção de
quais as atividades são desenvolvidas e comunidades vivem próximas a essas áreas. As
atividades posteriores estiveram relacionadas a analises dessas localidades para verificar as
informações colhidas e para observar os possíveis usos e as formas de apropriação que estão
ocorrendo nas áreas demarcadas para proteção.
1. Perspectivas sobre a construção do urbano e do ambiental
A construção da cidade passa por muitos campos de compreensão da realidade,
dentre tais campos, o urbanístico é aquele que em síntese trabalha a organização territorial
do espaço, mas nesse entendimento é necessária certa contagem dos elementos urbanos e
sua relação com a conservação ambiental. Esse esforço de construção de modelos de cidade
que integre os aspectos da natureza a dinâmica coloquial da cidade não é tão atual quanto se
pensa. Nesse sentido, se pode dizer que programar componentes naturais no meio urbano
quase sempre não pressupõe a fusão de cidade e natureza, mas sim uma tentativa de adequar
a natureza ao projeto urbanístico da cidade.
O entendimento de que a questão urbana está associada a padrões de comportamento
presentes nas cidades e que esses mesmos padrões caracterizam e modelam o espaço, resulta na
compreensão categórica de lugar, que enfatiza a existência de dinâmicas especificas nos
ambientes urbanos. Esse parâmetro ressalta que as necessidades de utilização do espaço são
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consubstancialmente diferentes e que os problemas urbanos nem sempre estão relacionados à
integração, mas sim a gestão do sistema social, ou seja, o controle dos mecanismos que atendam
ás necessidades daqueles que residam no espaço que se configura como urbano. Outro elemento
que interfere na construção desse espaço conhecido como cidade é o aspecto econômico, mas é
evidente que este item está relacionado aos dados valorativos de determinados espaços de uma
cidade. Em outras palavras, a facilidade ou dificuldade de transporte, compra, acessos aos
centros administrativos e aos espaços de entretenimento coletivo determinam e afeta diretamente
o valor financeiro do local, gerando uma teia de valorização e desvalorização mensuradas pelo
valor econômico e social ligado à teoria da localização.
No processo de análise do objeto de pesquisa se trabalhou a construção de um
entendimento a respeito do processo de urbanização, e a partir de então compreender as
formas e os procedimentos de apropriações e usos das áreas de proteção ambiental (APAS).
A construção desse conhecimento foi dirigida por algumas perspectivas teóricas de autores
como Milton Santos que reflete sobre a urbanização brasileira. É por volta do século XVIII
que as cidades brasileiras engrenam seu dinamismo e evolução, portanto, essa é uma
urbanização pretérita, que encontra sua consolidação conforme o avanço do meio técnicocientífico, pois é através da ciência, da tecnologia e dos investimentos que se constrói ou
remodela um ambiente e se estrutura as suas características.
Nessa análise destaca-se que as estruturas das pequenas cidades vão mudando de
acordo com a implantação de atividades industriais, que exigem profissões mais técnicas, e
assim, a cidade amplia ou transforma suas necessidades e relevâncias, nesse contexto à
especulação ganha espaço, e o espaço natural é sobreposto pelo espaço social que centra as
atividades burocráticas e atrai um grande número de pessoas que desejam residir próximo a
localidades consideradas crucias no espaço da cidade. Esse modelo funcionalista, acaba por
produzir uma cidade desigual, na qual, determinados espaços são mais valorizados em
detrimentos de outros, ocorrendo assim uma tendência à estratificação das classes de acordo
com as diferentes localidades da cidade.
A cidade de São Luís não foge a este modelo, pois se nota as diferenças nas condições
de moradia e de recursos entre determinados bairros e localidades, bairros como Maracanã e
Calhau podem ser bons exemplos desse modelo de cidade. No primeiro bairro citado localizase uma área de proteção ambiental, na qual, a população faz uso de certos recursos provenientes
da mesma. No segundo os imóveis e as construções ameaçam de certa forma o espaço natural.
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Nesse contraste de avanço da expansão urbana e de conservação da natureza que se ergue o
desafio de manter uma unidade de conservação no interior ou próximo da cidade. Desta maneira,
a cidade de São Luís tem em sua estrutura espaços em utilização indevida, construções
periféricas que podem demonstrar as disparidades entre os diferentes espaços da capital.
As transformações nas estruturas sociais, econômicas e nos espaços de habitação em São
Luís vêm adequando tudo a um modelo corporativo de cidade (SANTOS, 2005) estando
presente a concentração de riqueza numa pequena parcela da sociedade, o que gera o aumento
da pobreza e uma redução dos espaços qualificados para habitação, pois essas áreas são
geralmente separadas para atender a finalidades industriais ou construção de empreendimentos
pouco acessíveis a grande parte da população. Esse cenário propicia ameaça ás regiões
destinadas à Proteção Ambiental, que acabam por serem ocupadas ou mal utilizadas para atender
necessidades básicas, dentre elas, a necessidade de moradia, ou à especulação imobiliária.
Esse conjunto de mudanças faz com que a perspectiva de Henri Lefebvre apresentada
em sua obra “O direito à cidade” traga a compreensão de que a cidade é um meio termo que
se encontra enquanto produto de uma ordem constituída pelas relações entre indivíduos e
grupos de indivíduos, portanto, o espaço que chamamos cidade não é dado, bem como, o
urbano não é uma categoria transcendental ou um costume meramente abstrato, um depende
do outro, sendo a cidade o espaço físico e o outro a maneira de pensar, de se comportar e
modificar o espaço, tratando-se então de uma realidade pratica e sensível, na qual, os
diferentes ramos do conhecimento devem empregar seus mecanismos e trabalhar com
unidade, na tentativa de se pensar o real significado de cidade e apontar possíveis soluções
para as dificuldades nos espaços urbanos.
O desenvolvimento sustentável é uma ideia expressa pela necessidade de produzir e
garantir a produção, o que como consequência está ligada à manutenção da vida, ou mesmo,
a continuidade de padrões de vida, referida discussão conceitual é percebida e criticada pela
categoria construída e conhecida como racionalidade ambiental, que está envolvida com
elementos que se ligam a questão do desenvolvimento econômico e social, pois tais
elementos se apresentam em um pano de fundo contemporâneo que percebe a questão
ambiental, ou a chamada sustentabilidade como uma responsabilidade social (Leff, 2004, p.
35). A necessidade de se pensar nas transformações que o conceito de sustentabilidade vem
passando pode ser apreciada dentro do próprio processo de construção da racionalidade
ambiental, as sociedades enxergam a sua continuidade através dos processos econômicos
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que se constroem e se articulam no interior de um campo de disputas em que quase tudo
pode ser transformado em mercadoria, assim o mercado monta o palco para os esquemas
econômicos, e o processo de transformação dos seres ou coisas passa constantemente por
uma transformação objetivada, em outros termos, a natureza é coisificada e transformada em
um objeto que dentro do mercado pode obter o chamado valor de uso e valor de troca.
O processo de objetivação da natureza (Leff, 2002, p. 480) não está simplesmente
pautada na sua transformação em mercadoria, mas transcreve-se economicamente ao
conceito de sustentabilidade a partir do momento em que se percebe através dessa categoria
a oportunidade de criar verdadeiros bancos genéticos e reservas de matéria-prima que
receberão um destino rentável em um futuro próximo, torna-se possível atribuir um novo
sentido a diversidade genética presentes em espaços ambientais preservados, pois estes se
transformam em capital reserva, ou mesmo, um interessante fundo de investimento para o
prolongamento do sistema capital. Essa forma de lidar com as questões referentes à dinâmica
ambiental chega a transpor-se através do conceito da lei da entropia, que denota o desgaste
ou a degradação de um sistema, no trato da questão ambiental essa lei pode significar a
desordem do sistema econômico e do prospecto social pelo qual os indivíduos percebem a
natureza, produzindo um intento ou sensação nos indivíduos de exterioridade aos fenômenos
instáveis e processuais que ocorrem no ambiente.
A lei da entropia foi responsável por reflexões que desconstroem o discurso da
sustentabilidade que em determinadas circunstâncias servia aos interesses de racionalidades
econômicas, essa desconstrução tornou possível o construir da teoria da racionalidade
ambiental articulada por um conjunto de pensadores das questões ambientais, dentre os
quais, pode-se destacar Enrique Leff, Arturo Argueta e Eckart Boege. Os argumentos
apresentados pelos discursos de desenvolvimento sustentável estão relacionados a um
crescimento que se pretende ecológico, mas tais argumentos aparentam se diluir ante as
notícias de catástrofes sociais ocasionadas pelas alterações nos fenômenos e processos da
natureza. Acrescenta-se a isso, o fato desse aspecto estar ligado a forma como a racionalidade
econômica, que se relaciona intimamente com a produção do capital, percebe e empregam
seus esforços na transformação do ambiente, o que em muitos aspectos se dá através da
naturalização da mercantilização da natureza, as produções que geram altos lucros estão cada
vez mais se apropriando, utilizando e reservando espaços de biodiversidades e de
importantes elementos naturais, para o atendimento de finalidades econômicas primordiais
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para as negociações no mercado econômico internacional. Essas características podem ser
percebidas como parte do processo de capitalização da natureza, e assim, novas formas de
desigualdade na distribuição ecológica dos direitos de uso e transformação da natureza
podem ser estabelecidas dentro da esfera urbana.
É preciso destacar que o próprio conceito de valor dentro da racionalidade econômica
alterou-se, nesta mudança a natureza não parece ser percebida dentro da teoria do valor como
um elemento determinante da importância que se atribui ao produto, este elemento não é
somente um parâmetro de artificializarão da natureza, mas é também a desarticulação do
processo de valor/trabalho que implica na desconstrução processual da energia física e criativa
da humanidade. Uma vez que se considere a atribuição de valor como a cristalização do tempo
na produção daquilo que possui alguma utilidade, o mercado capital vai à contramão,
exercendo em seguida, uma prática de definição do valor de troca baseado na intensidade de
procura que o público consumidor manifesta por um produto em questão. O progresso
tecnológico pode ser inserido nesta discussão a partir da observação de que são elementos
transformadores da força e do tempo produtivo, gerando instabilidades no cálculo do tempo
de trabalho socialmente necessário. Nesse sentido, Enrique Leff (2004, p. 36) argumenta:
Uma vez que o desenvolvimento da grande indústria reduz todo o trabalho
à aplicação de movimentos simples e diretos, cada progresso impõe certas
condições médias de intensidade para a aplicação da força de trabalho, de
maneira que em tempos iguais produz igualmente valores iguais. Dessa
forma, o valor que qualquer mercadoria contém será ponderado pela
intensidade media requerida por sua fabricação? Mas, ao mesmo tempo, o
progresso técnico faz variar a produtividade da força de trabalho, de modo
que estabelecer o tempo de trabalho socialmente necessário que resulta no
processo de inovação e difusão técnica constitui um problema teórico e
técnico fundamental para a teoria marxista do valor.
Afirmar que o desenvolvimento das forças produtivas é externo e independente da
formação do valor é incoerente dentro da teoria do valor, pois uma vez que a formação do
valor depende do tempo, que por sua vez é afetado pelas forças produtivas, então o valor e
as forças produtivas estão se produzindo em uma dinâmica relacional que pode ser
caracterizada como dialética, e nesta produção o trabalho cientifico e técnico deve ser
percebido como um grande colaborador para a produção material do espaço, pois é este o
conhecimento responsável pela produção e pela agilidade produtiva, além disso, é este o
conhecimento empregado na recapitalização do excesso de capital, produzindo
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posteriormente mais capital e novos espaços urbanos. Assemelha-se a um jogo de múltiplas
tarefas, em que o conhecimento é empregado em diferentes campos para a manutenção do
próprio sistema, que não cogita a inserção da natureza como parte fundamental de si, esta
assertiva do sistema produtivo capital promove a proteção dos espaços naturais, enquanto
forma de permanência e manutenção do esquema já existente, e seus investimentos nos
conhecimentos se direcionam de forma sucinta para uma ideia de mercadorização dos
espaços através de sua própria fragmentação em capitalismo cognitivo e especulativo.
Mesmo com desenvolvimento das forças produtivas ocasionadas pelo avanço técnico e
científico às relações não deixaram de persistir em práticas consideradas recorrentes, e no
que diz respeito à questão socioambiental, as desigualdades prosseguem havendo classe
detentoras dos recursos naturais e do conhecimento que transforma e utiliza tais recursos.
Em virtude desses caracteres que apontam para uma entropia do próprio sistema a
categoria “natureza” deve ser vista de outra forma, pois o conceito de natureza não é
simplesmente, uma investigação teórica ilimitada sobre a própria natureza, sujeita a uma
exposição argumentativa experimentalmente pura e histórica, mas um conceito que deve ser
notado de maneira que os meios de produção articulem-se ao ambiente e tragam uma forma
de interação entre as relações de produção e a natureza, o que se concretizaria por meio de
conhecimentos técnicos e científicos que apreendessem a natureza como parte fundamental
para toda e qualquer produção, acrescentando o cuidado necessário para a resiliência dos
processos naturais, a possibilidade dessas características se articularem está ligada a
transformações na organização do tempo de produção, sendo necessária a precisão na
produção dos itens, o que significa dizer, que a produção deveria considerar prioridades. Leff
sinaliza que as mudanças no campo da produção material não podem prosseguir superficiais,
mas a profundidade das ações pode transpor-se para a transformação das circunstâncias de
deterioração da própria condição de continuidade da vida, pois toda essa estrutura é resultado
da estrutura social, do modo de reflexão teórico e prático associado ao modelo produtivo posto
em exercício pelos próprios atores em questão. Por isso Leff (2004, p. 52-53) pontua:
A conversão da natureza em objetos de trabalho e de seus produtos em
mercadorias, o intercâmbio generalizado entre esses produtos em função
do tempo de trabalho socialmente necessário – de seu valor –, não é um
pressuposto filosófico materialista nem uma dialética do processo laboral
da história humana em geral, e sim da estrutura social, da racionalidade
teórica e prática e do modo de produção da sociedade capitalista. [...] Os
objetivos do trabalho dependem, por um lado, das necessidades e desejos
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subjetivos do homem e, por outro, das leis do material de que dispõe para
atingir a satisfação. No entanto, nem o sujeito é o princípio dos seus
próprios desejos em necessidades, nem as leia da natureza são imanentes e
estáticas, nem a ciência é em si mesma uma via de libertação.
A necessidade de construção de uma nova racionalidade produtiva que integre
diferentes processos de desenvolvimento científico e saberes tradicionais, considerando as
falhas do atual sistema, torna a contemporaneidade um cenário propenso para a elaboração
de uma reflexão sobre uma racionalidade, que não ignore os diferentes significados
socioculturais que pode haver nas concepções de utilização e proteção ambiental, nesta
racionalidade as formações culturais e a construção das identidades devem ser elementos
participativos, em outras palavras, devem estar marcando campos cognitivos presentes na
substancialidade da ação do sujeito e interferindo na abrangência das categorias que se
situam na estrutura. Pensar em uma racionalidade ambiental implica todo esse processo
mencionado, o que a propósito remete a reflexões que repensem as características e práticas
do modelo econômico em vigência, elaborando uma economia mais preocupada com a
racionalidade ambiental, em seu sentido concreto e pensado.
2. O processo urbano e as áreas de proteção ambientais de São Luís
Aplicando essas perspectivas a cidade de São Luís e verificando os processos
referentes à apropriação e uso das áreas de proteção ambiental da cidade pode-se listar três
APAS, que são respectivamente a APA do Itapiracó, Maracanã e Lagoa da Jansen,
realizando um trabalho investigativo e relacionando essa prática aos objetivos da pesquisa
tentou-se compreender as estruturas de apropriação e uso que ocorrem nesses lugares. Desse
modo, foi observado na APA do Itapiracó o funcionamento do sistema de segurança da área
e as práticas ocorridas nesse espaço de conservação, que em suas dimensões gerais
aparentam um estado superficial de conservação, muito embora, o posto da polícia ambiental
seja distante das entradas de acesso da APA e o caminho seja de longa extensão, o posto está
situado em uma área central da APA, o que parece deixá-la muito vulnerável. As imagens
abaixo podem facilitar a compreensão dos fatos até aqui apresentados.
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Figura 1 - Um dos acessos a APA do Itapiracó e Posto de Polícia Ambiental.
Fonte: Grupo de pesquisa Cidade, Território e meio Ambiente. Data: 01.03.2013.
Segundo o Tenente Gomes este posicionamento facilita o trabalho de fiscalização. Em
uma breve entrevista, o Tenente informou que as principais ocorrências são de desmatamento e de
alguns assaltos às pessoas que utilizam o caminho principal da APA para atividades esportivas,
tais como, caminhada, ciclismo e corridas, pois segundo o entrevistado o maior problema
enfrentado no processo de manutenção da APA é justamente a conscientização, pois algumas das
localidades encontram-se poluídas por lixo e entulho dos bairros adjacentes. Ainda segundo o
Tenente, a APA era gerida anteriormente por uma Organização não governamental chamada
ABARÁ, que realizava fortes trabalhos de ensino ambiental e conservação. Mesmo com estas
atividades tendo sido realizadas o rio que passa pela APA e que possui o mesmo nome da unidade
de conservação está poluído por conta do esgoto desses Bairros - Cohatrac e os assentamentos
Terra Livre e Canudos que se encontram no entorno da APA do Itapiracó.
Em uma segunda pesquisa de campo realizada nessa APA, descobriu-se um uso
anterior pelo Ministério da Agricultura que realizava atividades de criação de peixes e
experimentos do solo para plantio de espécies frutíferas, se percebeu a construção de casas
em estágio simples, sinalizando uma comunidade em formação, em entrevista, Seu Francisco
um dos moradores mais antigos da comunidade do Itapiracó, relata que já existem mais de
quarenta casas dentro da unidade de conservação do Itapiracó, e que a comunidade já tem
algum tempo de existência. Ao ser questionado sobre o descarte do lixo que é produzido pela
comunidade, o seu Francisco afirmou que o lixo geralmente é queimado nos quintais das
casas, pois como não há a possibilidade de tráfego de caminhões de lixo essa acaba sendo a
melhor alternativa. A comunidade apresenta certo índice de criminalidade, com pontos de
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uso de drogas no meio da vegetação mais fechada, observa-se ao longo de uma caminhada
pelos domínios da APA a existência de campos de futebol e de lixões provenientes em sua
grande parte das comunidades que vivem nas cercanias da APA, os assentamentos acima
mencionados não possuem saneamento básico e todo o esgoto é despejado no rio, nas
imagens abaixo se podem perceber os aspectos descritos.
Figura 2 - rio poluído da APA do Itapiracó
Fonte: Grupo de Pesquisa Cidade, Território e Meio Ambiente. Data: 18.10.2013.
Figura 3 - Casa em construção dentro do Itapiracó
Fonte: Grupo de Pesquisa Cidade, Território e Meio Ambiente. Data: 18.10.2013.
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A área de proteção ambiental do Maracanã, criada em 1991 com o intuito de contenção
do forte avanço industrial sobre as áreas naturais de São Luís, não possui uma fiscalização
ambiental efetiva, e dentre suas características se apresentam fortes atrações culturais, tais como,
bumba meu boi, festa da juçara e festejos religiosos, que em si constituem um uso desse espaço
socioambiental. A APA em questão aparenta ter como maior impacto o desmatamento dos
juçarais, em virtude de construções de casas e condomínios e da extração de pedras pra
construção civil, o aumento populacional nesta região está ligado ao Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), uma vez que, em 2002 existiam 2.000 habitantes e atualmente existem três
pontos do projeto do Governo Federal Minha Casa Minha Vida (projeto pertencente ao PAC)
com a previsão de construção de 6.700 habitações dentro do território da APA.
No Maracanã foi criada a Associação Comunitária do Maracanã Turismo (ACOMTUR)
que visa: Divulgação do Turismo ecológico e conscientização da população local. Segundo
informações dessa instituição, existiam quatro trilhas ecológicas no Maracanã, a trilha Parque da
Juçara, Rosa Morchel, Baluarte e Joca Guimarães, que eram utilizadas pelos guias para atrair
turistas. Atualmente existe apenas uma trilha por onde se pode realizar o trabalho turístico que é a
trilha Joca Guimarães, as demais encontram-se em processo de venda, ou mesmo, sendo utilizadas
para extração de matéria-prima para construção civil. Outro elemento que pode ser observado
como parte do processo de uso desse espaço é a especulação da duplicação da BR- 135, que se não
for ajustado a ideia de conservação que permeia a manutenção da APA, pode acabar se tornando
uma forte ameaça a este espaço de preciosidades naturais. Na imagem abaixo visualiza-se um
juçaral em bom estado de conservação, presente em uma trilha ecológica da APA do maracanã.
Figura 4 - Juçaral da Trilha Do Parque da Juçara
Fonte: Grupo de Pesquisa Cidade, Território e Meio Ambiente. Data: 20.03.2013.
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A APA da Lagoa da Jansen anteriormente era um Parque Estadual e recentemente foi
reconhecida como Área de Proteção Ambiental. É um espaço no qual, se realiza um grande
número de eventos comemorativos e shows. A infraestrutura da APA não apresenta boas
condições, tendo esgotos a céu aberto e um alto nível de poluição nas águas de sua laguna. A APA
é consideravelmente extensa e por se encontrar em uma área considerada nobre na cidade e ser um
importante ponto turístico é bem arborizada e de rápida localização. A APA tem um alto índice de
especulação imobiliária o que a torna um objeto de interesse e de grande valor de uso e de troca.
Em março deste ano a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais do
Maranhão (SEMA) realizou um mutirão de limpeza na Lagoa da Jansen, essa foi uma das
primeiras medidas do plano de revitalização e recuperação do espaço físico e conservação
ambiental na APA da Lagoa da Jansen. Com o emprego de maquinários pesados desobstruíram
as vias e córregos, essas ações fazem parte do projeto “Viva Lagoa”. A Secretaria de Urbanismo
e Habitação realizou uma ação de desobstrução do espaço público na Área de Proteção
Ambiental da Lagoa da Jansen, o caso mais recente foi a remoção de uma empresa que teve toda
a sua área construída de forma ilegal sob área verde do município.
Algumas imagens coletadas em pesquisa de campo revelam que o espaço da APA da Lagoa
da Jansen é também um lugar de interação coletiva, ou seja, essa localidade proporciona o exercício
de atividades esportivas, encontros casuais, piqueniques, passeios escolares e eventos comunitários,
usos estes que reforçam os laços de pertencimento dos cidadãos com o seu lugar de habitação.
Figura 5 - Passarela para caminhadas e via cíclica da APA da Lagoa Da Jansen
Fonte: Grupo de Pesquisa Cidade, Território e Meio Ambiente. Data: 06.06.2013.
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Conclusão
O estudo investigou as atividades e práticas que se apresentam nas áreas de proteção
ambiental, realizou levantamento de informações a respeito das mesmas, verificando os
processos de apropriação e uso das APAS que em muitos casos aparenta não obedecer a
certos critérios legais, o que sinaliza uma necessidade mais intensificada de fiscalização e
de sensibilização da população, principalmente daquelas que vivem nas proximidades ou
mesmos nos domínios das mencionadas Áreas de Proteção Ambiental. Ao se trabalhar com
a percepção de lugar, como uma classificação que designa algum atrelamento ao ambiente
em que se reside, constatam-se as diferenças representativas demarcadas nas visões de
conservação das comunidades que estão nessas APAS e do governo que as geri por meio da
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais (SEMA).
Nesse sentido, foi possível notar que se por um lado à própria população que utiliza as
APAS presentes na cidade de São Luís se sente despreparada para lidar com as exigências de se
morar em um espaço de conservação ambiental, e isso implica dizer um espaço de uso sustentável,
por outro as políticas governamentais parecem não alcançar essas comunidades em seus sentidos
mais abrangentes, ou seja, em suas práticas cotidianas. A implicância das utilizações desses
espaços de forma indevida pode ocasionar uma desestabilidade em suas próprias noções de
criação, mas a possibilidade de maturação dos processos de proteção dessas áreas é gradativa e
quando estabelecida suscita um cuidado autêntico com os recursos nelas presentes.
As Áreas de Proteção Ambiental na Cidade de São Luís são importantes instrumentos
de conservação da natureza regional e analisá-las fez parte de um trabalho intelectual que
emprega a percepção de que o lugar e os comportamentos relacionais são ditames de
modelagem do espaço natural, em termos mais claros, os indivíduos geram com seus
respectivos espaços de reprodução e manutenção da vida, laços de construção e adaptação
que estabelecem um sentimento de pertencimento. As estratégias de manutenção dos lugares
e de suas riquezas naturais se expressam através de medidas como a criação de APAS e
outros esquemas. Suas finalidades e objetivos visam além da conservação, o
desenvolvimento de atividades educativas, de conscientização e sensibilização, pois a
questão da conservação ambiental é parte de uma complexa mudança de paradigma ligada
às responsabilidades sociais.
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TOMBAMENTO DO PENEDO: O MEIO AMBIENTE E O PORTO DE VITÓRIA
Larissa Pinheiro
Mestre em Ciências Sociais - UFES
Resumo: Este artigo tem o propósito de analisar os antecedentes que levaram ao processo de
tombamento do Morro do Penedo, monumento natural localizado em Vila Velha/ES, ocorrido em
1983, após solicitação da Associação Capixaba de Proteção ao Meio Ambiente (Acapema) ao
Conselho Estadual de Cultural, uma das primeiras ONGs locais, como forma de impedir a
continuidade de sua degradação, principalmente com o incremento da atividade portuária na região,
com a construção do porto de Capuaba, a partir da década de 1976. Com isso, pretendemos mostrar
como se estabeleceu a relação desse patrimônio ambiental com as mudanças ocorridas ao seu redor,
tendo como referências as atividades portuárias e o desenvolvimento da cidade.
Palavras-chave: Morro do Penedo; tombamento bem natural; movimento ambientalista.
Abstract: This article aims to analyze the background that led to the process of proclaiming The
Penedo Rock, natural monument located in Vila Velha/ES, which occurred in 1983 after request
Protection Capixaba Association for the Environment (Acapema) to the State Council Cultural, one
of the first local NGOs, in order to prevent their continued degradation, particularly with the increase
in port activity in the region with the construction of the port of Capuaba, from the decade of 1976.
We intend to show how occurred the relationship of this environmental heritage with the changes
around them, with the references port activities and the development of the city.
Keywords: The Penedo Rock; proclaiming as a natural patrimony; environmental movement.
Introdução
No Espírito Santo, após uma forte luta, em 1983, o tombamento do Penedo –
monumento natural e cultural de notável valor – foi consolidado, sendo resultado de
protestos dos movimentos sociais à época como forma de impedir a continuidade de sua
degradação, principalmente com o incremento da atividade portuária na região da baía de
Vitória/ES, a partir da década de 1970.
Trata-se de um assunto inexplorado e de importância regional, já que o tombamento
do Penedo é uma resposta a essas mudanças muitas vezes negativas no contexto urbano, a
partir das remodelações que foram se processando na paisagem da cidade de Vitória com o
passar das décadas. Por isso, nos preocupamos em identificar as mudanças pelas quais vinha
passando a cidade de Vitória, que certamente impactou a paisagem do Penedo, já que este
monumento se encontra no epicentro de onde tudo começou inclusive a fundação da Vila de
Vitória, há mais de quatrocentos anos. Trata-se do recorte deste artigo.
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Quanto à metodologia, em termos de coleta de dados, trata-se de uma pesquisa
exploratória, fundamentalmente de abordagem qualitativa com base em revisão
bibliográfica, consulta a fontes documentais e pesquisa em jornais locais que pautavam o
debate à época. Destacamos o uso de imagens, que nos auxilia a mostrar as mudanças do
espaço no decorrer do tempo. Na análise dos dados coletados foi empregada a análise de
conteúdo (BARDIN, 2009; TRIVIÑOS, 1987).
Apresentaremos a relação entre o Penedo e o porto de Vitória, tendo como paisagem
a cidade de Vitória, e, a partir disso, analisaremos como essa combinação vai ocorrendo com
o passar dos tempos. Apresentamos um panorama das mudanças urbanísticas ocorridas no
centro de Vitória por conta de uma rápida transformação econômica que desenvolve a
atividade portuária na região, o que vem impactar os recursos naturais da baía de Vitória,
com destaque para o próprio Penedo.
Concluímos, em linhas gerais, que o tombamento do Penedo foi um ganho para todos
os capixabas, não só pela preservação dele em si, mas para além dele, ocorreu que nesse
período o meio ambiente adquiriu maior destaque, inclusive, com a criação de uma
Secretaria de legislação ambiental estadual até então inexistentes.
1. Mapeamento histórico-geográfico do Penedo
Na primeira parte do artigo, apresentaremos um mapeamento histórico-geográfico do
Penedo. Quando da fundação da Capitania do Espírito Santo, em 1535, já era notado que a região
contava com expressivo patrimônio natural, apresentando um dos mais ricos ecotipos do Brasil.
O crescimento regional permaneceu lento até fins do século XIX, devido à instabilidade políticoinstitucional e a deficiência de comunicações a que esteve confinada (IJSN, 1978).
Em termos de paisagem natural, Vitória obteve grande destaque nesse aspecto.
Fundada em 1549, segundo modelo português de implantação, em sítio elevado dominando
o mar, apresentou desenvolvimento ligado às condições físico-espaciais do lugar, cuja
expansão se deu por meio de conquista sucessiva de zonas alagadiças, baixios, manguezais
e aterros de áreas de mar (IJSN, 1978).
Destacamos nesse trabalho os morros e afloramentos rochosos presentes na região,
mais especificamente o morro do Penedo, tido como marco visual e paisagístico da baía de
Vitória, considerado um dos principais elementos do patrimônio natural (IJSN, 1978).
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O Penedo é um molhe granítico com 133 metros acima do nível do mar, situado na entrada
de uma baía de flutuação de mais de 2500 metros de extensão, por 650 metros de largura, por onde
navegaram os colonizadores portugueses, e agora os navios de vários países do mundo, servindo
de apoio de defesa de Vitória. Apesar de estar situado em Vila Velha, faz parte do cenário da baía
de Vitória. Quando da passagem de Saint-Hilaire e Charles Frederick Hartt, no início do século
XIX, estes o classificaram como Pão de Açúcar do Espírito Santo (SECULT, 2014).
Trata-se do ponto central de uma formação rochosa que identifica a entrada da baía
de Vitória e, ao mesmo tempo, disciplina a sua navegação, intercalando no solo submerso
centenas de grandes pedras engastadas em imenso colar geológico que sobressai em alguns
pontos como a Pedra dos Ovos e o próprio Penedo (ACHIAMÉ; BETTARELLO;
SANCHOTENE, 1991). Segundo Ab’Sáber (2003) o Penedo está situado no domínio dos
chamados “mares de morros”, onde se alternam esse tipo de formação geológica em regiões
costeiras do Rio de Janeiro ou áreas interiores no Espírito Santo e nordeste de Minas Gerais.
A formação mais conhecida no Brasil e no mundo é a do Rio de Janeiro.
O nome “pão de açúcar”1 remete à herança colonizadora portuguesa, assim denominada
pois, durante o apogeu do cultivo da cana-de-açúcar no Brasil, entre os séculos XVI e XVII, após
a cana ser espremida e o caldo fervido e apurado, os blocos de açúcar eram colocados em uma
forma de barro cônica para transportá-lo para Europa, que era chamado de pão de açúcar. A
semelhança entre ambos teria dado origem ao nome (VIEIRA FAZENDA, 1913).
Desde então, o Penedo “[...] se transformou em autêntico monumento à
confraternização, recolhendo mensagens que traduzem em sua superfície a passagem dos
homens do mar, denunciada em centenas de manifestações pictográficas” (ACHIAMÉ;
BETTARELLO; SANCHOTENE, 1991, p. 148). Na próxima seção trataremos das
mudanças que foram ocorrendo ao redor do Penedo com a implantação do porto de Vitória
o crescimento da região do Centro da cidade.
2. O Penedo, o Porto e a Cidade: mudanças na paisagem da região do Centro de Vitória
Para compreender a paisagem local analisaremos a relação que se estabelece entre
esses três elementos: o Penedo, o porto e a cidade. Para tanto, analisaremos como a paisagem
1
O nome se popularizou a partir da segunda metade do século XIX, quando o Rio de Janeiro recebeu as missões
artísticas do desenhista e pintor alemão Johann Moritz Rugendas e do artista gráfico francês Jean Baptiste
Debret.
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no centro de Vitória vem se modificando com o passar do tempo influenciada principalmente
pela atividade portuária que vai se desenvolvendo com o passar das décadas, o que vai
impactando a cidade e o meio ambiente na região, como será mostrado nas próximas linhas.
Segundo Achiamé (apud SIQUEIRA, 1984), o Espírito Santo, de colonização
europeia, teve sua formação à beira-mar, com a fundação das primeiras vilas, a do Espírito
Santo, depois de Vila Velha e a da Vitória2. Assim, Vitória se desenvolveu como cidadeporto. A origem do porto de Vitória se deu com o crescimento da cultura cafeeira, a partir
de 1870, sobrecarregando o porto de Itapemirim, até então utilizado para escoamento
agrícola, basicamente cana-de-açúcar. Para solucionar esse problema o embarque passou a
ser realizado em outro atracadouro, chamado de “Cais do Imperador”, na parte sul da Ilha
de Vitória (PORTO DE VITÓRIA, 2013).
Devido à sua posição geográfica privilegiada e explorada desde o século XIX, Vitória
se tornou um lugar de destino político e econômico do Espírito Santo, tendo sido, desde
então preparada para abrigar capital e porto (IJSN, 1981). A palavra porto está relacionada
ao processo de desenvolvimento a partir da própria cidade de Vitória, reunindo em suas
proximidades atividades mercantis que davam apoio ao seu principal produto, que era o café
de exportação, junto com a presença de todo um aparato público-administrativo, dada a sua
condição de capital (IJSN, 1996).
Os primeiros estudos para a construção do porto de Vitória datam de 1879, projeto
do americano Milnor Roberts. As obras foram iniciadas em 1911, mas ficaram paralisadas
em 1914, em virtude da guerra (IJSN, 1978). Em 28 de março de 1906, o governo federal
autorizou à Companhia Porto de Vitória (CPV) a implantação de novas instalações no
mesmo local, ficando a cargo da empresa C. H. Walker & Co. Ltd. a execução 1130 metros
de cais. A União encampou a concessão dada à CPV e transferiu-a ao governo estadual pelo
Decreto n.º 16.739, de 31 de dezembro de 1924, tendo sido a construção do porto retomada
no início de 1925 (Figura 1). Sua inauguração ocorreu em 03 de novembro de 1940,
assinalando o começo do atual complexo portuário (PORTO DE VITÓRIA, 2013).
2
A Vila de Nossa Vitória da Victoria foi fundada em1551. O desenvolvimento se deu de forma lenta. Somente em
períodos posteriores que foram edificadas, na entrada da baía de Vitória, algumas fortificações com propósitos de
defesa. No século XVII ainda era uma aldeia, com ruas estreitas sem planejamento (FREITAS, 2002).
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Figura 1 - Porto de Vitória. Início da construção do cais do Porto de Vitória construção do enrocamento.
Fonte: UFES apud Memória Visual da Baía de Vitória (2014). Autoria: [Autor Desconhecido, 1918].
Na virada do século XVIII para XIX foi dado início ao processo imigratório em
consequência do desenvolvimento da hinterlândia do rio Santa Maria da Vitória, e, a partir disso,
a função portuária ganhou novo impulso até os dias atuais. Foi o café que deu impulso ao
desenvolvimento das comunicações marítimas fluviais e ferroviárias no início do século passado,
e geraram transformações significativas na economia regional, tendo reflexo nas cidades através
da ampliação da malha urbana e remodelação dos setores mais antigos com a abertura e retificação
de vias e demolição da grande maioria do casario (IJSN, 1978)3 (Figura 2). A seguir, apresentamos
um trecho que ilustra o movimento do porto4 e o início de uma mudança na cidade:
Nele podia ser observado intenso movimento de barcos e barcaças, onde
eram comercializados café, madeira, frutas, cereais e lenha. Se durante
todo o período colonial a cidade esteve voltada sobre si mesma, onde as
relações se desenvolviam em caráter local, praticamente sem a participação
das populações externas, na passagem do século, devido ao intercâmbio
com as demais cidades e colônias, houve consolidação do comércio e da
atividade portuária, a cidade abriu-se para os espaços externos, e a rua,
antes mero elemento de ligação entre espaços fechados, assume novo
significado, constituindo-se, além de elemento de circulação, em ponto de
permanência, de contato e de discussão (IJSN, 1978, p. 67).
3
Na primeira metade do século XIX, como outras cidades brasileiras, a vila não contava com água encanada,
nem iluminação, nem rede de esgotos. Havia lixo nas ruas e matagal nos terrenos baldios. Em 1823 a vila é
elevada à categoria de cidade. Em 1837, as ruas e os edifícios públicos recebem iluminação (FREITAS, 2002).
4
Lembrando que a abertura dos portos no Brasil se deu em 1808.
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Figura 2 - Parque Moscoso. Vista da região entre a rua do Ocidente, atual João dos
Santos Neves e rua General Osório. À direita, frente à Baía, rua do Comércio e Porto
dos Padres. Avista-se também as Igrejas de São Tiago e São Gonçalo. Ao fundo, Baía
de Vitória e Penedo.
Fonte: UFES apud Memória Visual da Baía de Vitória (2014). Autoria: [Autor Desconhecido, 1908].
Não poderíamos deixar de mencionar nesse trabalho os primeiros projetos de aterro
na cidade de Vitória que iniciaram o processo de modificação do espaço, a partir da sua
origem que é onde se encontra o Centro da cidade hoje. Essas modificações se deram
inicialmente devido aos efeitos da política de valorização do café, constituindo Vitória em
um importante centro comercial. No governo Muniz Freire (1892-6), o engenheiro sanitarista
Francisco Saturnino de Brito fez um projeto de expansão da cidade em direção às praias,
chamado de “Novo Arrabalde”, que abrangeu abastecimento de água, rede de esgotos,
aterros, arruamentos e edifícios públicos (FREITAS, 2002).
Na virada para o século XX, já no governo Jerônimo Monteiro (1908-12) foi elaborado
um programa de urbanização que compreendeu drenagem, aterros, saneamento, jardins, parques,
com destaque para a construção do Parque Moscoso, arborização, alargamento de ruas e
iluminação pública e particular, arruamentos e edifícios. Em 1920 é aberta a Avenida Capixaba e
as ruas do centro são alargadas, retificadas, drenadas e pavimentadas. Em 1927 é construída a
ponte “Florentino Avidos”, ligando a ilha ao continente, o que permitiu a continuidade das obras
do porto de Vitória várias vezes paralisadas (FREITAS, 2002).
Foi um período de muitas ideias no plano urbanístico em que até se cogitou construir
uma ponte ligando a Curva do Saldanha ao Penedo, o que não passou do papel (Figura 03).
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Figura 3 - Forte São João. Projeto de uma ponte, Engenheiro Saldanha da Gama,
ligando o Penedo à curva do Saldanha.
Fonte: Arquivo Geral de Vitória apud Memória Visual da Baía de Vitória (2014).
Autoria: Moacir Fraga (1929).
Em 1939, foi iniciada a ampliação do porto de Vitória e a construção do cais de
minério (IJSN, 1978). Foram construídas as instalações de embarque da Companhia Vale do
Rio Doce (CVRD), no morro do “Péla Macaco” em Vila Velha, hoje totalmente desativadas
e entregues a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa). Na mesma época teve início à
construção do Terminal de Granéis Líquidos e das instalações do Cais de Paul (Usiminas e
CVRD), ambos localizados em Vila Velha. Em 1950 foram construídos os demais berços do
Cais Comercial de Vitória, berços 101 e 102 (PORTO DE VITÓRIA, 2013).
Paralelo a isso, no plano urbanístico, em 1945 foi concluído o “Plano Agache” que tem
como linha mestra a realização de estudos e intervenções sobre o funcionamento do sistema viário
de interligação das zonas da cidade, incluindo o projeto da Avenida Marechal Mascarenhas de
Morais, mas conhecida como “Beira-Mar”. Foi priorizado, a partir dessa década, ações
governamentais voltadas ao automóvel e, por conseguinte, à fluidez do tráfego (FREITAS, 2002).
Dessa forma, podemos compreender como aquele espaço há décadas já vinha
sofrendo processo de degradação para atender a vários interesses, tanto urbanísticos, com a
expansão das vias da cidade, como para atender as demandas portuárias que estavam
crescendo na região. O governo Jones dos Santos Neves (1951-4) se volta para um esforço
de modernização industrial, o que implicou um reordenamento do espaço urbano de Vitória
com destaque para o aterro da “Esplanada Capixaba” (FREITAS, 2002).
Na década de 1960, já no governo Christiano Dias Lopes Filho (1967-71) com a
erradicação dos cafezais, e, consequente grande imigração do campo, é que se inicia um
processo de alterações mais significativas na região, que se agrava na década de 1970 devido
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ao impacto ambiental causado pelo contingente populacional que afluiu para Vitória, assim
como pela industrialização através da implantação dos Grandes Projetos (IJSN, 1978).
Segundo Zorzal e Silva (1998) a década de 1970 teve como resultado uma mudança
radical no ritmo, na escala e na orientação dos investimentos, fazendo com que a economia
regional fosse cada vez mais orientada pela lógica e dinâmica do mercado internacional, tendo
como líder a CVRD, incluindo investimentos no sistema portuário. Foi nessa mesma década que
foi construído o “Cais de Capuaba”, que causou danos maiores ao meio ambiente e ao Penedo o
que será mostrado mais adiante. Na Figura 04 apresentamos o corte que foi realizado no sopé do
Penedo, desintegrando parte do seu conjunto paisagístico para dar espaço para o cais.
Figura 4 - Construção do Cais de Capuaba. Ao fundo, vemos o Penedo.
Fonte: IJSN (2014). Autoria: Pajaú; Gonçalves (1977).
Em resumo, o Espírito Santo foi se adaptando as mudanças econômicas e políticas
decorrentes do processo de globalização e de democratização da sociedade brasileira graças
a uma conjugação de fatores internos e externos5, a partir da década de 1960, conciliado com
“a) No plano nacional/local: a estratégia de desenvolvimento econômico encaminhada pelos governos militares,
principalmente pelo governo Geisel que, através do II PND, tanto aprofundou a internacionalização da economia
brasileira como desconcentrou os investimentos no espaço territorial nacional; a estratégia empresarial da CVRD
que iniciou, nos anos 60, um processo de diversificação e, ao mesmo tempo, de transnacionalização de seus
investimentos; a atuação do governo estadual, principalmente durante a gestão Arthur Carlos Gerhardt Santos –
1971/74 – visando a atração de investimentos de grande porte; a crise, na década de 60, da economia estadual, até
então fundada na monocultura cafeeira, tendo alguns segmentos dominantes visualizado nos grandes
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argumento trazido por estrategistas de que o Espírito Santo está em uma posição geográfica
estratégica no cenário brasileiro e internacional, o que influenciou na localização de
investimentos de grande porte, funcionando como mais um fator de atração do capital. Em
curto prazo de tempo modifica seu perfil agroexportador em meados da década de 1960 para
urbano-industrial nas próximas décadas (ZORZAL E SILVA, 1998).
3. Analisando o caso: atores em cena
Por outro lado, ocorre nos anos 1970 a emergência de movimentos sociais urbanos
em várias cidades do país, que se voltam para as temáticas relacionadas com as dimensões
da vida da população urbana, estabelecendo reinvindicações nas mais diversas áreas em
decorrência do processo de exclusão geradas pela urbanização, formulando novos padrões
organizatórios e uma ruptura com as práticas populistas do passado (PERRUSO, 2009)6.
Muito embora a literatura sobre movimentos sociais deste período tenha privilegiado os
movimentos populares dando pouca ênfase ao ativismo ambientalista, mais restrito à classe
média (ALONSO; COSTA; MACIEL, 2007).
No Espírito Santo, no final da década de 1970 e início da década de 1980, o meio
ambiente entra na pauta dessas reivindicações o que ganha força com a formação do
movimento ambientalista no próprio país. As degradações ambientais, como a do Penedo e
a poluição causada por grandes empresas, dentre outras denúncias, foram os grandes temas
discutidos pelos ambientalistas no Espírito Santo.
Desde 1976, o Penedo começa a ser degradado por conta da construção do cais de
Capuaba, em Vila Velha. Segundo autoridades da época, a obra era de interesse para o
desenvolvimento nacional. O período de alta do “milagre econômico havia passado, mas o
‘ame-o ou deixe-o’ ainda estava em vigor” (A GAZETA, 1983).
Na época, o representante do porto de Vitória comentou que o morro que sofreu
derrocagem não fazia parte do Penedo e que estava nos limites da área de Capuaba. Ainda
investimentos de impacto uma solução para ela; b) no plano internacional: crescimento do movimento de
transnacionalização da economia mundial; facilidades de obtenção de empréstimos externos junto ao sistema
financeiro mundial (norte-americano, europeu e japonês) em virtude da existência dos chamados petrodólares, os
quais buscavam oportunidades de investimentos” (ZORZAL E SILVA, 1998, p. 102-103).
6
Segundo Rodrigues (2001), a entrada e a saída do regime autoritário significam momentos em que se
verificaram ciclos de mobilização e de reforma do sistema político, pois em ambos os casos se tratam de
processos de mobilização associados ao delineamento de situações críticas que recaíram diretamente sobre as
mudanças estruturais que ocorreram no perfil do regime.
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acrescentou que o projeto obteve prosseguimento pela falta de locais propícios para o
empreendimento e porque a paisagem do morro já estava desfigurada, tanto pela torre de
eletricidade da Escelsa, como pelos anúncios lá colocados. Além disso, pelo fato de não estar
tombado, facilitaria a sua utilização para projetos de interesse nacional (GOLTARA, 1981).
Com o descaso do governo em relação à destruição de parte do conjunto paisagístico
com a extração de pedras do local para a construção do cais de Capuaba foram realizados
vários questionamentos sobre a degradação na região. Dentre vários outros nomes que se
destacaram, está o do engenheiro Jaime Larica, uma das primeiras vozes que se levantou
contra o que chamou destruição do Penedo (A GAZETA, 1981). Em uma entrevista
reclamou que deveria ser realizado um projeto paisagístico no local para minimizar o que já
havia sido destruído. Em tom de revolta comentou que se deveria tentar preservar na cidade
pelo menos as pedras e que o Penedo é um patrimônio da comunidade capixaba e não apenas
um assunto técnico (GOLTARA, 1981).
O arquiteto José Daher Filho (apud PAJAÚ, 1983, p. 9) também se manifestou:
Numa época de perda de identidade em todas as áreas do fazer humano, o
tombamento do Penedo, além de assegurar a sua própria integridade
inibindo a continuidade de sua depredação, contribuirá com a recuperação
da identidade da cidade de Vitória, necessária à preservação de sua
memória coletiva urbana.
O arquiteto Kleber Frizera, presidente da seccional do Instituto dos Arquitetos do
Brasil (A GAZETA, 1981), denunciou que estavam destruindo o mais importante patrimônio
paisagístico da Grande Vitória e que o rochedo, embora não atingido pelas explosões,
perdera suas características com o corte realizado no morro ao seu lado, pois se tratava de
um conjunto de rochas. Com as explosões foram removidos mais de cem toneladas de pedra
para dar lugar a um pátio para instalações portuárias.
Nas Figuras 05 e 06, apresentamos como foi se conformando a atividade portuária na região
em apenas três décadas, ficando clara a supressão de parte do Penedo e vegetação nativa ao redor.
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Figuras 5 e 6 - Foto à esquerda: portos de Capuaba e Paul. Fotografia aérea da Baía
de Vitória, com destaque para o Porto de Capuaba e a presença marcante do relevo
na cidade: Pedra dos Olhos, Maciço Central e Morro São Benedito.
Fonte: Memória Visual da Baía de Vitória (2014). Foto à direita: vista aérea do Cais de Capuaba e
do Penedo. Autoria: Flávio Lobos Martins (1998). Vê-se também parte da Baía de Vitória e a
Cidade de Vitória ao fundo. Autoria: Paulo Bonino (1960?). Fonte: IJSN (2014).
Segundo o paisagista Ricardo Ferreira do Amaral, em um depoimento ao jornal “A
Gazeta”, Ricardo Ferreira do Amaral (apud GOLTARA, 1981) o morro do Penedo deveria
ser preservado e as explosões realizadas nas áreas próximas ao rochedo não seriam benéficas
para a região. Para ele, trata-se de um crime que vem se repetindo em todo país, sendo
destruídos morros, florestas e manguezais. Para ele seria necessária à realização de
campanhas mais fortes de preservação ambiental. Comenta ainda que o Penedo é uma
maravilha que dá nova vida à baía de Vitória, inclusive comentou que muitos comandantes
de navio ficam admirados com tamanha beleza e que turistas em férias apreciam a
grandiosidade do rochedo, levando muitas fotos como recordação da cidade.
Ao mesmo tempo em que ocorria a institucionalização do meio ambiente no estado
do Espírito Santo, o movimento ambientalista alcançava sua consolidação juntamente com
a militância política no espaço urbano. No processo da abertura política, parte daqueles
que militavam no movimento estudantil passaram a atuar no movimento ambientalista. Os
movimentos populares dos trabalhadores da região da Grande Vitória, que reivindicavam
melhorias na qualidade de vida, marcaram a passagem da década de 1970 para a década de
1980 (DOIMO, 1984).
Em função das discussões da Conferência de Estocolmo, em 1972, ocorreu uma
maior mobilização em prol do meio ambiente em várias partes do país. No Espírito Santo,
além das pesquisas de Augusto Ruschi, aconteciam eventos promovidos por alunos de
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Biologia da Universidade Federal do Espírito Santo e pela Associação Espírito Santense de
Biologia (AESB) que alertavam sobre os problemas locais (CARLOS, 2012).
Dessa forma, tendo como pano de fundo esse momento de transição do regime
autoritário para democrático, e, tendo como cenário um desenvolvimento predatório sem
precedentes, uma parte da população impactada começou a se sentir incomodada e a se
mobilizar em torno da questão ambiental, dando início ao movimento ambientalista
capixaba. A Associação Capixaba de Proteção ao Meio Ambiente (Acapema) teve destaque
na participação em prol do Penedo realizando denúncias e protestos contra a destruição do
mesmo, sendo esse tombamento um dos seus maiores feitos.
Conclusão
Os grandes projetos faziam parte de um projeto nacional direcionado pelo governo
militar, tendo como aliados às elites políticas e econômicas do Espírito Santo, desde o início
dos anos de 1950 (ZORZAL E SILVA, 2010). A cidade de Vitória acompanhou o processo
de desenvolvimento que resultou em grande impacto ambiental na região devido ao intenso
processo de industrialização e urbanização na capital.
Em uma época em que não havia canais diretos de participação institucionalizados,
a imprensa possibilitava a divulgação de algumas informações, e, funcionava como
denunciadora dos problemas. Funcionava ela mesma como canal de expressão do
movimento ambientalista. Os principais jornais sinalizavam esse debate à época, como
apresentado na pesquisa documental.
Um dos símbolos capixabas, o Penedo foi alvo do desenvolvimento ao ter parte de
seu morro recortado para dar espaço para as novas instalações portuárias do Cais de
Capuaba, Vila Velha, na região da Baía de Vitória, o que gerou protestos. Como afirma
Tarrow (2009) existe na defesa do Penedo um propósito comum, ou seja, de interesses e
valores compartilhados que são base de suas ações comuns de um grupo, no caso
ambientalista. Ou seja, existe por parte dos participantes o reconhecimento de seus interesses
comuns: a preservação do meio ambiente, a conservação de um patrimônio cultural.
O Penedo se tornou um objeto de disputa. Nesse caso, não pode ser evitado que uma
parte do conjunto paisagístico do Penedo fosse degradado para dar lugar às instalações do
cais de Capuaba, mesmo sob protestos. Todavia, isso fez com que se acelerasse o processo
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de tombamento do Penedo, graças às pressões do movimento ambientalista, mais
especificamente da Acapema que solicitou o tombamento do Penedo.
Os ganhos desse movimento foram para além do tombamento do Penedo. Logo em
seguida, ainda na década de 1980, se consolidou uma legislação ambiental e a criação de um
órgão estadual de meio ambiente até então inexistentes.
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CONFLITOS E REDES SOCIAIS NA IMPLEMENTAÇÃO DAS PRIMEIRAS
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NO ESPIRITO SANTO - ES
Leonardo Bis dos Santos
Doutorando em História - História Social das Relações Políticas - UFES. Professor de Sociologia
do IFES/Nova Venécia. Email: [email protected].
Resumo: Este artigo é parte integrante do projeto de pesquisa de doutorado em curso, que tem por
objetivo analisar a política pública de criação de unidades de conservação no estado do Espírito Santo
entre 1940 e 2000. Aqui apresentamos os resultados de pesquisa contemplando as duas primeiras
décadas, a saber 1940 e 1950, onde figuram a criação das primeiras reservas florestais no estado. As
duas primeiras unidades de conservação criadas no ES datam de 1941, apenas 4 anos após a criação
do primeiro parque natural do Brasil. Os dados históricos comprovam, ainda, que no Espírito Santo
foi criada a 4ª unidade de conservação mais antiga do país. O objetivo dessa comunicação é
apresentar o cenário sócio-político do estado relacionado à origem dessa política pública ambiental.
A análise histórica dos fatos e agentes envolvendo a então nova postura frente a proteção da natureza
revelou um emaranhado de redes sociais e conflitos envolvendo as diferentes formas simbólicas de
apropriação do meio ambiente. Na gênese dessa política pública, dada a ausência de um movimento
ambientalista, emerge com vigor ações de agentes dotados de capital social e político na consolidação
daquela que seria uma das principais ferramentas de proteção da natureza.
Palavras-chave: Espírito Santo, Unidades de Conservação, História Ambiental.
Abstract: This article is part of ongoing doctoral research project which aims to analyze the public
policy of creating protected areas in the state of Espírito Santo between 1940 and 2000. Here we present
the research results covering the first two decades, namely 1940 and 1950, which include the creation
of the first forest reserves in the state. The first two protected areas created in the ES date back to 1941,
just four years after the creation of the first natural park of Brazil. Moreover, Historical data shows that
in Espírito Santo was created the 4th oldest area protected of the country. The purpose of this
communication is to present the socio-political landscape of the state related to the origin of the
environmental public policy. The historical analysis of the facts and agents involving the then-new
attitude towards the protection of nature revealed a tangle of social networks and conflicts involving
different symbolic forms of environmental appropriation. In the genesis of this public policy, given the
absence of an environmental movement, emerges with force, agents actions endowed with social and
political capital in the consolidation of what would be a major nature protection tools.
Keywords: Espírito Santo, Protected Areas, Environmental History.
1. Contextualização da temática
A apropriação econômica da madeira no Espírito Santo (ES) se confunde com a
chegada de Vasco Fernandes Coutinho em terras tupiniquins. O primeiro donatário dessa
Capitania Hereditária tratou de buscar lucros acelerados, tendo em vista os investimentos
realizados para tomar posse da então nova propriedade. Esse processo teve, em primeiro
lugar, a exploração de madeira como principal produto.
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As referências às florestas capixabas são extensas e ricas em detalhes. Há grande
destaque para a exuberância da fauna e, principalmente, da flora. A quantidade, variedade,
qualidade e tamanho das árvores impressionam ao ponto de haver descrições de
incomparabilidade com outras florestas do Brasil. Segundo palavras do naturalista
canadense Charles Hartt, “em parte alguma do Brasil, nem mesmo no Pará, vi uma floresta
mais exuberante do que a do rio Doce” (apud BORGO, ROSA e PACHECO, 1996, p. 31).
A apropriação simbólica das florestas variou bastante, desde o século XVI: fonte
material de sobrevivência – indígenas; obstáculo à colonização – tese controvertida da
“barreira verde” além da imagem criada por imigrantes europeus; indutor local de
desenvolvimento econômico baseado na sua destruição, com a exportação de madeira e
posterior implantação das serrarias Em suma, a conotação é substantivamente polissêmica.
No início do século XX, ainda, se notabilizaria sua utilização para construção de
estradas de ferro na forma de dormentes e a partir da década de 1960 passou a ser estratégica
para a industrialização do Espírito Santo, tomado como exemplo icônico a planta industrial da
Fibria S/A (maior planta industrial de produção de celulose sediada no país). Esse contexto
geral trouxe efeitos devastadores sobre as florestas. Segundo André (2012), apesar das
divergências dos dados sobre a cobertura vegetal, é confortável estimar que entre 85 e 90% da
cobertura vegetal original ainda era vista na virada entre os séculos XIX e XX, no Espírito
Santo. E segundo dados organizados pelo Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica - IPEMA,
Era muito comum entre os anos 1920 e 1950 que novas derrubadas de
florestas fossem realizadas para expansão da cultura devido a épocas de
bom preço do café. Com a queda dos preços, as terras eram abandonadas
ou se transformavam em pastagens, caracterizando o ciclo mata-cafépastagens (IPEMA, 2005, p. 40).
Essa situação das matas capixabas não era específica, sendo bastante comum em
outras partes do país. Por isso, autoridades científicas e políticas do Brasil já apoiavam a
criação de áreas ambientalmente protegidas por lei, cujo foco central inicial eram as
florestas, desde o século XIX, com André Rebouças. Entretanto, o ponto realmente decisivo
para a criação de unidades de conservação no Brasil foram as discussões da década de 1930,
no primeiro Governo de Getúlio Vargas. Desses debates surge o Decreto 23.793/1934, que
criou o primeiro Código Florestal Brasileiro. Este foi singular no processo de implementação
e sistematização de áreas de proteção no Brasil, pois pela primeira vez no Brasil havia uma
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normatização envolvendo a criação de reservas florestais. Para Urban (1998), “aproveitando
todas as duras lições que a história econômica infligiu às florestas, o Código Florestal de
1934 começou uma ousada revolução conceitual ao limitar o direito da propriedade,
subordinando-o ao interesse coletivo” (URBAN, 1998, 75). Sem qualquer sombra de
dúvidas, a criação do Parque Nacional do Itatiaia, em 1937, foi proporcionada pela nova
legislação – apesar de que a área já era alvo de proteção legal pelo menos desde 1914,
caracterizada como uma Estação Biológica, incorporada ao Jardim Botânico, conforme
atesta o Decreto nº 1.713 – de 14 de junho 1937. O Código Florestal, então, não proporcionou
a criação das primeiras áreas protegidas do Brasil e sim confluiu para a sistematização
nacional de uma política pública de defesa da flora.
Os efeitos no Espírito Santo da nova legislação foram imediatos, suscitando debates
– muitos deles circunscritos apenas a gabinetes – em torno da conservação das matas. Como
exemplo desse protagonismo na Mensagem do Governo de 1937, enviada pelo Interventor
Federal no Estado Punaro Bley, à Assembleia Legislativa, é mencionada a intenção em criar
reservas florestais estaduais. Foram assinaladas explicitamente a possibilidade de criação de
três reservas florestais no Espírito Santo.
Reservas Florestais.
Estudamos ainda as bases para a instituição de reservas florestais, em
número de três, de cujos perímetros ordenámos o fechamento.
Em exposição de motivos, solicitámos, na respectiva mensagem a essa
Assembléa Legislativa, que tornasse inalienaveis tais recursos,
esclarecendo perfeitamente a necessidade do Estado amparar sua flóra e
fauna contra o sistema de exploração ostensiva de nossas florestas
(MENSAGEM APRESENTADA À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO
ESTADO EM SUA SESSÃO ORDINÁRIA DE 1937, pelo Interventor
Federal João Punaro Bley, de 1º de julho de 1937).
Apesar da falta de localização, os dados nos levam a supor que se tratavam de áreas
no norte do estado, uma vez que 4 anos mais tarde o governo local lançaria o Decreto-lei
12.958 de 30 de setembro de 1941, onde foram criadas – no papel – duas reservas florestais.
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2. A relação entre o surgimento de uma política pública e as redes sociais na década de
1940 no Espírito Santo
A ausência de um campo ambiental, no sentido bourdieusiano1, consolidado no
Estado do Espírito Santo – situação bastante similar com o restante do país naquele momento
– contribuiu substantivamente para que os conflitos em torno da apropriação dos recursos
ambientais fossem encobertos pela falta de exposição pública e política. Em outro contexto
designamos a ideia de conflitos latentes (SANTOS, 2012) para caracterizar momento
histórico similar. Somente após a redemocratização, em 1986, é que teríamos espaço para
que emergisse com vigor os debates em torno da complexidade ambiental e da criação de
áreas ambientalmente protegidas. Segundo Diegues, até aquele ano “havia pouca
mobilização para a criação de unidades de conservação, dependendo, principalmente, da
ação de cientistas e alguns poucos conservacionistas com acesso relativamente fácil ao
governo militar” (DIEGUES, 2004, 117).
A ausência de movimentos sociais na origem da política pública de criação de
unidades de conservação também caracteriza a forma de ação dos agentes envolvidos,
conforme destaca Diegues (2004). E na história da gênese dessa política pública que alguns
agentes sobressaem nas fontes pesquisadas: Carlos Fernando Monteiro Lindenberg2,
Augusto Ruschi3 e Álvaro Coutinho Aguirre4.
Segundo afirma Amylton de Almeida (2010), Carlos Lindenberg foi um apreciador
de orquídeas. E foi a partir desse gosto em comum que houve uma aproximação entre o então
Secretário Estadual e Augusto Ruschi, em 1937 – que viria a ser um grande defensor da
natureza no ES e no Brasil. Naquela época o pesquisador tinha 22 anos e ainda não gozava
do status científico e do capital simbólico que posteriormente o caracterizaria como figura
1
O conceito de campo aqui é empregado segundo a concepção de Pierre Bourdieu. Este conceito para Bourdieu
é delimitado por um conjunto de regras próprias estabelecidas aos agentes, rompendo com determinismos ou
regras absolutas para toda a sociedade. Cada campo possui regras próprias para estabelecer legitimidade e
relações de poder. Há relações entre campos na sociedade – campo econômico e campo científico; campo
científico e campo religioso; campo religioso e campo político; etc. – e a força de um campo interfere na
legitimidade de outro campo, no seio dessas relações.
2
Carlos Lindenberg foi Secretário de Agricultura, Terras e Obras Públicas – cargo que acumulou com o de
Secretário da Fazenda 1935-1939; Deputado Federal eleito em 1945; foi Governador em dois mandatos
diferentes (1948-1950 e 1959-1962) – no primeiro mandato criou de uma só vez 7 reservas florestais, por meio
do Decreto 55/1948; e, Senador pelo Espírito Santo por dois mandatos (1951-1958 e 1967-1974).
3
Augusto Ruschi foi um proeminente cientista nascido no Espírito Santo. Sua imagem lhe rendeu o título de
Patrono da ecologia no Brasil – a partir da Lei Federal nº 8.917, de 13 de julho de 1994.
4
Álvaro Aguirre exerceu vários cargos na estrutura da Divisão de Caça e Pesca do Ministério da Agricultura. Foi
responsável criação de parques de reserva e refúgio de animais silvestres na Bahia e no Rio Grande do Sul, além da
criação do Museu da Fauna no Rio de Janeiro. Publicou mais de 15 trabalhos científicos sobre a fauna brasileira.
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pública. Segundo consta na mais ampla biografia publicada de Lindenberg, após conhecer
Ruschi e seus experimentos:
Carlos não conseguiu esquecer o “laboratório”. No Rio, conversou com o
biólogo Mello Leitão, seu compadre (era padrinho de batismo de Carlos
Fernando), muito influente no meio científico e que tinha ótimas relações
com Heloísa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional. Rememora
Carlos: Então eu falei com ele que tinha me aparecido um rapaz assim,
assim, expliquei como ele era, descendente de italianos, que vivia fazendo
coleção de bichinhos e me parecera um rapaz muito aproveitável: Veja se dá
um jeito dele entrar no Museu para ajudar a doutora Heloísa e ganhar algum
dinheiro para poder estudar e fazer carreira (ALMEIDA, 2010, p. 180).
Poucos anos depois Ruschi foi admitido no Museu Nacional, onde iniciou sua
projeção nacional e internacional, dada a respeitabilidade daquele órgão aliada à grande
capacidade científica do então novo membro da equipe. Essa versão da aproximação entre
Lindenberg e Ruschi também aparece na versão biográfica empreendida por Daniel (2005):
A ponte entre Augusto Ruschi e Mello Leitão havia sido feita pelo exgovernador Carlos Lindenberg. Durante uma visita a Enrico Ruschi [irmão
de Augusto e que era Prefeito de Santa Teresa, distante 78 km da capital
Vitória], Lindenberg, que na época era secretário estadual de Agricultura,
foi convidado a conhecer a coleção de orquídeas do irmão do prefeito. No
caminho para o lugar onde ficavam as plantas estavam as mesas onde o
rapaz havia colocado suas caixas de insetos, o que chamou a atenção do
secretário. Lindenberg parou para conhecer o insetário e ficou
impressionado com o que viu. Numa viagem ao Rio de Janeiro, encontrou
Mello Leitão, que era seu amigo e de sua mulher, Dona Maria, e
recomendou o jovem Ruschi (DANIEL, 2005, p. 32-3).
Dado o cruzamento cronológico e de fontes, não resta dúvida que não se pode atribuir
a Ruschi a idealização da criação das primeiras reservas florestais do Espírito Santo – ele
pode ter militado em sua defesa após ter tomado ciência da existência da proposta. Por outro
lado, não foi possível distinguir se a relação próxima entre Mello Leitão e Lindenberg
influenciou o conteúdo da Mensagem de 1937, enviada à Assembleia Legislativa do Espírito
Santo. Fato é que a proposta tomou corpo nos anos imediatamente subsequentes e em 30 de
setembro de 1941 era assinado o Decreto-lei 12.958, criando as duas primeiras reservas
florestais do estado. Os dados também nos revelam que a relação pessoal entre Mello Leitão,
Ruschi e Lindenberg foi decisiva para a criação de 7 reservas florestais, a partir do Decreto
55/1948, quando o último assumiu o Governo do Estado. Há relatos acerca de reuniões entre
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os três para tratar do assunto, antes da publicação daquela legislação, demonstrando
claramente o vigor das conversas de gabinete, bem como a troca de ofícios.
Como já expressado, a agenda ambiental era incipiente nos círculos sociais e políticos
na década de 1940 no estado do Espírito Santo. A preocupação com as florestas era
determinada pela finitude de sua apropriação econômica a partir da madeira, quando muito.
Nesse contexto, conseguir recursos humanos e financeiros para a causa ambiental era tarefa
delicada e exigiu a influência de agentes em círculos decisórios.
Eis que ainda em 1941 defensores da causa ambiental ganhariam novo fôlego e
argumentos para suas ações. Apenas 77 dias após a criação das primeiras reservas florestais
no Estado do Espírito Santo, o Governo Federal lançou o Selo Pró-Fauna, a partir da
Decreto-lei 3.942, em 17 de dezembro de 1941. Essa coincidência de datas pode indicar que
o governo do estado teve conhecimento da proposta federal, que visava criar um fundo
financeiro para arcar com as despesas com a proteção da fauna.
A criação do selo Pró-Fauna gerou grande expectativa, por tratar-se de um recurso que
não era concorrente com outras pautas sociais – educação, saúde, segurança, infraestrutura,
etc. O recurso arrecadado era específico para a proteção animal e “na formação de refúgios
para animais da fauna indígena”. Mas a lei não destacava absolutamente nada sobre o repasse
desses recursos para os estados que já possuíam seus parques naturais. E esse ponto se
mostraria essencial nos anos subsequentes para o Espírito Santo.
Aproveitando as possibilidades abertas com o Selo Pró-Fauna, a Divisão de Caça e
Pesca do Ministério da Agricultura manifesta interesse em criar uma área protegida com
vistas à preservação da fauna e da flora no Espírito Santo. E se temos dificuldade, diante das
fontes, em indicar quem foi “o pai” da proposta de criação das primeiras reservas florestais
do Espírito Santo, não temos qualquer sombra de dúvida de quem “sustentou” a primeira
unidade de conservação federal em solo capixaba: Álvaro Coutinho Aguirre.
O Decreto-lei 12.958/1941 foi muito mais simbólico que efetivo – talvez por isso
vem perdendo espaço na memória coletiva e bibliográfica a respeito do tema. Logo após a
criação, a situação das duas áreas de proteção era de abandono – uma delas, inclusive, se
perdeu no tempo e no espaço e nunca foi delimitada e implementada. Aguirre, nascido em
Santa Teresa/ES em 1899, havia feito toda a sua vida acadêmica no Rio de Janeiro e em
1941 trabalhava na Divisão de Caça e Pesca do Ministério da Agricultura, órgão responsável
pela proteção da fauna em território nacional. Em 1936 já havia empreendido um estudo
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intitulado Caça e Pesca no Vale do Rio Doce, publicado 3 anos depois, e que pode ter sido
o embrião da ideia de criação de áreas protegidas exposta na Mensagem de 1937. Nesse
estudo, segundo relata em outra publicação, Aguirre já destacava os conflitos entre as
apropriações sociais da natureza.
Somente em 1927, com a construção de uma ponte, com a extensão de 700
metros, ligando a cidade de Colatina às terras do norte é que essa região
começou a desenvolver-se. Desde essa época que acompanhamos o
desenvolvimento rural dessa região, testemunhando, muitas vezes, a
depredação de nossas riquezas naturais, com a falsa justificativa de que
assim o exige a civilização. Em consequência, assoberbado com o
aniquilamento impune desse patrimônio nacional, surgiu-nos,
espontaneamente, a ideia da criação de um parque florestal e de refúgio de
animais silvestres, com o fim de preservar a fauna e flora local da sanha dos
caçadores, da ganância dos madeireiros e da insensatez dos colonizadores.
Em publicação de nossa autoria, intitulada “A Caça e Pesca no Vale do Rio
Doce - 1936”, tivemos ocasião de tecer considerações a respeito
(AGUIRRE, [1947] 1992, p. 2).
Em julho de 1942. Aguirre é designado, pelo Ministro da Agricultura, Fernando
Costa, para estudar a possibilidade de implementação de refúgios de animais silvestres,
prioritariamente no Vale do Rio Doce. A opção por esse modelo de parque esteve
intimamente ligada à criação do Selo Pró Fauna. Em sua visita de campo, contudo, Aguirre
nos revela um dado curioso em relação ao Decreto 12.958/1941. O pesquisador identifica
outra área como sendo a reserva florestal estadual.
Fonte: AGUIRRE, [1947] 1992, 3.
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Em dois anos a reserva florestal estadual que estava do lado direito da estrada no
sentido Vitória-São Mateus – atual BR 101 norte –, havia sido transferida para o outro lado,
na margem esquerda. Aguirre declara que a área original:
Tinha sido desprezado por motivo de interesses do Estado. Em substituição
a esta reserva, fora demarcada uma área de terra de 10.000 hectares,
contígua à cima mencionada, localizada à margem esquerda da rodovia
Linhares-São Mateus (AGUIRRE, [1947] 1992, p. 2).
O Governo Federal então se ocupa de estudos científicos para viabilizar a criação de
um refúgio de vida silvestre na exata localização onde o Decreto-lei 12.958/1941 havia
estabelecido originalmente uma reserva florestal estadual. Não foi encontrada nenhuma
fonte que permita traçar como foi realizada legalmente essa transferência de localização, por
parte do Governo do Estado do Espírito Santo e rapidamente Aguirre reúne informações que
sustentam a criação de uma área protegida sob responsabilidade do Governo Federal. Em
setembro de 1943 é finalizado o processo de doação da área, que originalmente foi destinada
à reserva florestal, por parte do Governo do Estado.
Em 21 de setembro é publicado o Decreto-lei 14.977/1943.
Art. 1º - Fica o Governo do Estado autorizado a transmitir ao Governo Federal,
por via de doação uma área de terras devolutas, a ser demarcada com mais ou
menos dose mil hectares, situada no distrito de Linhares do Município de
Colatina confrontando-se ao N. com o rio Barra Sêca, ao S. com o ribeirão
Cupido, a E. com a lagoa do Macuco, e a O. com a rodovia Vitória/ES. Mateus.
Com essa transferência de terras entre os entes Federal e Estadual ficava instituído o
Parque de Reserva, Refúgio e Criação de Animais Silvestres Sooretama, tendo como limite
à oeste a margem direita da estrada Vitória-São Mateus, e na outra margem da estrada ficava
a Reserva Florestal Estadual de Barra Seca. Esta última foi no papel a primeira unidade de
conservação do Espírito Santo, mas na prática o Parque de Reserva é detentor deste posto.
Segundo Aguirre, este foi o primeiro de sua categoria a ser implementado no Brasil e uns
dos primeiros parques naturais – considerando todas as categorias – criados após o Código
Florestal de 1934. Apesar das idas e vindas; da criação de áreas no papel sem a demarcação
de fato; das transferências de localização e de responsabilidade; da dependência das redes
sociais particulares e da ação individual; a política de criação de áreas protegidas no Espírito
Santo dava seus primeiros passos...
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3. Conflitos na implementação da primeira unidade de conservação federal no
Espírito Santo
Com base na ampla literatura acerca do tema, é possível afirmar que toda criação de
unidade de conservação necessariamente parte de conflitos. A partir desses, outras estratégias
de ação dos agentes são formuladas e reformuladas de acordo com a dinâmica do campo
ambiental em questão. Como não poderia deixar de ser, a despeito das ambiguidades no
processo de criação das primeiras áreas de proteção ambiental, o processo de implementação
também envolveu doses variáveis de disputas. Alguns desses níveis atingem a escala explícita
e são mais facilmente identificáveis nas fontes. Outros níveis, contudo, são percebidos apenas
ao cruzar dados. Como o campo ambiental capixaba ainda estava em seus primeiros estágios
nas décadas de 1940 e 1950, a explicitação desses conflitos praticamente não ocorreu. A
estratégia dos agentes envolvidos na proteção ambiental foi utilizar todo o seu capital social e
simbólico para alcançar seus objetivos. Essa utilização, via de regra, se processou a partir de
redes de relacionamentos, seja na esfera estadual ou federal. Muitos conflitos, assim, ficaram
no nível latente (SANTOS, 2012), e foram sócio culturalmente encobertos. Como exemplo
podemos citar os conflitos pelo uso e ocupação do solo por populações invisíveis, assim como
quilombolas e indígenas (às vezes retratados nas fontes como caboclos).
Os dados de população identificam que o norte do Espírito Santo, na década de 1940,
detinha um número menor de habitantes, mesmo possuindo uma extensão territorial maior, em
relação ao centro e ao sul do Estado. Aliado a esse dado, parte da população que lá habitava
era socialmente invisível, e só foram notados no interior das então novas áreas protegidas após
sua implementação. Apesar de não ser expressamente proibida pelo Código Florestal de 1934
– haviam categorias de florestas mais permissivas –, a presença humana no interior dessas
áreas era vista como um impasse à proteção ambiental. Para a maioria de seus defensores a
natureza era algo sagrado, enquanto o homem era visto como elemento profano num paraíso
e os habitantes das unidades de conservação, geralmente eram vistos como intrusos.
Essa parece não ter sido a perspectiva de Álvaro Aguirre, que foi o primeiro
superintendente do Parque de Reserva, Refúgio e Criação de Animais Silvestres de
Sooretama. Muito afeto ao desenvolvimento de pesquisas e elaboração de estudos, agregava
uma visão bastante peculiar acerca da relação entre homem e natureza no interior do refúgio.
Pela sua formação e atuação profissional, possuía uma visão bastante peculiar no que
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concerne a proteção ambiental. Ao mesmo tempo em que era permeado pelo pensamento de
sua geração em relação à ideia de desenvolvimento econômico.
Especificamente em reação à presença humana no refúgio de vida silvestre,
destacamos um trecho escrito por Aguirre:
Em vários editais afixados em diversos pontos do Parque, proibimos a
derrubada de matas e a prática da caça, bem como recomendamos não
conservar cães em casa para evitar a afugentação dos animais selvagens.
Com esta medida os posseiros nômades se transferiram para as terras de
ninguém; a fim de continuarem a prática das derrubadas. No entanto, era
nosso pensamento conservar os bons agricultores nas terras em apreço, tanto
que nos editais, foram oferecidas certas vantagens para aqueles que
quisessem plantar e criar, cingindo-se, é lógico, à área de aproveitamento.
Esses agricultores seriam de grande utilidade na fiscalização e nos trabalhos
de instalação do Parque. Nenhum, porém, sujeitou-se à condição de não
devastar as florestas e caçar. Hoje, existem apenas duas famílias residentes
na área do Refúgio, das trinta a quarenta que ali habitavam quando as terras
passaram para o Domínio da União (AGUIRRE, [1947] 1992, p. 4).
Esse ponto de vista era bastante singular, uma vez que no Brasil somente da década
de 1970 haveria um debate profícuo em torno do conservacionismo e posterior consolidação
das unidades de conservação de uso sustentável, na década seguinte. Essa visão também é
radicalmente contrária à visão atribuída a agentes ligados a órgãos públicos de defesa
ambiental. Uma ex-diretora do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal - IBDF, ao
se referir a uma unidade de conservação, declarou que “enfrenta ainda este Parque Nacional
problema da mais difícil solução, que há anos vem prejudicando sua administração. Tratase da pequena população rústica (sic) que habita a parte litorânea do seu interior” (PÁDUA
e COIMBRA FILHO apud DIEGUES, p. 116, grifos nossos).
Mas a presença de pequenos agricultores estava muito longe de ser o único desafio à
implementação do refúgio. Aguirre ainda cita ações de um madeireiro e de um criador de
bovinos que “que não se conformaram com a doação das terras ao Governo Federal e
procuraram embaraçar a organização do Parque” (AGUIRRE, [1947] 1992: 5). Mas é na
década de 1950 aconteceria um turbilhão de fatos relevantes para a história das unidades de
conservação capixabas, inclusive para a Reserva Florestal Estadual de Barra Seca e para o
Parque de Reserva, Refúgio e Criação de Animais Silvestres Sooretama.
Estas duas áreas protegidas, apesar da estreita proximidade entre ambas, dividida apenas
pela estrada Vitória - São Mateus (atual BR 101 ES/Norte), apresentavam situações de
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operacionalidade bastante diferentes. Enquanto a unidade federal possuía recursos financeiros e
humanos – ainda que insuficientes –; no lado oeste da estrada não havia nada além de algumas
incursões feitas por fiscais das delegacias de terras, como atestam os documentos oficiais.
No Relatório de Gestão do Governo do ES enviado no ano de 1948, referente aos
acontecimentos de 1947, é destacado “gravíssimo problema da invasão de terras e
devastação das matas do Estado”. Para tal:
Foram criadas, a título precário, no ano findo, 3 Delegacias de Terras, no
norte do Estado, que estão em funcionamento.
Os resultados até agora obtidos têm sido esperançosos.
A situação atual – quando a defesa do patrimônio florestal do Estado
assume caráter de verdadeiro trabalho de salvação pública (MENSAGEM
APRESENTADA À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO EM
SUA SESSÃO ORDINÁRIA DE 1948, p. 39-40).
Consta nas fontes que, dada a situação do estado, o Governo do ES havia solicitado
auxílio financeiro ao Governo Federal e este já havia negado. Em trecho do relatório enviado
ao Ministério da Agricultura, Aguirre destaca que antes da doação da área “o Ministro da
Fazenda impugnou a aplicação de verbas em construções no Parque, alegando que as terras
não pertenciam à União” (AGUIRRE, [1947] 1992, 3). Esse trecho foi composto 4 anos após
a implementação da Reserva Federal no ES, deixando claro a preocupação de Aguirre com
as áreas sob responsabilidade do Governo Estadual.
Diante da incapacidade do Governo do Estado e da negativa jurídica da União para
utilizar recursos federais na Reserva Florestal de Barra Seca, inicia-se um novo processo de
doação, a fim de fundir as duas unidades em uma única reserva. Os documentos oficiais nos
mostram que a autorização para doação se deu em 1955, a partir da Lei 976 de 10 de
dezembro daquele ano. No Plano de Manejo da unidade de conservação destaca-se que:
Em 1955, pela Lei nº 976, o Governo do Estado do Espírito Santo doou ao
Governo Federal a Reserva Florestal de Barra Seca, situada a oeste da
estrada de rodagem Vitória - São Mateus (atualmente ES-358). Através do
Decreto nº 2.057, de 16/01/1963, a União autorizou a aceitação da área
doada, de 10.200 ha, cuja escritura foi passada em 15/06/1965, legalizando
a posse e domínio sobre a Reserva (PLANO DE MANEJO DA RESERVA
BIOLÓGICA DE SOORETAMA, 1981, p. 10).
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A informação da autorização da doação aparece também na mensagem oficial do
Governador à Assembleia Legislativa do ano de 1957, onde há a menção de doação de todas
as áreas protegidas criadas até então – em 1948 foram criadas outras 7 unidades, no primeiro
Governo de Carlos Lindenberg.
Vemos no trecho do Plano de Manejo que o processo de doação e aceitação por parte
do Governo Federal demorou mais de 10 anos. E nesse meio tempo o contexto interpôs novos
elementos de análise, pois no ano de 1954 foi inaugurada a ponte de Linhares sobre o Rio
Doce. A rodovia Vitória - São Mateus que antes era limite de duas áreas de preservação com
a fusão se tornara uma via de passagem constante e movimentada no interior de uma reserva
biológica de proteção integral. Além do risco – que rapidamente passaria do plano das
possibilidades aos fatos concretos – de acidentes envolvendo o fluxo genético selvagem, a
rodovia passou a estar em situação irregular do ponto de vista legal, principalmente após o ano
de 1965 com o 2º Código Florestal, dado o caráter de proteção integral daquela unidade.
Este alerta foi feito em 1981, quando da publicação do plano de manejo da unidade.
Em relação à BR 101:
Construída na década de 60 (neste trecho) atravessa uma área que, já à
época de sua construção, era considerada protegida pelo Código Florestal
(Lei nº 4.771 de 15/09/1965) não sendo permitido então, pela lei, tal
construção. Por não terem sido conseguidos, até o momento, os
documentos relativos ao fato, não foi possível fazer um levantamento
histórico sobre a obra e suas implicações (PLANO DE MANEJO DA
RESERVA BIOLÓGICA DE SOORETAMA, 1981, p. 10).
O trecho norte da BR 101, que corta a área de proteção em Sooretama foi inaugurada em
04 de julho de 19735 – após o 2º Código Florestal e após a criação do Instituto Brasileiro de Defesa
Florestal - IBDF. Apesar da estrada aparecer em todos os estudos, desde o elaborado em 1943 por
Álvaro Aguirre, a institucionalização de uma rodovia federal certamente feriu o Código Florestal
de 1965. Mas devemos levar em consideração também o contexto político de fins da década de
1960 e da década de 1970. Em outra pesquisa já apontamos a relação entre a agenda pública e os
níveis de conflito e destacamos a situação sui generis do Brasil nesse período, onde as agendas
sociais giravam em torno das liberdades políticas, não cedendo espaço à outras agendas como a
“A conclusão da BR-101/Norte completando a ligação pavimentada, desde a divisa com o Estado da Bahia
até a divisa com o Estado do Rio de Janeiro, ocorreu em 4 de julho de 1973”. Cf. SARTÓRIO, Élvio Antônio.
A trilha sagrada - v. 2: anatomia histórica das rodovias. Vitória: Ed. do Autor, 2007, 100.
5
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ambiental (SANTOS, 2012). Fato é que essa irregularidade havia se perdido na história local.
Esperamos aqui ressuscitar essas letras e fontes...
Mas o maior conflito de interesses em torno da fusão das unidades ainda se manifestaria.
No ano de 1968 o Governo do Estado do Espírito Santo solicitou a revogação da doação da
Reserva Florestal de Barra Seca, claramente para beneficiar interesses da então Companhia Vale
do Rio Doce S.A. Recorrendo à tese de doutorado de Marta Zorzal e Silva (2004), que se dedicou
ao estudo da Companhia entendida no contexto do modelo de desenvolvimento empreendido no
Brasil, encontramos vários elementos que nos permitem, em associação ao Código Florestal de
1965, o entendimento da postura do Governo do Espírito Santo.
Segundo Silva (2004) entre 1942 e 1945 os esforços de investimento da Vale do Rio Doce
centraram-se na expansão da via férrea para o transporte de minério. Assim, “significava ampliar
seu percurso para chegar até as minas, fazer amplas remodelações no trecho existente” (SILVA,
2004, 145). Associada à estratégia de ampliação da linha férrea, onde a madeira tinha a apropriação
de dormentes como principal produto, o Código Florestal de 1965 designava que:
Art. 21. As empresas siderúrgicas, de transporte e outras, à base de carvão
vegetal, lenha ou outra matéria prima florestal, são obrigadas a manter
florestas próprias para exploração racional ou a formar, diretamente ou por
intermédio de empreendimentos dos quais participem, florestas destinadas
ao seu suprimento (LEI 4.771/1965).
Este artigo teve uma relação direta com um dos pilares do modelo de desenvolvimento
aplicado no Espírito Santo, à base da implantação de grandes plantas industriais de siderurgia e
de celulose, implantadas nas décadas de 1960, 1970 e 1980. A Companhia já havia adquirido do
Governo do Estado e implantado uma reserva de madeiras no início da década de 1950: uma
área contígua ao sul do Refúgio de Vida Silvestre, já servia de estoque de madeira para produção
de dormentes. Dada a proximidade com a Reserva Florestal de Barra Seca esta seria um
incremento nesse estoque, além de atender o Artigo 21 da Lei 4.771/1965.
Segundo consta no Plano de Manejo da Reserva Biológica de Sooretama a disputa
entre Governo do Estado e Governo Federal, tendo como parte interessada a Vale do Rio
Doce durou cerca de 3 anos.
O processo se desenrolou até 1970, quando o então assessor jurídico do IBDF
encarregado do assunto, Hélio Figueiredo Cordovil, emitiu o seu parecer,
encaminhando à Chefia para solução. O Dr. Alceo Magnanini, à época diretor
do Departamento de Pesquisa e Conservação da Natureza, atual Departamento
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de Parques Nacionais e Reservas Equivalentes do IBDF citado por Cordovil
no seu parecer, foi radicalmente contra a revogação. A solução para o caso
veio com a Portaria nº 2.015/71 de 04/03/1971, baixada pelo presidente do
IBDF à época, João Maurício Nabuco, que incorporou definitivamente a
Reserva de Barra Seca à Reserva Biológica de Sooretama, denominação esta,
dada pela Portaria 939 de 06/06/1969 (PLANO DE MANEJO DA RESERVA
BIOLÓGICA DE SOORETAMA, 1981, p. 10).
A manutenção da posse por parte da União representou uma grande vitória dos
interesses ambientais frente à expansão do capital.
Considerações Finais
Segundo Ruschi o Espírito Santo na década de 1940 figurou entre aqueles que saíram na
frente na proposição de áreas protegidas, aproveitando as inovações proporcionadas pelo contexto
geral de preocupação ambiental crescente e a publicação do Código Florestal de 1934. Assim,
destaca estados da Federação que iniciaram a criação de espaços destinados à preservação ambiental:
São Paulo dá início, com a criação do Parque Estadual de Campos de Jordão,
criado pelo Decreto Lei nº 11.908 de 27-3-1941; o Estado do E. Santo, cria a
Reserva Florestal e Biológica de Rio Barra Sêca, pelo Decreto Lei nº 12.958 de
30-9-1941; a Bahia cria o Parque Estadual do Monte Pascoal, pelo Decreto Lei
nº 12.729 de 19-4-1943; o Estado do E. Santo cria a Reserva Florestal e
Biológica, hoje Parque de Refúgio “Sooretama”, pelo Decreto Lei nº 14.977 de
21-9-1943; o Estado de Minas Gerais cria o Parque Estadual Rio Doce, pelo
Decreto Lei nº 1.119 de 14-7-1944, nos Estados: Ceará, Pernambuco, Piauí e
Rio Grande do Norte, é criada a Floresta Nacional Araripe-Apodi, pelo Decreto
Lei nº 9.226 de 2-5-1946; o Estado do E. Santo, cria pelo Decreto Lei nº 55 de
20-9-1948 as Reservas Florestais e Biológicas de: Rio Itaúnas, Córrego do
Veado; Nova Lombardia e Pico da Bandeira (BOLETIM DO MUSEU DE
BIOLOGIA PROF. MELLO LEITÃO, Série Proteção à Natureza, n. 2, p. 5).
O Espírito Santo estava no rol dos Estados protagonistas dessa política pública de
proteção ambiental. Das reservas federais, Sooretama foi 4ª a ser criada no país e, segundo
Ruschi, o ES só ficou atrás do Estado de São Paulo, que criou a unidade de conservação de
Campos do Jordão cerca de 6 meses antes da criação de Barra Seca.
Esse protagonismo também é atestado por Maria Tereza Jorge Pádua, que assim
respondeu a um questionamento:
Pergunta: Bem, mas houve uma “safra” de “áreas protegidas” na década de
quarenta?
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Maria Tereza Jorge Pádua: Foram as reservas: Barra Seca, Nova
Lombardia, Côrrego do Veado, Serra Negra... (URBAN, 1998, p. 215).
Há de se ressaltar no trecho da entrevista acima que das quatro unidades de
conservação que vieram à mente da entrevistada, se referindo à década de 1940, 3 estão
localizadas no Espírito Santo. Só para salientar, Maria Tereza Jorge Pádua esteve no IBDF
desde sua fundação em 1967 e chegou a presidir o IBAMA no ano de 1992.
Entende-se que a política de criação de áreas protegidas, enquanto política pública, surge
enquanto o campo ambiental ainda era algo incipiente, fazendo com que a dependência de
agentes fosse maior que a atuação de grupos organizados em defesa do meio ambiente. Esses
últimos, só apareceriam na década de 1970 no Espírito Santo. Assim, expoentes como Álvaro
Aguirre, Augusto Ruschi e Carlos Lindenberg, cada um do seu modo, são figuras centrais para
o entendimento do contexto geral, ao exporem uma rede de relacionamentos que foram
fundamentais na gênese do que no futuro seriam unidades de conservação6. Essas redes de
relacionamentos, contudo, não camuflam uma gama de interesses díspares, onde conflitos
sociais estão sempre presentes. Apesar de as tomadas de decisão não levavam em conta grandes
rodas de debates ou discussões legislativas, o contraditório é elemento constante.
Referências
AGUIRRE, Álvaro Coutinho. Soóretama: estudo sobre o Parque de Reserva, refúgio e criação
de animais silvestres “Soóretama”, no município de Linhares, Estado do Espírito Santo. Edição
particular autorizada pela família. Patrocinada por Angelo Arpini Coutinho e Brunório Serafini.
Obra originalmente entregue para publicação em setembro de 1947. [S.l.: s.n.], 1992. (integra o
setor de coleções especiais da UFES sob o número 502 (815.2) A284s).
ALMEIDA, Amylton de. Carlos Lindenberg: um estadista e seu tempo. Organização,
apresentação e notas de Estilaque Ferreira dos Santos e Fernando Antônio de Moraes
Achiamé. Vitória: Arquivo Público do Espírito Santo, 2010 (Coleção Canaã, v. 11).
6
Em 1976, Ruschi publicou o Boletim do Museu de Biologia Prof. Mello Leitão de número 48, e na ocasião fez
questão de ressaltar a importância dessa rede de relações na implementação de áreas protegidas no Espírito Santo:
“Em 1948, após dez anos de estudos pelo território espíritosantense, com o levantamento da fauna e flora, em todas
as bacias hidrográficas do Estado, sugerimos juntamente com o Prof. Dr. Candido Firmino de Mello Leitão, em
audiência especialmente solicitada ao então Governador do Estado, Dr. Carlos Fernando Monteiro Lindenberg, a
criação das Reservas Biológicas de: Itaúnas, Córrego do Veado (Pinheiros), Barra Seca, Nova Lombardia, Forno
Grande, Pedra Azul, Pico da Bandeira, uma vez que já estava implantada a área que constituía o Parque de Refúgio
‘Sooretama’” (BOLETIM MUSEU DE BIOLOGIA MELLO LEITÃO, n. 48, 1976, 2).
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ANDRÉ, Clayton. Abordagem historiográfica sobre a Reserva Biológica de Duas Bocas ES (1912-1991). Vitória: Centro de Ciências Humanas e Naturais - CCHN / Universidade
Federal do Espírito Santo - UFES, 2012. Dissertação de mestrado, 131 fls (Mimeo).
BORGO, Ivan; ROSA, Léa Brígida R. de A.; PACHECO, Renato. Norte do Espírito
Santo: Ciclo madeireiro e povoamento (1810-1960). Vitória: Edufes, 1996.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 7ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
DANIEL, Sandra. Augusto Ruschi. Coordenação de Antônio de Pádua Gurgel. Vitória:
Contexto, 2005 (coleção Grandes Nomes do Espírito Santo).
DIEGUES, Antônio Carlos Sant’Ana. O mito moderno da natureza intocada. 5ª ed. São
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IPEMA - Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica. Conservação da Mata Atlântica no Estado
do Espírito Santo: cobertura florestal e unidades de conservação. Vitória: IPEMA, 2005.
SANTOS, Leonardo Bis dos. Nas trilhas da política ambiental: conflitos e agendas. São
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SILVA, Marta Zorzal e. A Vale do Rio Doce na estratégia do desenvolvimento
brasileiro. Vitória: EDUFES, 2004.
URBAN, Teresa. Saudade do matão: relembrando a história da conservação da natureza
no Brasil. Curitiba: Editora da UFPR/Fundação O Boticário de Proteção à
Natureza/Fundação MacArthur, 1998.
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RESERVAS EXTRATIVISTAS MARINHAS: CONFLITOS E DESAFIOS NO
ESTÁGIO PRÉ-IMPLEMENTAÇÃO
Melissa Vivacqua Rodrigues
Unifesp
Resumo: As Reservas Extrativistas (Resex) apresentam grande potencialidade para a integração das
estratégias de desenvolvimento e conservação ambiental. Porém, o processo de institucionalização da
política pública Resex tem trazido novos desafios para a sua gestão. Nesse sentido, este artigo tem o
intuito de refletir sobre esse processo de institucionalização, focando sobre os processos de criação de
duas Resex Marinho-Costeiras em Santa Catarina. Em que medida é possível integrar os objetivos de
conservação ambiental e direitos multiculturais de modo horizontal, sem prejuízos para ambos?
Primeiramente, realizo um breve histórico da construção do conceito e da política pública Reserva
Extrativista. Em seguida, o texto discorre sobre o arcabouço legal para a criação das Resex. Num segundo
momento, as reflexões focam as Resex Marinho-Costeiras. Mostrarei como as prescrições contidas no
SNUC acerca do passo-a- passo para a criação das Resex são apropriadas pelos atores sociais locais em
dois casos específicos no litoral de Santa Catarina. Muitos conflitos já aparecem no momento préimplementação das Resex, em que as populações locais re-significam a UC com base em suas vivências
cotidianas, formando alianças e se posicionando a partir de seus referenciais sócio-cognitivos.
Palavras-chave: reserva extrativista; pescador artesanal; conflitos sociais.
Abstract: The Extractive Reserves (Resex) has great potential for development strategies and
environmental conservation integration. However, the institutionalization process of Resex public
policies has brought new challenges for its management. In this sense, this article aims to reflect on this
process of institutionalization, focusing on the creation process of two Resex Marine-Coastal in Santa
Catarina. But, to what extent it is possible to integrate environmental conservation goals and multicultural
rights horizontally, without losses for both? First, I do a brief retrospective of Extractive Reserve public
policies concept and construction. Then, I discuss the creation of a legal framework for Resex. Secondly,
the reflections are on the Marine-Coastal Resex. I show how the prescriptions contained in SNUG about
the step-by-step towards the creation of extractive reserves are appropriated by local stakeholders in two
specific cases about Santa Catarina coast. Many conflicts already appear in the pre-implementation time
of Resex, where local populations re-signify the UC based on their daily experiences, forming alliances
and positioning from their socio-cognitive frameworks.
Keywords: extractive reserve; employed fishermen; social conflicts.
Introdução
As Reservas Extrativistas se destacam em relação às outras unidades de conservação
por terem sua gênese no seio dos movimentos sociais da Amazônia na década de 1980. Sendo
uma política genuinamente criada para áreas florestais, foi somente em 1992 que o conceito
de Resex se consolida e se expande para outros biomas, momento em que foi criada a primeira
Resex Marinho-Costeira (Resex Mar), a Reserva Extrativista de Pirajubaé, em Florianópolis,
SC. Ela foi criada sob o pano de fundo da Rio 92, juntamente com mais três Resex. A outra
Resex Mar criada ainda na década de 1990 foi a Resex de Arraial do Cabo, em 1997, que tem
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o seu território demarcado em bioma estritamente marinho (ICMBIO, 2012). As demais Resex
Mar foram criadas na primeira década do ano 2000. Atualmente existem 20 Resex MarinhoCosteiras criadas e 56 demandas1.
Apesar de muitas Resex já disporem de Conselho Gestor, tais conselhos são muito
recentes, e enfrentam diversos desafios de implementação (RODRIGUES, 2013). Além disso,
não há muitas pesquisas que tragam subsídios para se avaliar os resultados que essas Resex
apresentam tanto em termos socioculturais quanto estritamente ambientais (SEIXAS e
KALIKOSKI, 2009). Nesse sentido, ainda não dispomos de uma visão mais ampla sobre os
processos de criação e implementação das Resex Marinhas existentes, pois de fato são poucos
os trabalhos publicados a respeito.
Contudo, os trabalhos existentes evidenciam muitos dos conflitos e desafios existentes
nos processos de criação e gestão das Resex Mar. A concessão do direito de apropriação dos
territórios marinhos aos pescadores artesanais desafia as estruturas de poder vigentes na zona
costeira brasileira. O reconhecimento e a inclusão política dos pescadores artesanais
possibilitados pelas Resex Mar é algo inédito em nosso País, onde os pescadores sempre
estiveram numa condição de tutela diante da Marinha do Brasil (LOBÃO, 2006) e dos outros
órgãos responsáveis pelo desenvolvimento e conservação dos recursos pesqueiros.
Nesse sentido, este artigo tem o intuito de refletir sobre os atuais desafios da gestão
das Resex Marinho-Costeiras, em meio ao contexto de institucionalização desta política
pública. O foco do estudo recai sobre a etapa pré-implementação das Resex. As análises
realizadas estão ancoradas em observação participante, conversas informais e entrevistas
individuais com os pescadores artesanais (60 entrevistas), além de entrevistas com diversas
instituições que atuam nos setores da pesca e do meio ambiente.
Primeiramente, realizo um breve histórico da construção do conceito e da política
pública Reserva Extrativista. Em seguida, o texto discorre sobre o arcabouço legal para a
criação das Resex. Num segundo momento, as reflexões focam dois processos de criação de
Resex Marinho-Costeiras localizadas no litoral centro-sul de Santa Catarina. Mostrarei como
as prescrições contidas no SNUC acerca do passo-a- passo para a criação das Resex são
apropriadas pelos atores sociais locais em dois casos específicos. As propostas aportam em
1
Informação fornecida pela Diretoria de Criação e Manejo de Unidade de Conservação (DIMAN/ICMBio) por
meio de mensagem eletrônica, em 19.11.2012.
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territórios construídos historicamente, no qual os diferentes atores sociais mantêm relações
pré-estabelecidas, configurando uma complexa teia de conflitos e alianças.
1. A trajetória das Reservas Extrativistas: de movimento social à Unidade de Conservação
A história das reservas extrativistas nos convida a alçar um breve vôo em direção ao
contexto sócio-político da Amazônia brasileira nas décadas de 1970 e 1980. Nessa época, o
ciclo de exploração da borracha vivenciava um momento de crise, ocasionando a falência de
muitos seringalistas e a venda das terras para pagar as dívidas. A exploração da borracha foi
organizada por rígidas relações de exploração do trabalho dos seringueiros, que se
encontravam numa situação de submissão aos patrões, donos das terras em que moravam e
dos barracões. Contudo, no vale do Acre existiam seringueiros que haviam conquistado certa
autonomia em relação aos seringalistas. Pelo fato de não se submeterem mais ao jugo dos
patrões, podiam acessar livremente o mercado. Contudo, eles tinham que lidar com a constante
ameaça de expulsão das posses que viviam há gerações, bem como dos desmatamentos que
exterminavam o seu meio de vida (ALEGRETTI, 2002).
É nesse contexto que começa a ganhar vulto um movimento social com características
bastante peculiares: o movimento social dos seringueiros. Ele nasce nas lutas pelo direito à terra e
pela afirmação de seu modo de vida, ameaçados pela política desenvolvimentista levada adiante
pelos sucessivos governos militares. Este modelo de desenvolvimento tinha como um de seus
pilares a pecuária extensiva, que além de expulsar os povos da floresta de seus territórios, reduzia
a rica biodiversidade das florestas a imensos campos de pastagens (CUNHA, 2001).
Organizados em sindicatos, os seringueiros tiveram Chico Mendes como sua principal
liderança. O conjunto de reivindicações dos seringueiros desafiava o modelo de
desenvolvimento vigente. Propunha-se à construção de um estilo de desenvolvimento
endógeno, capaz de torná-los capazes, como sujeitos, de co-decidir sobre questões importantes
relacionadas à manutenção de seu modo de vida. O conceito de desenvolvimento subjacente
era inédito naquele contexto, pois aliava a conservação ao desenvolvimento. Eles passaram a
exigir um estilo de desenvolvimento adaptado ao contexto social, cultural e ecológico da
Amazônia, que promovesse justiça social, qualidade de vida, tecnologias com base no saber
local, e conservação dos seus meios de vida, a floresta e seus recursos. Contudo, essas
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mudanças desafiavam, sobretudo, as históricas relações de poder envolvendo seringueiros,
seringalistas, empresários e o próprio governo (ALEGRETTI, 2002).
Uma das questões mais polêmicas discutidas no I Encontro Nacional dos Seringueiros
(ENS), em 1985, foi a Reforma Agrária. Os seringueiros reivindicavam a desapropriação dos
seringais nativos e a sua apropriação comunitária, seguindo o mesmo modelo das terras indígenas.
Um dos resultados importantes desse Encontro foi a criação do Conselho Nacional dos
Seringueiros (CNS), um marco na história do movimento social dos seringueiros, pois a partir de
então começam a alcançar maior visibilidade no cenário político nacional e internacional. As
sinergias existentes entre a luta social dos seringueiros e o interesse do movimento ambientalista
na proteção das florestas facilitaram a formação de alianças com diversos organismos
internacionais ligados à questão ambiental. Dessa forma, o CNS e o seu pleito pelas Reservas
Extrativistas foram inseridos rapidamente em uma ampla rede internacional de informações
(ALEGRETTI, 2002, p. 461). Se por um lado, naquela conjuntura o apoio internacional foi
fundamental para fortalecer a luta dos seringueiros contra os interesses nacionais ligados ao
agronegócio, por outro lado, havia o risco da luta social dos seringueiros ser subsumida pelos
interesses estritamente ambientalistas. Como aponta Alegretti (2002, p. 450): “As questões que
mobilizavam os seringueiros eram eminentemente sociais, políticas e econômicas. A floresta era
o meio de vida daquelas pessoas e não uma categoria abstrata que pudesse representar interesses
mais amplos do que os que eles estavam acostumados a defender no dia a dia”.
Conforme o conceito de Resex foi ganhando maior nitidez, os debates passaram a se
concentrar no formato jurídico correspondente. Como não existia dispositivo legal para a
proposta de Reserva Extrativista, inicialmente a Secretaria Especial de Meio Ambiente
(SEMA) e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) buscaram enquadrá-la
nas modalidades instituídas de áreas protegidas com possibilidades de uso – como a Área de
Proteção Ambiental (APA) e a Floresta Nacional (FLONA). Contudo, essas áreas não
contemplavam o cerne das propostas dos extrativistas, que era o reconhecimento do direito de
apropriação dos seringais e de outros recursos da floresta.
Nesse sentido, os seringueiros sustentaram a proposta das Resex que foi previamente
discutida nos diversos encontros, definida como uma política específica de reforma agrária,
capaz de reconhecer e respeitar o modo de vida dos povos da floresta. A modalidade de
propriedade da terra e a administração da reserva também foram temas de muitas discussões
entre os seringueiros e seus interlocutores. Por fim, o CNS decidiu defender a proposta de que
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a Resex seria terra da União com usufruto dos seringueiros. Desse modo, delineado o formato
jurídico das Resex, o desafio seguinte foi pressionar o governo para tornar a Resex uma
realidade concreta (ALEGRETTI, 2002).
Diversas estratégias foram traçadas nesse sentido, desde campanhas e alianças
nacionais e internacionais, de modo que movimento dos seringueiros foi ganhando força
política. Este cenário de visibilidade internacional do movimento é intensificado com o
assassinato de Chico Mendes, em 1988.
Em junho de 1989, as reservas extrativistas foram incorporadas à Política Nacional do
Meio Ambiente - PNMA. A primeira Resex criada foi Alto Juruá, em 1990, seguida da Resex
Chico Mendes. Paralelamente, os Projetos de Assentamentos Extrativistas (PAE) continuavam a
ocorrer no âmbito do INCRA. Em 1992 ocorre a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento - Rio 92, e a criação e a gestão das Resex passaram a ser realizadas
pelo Centro Nacional de Desenvolvimento das Populações Tradicionais - CNPT, criado no âmbito
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA. Nesse
mesmo ano foi criada a primeira Resex em ambiente marinho-costeiro, a Resex Marinha de
Pirajubaé, em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina.
A Rio 92 e a conjuntura de redemocratização neoliberal no País geram um contexto
propício para o delineamento de programas governamentais e termos de cooperação internacional
com a finalidade de proteger as florestas do desmatamento e exploração desenfreada. Desde então,
as Resex têm se beneficiado dos recursos advindos do exterior para a sua implementação.
Com a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC, em 2000,
as Resex não apenas passaram a integrar o grupo de Unidades de Conservação de Uso
Sustentável, mas a incorporar novos significados. Como exemplo, podemos citar o conceito
de “população extrativista” – contido inicialmente no decreto 98.897 de janeiro de 1990 e
apontado como um marco do movimento dos seringueiros – que passa a ter o significado de
“população tradicional”. Além disso, o “manejo dos recursos ambientais” não é mais norteado
pelos acordos locais definidos a partir dos saberes locais, consolidados pelo Plano de
Utilização, mas por meio de um Plano de Manejo elaborado a partir do conhecimento
científico, sem um efetivo diálogo entre os saberes e os grupos sociais (LOBÃO, 2006).
Se à primeira vista a estruturação de uma legislação ambiental e também das agências
ambientais, a partir da década de 1990, mostraram-se decisivas para a consolidação das
reservas extrativistas enquanto uma política pública, um olhar mais aprofundado revela os
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riscos inerentes a esse processo. Na medida em que as Resex vão se consolidando cada vez
mais como uma política do governo, a criação das mesmas é efetivada visando atender às
metas fixadas pelo MMA e seus instrumentos de gestão vão se tornando cada vez mais
burocratizados. O número de reservas extrativistas criadas cresceu consideravelmente nas
duas últimas décadas, de modo que atualmente existem 59 Resex: 32 na Amazônia, 5 no
Cerrado, 2 na Mata Atlântica e 20 no bioma marinho2.
Como aponta Alegretti (2002, p. 582), um dos aspectos fundamentais da proposta dos
seringueiros era que eles queriam criar projetos extrativistas onde houvesse organização
prévia das comunidades e não onde o governo pretendesse eliminar focos de tensão. E no
processo de institucionalização das Resex estava embutido esse risco. Para os seringueiros
essa organização prévia era um requisito fundamental para assegurar o sucesso da Resex após
sua criação. A fala de Chico Mendes é elucidativa nesse sentido:
É um trabalho muito lento, realizado com muita paciência. Nós estamos
realizando um trabalho na área de Xapuri, no Vale do Acre, que é um trabalho
de 14 anos, a partir de um trabalho educacional que vem se desenvolvendo
desde 74 e esse trabalho foi iniciado em cima da propriedade e da questão da
derrubada. No momento em que os latifundiários, os novos proprietários da
região, tentaram desmatar todas aquelas áreas de seringais, naquele momento
se implantavam os Sindicatos e como os seringueiros estavam em total
desespero porque não tinham nenhuma orientação, nós nos concentramos
naquela área prá fazer um trabalho de organização política, explicando a eles
o direito de posse que eles tinham. [...] Depois da proposta da criação da
Reserva Extrativista e a partir da criação do Conselho Nacional dos
Seringueiros em 1985, nós começamos a nos concentrar mais naquelas áreas
consideradas em conflito, áreas que estão concentradas, áreas que têm o maior
número de seringueiros e castanheiros e começamos um trabalho de criação
de escolas e postos de saúde naquelas áreas que nós defendemos como áreas
prioritárias para a implantação das primeiras Reservas Extrativistas na região.
Nós selecionamos vários seringais no município e todos estão concentrados
nessa região, porém dentro destas 23 áreas aproximadamente, nós temos
aquelas consideradas, que solicitamos em caráter de urgência, onde o conflito
está mais presente, que são áreas onde os seringueiros estão organizados, já
tem escola, posto de saúde e tem uma idéia do que é a Reserva Extrativista.
Então nosso objetivo é fazer com que dêem certo as primeiras Reservas
Extrativistas. O nosso medo é que se implante uma reserva em uma área onde
não existe um mínimo de organização e não dê certo e isso seria um ponto
muito negativo para o nosso trabalho com os seringueiros” (Fala de Chico
Mendes no Seminário “O Desenvolvimento da Amazônia e a Questão
Ambiental”, realizado entre 3 e 7 de fevereiro de 1988 em Rio Branco. Apud
ALEGRETTI, 2002, p. 638-639).
2
Disponível em: <http://www.icmbio.gov.br/portal/biodiversidade/unidades-de-conservacao/biomasbrasileiros.html>. Acesso em: 20.06.2012.
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Nesse sentido, as Resex deveriam ser prioritariamente criadas em áreas de conflitos
intensos onde houvesse uma organização social dos seringueiros. Mas que tipo de
organização social seria essa? Como fica o processo de criação das Resex com a sua
institucionalização no âmbito do Ministério do Meio Ambiente? É o que discutirei a seguir.
2. Arcabouço legal para a criação de Reservas Extrativistas
No Roteiro para a Criação e Legalização das Reservas Extrativistas 3, no final da
década de 1990, o CNPT determina o tipo de organização necessária para se iniciar um
processo de criação de Resex: primeiramente, deveria ser providenciado um abaixo assinado
dos moradores locais. De acordo com o roteiro, “o pedido supõe um entendimento prévio
dos moradores e a compreensão daquilo que estão pedindo”, de modo a assegurar o bom
andamento de todo o processo subsequente. Outra condição indispensável para a criação das
Reservas estipulava que os moradores deveriam estar dispostos a trabalhar em grupo, em
forma de associação. “Caso não exista, os moradores devem criar uma associação capaz de
representá-los. Todos os moradores devem fortalecer esta Associação e trabalhar para que
haja compreensão, harmonia e mútua colaboração entre eles” (CNPT, ca. 1997, a).
Estava assim estabelecida a forma de organização necessária à criação das Resex:
associações de moradores devidamente registradas. E no estatuto de tais associações deveria
estar explícito o compromisso com a “conservação do meio ambiente, pois esta condição é
necessária para negociar convênios com as instituições ambientalistas governamentais”. O
documento ainda ressalta: “Não se deve formar uma associação simplesmente porque é uma
condição para criar a reserva. A associação deve ser o resultado natural da compreensão e
da percepção, por parte dos moradores, de que a co-gestão da Reserva exige que eles sejam
coesos e organizados (Grifo meu). É preferível trabalhar no fortalecimento da associação,
antes de solicitar a criação da Reserva, cujo futuro depende daquela, tendo em vista que é a
associação quem recebe a Concessão de Direito Real de Uso” (CNPT, ca. 1997 a).
Para que o processo de associativismo seja impulsionado e consolidado o CNPT
esclarece a necessidade de haver boas lideranças para conduzi-lo. Tais lideranças podem ser
reconhecidas pelos “frutos que deixam na comunidade, isto é, o bom líder não é aquele que
tem o dom da palavra e sim aquele que arrebanha seguidores (Grifo meu), ou seja, aquele
3
Disponível em: <http://www.ibama.gov.br/resex/textos/c1.htm>. Acesso em: 01.06.2012.
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que é aceito e bem quisto pela comunidade” (CNPT, ca. 1997 a). Por meio da capacitação e
educação ambiental dessas lideranças e dos demais associados, eles se transformariam em
“ambientalistas, protetores da unidade de conservação”.
São muitas as indagações que suscitam do texto acima. E se nas comunidades não
houver “boas lideranças”, capazes de arrebanhar seguidores? Como reconhecê-las? Seria
mesmo uma característica de uma boa liderança arrebanhar seguidores? Que tipo de
comunidade é essa a que se refere o CNPT? Uma comunidade harmônica, homogênea,
coesa? E se houver conflitos internos na comunidade, com distintas lideranças representando
grupos e interesses antagônicos? Será viável associá-los em uma mesma associação? Nesse
caso a criação de uma associação facilitaria a colaboração entre os moradores ou acirraria e
cristalizaria os conflitos existentes?
Na mesma época, o CNPT publica ainda um documento que trata da importância da
associação de moradores para a proteção da unidade de conservação, no qual lista algumas
vantagens do associativismo:
I. A primeira vantagem da organização dos moradores, para proteger melhor as unidades
de conservação é que as decisões são legitimadas pela coletividade e como tal, os novos
comportamentos não são retardados pelo “controle social”;
II. A organização permite ainda que as decisões sobre a conservação dos recursos naturais
sejam tomadas de forma democrática, mediante a participação dos interessados;
III. Outra vantagem é que mediante a própria organização dos moradores é mais fácil
multiplicar as informações e harmonizar a compreensão das mensagens;
IV. A maior vantagem, entretanto, é o somatório de potencialidades dos comunitários que
se torna uma força transformadora (CNPT, ca. 1997 b).
Esse trecho do documento merece uma ponderação. No primeiro item, o CNPT
explicita um pré-conceito relativo aos modos de vida rurais e suas especificidades
socioculturais. O “controle social” exercido por essas comunidades é visto como um
elemento conservador, um obstáculo às mudanças dos comportamentos predatórios em
direção a práticas conservacionistas. Nesse sentido, é preciso que haja uma “organização
social”, ou seja, uma associação, que traga valores e práticas sociais democráticas a partir da
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participação, facilite uma comunicação transparente, tornando-se uma força transformadora.
Faço minhas as reflexões de Lobão (2006, p. 50) referentes a esse trecho do documento:
É sabido que nem sempre a participação garante a democracia, e muito
menos a organização é uma condição necessária e suficiente para a
construção de um ambiente democrático. Assim como é uma crença vã
acreditar que basta uma associação para que se alcance a harmonia na
compreensão de mensagens. Mas o quarto item é o mais interessante: nele
a associação é vista como uma força transformadora. Só não antecipa como
acontece o processo nem o rumo desta transformação.
Com a promulgação do SNUC em julho de 2000 muda todo o arcabouço legal das
UCs. Contudo, as diretrizes, normas e procedimentos para a criação de Resex são
especificados somente em 2007, na publicação da Instrução Normativa 03, de 18 de
setembro de 20074. Até a publicação desta IN os processos de criação das Resex eram
regulamentados pelo decreto 4.340, de 22 de agosto de 2002 (BRASIL, 2002).
De acordo com a IN 03, a solicitação da Resex deve ser feita formalmente pela
população tradicional ou sua representação (artigo 4), não sendo mais pré-requisito (ao
menos explicitamente no texto) a existência de uma associação local formalizada. Essa
mudança foi fruto de discussões com lideranças e gestores das Resex, que, com base na
experiência de criação e gestão destas, avaliavam de forma negativa a obrigatoriedade da
solicitação das Resex ser feita por uma associação5.
A seguir destaco o artigo 3º da referida Instrução Normativa, no qual constam as
diretrizes que devem nortear os processos de criação de Resex:
I. a conservação da biodiversidade e a sustentabilidade ambiental;
II. a transparência do processo de criação e a adequação à realidade local;
III. o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural
das populações tradicionais e seus sistemas de organização e de representação social;
IV. o reconhecimento de que os territórios tradicionais são espaços de reprodução social,
cultural e econômica das populações tradicionais;
4
<http://www.mma.gov.br/estruturas/240/_arquivos/in_icmbio_03_criao_resex_e_rds_pdf_240.pdf>. Acesso em:
28.03.2012.
5
Contudo, é importante destacar que, necessariamente, a associação deverá ser formada posteriormente para
fins da assinatura do CCDRU.
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V. a promoção dos meios necessários e adequados para a efetiva participação das populações
tradicionais nos processos decisórios e seu protagonismo na criação da Unidade;
VI. a valorização e integração de diferentes formas de saber, especialmente os saberes,
práticas e conhecimentos das populações tradicionais; e,
VII. a busca pela melhoria da qualidade de vida das populações tradicionais, o acesso
aos serviços básicos e a cidadania, respeitando-se suas especificidades e
características sócio-culturais.
Em síntese, as diretrizes para a criação das Resex são delineadas com a finalidade de
assegurar a participação ativa das populações tradicionais, de modo que fossem
reconhecidos e valorizados os seus saberes e formas de organização social. Com base nessas
diretrizes, os processos de criação das Resex devem seguir as seguintes etapas: i) solicitação
formal da população tradicional ou sua representação; ii) vistoria técnica do ICMBio para
conferir se há população tradicional na área, organizada, e se a área é ecologicamente
representativa; iii) mobilização social e realização de estudos técnicos (socioambiental e
fundiário); iv) Consultas públicas; v) decreto de criação.
O texto que segue nos dá mais subsídios para refletir sobre questões relativas à organização
social, autonomia, participação e comunicação nos processos de criação das Resex:
Art. 5º A solicitação para a criação de RESEX ou RDS deve indicar,
preliminarmente, a área proposta para criação da Unidade e a população
tradicional envolvida (Grifo meu), suas principais práticas produtivas e os
recursos naturais manejados e o compromisso com o uso sustentável da
Unidade (Grifo meu).
[...]
Art. 6º A partir do recebimento da solicitação, o Instituto Chico Mendes
deve efetuar uma vistoria na área, uma ou mais reuniões com a população
tradicional envolvida (Grifo meu) e emitir parecer técnico sobre a
viabilidade de criação de uma RESEX ou RDS.
Art. 7º O parecer técnico deve considerar:
I - As características ambientais e o estado de conservação da área;
II - a população tradicional (Grifo meu), relacionado com a mesma e o seu
nível de organização comunitária;
III - a representatividade da demanda no contexto local
[...]
VI - os conflitos e ameaças.
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Não são poucos os atributos relativos aos técnicos do ICMBio responsáveis pela
vistoria: são eles que avaliarão a viabilidade de criação da Resex. Para isto, uma condição
fundamental é que esteja claro quem são os sujeitos da ação, ou seja, quem afinal é a tal
população tradicional (“envolvida”)? Ao que consta na IN, o pedido de criação da Resex
deve indicar a população tradicional correspondente. Este conceito é mais do que polêmico,
e tem sido discutido por muitos estudiosos (CREADO et al., 2008; MENDES, 2009, 2008;
LOBÃO, 2006; CASTRO, et al., 2006). Ao que parece, o Estado prescinde de uma visão
harmoniosa do conceito de população tradicional. A “população tradicional envolvida”
referida nos artigos é a população tradicional a qual é destinada a política pública Resex,
mas como os estudos de caso revelam, o Estado acaba por dialogar e por isto, considerar,
somente a população tradicional envolvida diretamente com a proposta, ou seja, aqueles que
estão pleiteando a criação da Resex. Vista como um bloco homogêneo, a tal “população
tradicional” raramente é observada “por dentro”, procurando desvelar os seus interesses,
representações sociais e os seus conflitos internos. Desse modo, os conflitos e ameaças são
tratados como ameaças externas, ou seja, conflitos entre a população tradicional e outros
grupos sociais, que exercem atividades que ameaçam a reprodução do seu modo de vida.
Além disso, será possível ao técnico avaliar isonomicamente a representatividade da
demanda no contexto local? E o nível de organização comunitária, como é considerado?
Estará pautado na concepção de associativismo explicitada pelo CNPT?
Se o parecer técnico for favorável à criação da Resex, o processo administrativo é
formalizado. O ICMBio nomeia então um “responsável institucional para coordenar o
processo de criação” da Resex, o qual “deve trabalhar de forma articulada com
representantes da população tradicional” (ICMBIO, 2007, IN 03, art. 8). Nessa fase do
processo são iniciados os diagnósticos socioambiental e fundiário.
Art. 8º [...] Parágrafo único. Deverá ser elaborado um plano de trabalho onde
serão previstos os recursos humanos e financeiros, a logística, o cronograma
de execução e as parcerias necessárias para a elaboração dos estudos técnicos
necessários para embasar o processo de criação, bem como as estratégias de
divulgação das informações e de mobilização da população envolvida.
Art. 9º A divulgação de informações sobre o processo e a mobilização
comunitária devem ser realizadas continuamente ao longo de todo o
processo de criação da Unidade, por meio de instrumentos e estratégias
adaptadas à realidade e à linguagem local.
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O artigo 9º enfatiza a necessidade de que os instrumentos e estratégias de
comunicação e mobilização comunitária sejam adaptados “à realidade e à linguagem local”.
Contudo, o texto do parágrafo único do artigo 8º não esclarece se há a participação de
representantes da população envolvida no delineamento de tais estratégias, bem como na
elaboração do plano de trabalho relativo aos estudos técnicos a serem realizados. A ausência
do conhecimento das populações locais nessa etapa do processo impõe riscos e incertezas ao
andamento de todo o processo de criação. Como será mostrado adiante, os processos de
comunicação, mobilização e participação dos grupos sociais envolvidos nas propostas de
criação das Resex Marinhas estão muito aquém do pleito de autonomia e engajamento ativo
presente nos movimentos sociais que impulsionaram a gênese do conceito de Resex na
Amazônia. Além disso, a “transposição” do modelo de gestão Resex para o bioma marinho
impõe novos desafios à criação das Resex, como veremos no texto a seguir.
3. Os processos de criação de Resex Marinho-Costeiras em Santa Catarina e os
conflitos subjacentes
O contexto das Resex Mar em processo de criação se apresenta bastante desafiador.
Os dois casos revelam a complexidade envolvida nessas iniciativas e o modo como as
prescrições formais sobre o passo a passo para a criação das Resex contidas no SNUC são
apropriadas pelos diversos atores sociais locais. As propostas aportam em territórios
construídos historicamente, no qual os diferentes atores sociais mantêm relações préestabelecidas, configurando uma complexa teia de conflitos e alianças.
Os procedimentos formais para a criação da Resex Artesanal do Cabo de Santa Marta
e a Resex da Pesca Artesanal de Imbituba e Garopaba já foram finalizados, porém, as mesmas
ainda não foram decretadas. O território proposto para as Resex é parcialmente sobreposto ao
território da Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, abrangendo áreas marinha e
lagunar (Lagoas de Ibiraquera e Garopaba) dos municípios de Imbituba e Garopaba, e somente
área marinha dos municípios de Laguna e Jaguaruna.
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Figura 1 - Limites da APA da Baleia Franca e as propostas das Resex
3.1 O processo de criação da Resex do Cabo de Santa Marta
A demanda pela criação da Resex do Cabo de Santa Marta, formalizada em 2002,
encontrou grande sinergia no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA), pois naquela
época havia um plano estratégico de ampliação do modelo reserva extrativista para outros
contextos socioambientais, incluindo a zona costeira. A proposta de criação da Resex do
Cabo de Santa Marta foi liderada pela ONG ambientalista Rasgamar, juntamente com a
Associação de Pescadores do Farol de Santa Marta (APAFa).
Mesmo finalizado o processo formal para a criação, o tema reserva extrativista
permanece presente nas comunidades locais. O conflito começou a ganhar vulto no final do
processo para a criação, foi deflagrado durante a audiência pública e se entende até os dias
atuais. Aos poucos, foram se cristalizando no interior dessas comunidades dois grupos com
posicionamentos antagônicos: os pescadores “a favor” (pescadores do mar da comunidade
do Farol de Santa Marta, liderados pela ONG ambientalista Rasgamar) e os pescadores
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“contra” (pescadores das lagoas, Comunidades do Camacho, Santa Marta, Cigana e
Garopaba do Sul) à criação da Reserva Extrativista. O segundo grupo tem sido liderado pela
Pastoral da Pesca, que tem uma atuação no território, principalmente junto a algumas
comunidades do entorno das lagoas. Na mesma época do processo de criação da Resex a
Pastoral apoiou a criação da União das Associações de Pescadores da Ilha (UAPI), que
juntamente com a Colônia de Pescadores de Jaguaruna e a Associação de Pescadores da
Barra do Camacho (APEBARCA) lideram o grupo contrário à Resex.
Contudo, apesar de terem o mesmo posicionamento, os discursos destes atores sociais são
distintos. Entrevistas realizadas com os representantes da Pastoral da Pesca revelaram que o
posicionamento deles não é contrário à política pública Reserva Extrativista, e sim, ao modo como
o processo de criação da Resex foi conduzido e às incertezas relativas à criação da Resex na região.
Já os presidentes da Colônia de Pescadores de Jaguaruna e da APEBARCA mostram-se
explicitamente contra a Resex. Muitos de seus argumentos são compartilhados pelos pescadores
locais, o que indica o importante papel que desempenham na disseminação de informações.
As discussões posteriores oriundas do processo da Resex revelaram diferentes
compreensões acerca da política pública Resex e posicionamentos antagônicos entre os
grupos de pescadores, sobretudo em relação à inclusão ou não das lagoas 6 nos limites da
Resex. Esse embate culminou na exclusão das lagoas da proposta da Resex. Os antagonismos
podem ser percebidos nas fala do pescador abaixo:
Quem veio trazer essa proposta aqui pra nós foi o [...]7, que veio com essa
reserva extrativista, com a APA da Baleia Franca. Tão proibindo muita
coisa, aí nós que somo pescador nós entendemos que essa reserva ia
prejudicar nós porque ia acabar com a nossa lagoa (Informação verbal)8.
Essa reserva pra nós é não, pra nós é não, porque nós já tamo cheio de
reserva, e aonde tem reserva só tem complicação (Informação verbal)9.
Essas vozes nos revelam o desconhecimento sobre a política pública Resex e as
visões negativas sobre os atores sociais envolvidos nas estratégias de “ecologização” do
território, sobretudo a APABF e a ONG ambientalista Rasgamar. As ações coletivas dos
6
Essas lagoas estão associadas ao sistema de drenagem da vertente atlântica, situado na bacia hidrográfica do
rio Tubarão, que na sua foz se encontra com as águas do complexo lagunar.
7
Nome do Presidente da ONG Rasgamar.
8
Pescador da comunidade da Cigana, em Laguna.
9
Pescador da comunidade de Arroio Corrente, em Jaguaruna. Entrevista realizada em 15.09.2011.
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pescadores artesanais da localidade do Farol de Santa Marta, que reivindicaram a Resex, têm
sido fortemente influenciadas pela liderança que preside a ONG Rasgamar, ao que parece,
carente de legitimidade junto às demais comunidades pesqueiras sediadas na região,
principalmente os pescadores das lagoas. Além disso, muitos pescadores conhecem os
conflitos relacionados à atividade pesqueira no interior de UCs, como, por exemplo, no
Parque Nacional da Lagoa do Peixe, Rio Grande do Sul, município de Mostarda, e na
Reserva Biológica Marinha do Arvoredo, em Santa Catarina (VIVACQUA, 2003).
3.2 O processo de criação da Resex da Pesca Artesanal de Imbituba e Garopaba
Foi no Fórum da Agenda 21 Local da Lagoa de Ibiraquera, criado no ano de 2000, que
nasceu a ideia de se criar uma Resex da Pesca Artesanal na região. As interações
interinstitucionais transescalares neste Fórum possibilitaram o contato dos pescadores
artesanais com a temática das unidades de conservação, que, segundo Adriano (2011) estava
presente nas discussões do Fórum desde 2003.
As reservas extrativistas foram constantemente discutidas e aprofundadas durante os
encontros do Grupo de Trabalho da Pesca no ano de 2005, quando o Fórum e a Associação de
Pescadores da Comunidade de Ibiraquera – criada no âmbito do Fórum em 2005 – solicitaram
a Resex formalmente ao CNPT/IBAMA. O GT Pesca transformou-se então em GT Resex,
que em reuniões semanais ou quinzenais passou a ter a Resex como um dos principais temas
a serem discutidos. O contato de algumas lideranças e pescadores da região de Ibiraquera com
pescadores que estavam reivindicando a criação da Resex do Cabo de Santa Marta foi também
um grande motivador para os pescadores se engajarem na luta para reivindicar uma Resex.
O GT Resex foi o principal espaço de diálogo, mobilização e articulação para a criação
da Resex. Contudo, o GT Resex foi o espaço criado pelos pescadores e lideranças que
reivindicaram e apoiaram a Resex, e estava intimamente relacionado com a ASPECI e o
Fórum da Agenda 21 Local da Lagoa de Ibiraquera, alvo de uma visão negativa estereotipada
por boa parte das comunidades locais. As colônias de pescadores, as prefeituras e grande parte
da comunidade local permaneceram praticamente ausentes desses espaços.
Nesse sentido, para se compreender os impasses enfrentados no processo de criação desta
Resex, faz-se necessário situar este grupo no interior das comunidades. Qual a representatividade
dos mestres e patrões de pesca participantes do GT Resex? Sem dúvida, havia no GT Resex a
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presença de importantes mestres e patrões de pesca, detentores de um respeitável saber e prestígio
junto aos pescadores. Contudo, o que de fato representa a ASPECI no território mais amplo da
proposta da Resex? Como os diferentes pescadores se posicionavam em relação à Resex, quais
argumentos mobilizavam e quais conhecimentos compartilhavam?
O Estado, representado pelos técnicos do ICMBio, ao dialogar somente com o grupo
envolvido no GT Resex, acaba por interferir no convívio comunitário. As relações baseadas
na família, por exemplo, parecem ter sido menosprezadas durante todo o processo, já que se
privilegiou e se empoderou praticamente uma única família tradicional, sem conhecer as
relações interfamiliares e intercomunitárias na região. Os únicos espaços coletivos em que o
Estado dialogou com os outros pescadores e grupos sociais foram as oitivas nos ranchos de
pescadores e as audiências públicas, estas últimas verdadeiros “campos de batalha”.
A capacidade limitada do Estado em dialogar com todos os grupos sociais envolvidos
mostrou-se um grande indutor da polarização dos conflitos previamente existentes, além de
suscitar também novos conflitos. Ao privilegiar o diálogo com o grupo social que demanda a
Resex, homogeneizando categorias como “população tradicional” e “comunidade”, o Estado,
representado pelos funcionários do ICMBio e MMA, acaba por “desempoderar” os outros
grupos sociais integrantes destas categorias. Com a intensificação desses antagonismos, os
grupos sociais passaram a se cristalizar, e o conflito atua como uma força centrípeta,
garantindo a unidade de cada grupo social (SIMMEL, 1983). Sem encontrar espaços de
negociação e mediadores legítimos, as propostas de Resex se fragilizam, pois passam a ser
alvo de intensa oposição por parte dos pescadores artesanais locais.
Figura 2 - Síntese das relações de conflito e sinergia no processo para a criação da
Resex da Pesca Artesanal de Imbituba e Garopaba
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Como explicitado acima, entre os posicionamentos favoráveis e contrários em relação
à Resex, que delimitaram nitidamente dois grupos antagônicos, pode-se identificar um grupo
de ambientalistas, liderado pelo representante da Fundação Gaia Village10, proprietário de
uma das maiores propriedades da região de Garopaba – onde funciona o Projeto Ambiental
Gaia Village –, que apoiado por diversas ONGs ambientalistas, se posicionou a favor da Resex
desde que houvesse ajustes na proposta. A principal demanda era relativa à retirada das áreas
de marinha dos limites da Resex. Esse grupo de ambientalistas formou uma coalizão pouco
“visível” durante o processo, porém, com grande poder de barganha.
Diversas declarações de apoio às ações do Projeto advindas de ONGs nacionais e
internacionais referendaram o mesmo como um exemplo de excelência na preservação e
recuperação ambiental. Além disso, no cenário local, o projeto Baleia Franca e o Instituto Sea
Shepherd Brasil foram parceiros-chave nesse pleito.
Focando sobre a sustentabilidade de suas ações, os representantes do Gaia Village
mantém velado o conflito territorial existente com os pescadores pela apropriação da área de
marinha sob sua concessão11.
A proposta do Gaia mostrou-se, assim, extremamente aglutinadora, pois mobilizava não
somente ambientalistas, mas também o setor empresarial ligado ao turismo e à especulação
imobiliária, grandes interessados na exclusão das áreas de marinha. Diante dessa poderosa coalizão,
não causa estranhamento que a proposta da Resex tenha sido encaminhada sem a área de marinha.
Com a finalização do processo de mobilização local, o cenário de negociação se transpõe
para o nível federal, e as fortes alianças locais e os intensos conflitos aos poucos se dispersam.
***
Os processos das duas Resex permanecem bloqueados pelas pressões políticas do
governo do Estado. Enquanto isso, para os pescadores a Resex, mesmo antes de sua criação,
se aproxima cada vez mais do que Lobão (2006, p. 1) denominou de política do ressentimento,
10
Criada em 1987, pelo ambientalista José Lutzenberger, a Fundação Gaia, com sede em Porto Alegre, é mentora
do projeto ambiental Gaia Village, desenvolvido em uma fazenda na cidade de Garopaba, a qual é propriedade
de dois irmãos da família Werlang – também integrantes da Fundação Gaia – e de sua empresa G.A. Werlang –
Gestão e Ambiente Ltda. O projeto “ambiciona criar um exemplo de assentamento humano sustentável, ambiente
amigável para a interação entre a espécie humana e o todo – o Sistema Vivo – Gaia”. Disponível em
<http://www.gaia.org.br/>. Acesso em 05.10.2012.
11
De acordo com Rosar (2007, p. 48), existe “uma disputa de terra envolvida nessa situação, que já foi levada
e decidida pelo Poder Judiciário em favor da família Werlang”.
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“uma vez que os grupos locais envolvidos com a política vêem-se alvos de atos de
desconsideração de várias ordens”.
Diante disso, para o expressivo grupo de pescadores contrários à Resex, a mesma
viria a se constituir em um espaço do “outro”, do Estado, gerido pelos interesses das agências
ambientais e seus parceiros locais. A pesquisa revelou que para os pescadores contrários à
criação das Resex, a mesma é percebida como uma proposta vinda “de fora”, com interesse
na preservação ambiental e na manutenção de um modo de vida que já foi ressignificado,
implicando em regras restritivas ao uso do território impostas pelos órgãos ambientais –
representado aqui principalmente pela APA BF.
Como mencionado acima, as experiências negativas que esses pescadores têm vivenciado
em outras unidades de conservação possuem um papel fundamental para se compreender os
posicionamentos contrários às Resex. Além disso, nos dois contextos os pescadores atribuem à
APA BF, representante local do ICMBio, o papel de protagonista no processo para a criação das
Resex. Criar a Resex significa assim “entregar” a gestão do território à APA BF e seus parceiros
locais envolvidos diretamente no pleito pelas Resex – seja a ASPECI e o Fórum da Agenda 21
Local da Lagoa de Ibiraquera, no caso da Resex da Pesca Artesanal de Imbituba e Garopaba, ou a
ONG ambientalista Rasgamar, no caso da Resex do Cabo de Santa Marta.
Considerações Finais
Procurei mostrar como as Resex, ao longo de sua trajetória, vêm se
institucionalizando e se transformando gradualmente em uma política do governo. As
prescrições formais contidas no SNUC, que procuram assegurar os mecanismos para a
participação e o protagonismo da “população tradicional” durante o estágio préimplementação das Resex mostraram-se aquém do desafio proposto. A relação de hierarquia
entre conservação da biodiversidade e direito multicultural, com privilégio à primeira,
elucida as limitações do Estado, representado pelo MMA e suas autarquias, em lidar com a
complexidade embutida na problemática socioambiental. Impulsionado pelo interesse de
conservar a biodiversidade a partir da criação de UCs, o Estado “empodera” uma parcela da
população tradicional que, ao pleitear a Resex, demonstra interesses alinhados com os
princípios da sustentabilidade. Desconhecendo os “outros” e as relações socioculturais entre
os grupos locais, o diálogo dos representantes das agências ambientais ocorre
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exclusivamente com os representantes dos pescadores locais que estão demandando a Resex,
através de suas respectivas associações. A própria criação das associações visa, de alguma
forma, dar legitimidade às demandas dos pescadores diante do Estado burocrático, que vê
nas associações formalizadas uma demonstração de organização social dos pescadores. O
desinteresse ou a incapacidade do Estado e seus parceiros locais em dialogar com os outros
grupos de pescadores, também futuros beneficiários das Resex, mostrou-se um elemento
fundamental para se compreender os antagonismos locais que rapidamente se instalam no
estágio pré-implementação das Resex. Nesse sentido, os processos para a criação das Resex
foram pouco capazes de gerar informações, conhecimentos, percepções e atitudes
compartilhadas entre os pescadores artesanais.
Os conflitos relativos aos processos de criação das Resex estudadas não encontrarão um
desfecho com a criação da Resex e sua implementação. Não seria esse, pura e simplesmente, o
ganho dos pescadores artesanais. Os padrões de interação e as estruturas de poder existentes
tendem a se reproduzir nos conselhos gestores, na elaboração e implementação dos planos de
manejo e no CCDRU. Indo ao encontro das reflexões suscitadas neste artigo, Spínola (2011, p.
187), referindo-se à gestão da Resex de Pirajubaé, identifica alguns obstáculos a serem
enfrentados no sentido da inclusão, igualdade e pluralidade das decisões no CD. Segundo a
autora, a prioridade na conservação da natureza diante dos outros objetivos socioculturais da
UC “acaba por condicionar um maior controle da agência ambiental ICMBio e uma grande
dependência do conhecimento tecnocientífico na tomada de decisões da RESEX”. Nesse
sentido, as Resex apresentam poucas chances de cumprir o seu duplo objetivo: a conservação
da biodiversidade e do modo de vida das populações tradicionais.
Em última instância, a construção de um outro estilo de desenvolvimento, que
busque garantir para as gerações futuras os direitos relativos ao acesso e uso dos recursos
naturais, deve ser um processo efetivo de compartilhamento de direitos e responsabilidades,
com base no respeito às diferenças socioculturais, de modo a evitar que em nome das
gerações futuras se extermine as culturas e os modos de vida existentes no presente.
Referências
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caso sobre a experiência do Fórum da agenda 21 Local da Lagoa de Ibiraquera. 236f.
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RESTRIÇÕES EM ZONAS DE AMORTECIMENTO DE UNIDADES DE
CONSERVAÇÃO: ASPECTOS LEGAIS
Mírian Lacerda de Brito
Mestranda em Geografia pela UFES
Resumo: A análise em tela procura abordar as restrições definidas pela legislação federal ambiental
brasileira ao uso e ocupação das zonas de amortecimento das unidades de conservação, buscando
compreender de que forma o ordenamento jurídico compatibiliza a emergência de ocupação humana
frente à necessidade de preservação ambiental. Apresentou-se a problemática que envolve a fixação
das zonas de amortecimento em unidades de conservação em áreas urbanas, linhas gerais a respeito
dos espaços especialmente protegidos brasileiros, a ideia de sua concepção e principais políticas
públicas institucionalizadas. Ressaltou-se a importância de instituir formas eficazes de criação,
planejamento e gestão das unidades de conservação com efetiva participação popular, de modo a
possibilitar um quadro de vida futuro para às populações residentes, como uma nova perspectiva de
integrar as lutas ambientais e sociais e no qual seja constituída uma dimensão que almeje uma
possível justiça ambiental.
Palavras-chave: Justiça Ambiental; unidades de conservação; uso e ocupação do solo.
Abstract: The screen analisys seeks to address the constraints defined by Brazilian Environmental
Law to the use and occupation of the buffer zones of protected areas, trying to understand how the
legal system reconciles the emergence of human occupation in the face of the environmental
preservation need. We presented problems involving the establishment of buffer zones in protected
areas located in urban areas, speaking particularly about the Brazilian protected areas, the idea of
conception and main institutionalized public policies. We stressed the importance of establishing
effective creation forms, planning and management of protected areas with effective popular
participation, to enable a future living environment for the resident populations, as a new perspective
to integrate environmental and social struggles and in which a dimension that aims a possible
environmental justice has been lodged.
Keywords: Environmental Justice; protected areas, use and land use.
Introdução
Percebe-se, atualmente, a emergência em promover a discussão ambiental frente ao
planejamento e gestão das cidades, visando articular as condições ambientais e as condições
sociais inerentes aos espaços urbanos. O processo de urbanização intenso e crescente impõe
profundas modificações nas características naturais do espaço geográfico, tais como, a remoção
da cobertura vegetal original, impermeabilização de áreas extensas e canalização de rios.
Ao longo dos últimos anos, a maior parte da população passou a viver em cidades, o que
vem acelerando o ritmo e as pressões sobre o ambiente e seus recursos naturais, acarretando
processos de fragmentação florestal, tanto em baixadas como em encostas, para dar lugar às
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novas áreas construídas. Com o crescimento populacional nas áreas urbanas, aumentam as
pressões sobre as áreas ambientalmente protegidas para fins habitacionais e de subsistência.
As complexas e inúmeras relações existentes entre população, território e utilização
dos recursos naturais, mediadas pela análise das relações de poder entre diferentes atores
sociais, é relevante para uma análise do instituto das unidades de conservação, de forma que
seja possível uma percepção crítica das formas de políticas públicas e das ações dos
movimentos ambientalistas e das populações tradicionais.
Sabe-se que a legislação nacional exerce inegável influência na produção do espaço
urbano das cidades brasileiras, afetando diretamente a forma e a ocupação sócio-espacial da
cidade. Nesse sentido, o papel do Estado no processo de ocupação e transformação urbana
deve ser entendido para além de um problema de controle ou regulação, mas como, em
muitos casos, indutor da produção dessa realidade. As contradições entre o papel do Estado
e seus instrumentos de atuação denunciam a situação predominante existente na maioria das
cidades brasileiras (TIBO, 2011, f. 23).
Segundo Fernandes (2003, p. 46), a pessoa não jurista tende a responsabilizar o
sistema político e o mercado de terras como determinantes para a ilegalidade. Contudo, é
importante acrescentar outro fator: o próprio sistema jurídico, o qual tem uma visão
individualista e excludente da propriedade fundiária e uma forma elitista de organização do
sistema. Assim, estar “fora da lei” urbanisticamente no Brasil significaria viver
marginalmente, literalmente nas periferias da cidade, ou se em áreas centrais, viver com
acesso precário aos serviços e equipamentos urbanos e usufruindo um estatuto da cidadania
de segunda classe. Nesse sentido, Maricato (2003, p. 154) é clara ao afirmar que a
“ilegalidade é, sem dúvida, um critério que permite a aplicação de conceitos como exclusão,
segregação ou até mesmo de apartheid ambiental”.
Considerando os diversos atores sociais que atuam no espaço, além dos aspectos
sociais, econômicos e ambientais, pretende-se avaliar o impacto da legislação nacional
referente às unidades de conservação no que tange ao uso e ocupação do solo de suas áreas
de entorno, aí entendidas as zonas de amortecimento e zonas circundantes.
Com o crescimento populacional nas áreas urbanas, aumentam as pressões sobre as
áreas ambientalmente protegidas para fins habitacionais e de subsistência. A questão das
populações humanas residentes nas unidades de conservação ou no entorno é um dos grandes
desafios das áreas protegidas (BENSUSAN, 2006, p. 73).
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Para designar o fenômeno de imposição desproporcional dos riscos ambientais às
populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais, tem sido
consagrado o termo injustiça ambiental. Como contraponto, cunhou-se a noção de justiça
ambiental para denominar um quadro de vida futuro no qual essa dimensão ambiental da
injustiça social venha a ser superada. Essa noção tem sido utilizada, sobretudo, para constituir
uma nova perspectiva a integrar as lutas ambientais e sociais (ACSELRAD, 2009, p. 9).
Para tanto, será realizada uma análise, de acordo com o arcabouço jurídico federal
acerca da temática, em especial a Lei federal nº 9.985/2000, o Decreto federal nº 4.340/2002
(BRASIL, 2014) e normas afins, visando algumas ponderações e identificação de
peculiaridades quanto à ocupação das áreas de entorno das unidades de conservação.
A presente investigação não tem por pretensão esgotar toda a complexa matéria
jurídica que envolve as unidades de conservação, mas sim lançar alguns pontos de reflexão
e questionamentos, visando à promoção do debate contemporâneo referente ao assunto,
posto que a grande maioria das discussões atuais sobre a temática ambiental recai justamente
na mediação de conflitos surgidos pela necessidade da preservação ambiental face à
emergência de ocupações e ações humanas.
Em vista do meio ambiente urbano, notadamente um território que importa uma visão
interdisciplinar, o meio ambiente natural possui características peculiares. O reconhecimento
desta diferença entre os dois tipos de meio ambientes, urbano e natural, e as implicações
legais que impactam na sociedade foi a ideia inicial deste trabalho, na tentativa de
demonstrar um possível caminho no que tange às intrincadas relações sociais existentes.
A desigualdade social e de poder está na raiz da degradação ambiental: quando os
benefícios de uso do meio ambiente estão concentrados em poucas mãos, assim como a capacidade
de transferir “custos ambientais” para os mais fracos, o nível geral de “pressão” sobre ele não se
reduz. Donde, a proteção do meio ambiente depende do combate à desigualdade ambiental. Não
se pode enfrentar a crise ambiental sem promover a justiça social (ACSELRAD, 2009, p. 76).
O desenvolvimento com justiça ambiental requer a combinação de atividades no
espaço de modo a que a prosperidade de uns não provenha da expropriação dos demais. Mais
do que isso, os propósitos da justiça ambiental não podem admitir que a prosperidade dos
ricos de se dê por meio da expropriação dos que já são pobres (ACSELRAD, 2009, p. 77).
Ainda segundo Acserald (2009, p. 50), “não há dúvida que o lócus por excelência da
evidenciação da injustiça ambiental está exatamente nos contextos intra-urbanos”.
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1. Criação e Gestão das Unidades de Conservação
No Brasil, para promover a conservação da biodiversidade, existem cinco tipos de
áreas protegidas: Unidades de Conservação (UC), Áreas de Preservação Permanente (APP),
Reserva Legal (RL), Reserva Indígena e Área de Reconhecimento Internacional
(MEDEIROS; GARAY, 2006, p. 89).
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu art. 225, §1º, III, in verbis:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[...]
§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
[...]
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão
permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa
a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção (BRASIL, 2014).
Os espaços territoriais previstos no inciso III são as chamadas unidades de
conservação. Elas integram o Sistema Nacional de Unidade de Conservação da Natureza
(SNUC), criado pela Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000. O Decreto Federal nº
4.340, de 22 de agosto de 2002 regulamentou diversos artigos da Lei nº 9.985/00, entretanto,
outros aspectos ainda carecem de devida regulamentação.
O SNUC é composto pelo conjunto das unidades de conservação federais, estaduais e
municipais, norteando as políticas públicas e dispondo sobre seus instrumentos de planejamento.
As unidades de conservação, de acordo com a Lei nº 9.985/2000, art.2º, I são assim definidas:
espaços territoriais e seus recursos ambientais, incluindo as águas
jurisidicionais, com características naturais relevantes, legalmente
instituídos pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites
definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam
garantias adequadas de proteção (BRASIL, 2014).
As unidades de conservação inserem-se no conceito de área protegida, levando-se
em conta a sua definição: “área definida geograficamente, que é destinada, ou
regulamentada, e administrada para alcançar objetivos específicos de conservação”
(MACHADO, 2013, p. 973).
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A Lei do SNUC dividiu as unidades de conservação em dois grandes grupos, quais
sejam, as unidades de proteção integral e as unidades de uso sustentável, onde cada grupo
possui características específicas e objetivos básicos definidos pela norma.
As seguintes unidades de conservação fazem parte do grupo de proteção integral: Estação
Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural, Refúgio de Vida Silvestre.
Já as unidades que compõem o grupo de uso sustentável são: Área de Proteção Ambiental,
Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna,
Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural.
Cada categoria de Unidade de Conservação possui objetivos específicos, de modo que a
sua criação em determinada categoria pressupõe a existência de requisitos de maior ou menor
impacto no local de sua criação, tais como permissão de visitação pública, áreas públicas ou
privadas, dentre outros que no momento não possuem pertinência com o presente estudo.
2. Do plano de manejo
O SNUC também estipula que toda unidade de conservação deve possuir um plano
de manejo, documento oficial de planejamento da respectiva unidade, a ser elaborado em
seus primeiros cinco anos de existência. No entanto, muitas unidades de conservação não
possuem plano de manejo e por vezes chegam a existir por mais de décadas sem qualquer
documento de planejamento.
O plano é um instrumento norteador das atividades a serem desenvolvidas na
respectiva unidade, e é definido na lei da seguinte forma:
documento técnico mediante o qual, com fundamentos nos objetivos gerais
de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as
normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais,
inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da
unidade (BRASIL, Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, art. 2º, XVII).
O plano de manejo deve abranger a unidade de conservação, sua zona de
amortecimento e os corredores ecológicos que, eventualmente, façam a conexão entre a
unidade e outras áreas naturais, incluindo medidas com o fim de promover sua integração à
vida econômica e social das comunidades vizinhas.
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Naturalmente, os planos de manejo das unidades de conservação de proteção integral
devem ser muito distintos daqueles das unidades de uso sustentável. Para elaboração,
implantação e implementação do plano de manejo das Reservas Extrativistas, das Reservas
de Desenvolvimento Sustentável, das Áreas de Proteção Ambiental e, quando couber, das
Florestas Nacionais e das Áreas de Relevante Interesse Ecológico, será assegurada a ampla
participação da população residente. Mas sabe-se, entretanto, que tal participação tornou-se
apenas mero cumprimento de uma formalidade legal, onde raramente é dada atenção às reais
demandas das populações locais.
A restrição detalhada quanto ao uso do entorno e da zona de amortecimento das
Unidades de Conservação dependem dos critérios definidos em seu próprio Plano de Manejo
ou de ato normativo próprio que regulamente sua criação.
Segundo Bensusan (2009, p. 21), o maior desafio dos planos de manejo é a
necessidade de um planejamento em médio prazo combinado com uma flexibilidade que
permita adaptação a circunstâncias que se modificam continuamente. Os planos refletem a
maneira de pensar dos gestores das unidades de conservação, ou seja, modelos de gestão
excludentes ou inclusivos se traduzem nos documentos de planejamento.
Para as reservas biológicas, estações ecológicas e parques nacionais, unidades de
conservação do grupo de proteção integral, o IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, produziu um roteiro metodológico, visando
orientar a confecção dos planos de manejo (IBAMA, 2002). Segundo esse roteiro, os planos
de manejo possuem diversos objetivos, dentre os quais destacamos os seguintes, de acordo
com o interesse do presente estudo:
 Estabelecer a diferenciação de intensidade de uso mediante zoneamento, visando à
proteção de seus recursos naturais e culturais;
 Estabelecer normas específicas regulamentando a ocupação e uso dos recursos da zona de
amortecimento e dos corredores ecológicos, visando a proteção da unidade de conservação
 Promover a integração socioeconômica das comunidades do entorno com a unidade de
conservação.
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Como se vê, o Plano de Manejo é documento de fundamental importância para
regulação do zoneamento, o qual deverá ser elaborado e discutido pelos comitês gestores da
respectiva unidade de conservação.
3. Das zonas de amortecimento e zonas circundantes
A Lei do SNUC busca estabelecer limites para impedir atividades que coloquem em
risco a função ecológica do espaço, sendo que sua vigência não se restringe ao interior das
unidades de conservação, mas também exige a definição de sua área de entorno (zonas de
amortecimento e áreas circundantes).
Tão importante quanto gerenciar adequadamente as Unidades de Conservação é
buscar definir critérios de uso e ocupação monitorando o entorno, de modo a evitar os
avanços sobre os limites estabelecidos das áreas protegidas.
A zona de amortecimento foi definida pelo artigo 2º, inciso XVIII da Lei nº
9.985/2000 como sendo “o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades
humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os
impactos negativos sobre a unidade”.
O SNUC prevê, em seu art. 25, que a zona de amortecimento e os corredores
ecológicos serão definidos caso a caso, in verbis:
Art. 25. As unidades de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental
e Reserva Particular do Patrimônio Natural, devem possuir uma zona de
amortecimento e, quando conveniente, corredores ecológicos.
§ 1º O órgão responsável pela administração da unidade estabelecerá normas
específicas regulamentando a ocupação e o uso dos recursos da zona de
amortecimento e dos corredores ecológicos de uma unidade de conservação.
§ 2º Os limites da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos e as
respectivas normas de que trata o § 1º poderão ser definidas no ato de
criação da unidade ou posteriormente (BRASIL, 2014).
Já as chamadas zonas circundantes estão dispostas no artigo 27, do Decreto federal
nº 99.274, de 06 de junho de 1990: “Nas áreas circundantes das Unidades de Conservação,
num raio de dez quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota ficará subordinada
às normas editadas pelo Conama”.
O CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente, órgão vinculado ao Ministério
do Meio Ambiente, detentor de finalidade consultiva e deliberativa, expediu a norma que
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regulamentou e operacionalizou a exigência legal acima disposta através da Resolução
CONAMA nº 428, de 17 de dezembro de 2010, ato normativo que disciplina sobre a
necessidade de autorização do órgão ambiental pela administração da unidade de
conservação em caso de licenciamento ambiental de empreendimento na zona de
amortecimento da respectiva unidade de conservação.
As zonas de amortecimento possuem como função primordial a proteção do entorno
das unidades de conservação, criando uma área protetiva que permite atividades antrópicas,
mediante o atendimento de certos pré-requisitos e condicionantes. As zonas de
amortecimento visam resguardar o espaço das atividades humanas, prevenindo
especialmente, ao chamado efeito de borda.
Sobre o efeito de borda, Joel Leandro de Queiroga e Efraim Rodrigues dissertaram,
nos seguintes termos:
Forman & Godron (1986) definiram o efeito de borda como uma
modificação na abundância relativa e na composição de espécies na parte
marginal de um fragmento. Segundo Rodrigues (1993) os efeitos de borda
são divididos em dois tipos: abióticos ou físicos e os biológicos diretos e
indiretos. Os efeitos abióticos envolvem mudanças nos fatores climáticos
ambientais, como a umidade, a radiação solar e o vento. Os efeitos
biológicos diretos envolvem mudanças na abundância e na distribuição de
espécies provocados pelos fatores abióticos nas proximidades das bordas,
como por exemplo, o aumento da densidade de plantas devido ao aumento
da radiação solar. Os indiretos envolvem mudanças na interação entre as
espécies, como predação, parasitismo, herbivoria, competição, dispersão
de sementes e polinização (QUEIROGA; RODRIGUES, 2010).
Em suma, entende-se por efeito de borda as modificações físicas, químicas e
biológicas observadas no espaço de contato do fragmento de vegetação da unidade com sua
área adjacente. Assim, a simples criação de uma unidade de conservação onde as restrições
das atividades humanas fossem fixadas apenas dentro dos seus limites legais não seria
suficiente para alcançar os objetivos da preservação.
Nessa linha, importa salientar que a zona de amortecimento não integra a área da
unidade de conservação respectiva. Dado o fato de não ser parte da unidade de conservação
respectiva, a zona de amortecimento fica sujeita a uma espécie de zoneamento obrigatório
por força da Lei do SNUC, pela qual certas atividades econômicas são permitidas e regradas.
De igual importância também são as discussões a respeito da validade da área
circundante quando da edição da zona de amortecimento pela Lei do SNUC. A existência
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dessas duas áreas é fundamental para a proteção das unidades de conservação do acima
comentado efeito de borda, de forma a se atingir uma conservação efetiva dos espaços
especialmente protegidos.
As zonas de amortecimentos previstas na Lei do SNUC, não substituem as Áreas
Circundantes, prevista no artigo 27 do Decreto nº 99.274/90 e regulamentadas pela Resolução
CONAMA nº 428/2010. Isso, pois, as zonas de amortecimento poderão se estender além das zonas
circundantes, por força do ato de criação da unidade ou do plano de manejo instituído.
Entretanto, é importante ressaltar que a Resolução CONAMA nº 428/2010 diminuiu
a área circundante de 10 quilômetros do limite da unidade de conservação previsto pela
antiga norma regulamentadora (Resolução CONAMA nº 13/1990), para apenas 3
quilômetros, motivo de grande embate quando de sua elaboração.
A ausência de definição quanto às zonas de amortecimento das unidades de
conservação dificulta a determinação de critérios para sua utilização e ocupação, dando
margem para diversas irregularidades e ilegalidades.
Importa ressaltar que as zonas de amortecimento das unidades de conservação do Grupo
de Proteção Integral (Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Estadual ou
Municipal, Monumento Natural e Refúgio da Vida Silvestre), uma vez definidas formalmente, não
podem ser transformadas em zona urbana, de acordo com o art. 49, da Lei nº 9.985/00:
Art. 49 - A área de uma unidade de conservação do Grupo de Proteção
Integral é considerada zona rural, para os efeitos legais.
Parágrafo único. A zona de amortecimento das unidades de conservação
de que trata este artigo, uma vez definida formalmente, não pode ser
transformada em zona urbana (BRASIL, 2014).
Dada a prerrogativa legal, faz-se necessário considerar o temerário processo que vem
ocorrendo pelo país no que toca à definição de zona urbana ou rural nos municípios. Pelo
artigo 49 da Lei nº 9.985/2000, quando a zona de amortecimento de uma unidade de
conservação de proteção integral for área rural, ela não poderá perder esta característica
depois de formalmente definida. Para escapar das restrições de uma zona legalmente
reconhecida como rural, os municípios brasileiros vêm declarando toda a extensão territorial
como urbana, em afronta à legislação disciplinadora da matéria. Sobre o assunto, assevera
Saint-Clair Honorato Santos:
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Assistimos em vários Municípios que, com o intuito de apenas garantir a
expansão imobiliária, declaram toda a extensão territorial como zona
urbana, ou de expansão urbana, protegendo-se contra a legislação
ambiental que limita o seu crescimento, em total desrespeito à legislação
vigente, que somente permite a declaração dessas áreas como tal, desde
que haja a efetiva expansão urbana do Município. Isto também aconteceu
junto aos reservatórios de hidrelétricas. No Município de Curitiba, não
existem mais áreas agrícolas, desapareceram, não formam mais um
cinturão protetivo para os habitantes da cidade, nem mesmo de preservação
da atividade agrícola para os agricultores. Significa dizer que as cidades
estão se expandindo horizontalmente sem qualquer disciplinamento do seu
território, debilitando a garantia a uma sadia qualidade de vida aos seus
habitantes (HONORATO, 2009, p. 94).
Esse desvirtuamento do zoneamento deve ser amplamente discutido, até porque as
condicionantes postas às atividades econômicas serão, na maioria das vezes, mais efetivas
em áreas rurais do que naquelas já urbanizadas.
Por ter a zona de amortecimento a finalidade de, como o próprio nome indica,
amortecer ou mitigar os impactos produzidos pelas atividades externas que sejam
incompatíveis com o manejo da unidade, fica clara a importância do conhecimento do uso e
da ocupação do entorno do espaço especialmente protegido objetivando sua efetiva proteção.
Considerações Finais
A análise aqui realizada procurou abordar, antes de adentrar no cerne da problemática
envolvendo a fixação das zonas de amortecimento em unidades de conservação, linhas gerais
a respeito dos espaços especialmente protegidos brasileiros, a ideia de sua concepção e a
forma como a gestão é feita. Enfatizou-se o quão imprescindíveis são as zonas de
amortecimento para proteção das unidades do chamado efeito de borda, materializando o
SNUC no espaço geográfico.
Áreas que deveriam ser conservadas, dada sua fragilidade à ocupação, como as áreas
de entorno das Unidades de Conservação, requer medidas eficazes para usos e ocupação,
respeitando, especialmente, a população local residente e do entorno.
As complexas questões relacionadas ao meio ambiente não podem, nem devem estar
desarticuladas e analisadas fora dos contextos socioeconômicos, políticos e culturais. Dessa
forma, para instituir formas eficazes de planejamento e gestão das unidades de conservação,
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faz-se necessária a adoção de um modelo de gestão no qual haja interação dos diversos
fatores determinantes: urbano, ambiental, social, econômico e cultural.
Perante essa realidade, tornam-se necessárias ações do poder público, visando um
planejamento ambiental territorial, articulando as áreas protegidas com as paisagens e o
espaço, visando medidas de proteção ambiental aliadas às políticas de uso e ocupação do
solo. Ressalta-se, no caso dos ambientes urbanos, a importância da atuação do poder local
em relação às normas de uso e de ocupação do solo, exigindo a utilização coordenada de
vários instrumentos de planejamento e gestão.
De igual importância são as discussões a respeito da validade da área circundante
quando da edição da zona de amortecimento pela Lei do SNUC. A existência dessas duas
áreas é fundamental para a proteção das unidades de conservação frente ao efeito de borda,
garantindo a conservação efetiva dos espaços especialmente protegidos.
Percebe-se que o enfoque dado por muitos acerca da necessidade de mudança na legislação
como forma de melhoria na gestão das unidades de conservação concomitante à possibilidade de
uso e ocupação, assertiva a qual não é possível concordar, haja vista que apenas mudanças legais
não influem na importante tarefa de execução eficaz de políticas públicas com o referido propósito.
Seria querer muito que, para cada novo avanço da ciência ou demanda social
existente, fosse criado um dispositivo legal correspondente, de forma a permitir sua adoção
e prática. O conhecimento científico avança muito rapidamente, não cabendo aos operadores
do Direito exigir do poder legislativo um diploma legal para cada caso, impedindo sua
imediata aplicação na realidade.
O desafio de melhorar a efetividade de gestão das unidades de conservação e, por
consequência, de nossa política ambiental, demanda a cooperação entre uma vasta gama de
profissionais e é fundamental uma perspectiva de análise multidisciplinar frente aos desafios
impostos pela temática urbana e ambiental.
Sabemos que discutir a questão da justiça, e em particular a justiça ambiental nas cidades,
visualizando possibilidades de sua realização é desafiador. Mas devemos iniciar outra maneira de
organizar a ordem jurídica, uma forma de ordenamento jurídico que se torne um fator de inclusão
social dentro de um movimento que almeja alcançar a justiça ambiental nas cidades.
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Referências
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2009. 156p.
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Janeiro: FGV, 2006. 176p.
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RT, 2014. 1377p.
COELHO, Maria Célia Nunes. Unidades de Conservação: abordagens e características
geográficas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. 296p.
FERNANDES, Edésio. A lei e a ilegalidade na produção do espaço urbano. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003. 485p.
IBAMA. Roteiro Metodológico de planejamento: parque nacional, reserva biológica,
estação ecológica. Brasília: IBAMA, 2002.
MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 21ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2013. 1311p.
MARICATO, Ermínia. Metrópole, legislação e desigualdade. Estudos Avançados. v. 17,
n. 48. São Paulo May/Aug, 2003. p. 151-167. Disponível em:
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MEDEIROS, R. & GARAY, I. 2006. Singularidades do sistema de áreas protegidas no
Brasil e sua importância para a conservação da biodiversidade e o uso sustentável de
seus componentes. In: GARAY, Irene Ester Gonzalez; BECKER, Bertha Koiffman.
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natureza no século XXI. Petrópolis, 2006, p. 159‐184.
QUEIROGA, Joel Leandro de, RODRIGUES, Efraim. Efeitos de borda em fragmentos de
cerrado em áreas de agricultura do maranhão. Brasil - Disponível em <http://www2.uel.
br/cca/agro/ecologia_da_paisagem/tese/joel_borda.pdf>. Acesso em 04.08.2015
SANTOS, Saint-Clair Honorato. Direito ambiental: unidades de conservação, limitações
administrativas. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2009, 158p.
TIBO, Geruza Lustosa de Andrade. A superação da ilegalidade urbana: O que é legal no
espaço urbano? Belo Horizonte, 2011. 236f. Dissertação de mestrado apresentada à
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
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URBANIZAÇÃO DE ÁREAS PERIFÉRICAS EM CAMPOS DOS GOYTACAZESRJ: UM OLHAR SOBRE O CONFLITO
Nabila Gonçalves da Matta
Graduanda em Ciências Sociais pela UENF
Ludmila Gonçalves da Matta
Doutora em Sociologia Política pela UENF. Professora do PMPPUGC - UCAM
Resumo: Este trabalho trata-se de um esforço de compreensão e análise de aspectos específicos das políticas
públicas de urbanização da cidade de Campos dos Goytacazes, especialmente aquelas voltadas para as
favelas e bairros periféricos. O principal objetivo do trabalho é analisar o programa de urbanização Bairro
Legal nos bairros com presença de favelas. Como estudo de caso, elegemos dois bairros com presença de
favelas, contemplado com o programa de urbanização Bairro Legal – Matadouro e Tira Gosto e um bairro,
a Favela Margem da Linha, que não foi contemplado com nenhum programa de urbanização, e que pelo
contrário, está passando por um processo de remoção dos moradores. Com esse estudo objetivamos
estabelecer um diálogo entre os anseios dos atores e as intervenções feitas pelo poder público municipal.
Palavras-chave: políticas públicas; urbanização; interesses econômicos.
Abstract: This work it is an effort of understanding and analysis of specific aspects of public policies
urbanization of the city of Campos dos Goytacazes , especially those related to the slums and suburbs.
The main objective of this study is to analyze the urbanization program Bairro Legal neighborhoods
with the presence of slums. As a case study , we chose two neighborhoods with the presence of slums,
awarded the urbanization program Bairro Legal – Slaughterhouse and strip taste and a neighborhood,
the Favela Line Edge, which was not awarded any urbanization program, and on the contrary is
undergoing a process of removal of the residents. With this study we aimed to establish a dialogue
between the desires of the actors and the interventions made by the municipal government.
Keywords: public policy; urbanization; economic interests.
Introdução
Este trabalho trata-se de um esforço de compreensão e análise de aspectos específicos
das políticas públicas de urbanização da cidade de Campos dos Goytacazes, especialmente
aquelas voltadas para as favelas e bairros periféricos. O principal objetivo do trabalho é
analisar o programa de urbanização Bairro Legal nos bairros com presença de favelas. Como
estudo de caso, elegemos dois bairros com presença de favelas, contemplado com o
programa de urbanização Bairro Legal – Matadouro e Tira Gosto e um bairro, a Favela
Margem da Linha, que não foi contemplado com nenhum programa de urbanização, e que
pelo contrário, está passando por um processo de remoção dos moradores. Para esse trabalho
usamos como metodologia um levantamento bibliográfico acerca dos estudos realizados
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sobre o tema bem como um levantamento das obras realizadas com o objetivo de estabelecer
um diálogo entre os anseios dos atores e as intervenções feitas pelo poder público municipal.
O Município de Campos dos Goytacazes, em razão dos altos valores recebidos de
royalties do petróleo e participações especiais1, apresenta alta capacidade de investimento
em projetos públicos, que dependendo da forma como forem aplicados podem ser
instrumentos para a construção de uma cidade justa, garantindo a todos o direito à cidade.
Assim, propomos analisar a ação do governo local e sua vontade política, ou
não, em dirimir ou reduzir as desigualdades sociais expressas nos territórios.
A prefeitura de Campos dos Goytacazes vem implantando políticas de habitação e
urbanização através dos Programas Morar Feliz, Bairro Legal e Meu Bairro é Show. O
Programa Morar Feliz tem por objetivo garantir a moradia digna para a população que não
possui moradia ou que habita áreas de risco. O Bairro Legal realiza pavimentação das vias e
calçadas, limpeza urbana e paisagismo. Já o programa Meu Bairro é Show consiste na
recuperação de praças, pavimentação de ruas, padronização de calçadas. Nos primeiros
levantamentos da pesquisa, percebemos que, com relação às favelas, a política tem sido
preferencialmente de remoção no lugar de urbanização, em particular naquelas situadas em
áreas de interesse do mercado imobiliário, impulsionado nos últimos anos pelos royalties do
petróleo e instalação do Complexo Portuário do Açu. Um exemplo é a área em torno da
Avenida Silvio Bastos Tavares (Estrada do Contorno), onde se verificam grandes
investimentos como Shopping Center, Hotéis e condomínios residenciais. Assim, a favela
Margem da Linha que ocupa a área desde 1954, por ser considerada área de risco, está vivendo
um conflituoso processo de remoção ao invés de ser beneficiada por esses programas. Diante
do exposto, buscamos identificar se os resultados da política urbana do Município visam
atender a todos os cidadãos promovendo o desenvolvimento equilibrado e a cidade justa ou
pelo contrário, constituem um padrão insustentável e injusto de desenvolvimento urbano.
1. Aspectos da urbanização em Campos dos Goytacazes
A cidade de Campos dos Goytacazes sofre problemas semelhantes aos das
metrópoles, expansão e adensamento urbanos acelerados e desordenados, déficit
habitacional, favelização, segregação e fragmentação social e espacial.
1
Participações especiais são taxas adicionais sobre o diferencial de produtividade das áreas mais rentáveis.
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Campos dos Goytacazes concentra 58,24% dos habitantes de toda a Região Norte
Fluminense, sendo o maior município da região tanto em área 4.040,6 km2, quanto em
número de habitantes: 463.731, dos quais 418.725 (90,3%) na zona urbana, dentre estes,
15.777 moram em 27 favelas (IBGE, 2010).
Hoje temos projetos implementados pelo poder municipal como Bairro Legal e Meu
Bairro é Show, visando intervenções urbanísticas nos bairros periféricos e nas favelas.
O Bairro Legal é um programa que iniciou na primeira gestão da prefeita Rosinha
Garotinho (2009-2012) neste programa todos os bairros que foram contemplados pelo
projeto receberam sistema de drenagem e coleta de esgoto sanitário, nova iluminação,
construção de calçadas, pavimentação asfáltica e tratamento paisagístico. As obras visam
pôr fim aos alagamentos das áreas e garantir saneamento básico e a retificação e
pavimentação de todas as ruas do bairro.
Já o programa Meu Bairro é Show que iniciou em março/abril de 2012 consiste na
recuperação de vias, regularização de paralelos ou asfaltamento de ruas para melhor fluidez
do tráfego, mais comodidade aos motoristas e embelezamento do bairro e em alguns casos
as calçadas também serão padronizadas com acessibilidade. Segundo as informações do site
oficial da prefeitura na sua prestação de contas, no início de 2013 mais de 20 bairros teriam
sido contemplados com o programa e mais de 100 ruas já teriam sido asfaltadas.
A centralidade desse trabalho é a análise do programa de urbanização Bairro Legal
nos bairros com presença de favelas. Como estudo de caso, elegemos dois bairros com
presença de favelas, contemplado com o programa de urbanização Bairro Legal – Matadouro
e Tira Gosto e um bairro, a Favela Margem da Linha, que não foi contemplado com nenhum
programa de urbanização, e que pelo contrário, está passando por um processo de remoção
dos moradores. Usamos como metodologia a realização do inventário das obras realizadas e
acompanhamento das ações do poder público em ambos locais.
Para o desenvolvimento de nosso estudo, consideramos que centrar nos aspectos
espaciais ou geográficos das desigualdades sociais, pode ser o ponto de partida para iniciar
uma justa e equitativa distribuição, no espaço, dos recursos sociais e das oportunidades de
usufruir os mesmos. Assim, nos propomos a analisar a ação do poder público municipal e
sua vontade política, ou não, em resolver ou reduzir essas desigualdades sociais expressa no
território da cidade para alcançar uma cidade justa.
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1.1 O Bairro legal na favela Matadouro e Tira Gosto
O Bairro legal na favela Matadouro e Tira Gosto, teve suas obras anunciadas no dia
27 de maio de 2011 em um evento realizado no bairro da Lapa onde a então Prefeita Rosinha
Garotinho anunciou a chegada do Bairro Legal no Bairro Lapa e adjacências, englobando a
Avenida São João da Barra, a Riachuelo, e outras ruas. Favorecendo todos os moradores da
região, com a construção de toda a infraestrutura que já vem sendo colocada em prática nos
demais. A obra, avaliada em cerca de R$ 34 milhões, prevê a drenagem de todo o bairro,
com a recuperação da rede de esgoto, com ligação domiciliar de esgoto sanitário, rede de
abastecimento de água potável, recuperação do asfalto, execução de obra em todas as
calçadas do bairro, com implantação de acessibilidade e implantação do sistema de
sinalização vertical e horizontal.
“Na Lapa e nas ruas ali perto, nós vamos investir na completa recuperação. O bairro
vai ficar mais bonito, porque vai ganhar obras de urbanismo, vamos plantar árvores, instalar
lixeiras, fazer nova sinalização”, declarou a Prefeita Rosinha Garotinho em seu discurso.
A última etapa do Bairro Legal da Lapa foi entregue no dia 07 de junho de 2013, a
obra reestruturou o bairro com obras de saneamento e recuperação de ruas e calçadas, e
valorizou os imóveis do bairro. O Bairro Legal da Lapa recuperou 19 ruas e beneficiou
bairros como o Parque Riachuelo, Matadouro, entre outros. As obras incluíram rebaixamento
de solo, instalação de redes de galerias, construção de meio fio, calçadas com acessibilidade,
pavimentação, paisagismo e urbanização.
No dia 15 de maio de 2014 a Prefeitura de Campos dos Goytacazes noticiou em seu
site oficial que o programa já beneficiou mais de 269 ruas em 18 bairros, beneficiando
moradores de Donana, Ururaí, Residencial Santo Antônio, Penha, Nova Penha, Parque
Eldorado, Jardim Ceasa, Novo Eldorado, Vila Industrial, Jardim Eldorado, Lapa, Matadouro
e Parque Riachuelo, Tocaia e Nova Goytacazes.
 Fotos da Favela Matadouro e Tira Gosto antes da Obras de urbanização de 2011.
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Figura 1 - Favela Matadouro em 2004.
Arquivo: LEEA.
Figuras 2 e 3 - Favela Matadouro em junho de 2006.
Arquivo: LEEA.
Figura 4 - Fachada do antigo Matadouro em junho de 2006.
Arquivo: LEEA.
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 Fotos durante e pós obras.
Figura 5 - Quadra poliesportiva construída na Favela Tira Gosto, maio de 2014.
Arquivo: LEEA.
Figura 6 e 7 - Rua lateral a UENF, 2012 e maio de 2014, durante e após as obras.
Arquivo: site oficial da Prefeitura de Campos dos Goytacazes. / Arquivo: LEEA.
Figura 8 - Praça da Favela Tira Gosto revitalizada, maio de 2014.
Arquivo: LEEA.
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1.2 A Favela Margem da Linha: à margem dos programas urbanísticos e à beira da remoção
A Favela da Margem da Linha2 surgiu no município de Campos dos Goytacazes, pelo
menos há mais de quarenta anos às margens da linha da antiga Rede Ferroviária Federal, que
fazia o trajeto Campos-Rio.
Composta a princípio por trabalhadores do corte de cana, que ao serem demitidos perdiam
o benefício de morar nas residências da usina do Queimado. A faixa A favela localizada entre o
pasto da usina e a linha ferroviária foi à alternativa para estes trabalhadores e suas famílias. Após,
no entorno, no lugar que antes era apenas canavial, o município pavimentou a Rodovia do
Contorno para tirar do centro da cidade o trânsito da BR 101 (CORDEIRO et al, 2012).
Segundo Pereira et al (2014) os moradores relataram que quando fizeram a ocupação
a rua era de terra batida onde qualquer chuva produzia muita lama, sem serviços públicos
como iluminação e água potável. As casas eram abastecidas com água do poço e muitas
famílias buscavam água numa bica.
A Favela é composta, segundo dados do IBGE (2010), por 2196 pessoas, sendo 1112
homens e 1084 mulheres, destes 45,30% são crianças e adolescentes, enquanto 6,01% são
idosos. Hoje os moradores, através de organização comunitária, possuem alguns
equipamentos básicos, como energia elétrica, água encanada, ruas calçadas ao longo da Av.
Antonio Alves Poubel, coleta de lixo três vezes por semana.
Aos poucos os moradores da Favela veem se mobilizando e conquistando
gradativamente e de forma lenta algumas melhorias para o bairro, contudo ainda sofre com
falta de saneamento básico, moradias precárias, acesso restrito aos serviços escolares,
hospitalares e equipamentos de lazer, que são frutos do descaso e da ausência de políticas
públicas, dentre outros serviços considerados básicos para se viver dignamente, além da
presença significativa e crescente do controle pelo tráfico de drogas, que envolve os
moradores da Favela e reforça a vulnerabilidade individual no contexto social.
A Favela Margem da Linha é muito extensa, então, para compreender espacialmente
o local usamos a classificação elaborada por Pires (2005) chamando de área A: região que
compreende o bairro Parque São Caetano até a Estrada do Contorno; área B: Estrada do
Contorno até a Tapera; e área C: Margem da BR 101 até a Usina do Cupim.
2
Margem da linha ocupa a área descrita desde a década de 1960 (GUIMARAES & PÓVOA, 2005;
POHLMANN, 2008).
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Atualmente essa área que antes era considerada periférica, vem sofrendo uma serie de
investimentos, transformando completamente sua paisagem, usos e significados. Estas
transformações compreendem o entorno da Avenida Silvio Tavares onde há presença da Favela
Margem da Linha, que, no entanto não foi observado o esforço do Poder Público em inserir a
população da Favela ao novo contexto sócio- espacial que se reproduz no local, sendo esta situação
contraditória, visto que os moradores da Favela foram os primeiros a se instalarem no local.
Desde o ano 1995, com a construção da Rodoviária/Shopping localizada no entorno da
Favela da Margem da Linha, esta vem recebendo constantemente a instalação de empreendimentos
e serviços, em sua maioria de origem privada, mas como afirma (SANTOS, 2009, p. 121-122), cada
parcela do território urbano é valorizada (ou desvalorizada), em virtude de um jogo de poder exercido
ou consentido pelo Estado. Hoje o Parque Rodoviário como é conhecida a área, que antes era visto
como região periférica é hoje definida pelo Plano diretor como Zona de Expansão Urbana.
A região tem recebido empreendimentos direcionados para a classe média e alta,
como condomínios residenciais de luxo, hotéis e shopping.
Correa (2007) afirma que:
O Estado é também o elemento de legitimação de classe dominante, sua
atuação enquanto provedor tende, por um lado, a reforçar as áreas residenciais
nobres, e por outro, a viabilizar o sucesso de novas implantações produtivas
do grande capital através, por exemplo, da criação de distritos industriais. Isto
significa que sua atuação não se realiza de forma uniforme no espaço urbano,
atuação que se traduziria nos investimentos em água e esgoto, na criação de
uma completa infraestrutura (CORRÊA, 2077, p. 82-83).
Empreendimentos na área da Margem da Linha:
 Rodoviária Shopping Estrada (1997);
 Condomínio Vertical Recanto das Palmeiras (1995);
 Condomínio Sonho Dourado (2000);
 Condomínio Nashiville (2007);
 Condomínio Athenas (2008);
 Condomínio Fit Vivai (2011);
 Condomínio Reserva dos Cristais (2013-2014);
 Condomínio Dahma (2013-2014).
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Empreendimentos de Negócio:
 Academia Nova Estação (1999);
 Hipermercado Super Bom (2007);
 Walmart (2008);
 Atacadão Saara (2008);
 Makro (2008);
 Inter TV (2009);
 Concessionária Honda (2005);
 Concessionária Fiat (2010);
 Shopping Center Boulevard (2011).
De acordo com Mothé (2011) as transformações espaciais podem se apresentar em
decorrência de necessidades do capital, principalmente privado, alguns pontos podem ser
aprimorados enquanto outros podem causar ou acentuar manifestações negativas. Para que tais
ações se concretizem, o capital privado necessita da parceria do estado em determinadas ações.
A partir disso, observa-se uma participação estatal com maior afinco em áreas
pontuais onde se concentram empreendimentos privados, enquanto as áreas carentes sofrem
as consequências.
Quando o espaço em que está localizada uma favela se torna alvo para a construção
de um empreendimento, desenvolve uma problemática que envolve a população que já mora
no local e o empreendimento que será instalado. O local se torna valorizado e, em alguns
casos, o custo de vida se eleva.
No contexto da ditadura, na década de 1960, uma política sistemática de erradicação
das favelas entrou em vigor, sendo garantida por uma repressão nunca vista antes. A
redemocratização afastou o fantasma da remoção, enfraquecendo o tema, mas não o
eliminando definitivamente, como afirma Brum (2013, p. 10) “A cada problema na cidade
atribuído as favelas, como a violência, o tema da remoção reaparecia, até que, atualmente,
os interesses em nome dos “Grandes Eventos”, como Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas de
2016, justifica a volta do tema”.
No Rio de Janeiro tornando as intenções anunciadas em ações práticas, em janeiro
de 2010, a Prefeitura anunciou o plano de remover 119 favelas, por estarem em locais de
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risco de deslizamento ou inundação, de proteção ambiental ou destinados a logradouros
públicos, entre as favelas estavam a do Horto (Jardim Botânico), a Indiana (Tijuca), a da
CCPL (Benfica), a do Metrô (Maracanã), a Vila Autódromo (Barra) e a Vila Taboinhas
(Vargem Grande). É o caso também da pequena Matinha, num trecho de floresta atrás do
Ciep Ayrton Senna e na vizinhança da Rocinha.
Na Margem da Linha até então, a política do Governo Municipal tem sido a de remoção,
justificando tal ação a partir de um laudo da defesa civil municipal que considera a área ocupada
pela Favela como área de risco, visto que se localiza bem próxima da BR 101 e da linha de trem.
Segundo Malagodi e Siqueira (2013) em estudos sobre os problemas socioambientais de
situações de desastres relacionados a inundações, mais especificamente um estudo de caso sobre
o bairro Ururaí em Campos dos Goytacazes e o rio que cerca o bairro, cujo nome também é Ururaí,
o que se observa é uma abordagem tecnicista dos desastres, sendo essa ancorada em cartografias
de “área de risco” que tendem a naturalizar ações políticas que prejudicam a territorialização de
populações de baixa renda, realimentando processos de injustiça ambiental.
Observa-se que a prática de remoção dos moradores de áreas identificadas como de
risco pela defesa civil, involuntariamente em muitos casos, promove o que Valencio (2009)
chama de desterritorialização, pratica esta aliada ao discurso técnico que busca legitimar tal
conceito e mapear tais áreas.
A Prefeitura Municipal pretende remover os moradores para um conjunto habitacional
construído pelo programa Morar Feliz, onde o objetivo é beneficiar moradores de áreas de risco,
assegurando moradia às famílias social e economicamente vulneráveis, que não têm condições
financeiras de adquirir uma casa própria, o programa segue critérios socioeconômicos.
Segundo Brum (2013), a conjuntura democrática tem permitido a organização e
mobilização dos moradores de favela em resistirem à remoção, argumentos usados pelas
autoridades têm sido refutados por moradores em articulação com outros setores da sociedade.
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 Fotos da Favela Margem da Linha
Figura 9 - Estrada que separa a
Margem da Linha do condomínio
residencial em construção pela
construtora MRV, março de 2014.
Figura 10 - Manifestação de moradores
na BR 101.
Arquivo: LEEA.
Arquivo: Jornal Folha da Manhã.
Figura 11 - Obra de um hotel sendo
construído ao lado da Favela Margem
da Linha, maio de 2014.
Figura 12 - Marcação feita pela
prefeitura que indica a rua e o número
da casa que esses moradores irão morar
no conjunto habitacional de Ururaí,
maio de 2014.
Arquivo: LEEA.
Arquivo: LEEA.
2. Resultados e Discussão
Podemos dizer que a área onde se localiza a Favela Margem da linha, vem passando
por um processo de gentrificação.
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O termo é decorrente de um neologismo criado pela socióloga britânica Ruth Glass
em 1963, onde em um artigo ela escrevia sobre as mudanças urbanas em Londres na
Inglaterra. Ela se referia ao “aburguesamento” do centro da cidade, usando o termo irônico
“gentry”, que pode ser traduzido como “bem-nascido”, como consequência da ocupação de
bairros operários pela classe média londrina.
Na região da Favela Margem da Linha, uma área que foi ocupada por muitos anos
pela população pobre e marginalizada, hoje vem sendo ocupada por uma população de classe
média e classe média alta. Não tem sido visto esforço do governo local em manter esses
moradores no mesmo local, não há até então nenhum programa de política pública de
urbanização vigente, que tenha como objetivo levar dignidade aqueles moradores.
Para retirá-los do local a Prefeitura usa de leis como a Lei nº 7.975, de 12 de dezembro
de 2007 - DO DIMENSIONAMENTO E PROTEÇÃO DAS FAIXAS DE DOMÍNIO.
Entretanto, essa legislação é cumprida de acordo com o interesse do governo
Municipal, visto que em bairros como Guarus, existem edificações, inclusive edificações do
Governo Federal como Instituto Federal Fluminense que se localiza bem próximo tanto da
rodovia BR 101, quando da linha férrea.
No Brasil essa política tem sido recorrente, exemplo Vila Autódromo e MetrôMangueira no Rio de Janeiro, a favela da Penha na Zona Leste de São Paulo, próximo dali,
um empreendimento imobiliário com seis torres de 21 pavimentos cada, sendo a construtora
responsável pelos imóveis, a Living, que pagou R$ 2 mil a moradores para deixarem a favela.
De acordo com a matéria publicada pelo site Vila Favela, a construtora ficou encarregada do
pagamento após acordo com a Secretaria de Habitação, a Subprefeitura da Penha e
empresários (brasil247, 2014).
A remoção desses moradores de áreas identificadas como de risco pela defesa civil,
involuntariamente muitas das vezes, promove, conforme já citamos, a desterritorialização,
pratica esta aliada ao discurso técnico que busca legitimar tal conceito e mapear tais áreas. Na
Margem da linha, porém, o que constatamos em visita ao local é que a área onde está localizada
é bem grande, sendo possível a construção de um conjunto habitacional no mesmo lugar, porém,
mais afastada da linha de trem e assim mais seguro, entretanto o terreno na área com a
valorização dos últimos anos tem um preço muito além do que a Prefeitura se dispõe a pagar.
Os moradores da Favela da Margem da Linha serão levados para um condomínio
residencial do Programa Morar Feliz, bem distante da área onde estão, onde também não há
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nenhum serviço público como, creches, escolas, posto de saúde, e também não possui serviços
privados como farmácias, supermercados. Há casos que a distância pode ocasionar a perca do
trabalho e o capital que investiram em suas residências, contribuindo para a fragmentação da
comunidade e aumentando ainda mais a angústia fruto do deslocamento. Visto o que está
acontecendo podemos inferir que a remoção não é por conta de inviabilidade de um programa de
planejamento urbano da área, hoje habitada e considerada área de risco, e sim para dar espaço aos
investimentos imobiliários, liberando áreas valorizadas da “incômoda” vizinhança da favela.
Segundo Corrêa “O espaço da cidade capitalista é fortemente dividido em áreas
residenciais segregadas, refletindo a complexa estrutura social em classes” (1999, p. 8),
sendo profundamente desigual. Esse campo de lutas é um produto social, resultado de ações
acumuladas através do tempo, e engendradas por agentes que produzem e consomem espaço.
Na Favela Matadouro e Tira Gosto podemos observar através dos registros fotográficos que
as mudanças foram muitas, porém durante a pesquisa de campo, nos foram relatados alguns
problemas que já estão se apresentando, um deles é o entupimento das bocas de lobo, que
entra nas casas próximas e também gera um mal cheiro, porem esses e outros levantamento
ainda serão realizados em pesquisas posteriores.
Considerações Finais
Na Favela Margem da linha as demandas atuais pela reforma urbana possuem dois
componentes básicos: justiça através da garantia de direitos urbanos (acesso a habitação,
transporte, educação, saúde, etc.) e a distribuição justa de benefícios através de provisão de
infraestrutura, o que não têm sido garantido pelo Governo Municipal.
A forte mobilização que tem envolvido moradores da Favela, com a criação da
Associação de Moradores e a construção de uma pauta de reivindicações que passou a ser
tratada institucionalmente com integrantes do poder público municipal e outros segmentos
aliados a causa, como o Centro Juvenil São Pedro, instituição vinculada ao Colégio
Salesiano, que presta assistência social na Favela, e que está em defesa da permanência do
maior número possível de moradores, esses movimentos tem conseguido aparentemente,
problematizar a ideia remocionista.
No dia 02 de fevereiro de 2014 a prefeitura noticiou em seu site oficial que 281
moradores da Favela Margem da Linha apresentaram documentação e confirmaram o
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interesse de serem contemplados pela Prefeitura de Campos dos Goytacazes com uma casa
própria no próximo condomínio a ser entregue, no Bairro Ururaí. Entretanto, no dia 24 de
fevereiro de 2014 moradores da área da Avenida Silvio Bastos de Tavares, área A e B
fecharam a BR 101 em protesto, segundo o Jornal Folha da Manhã os protestantes
reclamaram que a comunidade existe há mais de 60 anos e nunca tiveram o apoio do poder
municipal e a troca não é bem vista por todos.
Em entrevista para o Jornal Folha da Manhã no dia 24/02/2014 a presidente da
Associação de Moradores da Comunidade da Margem da Linha, Cristiane Gomes, afirma
que “há dois anos tentam negociar com a prefeitura e sem sucesso e que a Prefeitura quer
retira-los do local porque a área está mais valorizada com a vinda de hotéis, shopping e
outras construções, a prefeitura não quer mais favela aqui”.
Foram feitas mais duas manifestações, por parte dos moradores da área C, esses desejam
deixar a área, porém, fazem algumas exigências, como a realização de cadastro de todas as casas
que estão no mesmo terreno, a reclamação é a de que a Prefeitura só tem cadastrado o terreno,
não cadastrando todas as casas existentes nesse terreno, essas informações foram passadas pela
líder comunitária Cristiane Gomes e também veiculadas nas mídias locais.
Na Margem da Linha até então, a política do Governo Municipal tem sido de
remoção, com a justificativa que a comunidade se localiza em área de risco, porém, como
afirmou a líder comunitária é de se questionar que há 60 anos essa área é ocupada e até então
não havia iniciativa do Governo Municipal de retirá-los da área, fato este que se inicia
somente a partir do momento em que essa área se torna alvo de investimentos privados.
Com relação ao diálogo com os moradores da Margem da Linha, a Prefeitura na
figura do Secretário de Família e Assistência Social Geraldo Venâncio, se comprometeu em
reunir com moradores que resistem à mudança, isso foi o que Cristiane Gomes informou no
dia 15 de maio de 2014 e que 300 moradores, principalmente da área C estão prontos a espera
do término das obras em Ururaí para serem transferidos.
Em Audiência Pública realizada no Instituto Federal Fluminense em Campos dos
Goytacazes no mês de Julho, onde as instituições de ensino da cidade estavam presentes, Instituto
Federal Fluminense-IFF, Universidade Federal Flumiense-UFF, Universidade Estadual do Norte
Fluminense-UENF, através de representantes como professores e alunos, o representante da
Prefeitura afirmou que “os moradores que não aceitarem deixar o local, poderão continuar, porém,
correm o risco de que o Ministério Público Federal mova uma ação de despejo contra eles”.
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A Prefeitura está disposta a usar a redução dos serviços públicos como uma maneira de
coagir os moradores a abandonar suas casas. A negação de infra-estrutura tem sido utilizada
frequentemente para controlar as favelas no Rio de Janeiro antes e depois das remoções, desde o
começo das ocupações, e tem ocorrido também na favela Margem da Linha, onde o serviço de
reparação, e ligação de novas redes elétricas não está sendo mais realizados.
Esses moradores serão levados para uma região que se localiza a cerca de 9 km de onde
eles estão hoje, e além dos problemas de mobilidade, ainda se tem o problema do tráfico e da
rivalidade entre as favelas. Em vários conjuntos dos 14 distribuídos na cidade, a população
afirma que os locais são “comandados” pelo tráfico, e as pessoas vivem acuadas dentro de casa
por medo da violência nas ruas, a Prefeitura ao remover as favelas, não considera a possibilidade
dessas serem rivais, esse é um dos medos que acompanham os moradores da Margem da Linha.
Referências
BRUM, Mario. “Favelas e remocionismo ontem e hoje: da Ditadura de 1964 aos Grandes
Eventos”. O Social em Questão - Ano XVI - n. 29 - 2013.
CORDEIRO, Thais Nascimento; OLIVEIRA, Daniela B. Bastos; PEREIRA, Beatriz
Mateus; SALES, Thatiana Monteiro; SANTOS, Renato Gonçalves. À Margem da Linha:
exclusão social X defesa e garantia de direitos. Apresentado no XX Encontro Inspetorial
de Inculturação, 02 de agosto de 2012. Seção Relatórios. Disponível em:
<http://inculturacao.salesianos.br/artigo-a-margem-da-linha-exclusao-social-x-defesa-egarantia-de-direitos-apresentado-pelos-educadores-do-centro-juvenil-sao-pedro/>. Acesso
em: 01/09/2014.
CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Editora Ática 1999.
GOMES, Marcos Antônio Silvestre (coord). Diagnóstico Socioeconômico e Análise da
Produção Histórica da Favela da Margem da Linha, Campos dos Goytacazes - RJ.
Relatório Final apresentado à PROEX – Pró-Reitoria de Extensão – da Universidade
Federal Fluminense, como produto final do projeto inscrito no SIGProj sob o n.:
131098.427.123914.01112012. UFF: Campos dos Goytacazes, 2013.
GRAZIA, G. de. Plano Diretor, Instrumento de Reforma Urbana. Rio de Janeiro.
Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), 1990 MARICATO,
E. Brasil, Cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis Vozes, 2001.
MALAGODI, Marco A. S.; SIQUEIRA, Antenora M. M. Desastres e remoção em Campos
dos Goytacazes/RJ: O caso Ururaí. In: GOMES, Marcos A. S. (org); LEITE, Adriana
Filgueiras (org). Dinâmica ambiental e produção do espaço urbano e regional no Norte
Fluminense. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2013, p. 35-66.
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MOTHÉ, Natalia. Dinâmica sócio-espacial em Zona de expansão urbana. Os impactos da
implantação de novos empreendimentos na área ao entorno da Avenida Silvio Bastos de Tavares
em Campos dos Goytacazes, UENF, 2011. 101p. dissertação. (Mestrado em Políticas Sociais).
PEREIRA, Beatriz Mateus; INÁCIO, Marcelo de Souza; SANTOS, Renato Gonçalves.
Artigo: À Margem da Linha: da produção do espaço criminalizado ao debate do direito à
cidade. Apresentado no II Congresso Nacional Africandade e brasileidade: cultura e
territorialidades ocorrido entre os dias 4,5 e 6 de agosto de 2014, UFES-Vitória/ES
PIRES, Beatriz de Oliveira. Segregação Socio-espacial e qualidade ambiental. O caso da
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IMPACTOS DOS EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS SOBRE A ÁREA DE
PROTEÇÃO AMBIENTAL DO MARACANÃ1
Nadloyd da Conceição Pinheiro Moraes
Bolsista de Iniciação Científica do CNPq - UEMA.
Resumo: As Unidades de Conservação (UC) são áreas legalmente instituídas pelo Poder Público. No
Maranhão, existem 13 Unidades de Conservação legalmente instituídas, o município de São Luis/MA
possui cinco UCs, são elas: Parque Estadual do Bacanga, Estação Ecológica do Rangedor, Área de
Proteção Ambiental (APA) do Itapiracó, Área de Proteção Ambiental do Maracanã e a Área de Proteção
Ambiental da Lagoa da Jansen. O recorte empírico realizado nesta pesquisa analisará a APA do Maracanã
e tem por objetivo identificar os impactos socioambientais decorrentes dos empreendimentos imobiliários
instalados na área. Atualmente, a APA passa por intenso processo de urbanização resultante do
crescimento populacional em seu interior e no seu entorno, assim, a APA do Maracanã vem sofrendo um
agressivo processo de destruição de seus recursos naturais por parte das construtoras imobiliárias que
estão construindo condomínios tanto de casas quanto de apartamentos do Programa Minha Casa Minha
Vida. Tal investida tem produzido a poluição dos rios, destruição dos juçarais (cujo fruto é fonte de
sustento da população local). Para tanto, esta pesquisa realizou levantamento bibliográfico de artigos, de
livros, jornais locais e pesquisa de campo na referida Área de Proteção Ambiental.
Palavras-chave: impactos; empreendimentos imobiliários; Área de Proteção Ambiental do Maracanã.
Abstract: The Conservation Units (UC) are areas legally established by the Government. In Maranhão,
there are 13 legally established protected areas, the municipality of San Luis/MA has five UC`s, they are:
State of Bacanga Park, Ecological Station of the grating, the Environmental Protection Area of Itapiracó,
Environmental Protection Area of Maracanã and the Environmental Protection Area of Lagoa da Jansen.
The empirical cut performed this research will examine the APA Maracanã and aims to identify the social
and environmental impacts of real estate projects installed in the area. Currently, APA undergoes
intensive process resulting urbanization of the population growth inside and its surroundings thus the
Maracanã APA has undergone an aggressive process of destroying its natural resources by the real estate
developers who are building condominiums both houses as apartments of the Minha Casa Minha Vida.
Such an attack has produced the pollution of rivers, destruction of juçarais (whose fruit is the source of
livelihood of the local population). To this end, this research conducted literature review of articles, books,
local newspapers and field research in that the Environmental Protection Area.
Keywords: impacts; real estate developments; Area Environmental Protection of Maracanã.
Introdução
A presente pesquisa apresenta os resultados do plano de trabalho Impactos
imobiliários sobre a área de proteção ambiental do Maracanã desenvolvido na Iniciação
Científica. O referido projeto analisa a atual situação da comunidade do Maracanã a partir
das instalações dos grandes empreendimentos imobiliários na região, no sentido de verificar
1
Este plano de trabalho é desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa, Conflitos Socioespaciais na Região
Metropolitana de São Luís: Conflitos de usos das áreas de proteção ambiental, de autoria da Profª Drª Rosirene
Martins Lima no Grupo de Pesquisa Cidade, Território e Meio Ambiente.
1022
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as mudanças que processo ocasionou em uma área considerada de proteção ambiental.
Atualmente, a APA passa por um intenso processo de urbanização resultante do crescimento
populacional em seu interior e no seu entorno. Esse crescimento, porém, em geral é
desordenado e tem avançado sobre as áreas de proteção ambiental em que legalmente há a
possibilidade de construção de moradias e de uso sustentável.
No mundo globalizado em que vivemos em constante crescimento econômico e
populacional, que conforme aponta Henrique Leff (2006), provoca impactos sobre os recursos
naturais são os bens preciosos de nosso planeta. Há uma relação problemática na forma de
utilização desses recursos pelo ser humano, onde, está de forma bem viva o desejo de lucro antes
mesmo de sua sobrevivência. A natureza e a sociedade mantêm diversos e diferentes
mecanismos de trocas e de interações e as Áreas de Proteção Ambiental existem com o objetivo
primordial de conservação de processos naturais e da biodiversidade, orientando o
desenvolvimento, adequando às várias atividades humanas às características ambientais da área.
A Área de Proteção Ambiental, de acordo com a Legislação Ambiental brasileira, é
aquela destinada à preservação dos recursos ambientais (fauna, flora, solo e recursos hídricos) e
pode apenas ter uso sustentável, ou seja, seu acesso, ocupação e exploração devem ser
controlados para não prejudicar o ecossistema da área. Porém, cabe aos órgãos governamentais
a fiscalização da ocupação e exploração destas áreas. Elas podem compreender tanto paisagens
naturais quanto com qualquer tipo de alteração, visando a recuperação e a conservação destas
áreas, assegurando as condições ecológicas locais. Como elas podem estar localizadas
geograficamente tanto em terras públicas, quanto privadas, surgem como uma alternativa aos
altos custos de desapropriação de terras para criação de áreas protegidas no território nacional,
tornando-se peça fundamental dentre os instrumentos de proteção ambiental.
Em São Luís existem três Áreas de Proteção Ambiental: APA do Maracanã, APA da
Lagoa da Jansen e a APA do Itapiracó. O recorte empírico realizado nesta pesquisa analisará a
APA do Maracanã que fica localizada no município de São Luís com área de 1.831 hectares.
Engloba as localidades do Maracanã, Vila Maranhão, Vila Sarney, Vila Esperança e Rio Grande.
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Figura 1 - Localização da Área de Proteção Ambiental do Maracanã.
Fonte: Google Earth
Ela é uma área que deveria ser protegida e conservada, mas, têm enfrentado tantos
problemas de ordem ambiental como, poluição de seu rio, desmatamentos, derrubadas de
árvores, para a construção civil, como por exemplo, a derrubada dos seus juçarais. Todos
esses problemas ambientais, somados a outros aspectos de cunho socioeconômico, têm
impactado seriamente os recursos da APA do Maracanã, o que já se reflete em profundos
desequilíbrios ecológicos.
A indústria da construção civil tem um papel fundamental nesse processo de
transformação porque torna visíveis as alterações causadas na área devido a tantas
construções instaladas em seu interior e em seu entorno. A chegada de grandes empresas de
outros estados e a execução de projetos federais, a exemplo do Programa Minha Casa Minha
Vida que propiciam mecanismos para o crescimento de instalações de empreendimentos na
região que de algum modo promove transformações importantes.
Esta pesquisa tem como objetivo identificar os impactos socioambientais decorrentes
dos empreendimentos imobiliários instalados na área e das diversas formas de uso da APA.
A coleta de dados da pesquisa de campo deu-se através de visitas à APA do Maracanã para
se observar os empreendimentos que já se encontram instalados na área e realizar entrevistas
com moradores locais para saber no que a área está sendo prejudicada ambientalmente, com
a instalação desses empreendimentos.
A coleta de dados ainda consistiu em leitura e sistematização da bibliografia
estudada, onde foi possível recorrer a diferentes autores que oferecem distintas concepções
sobre a temática a fim de identificar e interpretar informações que estabeleçam vínculo com
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a problemática em discussão e comprovar as discussões existentes na bibliografia sobre o
assunto, efetuando-se posteriormente comparação dessa literatura com o que foi observado.
Também foram realizadas consultas em fontes secundárias como em jornais e sites
que se referem à temática em estudo. Assim, coletamos as informações em campo e
acrescentamos com pesquisas desenvolvidas em outras fontes, a análise do sistema legal e
especifico que rege a criação das Unidades de Conservação, o SNUC (Sistema Nacional de
Unidades de Conservação) e de acordo ainda com a Lei Federal Nº 9.985/00, identificamos
os instrumentos que orientam e ordenam a utilização quanto ao uso e ocupação dessas áreas
que é o Plano de Manejo e o Zoneamento do Plano de Manejo.
1. Áreas de proteção ambiental
As Áreas de Proteção Ambiental enquadradas como Unidades de Conservação de
Uso Sustentável, são definidas pelo artigo 15 da Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de
2000, como “uma área em geral extensa, com certo grau de ocupação humana, dotada de
atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a
qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos,
proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a
sustentabilidade do uso dos recursos naturais” (BRASIL, 2000).
As APAs podem compreender tanto paisagens naturais ou com qualquer tipo de
alteração, visando recuperação e conservação destas áreas, assegurando as condições
ecológicas locais. Como elas podem estar localizadas geograficamente tanto em terras
públicas, quanto privadas, surgem como uma alternativa aos altos custos de desapropriação
de terras para criação de áreas protegidas no território nacional, tornando-se peça
fundamental dentre os instrumentos de proteção ambiental.
Essa Lei também instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC)
que é o conjunto de unidades de conservação federais, estaduais e municipais. Categorizada
segundo o SNUC como Unidade de Conservação de Uso Sustentável, a categoria Área de
Proteção Ambiental, tem como objetivo, compatibilizar a conservação da natureza,
disciplinando o processo de ocupação e utilização dos recursos naturais de forma sustentável,
pressupondo-se, assim, o uso direto, que pode envolver o consumo, coleta ou mesmo
alteração e modificação desses recursos. A lei nº 9.985 estabelece normas para criação,
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implantação e gestão das APAs, assim como de todas as Unidades de Conservação. Sendo
esta, considerada “o espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas
jurisdicionais com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder
Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de
administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção”.
O Sistema Nacional das Unidades de Conservação (SNUC) foi concebido de forma a
potencializar o papel das unidades, de modo que sejam planejadas e administradas de forma
integrada com as demais, assegurando que amostras significativas e ecologicamente viáveis das
diferentes populações, habitats e ecossistemas estejam adequadamente representados no território
nacional e nas águas jurisdicionais. Ele é gerido pelas três esferas de governo Federal, Estadual e
Municipal. Os objetivos específicos desse sistema se diferenciam quanto à forma de proteção e
usos permitidos: aquelas que precisam de maiores cuidados, pela sua fragilidade e particularidades,
e aquelas que podem ser utilizadas de forma sustentável e conservadas ao mesmo tempo.
No SNUC são previstos critérios e normas para criação, implantação e gestão de
unidades de conservação que são classificadas segundo dois grupos e 12 categorias distintas,
são elas: I - Unidades de Proteção Integral e II - Unidades de Uso sustentável. Nas Unidades
de Conservação de Proteção Integral somente é permitido o uso indireto dos recursos
naturais; nas de Uso Sustentável admite-se o uso direto, desde que a exploração garanta a
perenidade dos recursos naturais renováveis, dos processos ecológicos, da biodiversidade e
dos demais atributos ecológicos, e seja socialmente justa e economicamente viável.
Segundo a Lei nº 9.985, cada APA possui instrumentos que orientam quanto aos seus
usos, são eles: o Plano de Manejo é um documento técnico mediante o qual, com fundamento
nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as
normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a
implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade. Esse documento deve ser
elaborado num prazo de cinco anos, a contar da data de criação da Unidade, e deve ser
aprovado, conforme o caso, em portaria do órgão executor ou em resolução do conselho
deliberativo (caso das RESEX e RDS), após prévia aprovação do órgão executor (BRASIL
2000; 2002). E o Zoneamento do Plano de Manejo é a definição de setores ou zonas em uma
unidade de conservação com objetivos de manejo e normas específicos, com o propósito de
proporcionar os meios e as condições para que todos os objetivos da unidade possam ser
alcançados de forma harmônica e eficaz.
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2. Área de Proteção Ambiental do Maracanã
A formação do povoado do Maracanã teve início entre 1875 e 1888, fazendo parte
anteriormente do Distrito de São Joaquim do Bacanga. O acesso à área era feito apenas
através do povoado Furo, atualmente, Vila Maranhão, por um igarapé do rio Bacanga,
utilizando canoas. Segundo Lima (2000) as vias de acesso para a capital eram precárias e
inviáveis, mas por ter famílias tradicionais morando no povoado, como a família do então
governador Magalhães de Almeida, foi construída a primeira estrada de acesso.
O Maracanã assim como outras áreas rurais e peri-urbanas de São Luís ainda está em
processo de ocupação. Há residências fixas de pessoas que moram no Maracanã e residências
de veraneio ou de descanso das pessoas que vão somente aos fins de semana e que moram
no eixo urbano do município. Nessa construção do espaço, a resistência na paisagem urbana
local que manteve seu caráter estritamente rural, teve suas primeiras residências construídas
de forma rudimentar feitas de palha e de pau-a-pique. Para as pessoas se deslocarem do
Maracanã para o centro da cidade era difícil por causa da deficiência no transporte. De
características tipicamente rurais, ligadas à produção de alimentos, a comunidade foi
adquirindo ao longo do tempo, feições urbanas.
O Maracanã é um bairro da zona rural de São Luís, que se caracteriza pela diversidade
de atrativos naturais, culturais e históricos. O bairro apresenta uma exuberante beleza com
presença de juçarais e outras espécies nativas. A variedade de bens naturais nela existente é
utilizada pelas famílias para o seu sustento, sendo o fruto da juçareira, o principal bem
comercializado. Outra fonte de renda e grande atrativo são as trilhas ecológicas, onde são
oferecidos passeios nos quais o visitante conhece a cultura e a história do bairro do
Maracanã, além de ter um contato direto com a natureza. Possui ricas expressões culturais,
como bumba meu boi, manifestações religiosas de origem afro-brasileira, festejos de santos
e a tradicional festa da juçara. Junto com os bairros Vila Maranhão, Vila Esperança, Vila
Sarney e Rio Grande formam a Área de Proteção Ambiental do Maracanã.
A Área de Proteção Ambiental do Maracanã encontra-se localizada na cidade de São Luís
- MA, que segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011) é uma cidade
que conta com um contingente populacional de mais de 1.000.000 de habitantes. A localização de
São Luís é estratégica, pois está na divisa das regiões Norte e Nordeste, por isso apresenta
diversidade natural como mangues, dunas, praias, rios, floresta Amazônica e floresta de Babaçu.
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A APA do Maracanã foi criada através do Decreto Estadual 12.103 de Outubro de
1991, pelo Governo do Maranhão, devido à necessidade de proteger este local da constante
ação degradante do homem para com o meio ambiente, na medida em que esta se situa
próxima ao Distrito Industrial do Maranhão, da ALUMAR (Consórcio e Alumínio do
Maranhão), e do Aterro Sanitário. Sendo assim, o governo do Maranhão percebendo a
fragilidade dessa área e a ameaça de degradação que a mesma sofria por ações antrópicas e
devido ao crescimento do Parque Industrial de São Luís foi então decretada como uma
Unidade de Conservação do tipo área de proteção ambiental.
A APA está situada próxima ao mar e é cortada por dois rios: o rio Grande e o rio
Maracanã. Esta APA está inserida na região da Amazônia Legal, possuindo fauna e flora bem
diversificadas. Sua fauna é composta por espécies de aves como juritis, rolinhas, pipiras azuis, e
peixes acará, traíra e piaba. Inserida na zona de mata de galeria, a flora é composta de várias
espécies de árvores frutíferas, leguminosas e gramíneas, além de vegetação de várzea, dando
destaque ao buriti e à juçara. A juçara possui importância muito grande para a comunidade, onde
no mês de outubro realizam a tradicional Festa da Juçara no Parque da Juçara no Maracanã.
A Festa da Juçara é realizada desde 1970 com o objetivo de comercializar o fruto
abundante no local. O Parque da Juçara é composto por cerca de 30 barracas padronizadas
onde são comercializadas comidas e bebidas. Durante o evento acontecem shows, exposição
e venda de artesanato produzido pelos moradores locais. Apesar de toda esta riqueza, tanto
de ordem natural como cultural, observa-se a ausência de uma ação efetiva por parte do
governo estadual para consolidação desta unidade de conservação, pois o seu Plano de
Manejo ainda não foi elaborado e não há entidade gestora da APA instalado no local.
A comunidade do bairro do Maracanã é de classe média baixa e no bairro é possível
encontrar ruas sem estrutura básica como água encanada, esgoto e asfalto. Uma parte da
comunidade trabalha no Distrito Industrial, por estar localizado próximo à APA e outra parte,
sobrevive da venda da juçara e do turismo.
3. Disputas pelo uso e apropriação da Apa do Maracanã
A APA do Maracanã tem reservado um importante número de recursos naturais e um
dos objetivos de sua existência é a tentativa de garantir que a sobrevivência das próximas
gerações esteja assegurada. Apesar de haver dispositivos jurídicos e um conjunto de
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procedimentos direcionados para a proteção, essas áreas de preservação, são alvos de
disputas que originam conflitos socioambientais.
Na obra, Conflitos Socioambientais Urbanos, Lima (2009) apresenta a categoria
“lugar” como válida e importante para o estudo dos conflitos, das apropriações e usos na
cidade, pois essa categoria é compreendida como condição para a realização da vida
cotidiana, com práticas sócio espaciais particulares e interpretações diversas de cidade e
meio ambiente. O lugar não é determinado tão somente pelos limites que o marcam, mas
também pelos sentimentos que um grupo atribui àquele espaço, é algo que ultrapassa o
espaço físico, sendo um emaranhado de práticas e experiências que formam um elo de
sensações entre indivíduo e lugar. Ainda nesta obra, esses conflitos socioambientais urbanos,
constituem um novo tipo de conflito social, cuja origem está ligada à apropriação do discurso
ambiental pelo Poder Público e por diversos agentes sociais como argumento para a defesa
e promoção dos interesses que se encontram em jogo.
A ação dos agentes que está impactando direta e indiretamente a APA do Maracanã pode
ser interpretada à luz da noção de campo de Bourdieu apud RITZER (1997) que é caracterizado
como o domínio de concorrência e disputa interna, onde o Estado com seus dispositivos legais
entra em confronto com a população local que utiliza o espaço para moradia, depósito de lixo,
espaço cultural, que para serem construídas fizeram uso do desmatamento. Em outras palavras,
há um espaço simbólico e real de conflito entre disposições normativas de um lado, e a esfera da
vivência concreta, de outro. Este campo pode ser considerado tanto um “campo de forças”, pois
constrange os agentes nele inseridos, quanto um “campo de lutas” no qual os agentes atuam
conforme suas posições, mantendo ou modificando sua estrutura. Todas as lutas internas ao
campo envolvem a distribuição e posse de um capital específico. A luta ocorre entre aqueles que
pretendem assumir posições e aqueles que desejam mantê-las.
A análise aqui proposta parte do princípio de que os conflitos socioambientais
decorrem das diferentes formas de representação, apropriação e uso do meio ambiente.
Trata-se de refletir sobre os conflitos socioambientais considerando a maneira como a
sociedade se produz e reproduz (LEFEBVRE, 1991). E, em se tratando da cidade, atentando
para as diferentes formas de produção, apropriação e uso do espaço urbano: suas
contradições, diversidade de interesses e diferentes percepções e projetos.
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Na APA do Maracanã, há uma mobilização da sociedade civil (engajamento coletivo)
para contestar os usos agressivos sobre os recursos naturais. Nesse contexto, organizar-se
coletivamente em defesa de interesses que afetam a qualidade de vida não é,
[...] produzir riqueza ou poder, salvação, amor, verdade, mas criar e manter uma
comunidade cujas fronteiras incluem esses domínios institucionais, que definem
“a sociedade” como tal. [...] que cria deveres coletivos apesar de assegurados os
direitos individuais, e que prevê a participação política na distribuição de bens
sociais altamente valorizados [...] (ALEXANDER, 1998, p. 27).
Com base nesse autor, a mobilização coletiva em torno de uma causa, que no caso da
APA afeta a todos, só é relevante quando a “comunidade” tem em si construído laços de
solidariedade entre os seus membros e destes com o meio físico onde estão inseridos. É
interessante notar que a ideia acima estabelece certo diálogo com a noção de “liberdade
positiva” de Domingues que a compreende como,
[...] liberdade para – é igualmente crucial ao mesmo tempo para a
construção de práticas discursivas e para o seu exercício que, supondo
indivíduos livres e iguais são capazes de atingir intersubjetivamente um
consenso moral e superior. Ou seja, a participação compartilhada em
espaços comuns é crucial para que se possa garantir uma direção à
sociedade que leve em conta as aspirações de todos e não decaia na
dominação de poucos (DOMINGUES, 2002, p. 61).
Um grupo que tenha desenvolvido laços internos de solidariedade e, ao mesmo tempo
de identificação ou pertencimento com o meio externo busca com maior empenho participar
de reivindicações e decisões que afetam os interesses comuns. As famílias do Maracanã
usam de estratégias de enfrentamento dos problemas causados implantados de
empreendimentos imobiliários que tem causado sérios danos ao meio ambiente. As famílias
lutam pela recuperação dos rios, das nascentes e pela preservação dos juçarais, condição
indispensável para a manutenção e reprodução do se modo de vida.
A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão (SEMA)
realizou uma reunião de mobilização para a criação do Conselho da Área de Proteção
Ambiental da região do Maracanã, onde qualquer pessoa da comunidade poderá participar.
A habilitação dos candidatos a membros do Conselho da Área de Proteção Ambiental do
Maracanã está condicionada ainda à participação no curso para conselheiros que será
ministrado pela SEMA. A representação da sociedade civil deve contemplar, quando couber,
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a comunidade científica e organizações não governamentais ambientalistas com atuação
comprovada na região da Unidade, população residente e do entorno, população tradicional,
proprietários de imóveis no interior da Unidade, trabalhadores, setor privado atuantes na
região e representantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica;
O resultado dessa reunião foi a efetivação da criação do primeiro Conselho Consultivo da
Área de Proteção Ambiental do Maracanã, depois de 23 anos de criação da área. A atuação dos
conselheiros será no período de 2014 a 2016, com acompanhamento permanente da Secretaria
Estadual do Meio Ambiente (SEMA). “A construção deste conselho não é fruto apenas dos
esforços do poder público. Estamos aqui como resultado de uma construção coletiva, que encontra
no Estado a acolhida para uma ferramenta de diálogo” (Benedito Castro, Superintendente de
Biodiversidades e Áreas Protegidas da Secretaria Estadual do Meio Ambiente).
No Conselho, estão profissionais e lideranças comunitárias com diferentes formações, o
que permitirá amplo debate sobre a sustentabilidade das comunidades, uso e ocupação do solo,
implantação de empresas na área, entre outras situações que impactam a APA. A ferramenta
Unidade de Conservação é muito importante e precisa de fato ser implementada, para conciliar o
desenvolvimento social, o modo de vida das pessoas e conservação da natureza e da
biodiversidade. Tal fato evidencia uma proximidade do processo de criação da APA com um dos
princípios básicos do SNUC, que é incentivar a gestão participativa e estabelecer uma nova
realidade para a conservação da natureza no Brasil com enfoque no papel da sociedade.
Compete ao Conselho da Unidade de Conservação, segundo o Decreto 4340/02:
elaborar o seu regimento interno, no prazo de noventa dias, contados da sua instalação;
acompanhar a elaboração, implementação e revisão do Plano de Manejo da Unidade de
Conservação, quando couber, garantindo o seu caráter participativo; buscar a integração da
Unidade de Conservação com as demais Unidades e espaços territoriais especialmente
protegidos e com o seu entorno; avaliar o orçamento da Unidade e o relatório financeiro
anual elaborado pelo órgão executor em relação aos objetivos da Unidade de Conservação;
manifestar-se sobre obra ou atividade potencialmente causadora de impacto na Unidade de
Conservação, em sua zona de amortecimento, Mosaicos ou corredores ecológicos; Propor
diretrizes e ações para compatibilizar, integrar e otimizar a relação com a população do
entorno ou do interior da Unidade, conforme o caso.
Voltando aos elementos mais relevantes observados na APA do Maracanã, dá-se especial
atenção à criminalidade (violência) que é exercida por indivíduos oriundos do espaço ocupado
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dentro da APA. No que tange as ações na APA, tem-se somente uma fiscalização bimestral
realizada pelo Batalhão de Polícia Ambiental. Desse modo, percebe-se um verdadeiro
descompasso entre os objetivos do decreto de criação da APA e os instrumentos e ações que
versem para não comprometimento da UC, frente à forte pressão exercida pela urbanização de São
Luís. Compreende-se que essa variável pode estar relacionada com a noção ambígua de
comunidade que é empregada pelos próprios moradores já que esse termo poderia indicar um
compartilhamento fraterno no sentido em que emprega Bauman, ou seja,
[...] reafirmando o direito de todos há um seguro comunitário contra os
erros e desventuras que são os riscos inseparáveis da vida individual. Em
suma, o que os indivíduos de jure, mas decididamente não de facto,
provavelmente veem na comunidade é uma garantia de certeza, segurança
e proteção – as três qualidades que mais lhe fazem falta nos afazeres da
vida e que não podem obter quando isolados e dependendo dos recursos
escassos de que dispõe em privado [...] (BAUMAN, 2003, p. 66).
A escassez por parte do Estado de ações que favoreçam segurança aos moradores da área
traz como exigência a vigilância do espaço pelos próprios indivíduos. Estes são constantemente
interpelados pelas circunstâncias a compartilharem dessa responsabilidade informando sobre
qualquer irregularidade observada dentro da área de proteção ambiental. Para que houvesse uma
ação comprometida com as necessidades referentes à conservação dos recursos naturais e
segurança pública é imprescindível uma interação dos agentes, neste caso, moradores locais e
usuários com vista a uma ação comunicativa, levando em conta as ideias de Habermas apud
RITZER (1997), o que quer dizer que, população local e Estado devem agir de forma dialogada,
inicialmente para a compreensão da importância da proteção dos recursos naturais disponíveis e
de outros aspectos, como segurança pública e, em seguida para o planejamento de atividades
interventoras que possibilitem a organização político comunitária e educação ambiental. Isso
pressupõe ações coordenadas pela via do entendimento interpessoal.
Atualmente, opera-se na sociedade consequências do chamado “capitalismo tardio”
que faz da natureza alvo constante do processo de acumulação do capital alimentando
estruturas que refletem na imagem que os indivíduos têm sobre o espaço, o elemento cultural
que em Jamerson, citado por Kumar (1997) “apega-se quase que demais à pele do econômico”.
A degradação ambiental surge desta forma, como um efeito da crise da civilização
moderna. Isso se deve, em grande parte, a concepção restrita da natureza enquanto fonte de
matérias-primas. Leff (2006), ao analisar e identificar as propostas para um legítimo
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desenvolvimento sustentável sustenta que é necessário sobrepor à racionalidade econômica
dominante uma nova ordem de ideias, enfim, uma racionalidade ambiental que congrega
alguns pressupostos fundamentais, tais como: o reconhecimento da diversidade cultural, a
democracia e gestão participativa, uma nova racionalidade produtiva e o consumo consciente.
Uma das maiores preocupações do novo século está na exploração dos recursos
ambientais. Se por um lado há consenso quanto à necessidade urgente de preservação destes
recursos, por outro há um número cada vez maior de conflitos sociais relacionados aos
modos de exploração e preservação dos mesmos recursos. O Brasil tem apresentado,
especialmente nas últimas décadas, vários exemplos destes conflitos, que transcendem as
questões de direito de uso e propriedade e têm como base questões sociais profundas.
A degradação da qualidade ambiental em decorrência de condutas e atividades
lesivas ao meio ambiente natural remanescente e cultural (construído) torna-se cada vez mais
presente e visível no cotidiano da APA do Maracanã, exposta a toda sorte de impactos e
agressões, advindos principalmente da intensa concentração populacional do entorno e do
contínuo processo de urbanização e industrialização.
Há mudanças nas formas de uso e ocupação dos solos da área em questão, representada
pela intensificação na construção de moradias e de alojamentos de empresas que tem obras em
execução no entorno da unidade de conservação. Isso se justifica porque nos últimos cinco anos,
houve um crescimento industrial sem precedentes em São Luís e a maior parte dos
empreendimentos tem se assentado nas zonas de amortecimento da APA do Maracanã ou mesmo
dentro dela. Essa zona de amortecimento se configura como “o entorno de uma unidade de
conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o
propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade” (Art. 2o, XVIII da Lei do SNUC).
Essa especulação imobiliária é devido à forte pressão exercida pela urbanização
onde o município de São Luís está inserido. Devido a tantas construções de
empreendimentos nas circunvizinhanças da área, isso se constitui em uma ameaça
ambiental para essa Unidade de Conservação. Por outro lado, a implantação de indústrias
tem atraído um grande contingente populacional para estas áreas e, como consequência,
tem ocorrido desmatamento, aterros de vales, a abertura de jazidas de areia para construção
de moradia e de instalações industriais, além do aumento de conflitos de natureza
ambiental, sendo possível encontrar também, diversos tipos de cobertura vegetal e de uso
do solo, como áreas urbanizadas, área de solos expostos, vegetação degradada.
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Diante das transformações ambientais observadas no entorno e dentro da APA do
Maracanã, configuradas em função de pressões geradas pela industrialização e urbanização,
graves problemas ambientais tem se estabelecido na zona rural, onde vários povoados
convivem permanentemente com a ameaça à reprodução de seu modo de vida, devido às
condições existentes para a instauração de novos empreendimentos industriais. Além disso,
há um interesse especulativo pela área dessa unidade de conservação que se deve a
proximidade com regiões de crescimento urbano e industrial, a exemplo do Distrito
Industrial e da Rodovia Federal (BR-135) que está sendo duplicada, e isto pode ser
observado como parte do processo de uso desse espaço que se não for ajustado à ideia de
conservação que permeia a manutenção da APA, se tornará uma forte ameaça a este espaço
de preciosidades naturais, porque essas construções de indústrias e moradias ao redor da
APA facilitam o acesso ao uso e ocupação dessa área (OLIVEIRA, 2001).
Conclusões
Notáveis modificações foram verificadas na paisagem da APA do Maracanã em
decorrência da relação homem e meio ambiente. A qualidade ambiental está ligada com
indivíduos externos através de problemas como, desmatamentos, assoreamentos,
contaminação dos rios, urbanização. Considerando a importância da preservação das UC’s,
ao se analisar com cuidado o tratamento que estas áreas têm recebido em São Luís, percebese que há a necessidade de melhor fiscalização por parte do órgão responsável, a Secretaria
Estadual de Meio Ambiente. Para tanto é necessário, principalmente, vontade política e
compromisso com a questão ambiental. É notório que para a viabilização de obras e
construções, muitas vezes, as leis ambientais são flexibilizadas.
É perceptível que as áreas de proteção ambiental sofrem forte influência das pressões
advindas da urbanização que a cidade de São Luís vem sofrendo nas últimas décadas,
principalmente após instalação de indústrias que trouxeram consigo uma grande supressão e
degradação dos elementos naturais e sistemas ambientais que compõem a cidade, e
consequentemente impactos de ordem negativa, como por exemplo, devastação de grandes
áreas para construção civil a para implantação desses empreendimentos.
A questão da construção em curso de empreendimentos imobiliários dentro da APA
do Maracanã traz à tona o latente conflito entre a ordem do discurso que afirma o direito ao
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meio ambiente saudável como essencial a preservação da vida humana e o conteúdo das
práticas do próprio Estado e de outros agentes que impactam diretamente os ecossistemas
presentes no local. A área de proteção ambiental do Maracanã é importante para a
comunidade e por ser uma área protegida poderia ser evitada a depredação da flora, tais
como as árvores frutíferas que tem importância para a economia local como os juçarais, pois
muitos moradores vivem da venda dos derivados desta fruta.
A análise dos processos de uso das Áreas de Proteção Ambiental nos possibilitou
observar que em muitos casos, não obedecem aos instrumentos legais, o que sinaliza a
necessidade de uma intensificação na fiscalização e de sensibilização da comunidade,
através de palestras e campanhas e processos de educação ambiental.
As APAs apresentam diversos entraves para a sua efetiva missão de disciplinar
o uso e ocupação dos seus solos de forma sustentável e, com isso, inúmeras práticas podem
causar o desequilíbrio ecológico dessas áreas e a consequente perda da qualidade ambiental
desses ambientes, além de prejudicar a relação da unidade com as comunidades locais.
O que se vê na APA do Maracanã é uma degradação dos recursos naturais por
parte da comunidade e do governo, ambos por permitirem ações de impacto como poluição
dos rios e mangues. Houve uma redução significativa da vegetação original da região, a
comunidade tem passado por constantes ataques, com a chegada de grandes
empreendimentos, além das disputas territoriais dentro da área do Maracanã. Por isso, a
necessidade de elaboração e implementação de plano de manejo, a recuperação de áreas
degradadas e a revitalização dos recursos hídricos.
Isso permite relatar que a APA do Maracanã vem desde a sua fundação até os dias
atuais, sofrendo profundas modificações no seu espaço rural e que se estas não forem planejadas e
controladas pelo Poder Público, a tendência é que haja um agravamento dos impactos
socioambientais existentes na área de estudo. Fica evidente, como em todo espaço rural, que sem a
intervenção de um planejamento eficaz e eficiente, a questão da segregação e exclusão socioespacial
e os caminhos da degradação ambiental, tende a continuar crescendo e se perpetuando.
Referências
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ESTUDOS DE IMPACTO AMBIENTAL E A TÉCNICA DE NEGAR A POLÍTICA
Natália Morais Gaspar
UFJF
Resumo: O processo de licenciamento ambiental tem-se constituído em importante instância de gestão
dos conflitos socioambientais deflagrados pela instalação e operação de grandes empreendimentos ou
atividades potencialmente poluidoras no Brasil. No âmbito deste processo, os Estudos de Impacto
Ambiental (EIA) constituem ferramenta importante para consolidar determinada alocação de recursos
entre atores sociais conflitantes, mediante a definição dos “impactos” e dos “impactados” pelo
empreendimento e das diretrizes para medidas compensatórias ou mitigadoras. Neste trabalho, procuro
demonstrar como e porque os Estudos de Impacto Ambiental de grandes empreendimentos no Brasil
contribuem para afirmar a viabilidade ambiental destas grandes obras, a despeito de seus efeitos
socioambientais negativos. Para tanto, analiso as condições em que são realizados levantamentos de dados
para os diagnósticos socioambientais e o tratamento que estes dados recebem na etapa de avaliação de
impacto ambiental. Defendo que o tratamento matemático dos efeitos das transformações associadas à
implantação de um empreendimento confere um caráter técnico e uma aparência de “objetividade” a
tomadas de decisão – sobre a realização ou não do empreendimento, sobre a sua localização entre outras
possíveis, sobre a forma como será implantado – que são de ordem política.
Palavras-chave: licenciamento ambiental; estudo de impacto ambiental; grandes empreendimentos.
Abstract: The environmental licensing process has become an important instance for the
management of environmental conflicts triggered by the installation and operation of large
enterprises or potentially polluting activities in Brazil. Under this procedure, the Environmental
Impact Studies (EIA) are an important tool to consolidate certain allocation of resources among
competing stakeholders by defining the “impact” and “impacted” by the project and guidelines for
compensatory or mitigation measures. In this paper, I try to show how and why environmental impact
studies of major projects in Brazil contribute to affirm the environmental viability of these big
projects, despite its negative social and environmental effects. To this end, I analyze the conditions
under which data collections are carried out for environmental diagnostics and the treatment it
receives in the environmental impact assessment stage. I argue that the mathematical treatment
effects of changes associated with the implementation of a project provides a technical character and
appearance of “objectivity” to decision making (on completion of the project or not, on their location
among other possible, about how it will be deployed) which are political.
Keywords: environmental licensing; environmental impact study; large enterprises.
Introdução
O Brasil tem atravessado um período de intenso crescimento econômico, alicerçado
em investimentos vultosos direcionados a grandes empreendimentos no setor de
infraestrutura, nas cadeias produtivas do petróleo e da mineração e no agronegócio, boa parte
deles com financiamento público, através principalmente do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
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A instalação e a operação destes grandes empreendimentos, de uma forma geral grandes
consumidores de água e de outros recursos naturais e transformadores da paisagem e do ambiente,
associa-se à eclosão de conflitos socioambientais. De acordo com Acselrad (2004), esta eclosão
deve ser analisada enquanto dinâmica conflitiva própria do modelo de desenvolvimento em curso
e constitui uma das formas encontradas por organizações e grupos para contestar a distribuição de
poder sobre o território e seus recursos. A denúncia da prevalência da “desigualdade ambiental”
traz à tona a maneira pela qual os custos ambientais são transferidos para grupos de menor renda
e menos capazes de se fazer ouvir nas esferas de decisão (p. 21).
Nestes conflitos socioambientais, é recorrente que, diante de questionamentos e
queixas de populações atingidas pelos empreendimentos, organizadas ou não, o argumento
apresentado pelo “empreendedor”1 seja o de estar em dia com as licenças ambientais. Ora,
que licenças são estas que estão em dia mesmo quando são inundadas cidades e povoados
próximos aos rios onde se fizeram grandes barragens, quando há poeira metálica adoecendo
populações que vivem perto de siderúrgicas, quando pescadores artesanais têm de lidar com
o afugentamento do pescado por pesquisas sísmicas para prospecção de petróleo no mar?
Neste trabalho, procuro contribuir para demonstrar como os Estudos de Impacto
Ambiental (EIA) – peças técnicas importantes dentro do processo de licenciamento
ambiental de grandes empreendimentos no Brasil, por definirem “impactos” e “impactados”
– de uma maneira geral afirmam a viabilidade ambiental destas grandes obras, a despeito de
seus efeitos socioambientais negativos. Argumento que estes documentos seguem padrões
de origem internacional alinhados à retórica do desenvolvimento, que fomenta meios de
conceber a vida social como um problema técnico, como uma questão de decisões racionais
e administrativas que devem ser confiadas a especialistas.
Para tanto, analiso partes de EIAs que reúnem informações sobre populações humanas
– denominadas, nestes estudos, de “meio antrópico” ou “meio socioeconômico” –, bem como
a utilização das informações deste tipo em outra parte dos EIAs, a Avaliação de Impacto
Ambiental (AIA), que costuma apresentar uma relação de todos os ditos “impactos” dos
empreendimentos, classificados hierarquicamente segundo o valor atribuído a cada um deles
– geralmente expostos numa tabela ou similar, denominada Matriz de Análise de Impacto.
Defendo que as informações sobre a população humana das regiões afetadas por grandes
Adoto aqui o termo “empreendedor” no mesmo sentido empregado por Bronz , como o representante do
empreendimento nos procedimentos de licenciamento ambiental – “categoria que inclui os funcionários que se
apresentam como porta-vozes das empresas nos eventos de licenciamento” (Bronz, 2014, p. 223).
1
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empreendimentos, sistematizadas por profissionais das ciências humanas, ao serem
apropriadas pelas metodologias criadas para analisar conjuntamente todos os “impactos” de
um empreendimento e consolidadas num constructo técnico – a Matriz de Análise de Impacto
– perdem parte da sua eficácia ao serem submetidas a procedimentos de classificação e
quantificação que negligenciam tanto valores intangíveis quanto elementos materiais que não
são captados pelos mecanismos convencionais de quantificação da produção ou dos recursos.
O efeito é o subdimensionamento das consequências nocivas dos empreendimentos. Mais do
que isso, as avaliações de impacto apresentadas pelos EIAs conferem um caráter de
previsibilidade às consequências dos grandes empreendimentos e transmitem a ideia de que é
possível haver controle técnico sobre as mesmas.
Mesmo que, com o passar dos anos, os mais perceptíveis e indiscutíveis efeitos
negativos dos empreendimentos se façam sentir, negando as previsões e valorações contidas
nos EIAs, estes estudos cumprem o seu papel, que é o de conferir respaldo técnico para a
implementação de grandes transformações socioambientais que beneficiam certos setores da
sociedade em detrimento de outros, menos privilegiados.
Estudos sobre a implantação de projetos de desenvolvimento na África demonstram
como, entre outros efeitos, esses projetos esmagam ameaças políticas ao sistema ao tratar de
questões agrárias, de recursos ou empregos como problemas técnicos, passíveis de sofrer
intervenções técnicas (Ferguson 1994). Os Estudos de Impacto Ambiental parecem operar
do mesmo modo, transformando decisões políticas em problemas técnicos, passíveis de
serem geridos por especialistas, em análises que reconhecem boa parte dos efeitos negativos
de um empreendimento, assimilam-nos em uma classificação e atribuem-lhes valores,
tratando as populações prejudicadas pela sua instalação como fatores em um cálculo que
torna tudo equacionável e gerenciável.
Desse modo, os EIAs fornecem, corroboram e consolidam práticas discursivas nas
quais pode se expressar uma perspectiva de conciliação entre os agentes econômicos e
governamentais interessados na instalação de grandes empreendimentos e as populações
prejudicadas por seus efeitos socioambientais negativos. Assim como ocorre com os projetos
desenvolvidos no âmbito do sistema da cooperação internacional, estudados por David
Mosse (2006, p. 940), o sucesso dos Estudos de Impacto Ambiental provém de sua
capacidade de impor sua crescente coerência sobre aqueles que os questionam ou se opõem
a eles, o que independe de seu sucesso em prever e equacionar “impactos”.
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1. Inserção no campo de pesquisa e notas metodológicas
Este trabalho constitui um esforço no sentido de analisar parte das minhas próprias
experiências em empresas de consultoria ambiental no Brasil, entre 2006 e 2014. Estive
envolvida na realização de estudos e atividades do licenciamento ambiental de
empreendimentos como rodovias, linhas de transmissão e subestações de energia elétrica,
portos e atividades petrolíferas – ora como “consultora externa” de diferentes empresas,
geralmente contratada para uma tarefa específica dentro de um estudo maior; ora como
funcionária
“técnica
em
socioeconomia”,
atuando
em
diferentes
“projetos”
simultaneamente, nas suas variadas etapas, tanto em empresas grandes quanto em pequenas
empresas. Neste ínterim, compartilhei também experiências e impressões de outros
profissionais que atuam no mesmo campo. Trata-se, portanto, de uma observação em
primeira mão da elaboração de estudos ambientais, ora mais “observação” e ora mais
“participante”, a partir de minha própria atuação profissional.
Este trabalho baseia-se nas minhas memórias a partir da vivência no licenciamento
ambiental (Gaspar, 2015 “a” e “b”), por vezes atualizadas por conversas frequentes com excolegas de trabalho e em documentos produzidos no âmbito do licenciamento, especialmente
Estudos de Impacto Ambiental (EIAs).
Quanto a estes últimos, cabe ressaltar tratar-se de documentos que dialogam com
outros documentos – seja seguindo uma padronização de outros estudos da mesma empresa,
seja seguindo estilos convencionados em outros estudos do mesmo gênero, seja obedecendo
a critérios normativos estabelecidos pelos órgãos governamentais competentes e pela
legislação sobre o tema.
Os estudos das práticas de poder, que reúnem reflexões etnográficas entre burocratas,
elites e corporações, propõem repensar o lugar que a observação participante adquiriu como
abordagem de pesquisa privilegiada para a antropologia. As reflexões de antropólogos a partir
de suas (nem tão) novas possibilidades de inserção profissional para além da universidade –
em órgãos governamentais, organizações não governamentais e em empresas – contribuem
para pensar o fazer etnográfico em contextos de forte polarização ou assimetria, pautando-se
criticamente não apenas na observação participante, mas também no tratamento de
documentos, tão importantes para a pesquisa antropológica em sociedades em que a escrita é
instrumento de poder e segregação (Castilho; Souza Lima; Teixeira, 2014, p. 11).
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2. O Licenciamento Ambiental no Brasil e os Estudos de Impacto Ambiental
A construção dos instrumentos de licenciamento ambiental brasileiro deve ser
entendida em um contexto mais amplo, que envolve a atenção de empresas e Estados à
questão global da preservação do meio ambiente, através da criação de instituições,
mecanismos e procedimentos específicos.
Leite Lopes (2004) analisa “ambientalização”, processo pelo qual a questão da preservação
do meio ambiente se tornou uma questão pública e global, a partir principalmente da Declaração das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, elaborada na Suécia (1972), e da realização da Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável no Rio de Janeiro (Eco92). Além de provocar transformações nas políticas públicas e no comportamento das pessoas, o
fenômeno da “ambientalização” resulta na configuração de uma nova ordem empresarial que
incorpora a crítica ambientalista e o discurso da “participação” às ideologias do “desenvolvimento”.
Entre as transformações, estão a criação de instituições, leis e critérios para tratar da questão
ambiental. A política ambiental brasileira, e dentro dela os procedimentos preventivos nos quais está
incluído o licenciamento ambiental, estão associados a este feixe de transformações.
As Avaliações de Impacto Ambiental (AIA) são hoje aplicadas em diversas áreas do mundo.
Segundo Bronz, “o licenciamento ambiental, tal como é desenvolvido no Brasil, é uma adaptação
dos modelos desenvolvidos internacionalmente, que se tornaram requisitos para os investimentos de
capitais estrangeiros e nacionais mobilizados para a construção de grandes empreendimentos no
país” (Bronz, 2011, p. 23). Egler (2001 apud Bronz, 2011, p. 35) associa o surgimento destes
instrumentos ao Ato da Política Nacional para o Meio Ambiente (The National Environmental
Policy Act - NEPA), aprovado pelo congresso estadunidense em finais de 1969 e que estabelece as
linhas gerais da política nacional de meio ambiente norte-americana. Basso & Verdum associam este
surgimento também à Loi relative à la Protection de la Nature, desenvolvida na França em 1976
(Basso; Verdum, 2006). No caso brasileiro, os autores relacionam a implantação destes instrumentos
principalmente à pressão do Banco Mundial, mais importante financiador de empreendimentos tais
como projetos rodoviários e assentamentos rurais nas décadas de 1970 e 1980.
No Brasil, o licenciamento ambiental e a avaliação de impacto ambiental situam-se entre
os instrumentos preventivos desenvolvidos com vistas à implantação dos objetivos da Política
Nacional de Meio Ambiente, institucionalizada em 31 de agosto de 1981. Ao contrário do que
acontece nos Estados Unidos, onde é a agência governamental encarregada da tomada de decisões
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que deve proceder a avaliação de impactos, aplicada tanto a propostas públicas federais quanto a
decisões do governo sobre iniciativas privadas (Sánchez, 2008, p. 51), no Brasil, as avaliações de
impacto são realizadas por empresas privadas especializadas, contratadas pelo “empreendedor”, e
os estudos são submetidos à avaliação do órgão ambiental governamental. De acordo com
Mazurec, a rigor, a viabilidade ambiental de um empreendimento é “testada” através da Avaliação
de Impacto Ambiental - AIA de um empreendimento ou atividade potencialmente poluidora. Esta
avaliação é feita por meio de “estudos de impacto ambiental” - EIA2 (Mazurec, 2012, p. 91).
3. Os estudos do “meio socioeconômico” e as Avaliações de Impacto Ambiental
Os EIAs geralmente são elaborados por empresas de consultoria ambiental,
contratadas pela empresa ou consórcio de empresas proprietárias do empreendimento. Estes
estudos devem ser entregues ao órgão ambiental licenciador (que pode ser federal, estadual
ou municipal3), que em tese analisa os estudos para atestar ou não sua “viabilidade
ambiental” e estabelecer condições para a sua realização – as chamadas “condicionantes” –
que minimizem os chamados “impactos negativos” da atividade. A elaboração destes
estudos e seu encaminhamento ao órgão ambiental competente constituem apenas uma etapa
do processo de licenciamento ambiental de um empreendimento ou atividade – etapa
decisiva que contribui para a definição dos segmentos populacionais considerados
“impactados”, que serão alvo de medidas compensatórias ou mitigadoras4.
De acordo com Bronz (2011), a realização do EIA depende das seguintes atividades:
(1) diagnóstico ambiental que caracteriza a situação da área de influência do projeto antes
de sua implantação, considerados os meios físico, biológico e socioeconômico; (2) análise
dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão
da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes; “(3)
definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, avaliada a eficiência de cada
uma destas; (4) elaboração do programa de e monitoramento dos impactos” (p. 37).
É na atividade de número 1, o “diagnóstico ambiental”, que a maior parte dos
profissionais das Ciências Sociais envolvidos na realização de EIAs costuma atuar. O
2
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) foram estabelecidos pela
Resolução CONAMA n° 01/1986.
3
A Resolução no 237/97 do Conama, em seu artigo 6º, transfere para o Poder Municipal licenciamento
ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local.
4
Para uma compreensão do processo de licenciamento ambiental como um todo, ver Bronz, 2011, pp. 34-46.
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diagnóstico ambiental é subdivido em: meio físico, meio biótico e meio socioeconômico.
“Esta divisão supõe a existência de três tipos de saberes distintos sobre o meio ambiente,
que seguem interpretações epistemológicas diferenciadas” (Bronz, 2011, p. 37).
É recorrente nas reflexões acadêmicas de antropólogos ou cientistas sociais a respeito do
campo do licenciamento ambiental, geralmente elaboradas a partir de suas próprias experiências
profissionais, o quanto a participação de profissionais das ciências humanas é recente nestes
estudos, e como seu papel vem crescendo paulatinamente, embora permaneça frequentemente
subjugado ao valor básico da predominância da preservação de ecossistemas naturais.
Primeiramente, o assim chamado “meio socioeconômico” era analisado com base somente
em dados secundários, obtidos em órgãos governamentais, tais como Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Com o
crescimento da pressão da organização das populações atingidas pelos grandes empreendimentos,
foi-se consolidando a necessidade de profissionais que fossem “a campo” colher informações mais
refinadas sobre as populações das regiões onde se instalam tais empreendimentos em escala
municipal. Soma-se a pressão das instituições multilaterais financiadoras que cobram o
envolvimento “participativo” das populações atingidas, geralmente posto em andamento a partir
da etapa da Audiência Pública, posterior à elaboração do EIA no processo de licenciamento, mas
para o qual podem contribuir as informações primárias colhidas no estudo a respeito destes
segmentos populacionais pelos pesquisadores contratados.
O espaço conferido aos profissionais das ciências humanas na elaboração dos
estudos ambientais pode ser considerado análogo ao lugar das questões sociais no
licenciamento. Bronz (2011) identifica uma “supremacia da preservação dos ecossistemas
naturais como um valor básico nos instrumentos da política ambiental que regulam a
construção de plantas de grandes empreendimentos”, embora verifique um aumento da
“importância dada aos efeitos sociais ao menos nos discursos dos gestores e dos
empresários” (p. 32). Basso & Verdum (2006) ressaltam o menor nível de detalhamento
exigido pelos órgãos licenciadores com relação ao “meio socioeconômico” de muitos dos
EIAs, além de apontar a frequente ausência de profissionais especializados para analisar este
“componente” dos estudos, tanto nas empresas de consultoria que os elaboram quanto nos
órgãos governamentais encarregados de analisá-los.
O tipo de informação que a empresa de consultoria espera que o profissional traga de
campo varia segundo o tipo de empreendimento a ser licenciado. Em todos os casos, é
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preciso registrar “evidências” da presença dos profissionais nos locais percorridos – o
mínimo é que sejam feitas fotografias dos lugares e pessoas visitados; cada lugar fotografado
e descrito também costuma ser registrado com uma marcação no aparelho de GPS. Estas
“evidências” poderão ser usadas posteriormente para provar a realização de estudos in loco,
em caso, por exemplo, de questionamento do EIA em uma situação de Audiência Pública.
Em trabalhos anteriores, demonstrei como os trabalhos de campo são organizados
pelas empresas de consultoria de modo a atender os estreitos prazos de elaboração dos
estudos e ainda apresentar custos os menores possíveis. De uma forma geral, os dados
primários são coletados apenas para a região considerada diretamente afetada pelo
empreendimento, chamada de Área de Influência Direta (AID).
A partir de um roteiro padrão que salienta algumas informações indispensáveis (que pode
ou não se apresentar sob a forma de um questionário semi-aberto), geralmente uma equipe pequena
dirigindo um automóvel, percorre os municípios e localidades, entrevistando por uma hora no
máximo lideranças locais e indivíduos que são tomados como representativos de um “tipo humano”
a ser “impactado” pelo empreendimento em questão – por exemplo, pescadores artesanais, no caso
de exploração de petróleo offshore (Gaspar, 2015a, p. 8), e pequenos produtores agrícolas ou
moradores, no caso de linhas de transmissão de energia (Gaspar, 2015b, p. 9-10). O critério para
encontrar estes indivíduos é aleatório, uma vez que se tratam das pessoas que se encontravam no
local quando a equipe lá esteve, nas campanhas de campo que podem durar até trinta dias, cobrindo
distâncias de centenas de quilômetros e visitando às vezes centenas de localidades – durante as quais
a equipe não costuma pernoitar duas noites seguidas em um mesmo lugar.
Cabe observar, ainda, que os trabalhos de campo para “diagnóstico de AID” são
frequentemente realizados por profissionais free lancer, contratados especificamente para
aquele trabalho. Estes profissionais externos recebem geralmente um treinamento de um dia:
metade destinada a normas de segurança, especialmente nas estradas, e às vezes primeiros
socorros; e metade destinada a receber uma explicação sobre o empreendimento (uma
exposição em powerpoint) e sobre o tipo de informações que devem ser coletadas,
principalmente aquelas contidas no questionário5.
Os trabalhos de campo para “diagnóstico” de Área de Influência Direta (AID) de diferentes empreendimentos
constituem um importante “bico” para estudantes de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais, em meio
às incertezas de processos seletivos, acesso a bolsas de pesquisa e outros percalços da dita vida acadêmica.
Trata-se de um perfil diferente daqueles profissionais de Ciências Humanas e Sociais que se tornam
funcionários efetivos das empresas de consultoria, geralmente marcados por trajetórias menos privilegiadas e
pela necessidade de se fixar no “mercado de trabalho”. Entre estes, são frequentes as aspirações de retomar
seus estudos, embora nem sempre concretizadas.
5
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Ou seja, considerando o suposto objetivo de avaliar efeitos negativos de um
empreendimento sobre determinados segmentos da população considerados mais diretamente
“impactados”, o tempo destinado ao trabalho de campo é exíguo e os profissionais que o realizam
dificilmente têm eles próprios conhecimentos a respeito da totalidade de ações e medidas que serão
efetivadas para a implantação e operação do empreendimento.
No entanto, para além do “diagnóstico socioeconômico” da AID, é em outra parte do
EIA que ocorre a maior parte do subdimensionamento dos efeitos socioambientais negativos
de um empreendimento ou atividade. Mesmo quando o “diagnóstico” dá conta de identificar
os trechos de localidades ou os grupos aos quais determinados “impactos” serão mais
prejudiciais, graças ao empenho de profissionais realizando este trabalho nas condições
adversas descritas anteriormente, mas cientes de suas responsabilidades, é na Avaliação de
Impacto Ambiental (AIA) que os efeitos nocivos de um empreendimento, mesmo que
devidamente identificados, reconhecidos e até mesmo mensurados no “diagnóstico”,
parecem ser mais fortemente subdimensionados. Alguns fatores contribuem para isto.
Primeiramente, é possível observar a decomposição do “impacto” em uma série de
atributos – tais como “magnitude”, “probabilidade”, “relevância”, “intensidade”, “abrangência”,
“cumulatividade”, etc. A decomposição do “impacto” em “atributos” termina por relativizar sua
importância, obliterando a percepção dos danos que serão causados a determinadas pessoas ou
grupos sob o ponto de vista dessas próprias pessoas, que terão suas vidas alteradas negativamente.
Por exemplo, em um Estudo de Impacto Ambiental para licenciamento de uma Linha de
Transmissão (LT) de energia que percorrerá quatro unidades da federação no Nordeste do
Brasil6, a Avaliação de Impacto arrola o “impacto” denominado “perda de áreas produtivas e
benfeitorias”. A AIA admite que a dimensão e a intensidade deste “impacto” variam “em função
da relação entre o tamanho da propriedade e a extensão da Faixa de Servidão determinada”
(Ecology Brasil, 2013, item 9, p. 123). Ou seja, sabe-se que o efeito das “restrições se uso” será
pior para pequenos produtores, pois a área ocupada pela Faixa de Servidão da LT pode tomar
uma proporção maior de sua área produtiva. Além disso, o estudo admite que a situação é
agravada pelo fato de que qualquer tipo de ressarcimento ou indenização é destinado ao
proprietário – deixando desassistidos posseiros, meeiros, parceiros, agregados, ou trabalhadores
6
Estudo de Impacto Ambiental da Linha de Transmissão 500kV Miracema-Sapeaçu e Subestações Associadas.
Disponível em: <http://licenciamento.ibama.gov.br/Linha%20de%20Transmissao/LT%20500%20kV%20MiracemaSapea%C3%A7u/Estudo%20de%20Impacto%20Ambiental%20-%20EIA>
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em condições semelhantes a estas. Para subsidiar a análise deste “impacto”, encontram-se muitas
informações no capítulo elaborado pela equipe de “socioeconomia”.
O “diagnóstico” identifica várias áreas onde predomina a pequena produção: sobre o
trecho inicial da LT, no estado do Tocantins – “As relações familiares são significativas na
organização territorial da ocupação, uma vez que as terras de pequenos proprietários rurais
são divididas entre as famílias, que acabam por configurar pequenos núcleos de povoamento
rural” (Ecology Brasil, 2013, item 6.4.2.8.2.3, p. 4); a respeito de outro trecho no traçado da
LT – no “povoado Calaboca [município de Monte Alegre do Piauí], distante 1.429 metros
do traçado, residem 40 famílias que vivem da agricultura de subsistência” (Ecology Brasil,
2013, item 6.4.2.8.2.3, p. 25); e assim por diante.
Na AIA, ao “impacto” “perda de áreas produtivas e benfeitorias”, é atribuída uma “relevância”
de -31%. A avaliação deste impacto na fase de operação do empreendimento é a seguinte:
Adversidade de caráter Negativo, este impacto tem forma e tempo de
incidência Direta e Curto. Se estendendo pela abrangência Local, apresenta
caráter Permanente e Probabilidade Certa, o que compõe um quadro de
Grande Significância. Para a composição da Importância, classificada em
Média, apresenta-se como Não Cumulativo, Reversível e Indutor, tendo
ainda Presença de sinergia, e Média Magnitude. Em resumo, sua
Relevância no Cenário de Sucessão é Pequena, conferido por um valor de
-31% (Ecology Brasil, 2013, p. 237).
Cabe notar que, por mais que se leia detalhadamente a distinção entre cada um destes
“atributos” dos “impactos” e as justificativas para suas valorações, quando se passa da
descrição dos fenômenos à sua valoração numérica, salta aos olhos o caráter sempre
arbitrário, e por vezes aleatório, desta atribuição. Este caráter aleatório da valoração
numérica torna-se ainda mais evidente na comparação entre as avaliações de impacto
ambiental de diferentes EIAs, que dão a impressão de apresentar cada uma o seu critério,
como fruto da formulação de cada técnico que a elaborou7.
O que um cálculo como este torna possível? Entre outras coisas, que um estudo
pormenorizado atente para os efeitos da perda de áreas produtivas para pequenos produtores,
inclusive mencionando a difícil situação dos produtores que não são proprietários das terras
7
Para uma explicação mais detalhada dos cálculos e da lógica das Avaliações de Impacto Ambiental, ver
Gaspar, 2015b.
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que cultivam, sem no entanto conferir-lhe valor compatível com os efeitos da “perda de áreas
produtivas” sob o ponto de vista de pequenos produtores.
Não se trata, aqui, de questionar fórmulas ou o peso numérico atribuído a cada um
dos “atributos” do “impacto” considerados. Defendo que o tratamento matemático dos
efeitos das transformações associadas à implantação de um empreendimento confere um
caráter técnico e uma aparência de “objetividade” a tomadas de decisão – sobre a realização
ou não do empreendimento, sobre a sua localização entre outras possíveis, sobre a forma
como será implantado – que são de ordem política. No caso do “impacto” considerado, tratase de optar entre implantar ou não uma linha de transmissão que inviabilizará ou prejudicará
pequenos produtores, muitos deles em condições de posse da terra que não darão margem a
qualquer tipo de ressarcimento; entre, optando-se por construir a LT naquele local, criar ou
não um critério de indenização que considere as especificidades da pequena produção ou
que prime por salvaguardar os direitos dos mais pobres; e assim por diante.
A busca por conferir uma roupagem de “objetividade” ao tratamento dos efeitos da linha
de transmissão também contribui para obliterar todas as dificuldades imprevistas que surgem
durante a construção e operação de grandes empreendimentos, incluindo todas as transações entre
elementos humanos e não-humanos envolvidos na construção e operação de uma linha de
transmissão que percorre quatro estados brasileiros, no mínimo três diferentes ecossistemas, mais
de uma centena de povoados, alguns núcleos urbanos e comunidades quilombolas.
Uma das principais contribuições de cada EIA que é elaborado para a consolidação
da avaliação de impacto ambiental como ferramenta para comprovar tecnicamente a
“viabilidade ambiental” de empreendimentos que trazem consigo efeitos nocivos é o caráter
de previsibilidade que o estudo confere às transformações que serão promovidas. Previsões
que, frequentemente, não se verificam, dada a vasta gama de queixas, organizadas ou não,
por parte das populações atingidas e os desastres ambientais como vazamentos de petróleo,
enchentes em bacias hidrográficas alteradas por projetos de barragens, e assim por diante.
Esse caráter de previsibilidade que as avaliações de impacto ambiental conferem às
transformações promovidas por grandes empreendimentos tampouco se verifica nos estudos
sobre a mediação técnica empreendidos por Bruno Latour, nos quais o autor demonstra por
que a noção de “eficiência técnica sobre a matéria” não explica a sutileza do trabalho dos
engenheiros, que precisam lidar com a impossibilidade de exercer qualquer espécie de
domínio na relação com não-humanos (Latour, 2001, p. 203).
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Conclusão
Morawska Vianna (2014), estudiosa da cooperação internacional, analisa a forma pela qual
documentos e programas de uma organização internacional refletem o estabelecido em outros
documentos formulados em níveis hierárquicos superiores ou em outras organizações
financiadoras, permitindo perceber “os princípios da engenharia social que marcam o trabalho de
agências internacionais, em especial a elaboração de composições do social das quais depende a
execução de seus projetos” (p. 90). De forma semelhante, cada Estudo de Impacto Ambiental que
é elaborado reforça – repetindo, adaptando ou inovando – padrões, critérios e conceitos contidos
em outros documentos da mesma natureza, contribuindo para consolidar e tornar cada vez mais
estável esta forma de sistematização de intervenções planejadas na sociedade e na natureza.
Este processo de estabilização consolida alguns pressupostos embutidos nestes estudos.
São eles o pressuposto de que, a partir do conhecimento das características de um
empreendimento e do local onde será implantado, é possível prever os seus efeitos futuros; o
pressuposto de que é possível isolar a influência de um empreendimento em relação aos demais
processos em curso nos locais onde ele é implantado, identificando assim os “impactos” relativos
exclusivamente àquele empreendimento; o pressuposto de que todos os elementos que serão
alterados com a implantação de um empreendimento são passíveis de serem identificados,
contabilizados, classificados e, finalmente, mitigados ou compensados. Este conjunto de
pressupostos encerra uma perspectiva de planejamento e cálculo no trato com elementos
humanos e naturais que costuma diferir da maneira pela qual as populações obrigadas a lidar
com a implantação dos empreendimentos se relacionam com os mesmos elementos.
No entanto, mais do que identificar, prever, calcular impactos e sua compensação ou
mitigação, e independente do sucesso dos Estudos de Impacto Ambiental em realizar estes objetivos,
o que estes estudos efetivamente realizam é a consolidação de uma perspectiva de desenvolvimento
que privilegia o crescimento econômico através da implantação de grandes empreendimentos, para
benefício de determinados agentes econômicos e governamentais, em detrimento das populações às
quais são impostos seus efeitos socioambientais negativos. Dessa forma, cada EIA contribui para
consolidar e tornar cada vez mais estável um conjunto de argumentos técnicos que conferem
respaldo a uma determinada forma de intervir na sociedade e na natureza.
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OS QUILOMBOLAS E A ANGLO AMERICAN: COMUNIDADES
TRADICIONAIS REALOCADAS EM MINAS GERAIS
Patrícia Falco Genovez
Graduação em História - UFJF, Mestrado e Doutorado em História - UFF, Pós-doutoranda em
História - UFMG. Docente do corpo permanente do Mestrado em Gestão Integrada do
Território/Pesquisadora do Núcleo de Estudos Históricos e Territoriais e do Observatório
Interdisciplinar do Território - Univale.
Francisleila Melo Santos
Graduação em Administração - UNEC. Mestranda em Gestão Integrada do Território - Univale.
Resumo: A proposta deste trabalho é apresentar e analisar o caso da realocação das comunidades
quilombolas na região central de Minas Gerais nas cidades de Conceição do Mato Dentro, Alvorada
de Minas e Dom Joaquim, municípios onde estão localizadas a mina e a barragem de rejeitos do
Projeto Minerário Minas-Rio de propriedade do conglomerado britânico Anglo American. A análise
destes conflitos apresenta questões relacionadas a garantias de apropriação do território, para todos
os envolvidos, tanto na perspectiva material quanto na sua dimensão simbólica. Essa abordagem será
realizada através de dados secundários advindos do empreendedor (Anglo American) Ministério
Público, Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais e outros órgãos públicos. A realocação,
observada a partir dos relatos dos atingidos, revela que os conflitos abordados não ocorrem pela
posse de uma porção de terra, mas pela manutenção de relações sociais já existentes, pela garantia
da perpetuação dos hábitos, costumes e, principalmente, da memória destas comunidades. O caso
analisado sugere, portanto, a complexidade dos processos de territorialização configurado por ambas
as partes visto que nos deparamos com múltiplas apropriações de um mesmo território
(multiterritorialização). Essa multiterritorialização envolve dimensões materiais e imateriais que
acarretam conflitos cotidianos, envolvendo relações assimétricas de poder.
Palavras-chave: quilombolas, Anglo American, multiterritorialização.
Abstract: The purpose of this paper is to present and analyze the case of relocation of quilombolas
communities in Minas Gerais in the cities of Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas and
Dom Joaquim, city where they are located the mine and tailings dam of the Mining Project MinasRio owned by the British conglomerate Anglo American. The analysis of these conflicts presents
issues related to the guarantees of appropriation the territory for all involved, both from the
perspective materially as for symbolic dimension. This approach will be made through secondary
data arising from the entrepreneur (Anglo American) Public Ministry, Legislative Assembly of the
State of Minas Gerais and other public bodies. The realocation, observed through of the reports of
attained reveals that accosted conflicts do not occur for possession of a piece of land, but the
maintenance of existing social relations, ensuring the perpetuation of habits, customs and, above all,
the memory of these communities. The analyzed case therefore suggests the complexity of
territorialização processes set up by both parties as we face multiple appropriations of the same
territory (multiterritorialização). This multiterritorialização involves material and immaterial
dimensions that lead to quotidian conflicts involving asymmetrical power relations
Keywords: quilombolas, Anglo American, multiterritorialização.
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Introdução
As comunidades tradicionais têm enfrentado inúmeras dificuldades para o seu
reconhecimento principalmente quando estão inseridas em territórios pretendidos para a
implantação de grandes empreendimentos. Tais empreendimentos acarretam conflitos entre as
comunidades e os empreendedores nos quais o objeto de disputa não são somente recursos
como água, solo, florestas, mas o território em sua totalidade (aspectos materiais e simbólicos).
Essas disputas ocorrem numa relação de poder assimétrica entre os agentes uma vez que os
grupos que detêm o maior capital o mobiliza a seu favor, facilitando a apropriação territorial
e permitindo a implantação de seus empreendimentos. Este modelo de desenvolvimento tem
ameaçado de forma reiterada os territórios das comunidades tradicionais no Brasil e, em
especial, os territórios quilombolas. Nesse sentido, a apropriação da natureza como mercadoria
corrobora para suprimir o vínculo indissociável entre cultura/natureza e o sentimento dessas
populações em relação à vida e à terra, ignorando o sentimento de pertencimento que lhes dão
identidade enquanto parte integrante do território que ocupam.
O território mencionado e palco de conflitos entre membros de comunidades
remanescentes de quilombo aqui estudado situa-se na região central de Minas Gerais nas
cidades de Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e Dom Joaquim; municípios onde
estão localizadas a mina e a barragem de rejeitos do Projeto minerário Minas-Rio de
propriedade do conglomerado Britânico Anglo American (Figura 1).
Figura 1 - Mapa de localização do projeto minerário Minas-Rio
em Conceição do Mato Dentro (MG)
Fonte: MMX - MINAS RIO MINERAÇÃO E LOGÍSTICA LTDA. Estudo de impacto ambiental lavra a céu aberto, tratamento mineral e infraestrutura (p. 04) - jan. 2007.
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O termo quilombo adotado no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias a Constituição de 1988 já surgiu deteriorado visto que “[...] reconhece-se o que
sobrou, o que é visto como residual aquilo que restou, ou seja, aceita-se o que já foi”
(ALMEIDA, 2011. p. 64). Portanto, para os fins desta pesquisa, o termo necessita ser revisto
na conjuntura atual em consideração a sua complexidade e ramificações. Em outras palavras,
o termo pode ser considerado “[...] uma categoria jurídica e uma questão de direito, quanto
um instrumento através do qual se organiza a expressão político – organizativa dos que se
mobilizam, recuperando e atualizando nomeações de épocas pretéritas, como quilombola,
calhambola ou mocambeiro” (ALMEIDA, 2011, p. 48).
Intrinsecamente relacionado ao quilombo aparece seu território. Este envolve a
dimensão simbólica do lugar, a identidade de populações remanescentes de quilombolas e
sua apropriação imaterial e material que compreende a terra comprada, herdada, doada por
ex-senhores ou pelo Estado. Terras que foram se configurando em povoados onde famílias
negras compartilham modos de vida, crenças, mitos e memórias, aspectos de uma cultura
própria que nutre as identidades sociais hoje identificadas e reconhecidas como
“quilombolas”. Essas são características que lhes conferem o auto reconhecimento em
consonância com o Decreto Federal 4.887/2003 que regulamenta “[...] o procedimento para
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes
das comunidades dos quilombos” (BRASIL, 1988, p. 01).
O presente trabalho apresentará os relatos dos quilombolas que, diante do processo
de realocação promovido pelo Projeto Minas-Rio, acabaram recebendo uma nova
designação: tornaram-se também “atingidos”. Por ora, não discutiremos essa designação
uma vez que ela surge nos próprios depoimentos diante do Ministério Público e nos
documentos que utilizamos nessa análise. Entretanto, cabe assinalar que há uma discussão
sobre a pertinência do uso dessa designação visto que ela tem sido utilizada para casos de
realocação quando da construção de barragens. Mesmo nesses casos, o debate ambiental
vem discutindo a designação de “refugiado ambiental” (ONU, 1985).
Dada a complexidade e amplitude dos impactos do empreendimento Minas-Rio, nossa
proposta será apresentada da seguinte forma: exposição sucinta do contexto da implantação do
empreendimento e o início dos processos de realocação; descrição mais circunstanciada da
comunidade de uma comunidade quilombola: a família Pimenta e, finalmente, uma análise do
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caso a partir do referencial teórico dos estudos territoriais e da análise de narrativas contidas nas
Atas do Ministério Público e em outros documentos utilizados nessa pesquisa.
1. O contexto da implantação do empreendimento e o início dos processos de realocação
O empreendimento Minas-Rio de propriedade da Anglo Ferrous é composto por mina
para extração de minério de ferro e estruturas adjacentes nos municípios de Conceição do Mato
Dentro, Alvorada de Minas e Dom Joaquim, situados na região central de Minas Gerais. O
projeto conta também com a instalação de um mineroduto em Alvorada de Minas integrado
ao porto marítimo situado em Barra do Açu em São João da Barra (RJ) e destinado ao
transporte do material produzido. O mineroduto possui 529 km de tubulação que atravessa 33
municípios de Minas Gerais e do Rio de Janeiro (ANGLO AMERICAN, 2014 [Nov-Dez], p.
2). O projeto possui uma linha independente de transmissão de energia derivada da Subestação
Companhia Energética do Estado de Minas Gerais (CEMIG) em Itabira (MG) e uma adutora
de água com captação no Rio do Peixe, bacia do Rio Doce, no município de Dom Joaquim
(MG), para fornecimento de água ao processo industrial, inclusive para o mineroduto
(ANGLO, 2015). Segundo definição do empreendedor, a Área Diretamente Afetada (ADA) é
composta pelos espaços territoriais necessários para a implantação do projeto. Por sua vez, a
Área de Influência Direta (AID) é composta pela totalidade dos territórios dos municípios de
Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e Dom Joaquim (DIVERSUS, 2011, p. 10).
A Secretaria de Estado de Meio-Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad),
através da Unidade Regional Colegiada Jequitinhonha (URC-JEQ), estabeleceu medidas de
controle a serem observadas ao longo da implantação e da operação do empreendimento
Minas-Rio. Essas medidas são chamadas de condicionantes. No caso do Minas-Rio, uma das
condicionantes é referente às tratativas propostas para o deslocamento populacional das
comunidades pertencentes às áreas atingidas. Em atendimento a esta condicionante, o
empreendedor desenvolveu o Programa de Negociação Fundiária cujas negociações foram
estabelecidas com os proprietários e não proprietários, além das pessoas que possuíam
relações de moradia e de trabalho com as propriedades atingidas diretamente pelo
empreendimento (ANGLO AMERICAN, 2014 [ago], p. 06). O empreendedor ao definir os
limites da Área Diretamente Afetada (ADA) e da Área de Influência Direta (AID) do
empreendimento selecionou as famílias que seriam assistidas em caráter emergencial e as
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famílias cujo deslocamento poderia acontecer posteriormente a partir dos avanços da
implantação bem como na medida em que as licenças fossem concedidas.
2. Comunidades quilombolas: apresentação da família Pimenta
Para a concessão das licenças, o empreendedor providenciou a confecção de diversos
documentos que foram amplamente analisados. Segundo o Parecer Único do Sistema
Estadual de Meio Ambiente (PU/SISEMA) Nº 001/2008, no Conselho de Política Ambiental
(COPAM) Nº 472/2007/001/2007, os estudos originais do Estudo de Impacto
Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do empreendimento Minas-Rio
não apresentaram estudo aprofundado de ocorrência de comunidades tradicionais na região
do projeto. Entretanto, em vistoria técnica à área, a equipe do Sistema Estadual de Meio
Ambiente (SISEMA) foi notificada sobre a presença de famílias afro-descendentes nos
municípios de Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas. Ao todo, a equipe do
SISEMA registrou 8 (oito) comunidades negras na área de influência do empreendimento,
sendo elas: Escadinha de Cima, Beco, São Jose do Jacém, Vargem do Saraiva, Três Barras,
Cubas, Pião e São José da Ilha. Na área diretamente afetada, foram identificadas 2 (duas)
comunidades tradicionais de características negras: Mumbuca e Ferrugem. Mumbuca,
também conhecida como Água Santa, é uma comunidade negra rural cujos antepassados
teriam sido escravos, constituída por 26 núcleos familiares num total de 102 moradores. A
comunidade de Ferrugem é constituída por 12 famílias negras que mantêm laços de
parentesco entre si, totalizando 42 moradores, com algumas moradias feitas de pau-a-pique
ou adobe, com telhas de barro e piso de terra batida; outras possuem tipos diversos de
cobertura, como telhas de amianto ou mesmo de sapê (SISEMA, 2008. p. 47).
Em notícia publicada no site da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais
em 04 de abril de 2011, o presidente da Associação Comunitária quilombola de Três Barras,
Sidinei Seabra da Costa informou que ao todo, 140 famílias vivem nas comunidades rurais
de Três Barras, Buraco e Cubas no município de Conceição do Mato Dentro (Figura 2).
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Figura 2 - Mapa da localização das comunidades quilombolas em
Conceição do Mato Dentro
Fonte: CONCEIÇÃO DO MATO DENTRO.
Prefeitura Municipal de Conceição do Mato Dentro - Acervo. Maio, 2012.
Estas são localidades isoladas e o único acesso a Três Barras é feito por uma estrada
de terra. No povoado, não há telefone, a escola pública local só oferece aulas para os alunos
até o 4º. ano, o atendimento médico só ocorre uma vez por mês e não há atendimento
odontológico para a população local. A situação não é diferente no povoado vizinho de
Buraco. Lá não há grupo escolar nem posto de saúde, a comunidade sofre com escassez de
água e estradas de acesso precárias (ALMG, 2011).
Durante o processo de deslocamento das comunidades remanescentes de
quilombolas, a Família Pimenta ganhou destaque conforme atesta Informação Técnica
003/2009 produzida pelo Ministério Público “[...] os Pimentas constituem uma parentela
antiga em Conceição do Mato Dentro, de pelo menos quatro gerações, cuja origem remonta
à escrava – ou filha de escravos – Bernardina Pimenta, que trabalhava para a família Simões,
grande proprietária de terras e escravos”. O referido documento salienta ainda sobre a família
Pimenta que “refletia características físicas de Bernardina, negra, cujo cabelo era ruim como
pimenta” (MINAS GERAIS, 2009. p. 03 e 04).
Uma característica muito comum na região onde habitam os remanescentes de
quilombo é a “existência de terras de herdeiros” (DIVERSUS, 2011, p. 191, grifo do
autor), popularmente conhecidas como terra “no bolo”, terra familiar onde normas, valores
são criados, regulados e respeitados pelos membros do grupo” (DIVERSUS, 2011, p. 191).
Tal fator dá aos membros da família Pimenta o direito do uso comum da terra, desta forma,
“a não divisão física da área também dificulta a venda por parte de um familiar, o que
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acarretaria no enfraquecimento do tipo de apropriação adotado, o familiar-camponês”
(DIVERSUS, 2011, p. 192). Na prática esta dificuldade da venda não impediu que um dos
membros viesse a fazê-lo, ocasionando conflitos na família:
Segundo relatos contidos inclusive em processos judiciais e boletins
policiais, um membro da família – da parentela – Pimenta teria vendido parte
de suas terras de herdeiro ou “no bolo” para o empreendedor. A outra parte
da parentela que não se sentiu representada no acordo se recusou a sair das
terras ocupadas, ocasionando segundo registro policial e jurídico enorme
pressão – inclusive com relato de uso de violência excessiva – por parte do
empreendedor para a saída dos mesmos (DIVERSUS, 2011, p. 193).
Em virtude do avanço das obras e receosos pelo desfecho das negociações junto ao
empreendedor, as comunidades afetadas recorreram à Coordenadoria de Inclusão e
Mobilização Social (CIMOS), criada em 2009, através da Resolução n.º 8 de 18 de março
pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG), cuja finalidade é promover a
interlocução e a articulação entre os Promotores de Justiça, instituições públicas e a
sociedade civil organizada, visando a garantir a efetivação da participação social nas
políticas públicas e institucionais. Para prevenir violações aos direitos fundamentais das
minorias frente a grandes empreendimentos, o MPMG criou a Rede de Acompanhamento
Socioambiental (REASA), sendo este um grupo de discussões composto por representantes
da sociedade civil e de instituições públicas atuando como um interlocutor entre o MPMG e
a sociedade civil (CIMOS, MPMG, 2015).
Efetivamente, a implantação do empreendimento Minas-Rio tende a causar danos
irreversíveis às populações remanescentes de quilombolas, seja pela expulsão destes de seu
território material, seja pela segregação de suas identidades culturais o que nos leva a
compreender que perante a mineração essas populações perdem o poder sobre seu próprio
território este é vital para a comunidade visto que “[...] cada grupo político constituído pela
reunião de um ou de diversos clãs se encaixa num território. Entre o ser humano e a terra, a
identificação é total; na ideologia do costume ou da tradição, o ser humano é como uma
planta, biologicamente vinculado à terra” (BONNEMAISON, 1980, p. 5). Assim, é
necessário trazer à tona a discussão do futuro das tradições quilombolas quando estes são
atingidos por grandes empreendimentos, culminando em um processo de deslocamento
populacional que acarreta a separação do grupo, no “desencaixe” de seus territórios, em uma
tentativa de desvincular da terra a planta que já está enraizada.
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3. Narrativas de um território quilombola: uma realocação possível?
Conhecidos os sujeitos de direitos desta análise, procuramos realizar a abordagem
deste trabalho através de dados secundários advindos do empreendedor (Anglo American),
Ministério Público, Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais e outros órgãos
públicos. Esses dados encontram-se permeados por inúmeros relatos que serão tratados a
partir de uma abordagem interdisciplinar, entrelaçando os estudos territoriais (geografia) e a
perspectiva narrativa (linguística). Do ponto de vista territorial, elegemos como autor central
o geógrafo Rogério Haesbaert e utilizamos como chave de leitura seu conceito de
multiterritorialização que abarca tanto os quilombolas quanto o Anglo American,
conglomerado britânico. Considera-se que o território envolve não apenas uma dimensão
geográfica, física e material de grande interesse para o empreendedor, mas também uma
dimensão simbólica que compreende a identidade de comunidades quilombolas que, numa
relação estreita com a terra, configuraram este território a partir do compartilhamento do
modo de viver, de suas crenças, de seus mitos e de sua memória.
Esta perspectiva multiterritorial se choca com aquela pretendida pelo empreendedor
que concebe seu projeto dentro de uma análise linear pautada na territorializaçãodesterritorialização-reterritorialização (TDR), considerando que seja plenamente viável a
reterritorialização dos quilombolas em outro território adquirido com os valores pagos pela
indenização. No outro pilar conceitual, partimos de uma noção mais ampliada de narrativa
na qual por meio dela é possível a produção de sentido e de identidade.
A proposta de desterritorialização-reterritorialização apresentada pelo empreendedor
às comunidades significa na perda do conhecimento acumulado ao longo de muitos anos e de
inúmeros simbolismos que emergiram ao longo da história da comunidade. “Na sociedade
contemporânea, com toda sua diversidade, não resta dúvida de que o processo de ‘exclusão’,
ou melhor, de precarização socioespacial, promovido por um sistema econômico altamente
concentrador é o principal responsável pela desterritorialização” (HAESBAERT, 2006, p. 67).
A existência do quilombo envolve as relações de parentesco e uma cultura própria advinda
dos ancestrais e perpetuada através da oralidade, portanto, a desestruturação do quilombo, a
separação dos núcleos familiares que se aglutinaram ao longo de várias gerações, pode vir a
comprometer as gerações futuras quanto à sua identidade quilombola. Em outras palavras, a
desterritorialização pode culminar em uma nova invisibilização desses sujeitos de direitos.
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Analisando o território como continuum, percebemos traços que abarcam desde o funcional ao
simbólico. Segundo Haesbaert (2005), o território possui dimensões simbólicas e materiais e,
nestas dimensões, ocorre à territorialidade. Esta não se restringe ao domínio do espaço físico, mas
também abrange os significados que interagem neste mesmo espaço. Ou seja, “[...] território,
assim, em qualquer acepção, tem a ver com poder, mas não apenas ao tradicional “poder político”.
Ele diz respeito tanto ao poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido
mais simbólico, de apropriação” (HAESBAERT, 2005, p. 6774).
Isto posto, podemos compreender melhor as manifestações dos membros da família
Pimenta nas reuniões da REASA e da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa
bem como nas audiências públicas que ocorreram nas cidades atingidas. Essa perspectiva de
análise fundamenta-se na hermenêutica de Paul Ricouer (2010) que visa a acessar o encontro entre
a vida cotidiana dos quilombolas e o modo como eles almejam se inserir numa dada história social
cultural que surge a partir do que narram. Enquanto os narradores quilombolas e demais
envolvidos se remetem às experiências cotidianas, promovendo a transposição do que é vivido
para o registro narrativo, selecionam e organizam os elementos de seu próprio depoimento,
configurando o que Paul Ricouer denomina como “intriga”.
O relato do Sr. Lúcio Pimenta, na 10ª Reunião Extraordinária da Comissão de
Direitos Humanos, exprime os impactos advindos da instalação do empreendimento,
externando seu descontentamento com a perda de seu território, a perda de seus direitos de
uso da terra enquanto proprietário: “Apesar de usarmos a documentação como prova, somos
expulsos de dentro do nosso próprio terreno e não podemos nem passar pela estrada, pois
somos impedidos” (MINAS GERAIS, 2009, p 62). Nesta mesma reunião, membros da
sociedade civil manifestaram sua preocupação com a situação da família Pimenta. Perplexa
diante dos fatos a Srª. Maria Auxiliadora Alvarenga, arquiteta urbanista, manifestou sua
indignação perante o descaso por parte das autoridades mineiras:
[...] estamos com um representante da família dos Pimenta e outro da
família dos Rodrigues, que estão desesperados, porque não encontram
advogados para defendê-los contra um Eike Batista e outros tantos que
estão por trás. A situação é calamitosa, e o Estado de Minas precisa
acordar (MINAS GERAIS, 2009, p. 60).
No vídeo produzido pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES),
em 2012, os irmãos Mauro Lúcio e Lúcio Pimenta pormenorizam suas angústias em relação
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ao processo de deslocamento imposto pelo empreendimento Minas-Rio. Em sua fala o Sr.
Mauro Lúcio enfatiza “[...] chega um momento que a pessoa pede pra sair, não aguenta, não
tolera isso é um caso sério, tem que procurar uma solução para a família que tá lá embaixo do
empreendimento” (CEDEFES, 2012). O sentimento flui através de suas palavras “[...] é um
extermínio da forma de viver de toda a comunidade que está acontecendo aqui no decorrer do
processo de implantação do empreendimento” (CEDEFES, 2012).
As tratativas adotadas pelo empreendedor em seu plano de negociação fundiária
também foram motivo de descontentamento por parte dos membros da família Pimenta. Na
audiência pública no município de São Sebastião do Bom Sucesso, ocorrida em 17 de Abril
de 2012, o professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM), Sr Marivaldo Aparecido de Carvalho “[...] falou sobre comunidades quilombolas;
afirmou que o empreendimento não tem ética, pois retira o acesso à água; disse que a água
não pode ser fechada como faz a empresa; afirmou que as pessoas não são contra a empresa,
mas a empresa é contra as pessoas” (REASA, 2012, p. 04). A Srª. Francisca Pimenta de
Souza e o Sr. João Ércio Simões Pimenta reclamaram do descumprimento da negociação
feita com a empresa mineradora em relação à aquisição de terras (REASA, 2012, p. 4 e 5).
Durante a audiência o Sr. Lúcio Pimenta enumerou os impactos onde se observa a
complexidade dos fatos: “[...] está havendo extinção da fauna na região, a exemplo do
macaco guariba, que não mais é encontrado; disse que está havendo desequilíbrio ecológico
[…] falou sobre os compromissos não cumpridos pela Anglo [...]” (REASA, 2012, p. 3).
Os conflitos entre quilombolas e o empreendedor adquiriram notoriedade na
comunidade acadêmica. A professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
Ana Flávia dos Santos, na audiência pública no município de São Sebastião do Bom Sucesso,
ocorrida em 17 de Abril de 2012, discursou em defesa dos atingidos e da garantia de seus
direitos, ressaltando o desrespeito da empresa com “[...] o fechamento de passagens de
desequilíbrio ecológico, a poluição da água, a situação dos quilombolas e a fragilização
destas famílias” (REASA, 2012, p. 3).
O Sr Antônio Pimenta fez uma reflexão sobre a gravidade da situação durante a 1ª
Reunião pública da REASA “[...] homem dominando o homem para seu próprio prejuízo.
[...] Questionou se vale a pena a destruição irreversível. Afirmou que a culpa é do
empreendimento que veio do outro lado do mundo e do prefeito que deixou a porta aberta”
(REASA, 2012, p. 5). Na 2ª Reunião pública da REASA, o Sr Lúcio Pimenta, cansado com
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os impactos advindos da implantação do empreendimento considerou: “[...] a empresa viola
o direito à paz, pois as pessoas da comunidade não têm expectativas de futuro, muitas estão
com depressão, já que suas vidas estão paralisadas por não saberem o que fazer” (REASA,
2012, p. 3). Muitas famílias sem saber quando seriam deslocadas para suas novas
propriedades interromperam o plantio de seus alimentos, fato que trouxe grande prejuízo a
estas comunidades, pois uma das características das comunidades quilombolas é o plantio
em regime de parceria, onde são divididas as tarefas e posteriormente a colheita.
As reuniões do ano de 2012 foram marcadas por relatos complexos, por ânimos exaltados,
pois a cada dia os impactos se tornavam mais visíveis e a qualidade de vida da população piorava
significativamente. Membro frequente em todas as reuniões, o Sr. Lúcio Pimenta, em sua
participação na 3ª Reunião pública da REASA, “denunciou que a qualidade da água [...]; mencionou
também a passagem de lama na fazenda do Romero; a doença que acomete a sua criação, assim
como as dos demais vizinhos. Em razão disso, pediu para que seja verificado o que está descendo
junto às águas dos rios” (REASA, 2012, p. 1). No mês seguinte, na 4ª Reunião pública da REASA,
“reiterou ser remanescente de quilombo, assim não tem terra e sim território, sendo assim não se
vende, já que está fora do comércio e que o alojamento repleto de pessoas estranhas, distante a 200km
das casas dos moradores, traz insegurança, intranquilidade” (REASA, 2012, p. 6).
No mês seguinte ocorreu a 5ª Reunião pública da REASA, a Srª Francisca Pimenta
enumerou os prejuízos que acarretaram à família após terem sido deslocados pelo
empreendedor dentro das condições por ele imposta, através do seu plano de negociação
fundiária “disse não saber onde é a divisa; que está sem assistência técnica; que estão
plantando com recursos próprios; que tudo que se faz na casa é com custeio próprio; que
prometeram semente, lenha, mas não entregaram” (REASA, 2012, p. 12). Nesta reunião,
outras famílias se apossaram da declaração da Srª Francisca Pimenta reforçando que o
programa de negociação fundiária não conseguia cumprir seus objetivos.
No caso da realocação da Família Pimenta foi possível constatar que alguns membros
deste grupo familiar optaram pela venda de suas propriedades, o empreendedor não
conseguiu atender a todas as famílias quanto à entrega de casas em áreas multifamiliares,
devido à pouca disponibilidade de terras (nos municípios de interesse das famílias atingidas)
em condições adequadas para comportar o reassentamento. Um fato a considerar é que não
há desterritorialização sem que ocorra a reterritorialização e, no caso da Família Pimenta, a
reterritorialização não se cumpriu na totalidade, culminando na perda para essa família, que
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se vê fragmentada diante da sua realocação. A narrativa do Sr. Lúcio Pimenta descreve com
fidelidade a complexidade a realocação para os atingidos:
[...] não sou um atingido. Somos massacrados, e não somos atingidos. Existe
uma coisa que gostaria de deixar bem clara e transparente. O Sr. Leonardo, cujo
sobrenome não lembro, pediu mais Polícia Civil e Militar para Conceição do
Mato Dentro. No entanto, queremos que a polícia seja trazida não para prender
cidadãos do bem ou para ajudar os seguranças da empresa a escoltar ou para dar
autorização para arrancar plantações. Não somos vagabundos, plantadores de
maconha. O que queremos é uma polícia séria para proteger a população. É disso
que precisamos. […] Estamos cansados. Não vou falar mais porque há muitas
pessoas para falar, mas quero ainda dizer que me preocupo muito com o ser
humano porque também sou ser humano. Por fim, onde estão os peixes? Peixe
não vive em água suja. E os animais, onde estão? Dá para imaginar? Fico
pensando nas palavras dele, que disse que a desgraça chegou a Conceição do
Mato Dentro, pela maneira que chegou. Não entendo de mineração e não
entendo de política, mas de sofrimento e atropelamento eu entendo. […]
Estamos cansados de sofrer (MINAS GERAIS, 2013, p. 28).
Entre ganhadores e perdedores lá se vão aproximadamente oito anos de um complexo
processo de desterritorialização cujos sujeitos encontram-se multiterritorializados. O processo
doloroso e desgastante que acompanhamos pontualmente a partir de trechos de atas mostram que:
a territorialização é desigualmente distribuída entre seus sujeitos e/ou
classes sociais e, como tal, haverá sempre, lado a lado, ganhadores e
perdedores, controladores e controlados, territorializados que
desterritorializam por uma reterritorialização sob seu comando e
desterritorializados em busca de uma outra reterritorialização, de
resistência e, portanto, distinta daquela imposta por seus
desterritorializadores (HAESBAERT, 2004. p. 259).
Em agosto de 2014, a Anglo American concluiu a mudança de 46 famílias que participaram
do Programa de Reassentamento do projeto Minas-Rio (ANGLO AMERICAN, 2014 [ago], p.
08). Este número não representa a totalidade de famílias atingidas pelo empreendimento havendo
ainda outras famílias como a dos Pimenta, que foram parcialmente contempladas pelo programa
de negociação fundiária e, sobretudo, pelos impactos advindos do empreendimento.
Considerações Finais
A análise dos conflitos entre quilombolas e empreendedor apresenta questões
relacionadas a garantias de apropriação do território, para todos os envolvidos, tanto na
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perspectiva material quanto na sua dimensão simbólica. A realocação, observada a partir das
narrativas (intriga) dos atingidos, revela que os conflitos abordados não ocorrem pela posse de
uma porção de terra, mas pela manutenção de relações sociais já existentes, pela garantia da
perpetuação dos hábitos, costumes e, principalmente, da memória destas comunidades. Em
outras palavras, as narrativas apontam para a configuração de uma tradição que busca se
consolidar frente a uma situação de ruptura oriunda da realocação forçada pela Anglo American.
O relato da Srª. Mary Francisca Guimarães (Comissão dos Direitos Humanos) para
buscar os direitos dos quilombolas frente aos interesses do empreendedor é ilustrativa:
Estamos falando aqui da nossa história, da história de brasileiros. Nossos
ancestrais foram escravizados, moraram em senzala e conseguiram certo
reconhecimento porque lutaram. E estamos aqui evocando a memória desses
bravos para que possamos ter a coragem de enfrentar o discurso mentiroso da
Prefeitura que confunde nossas mentes [...] (MINAS GERAIS, 2009, p. 64).
Para o Sr. Lúcio Pimenta o sentimento é ainda mais intenso:
[...] nós somos descendentes de quilombo e fomos arrancados de dentro de nossa
propriedade pelo segurança da empresa funcionário da Anglo American
acompanhado pela polícia militar […] nós fomos arrancados como se fosse
invasores, estão com um processo contra nós; […] eu não me sinto prejudicado
nem afetado, eu me sinto esmagado, como se tivessem esmagando as pessoas,
sem respeito nenhum [...] (MINAS GERAIS, 2013, p. 28).
A análise sugere, portanto, a complexidade dos processos de territorialização
configurada por ambas as partes visto que nos deparamos com múltiplas apropriações de um
mesmo território (multiterritorialização). Essa multiterritorialização envolve dimensões
materiais e imateriais que acarretam conflitos cotidianos em relações assimétricas de poder. A
proposta de desterritorialização-reterritorialização imposta pelo empreendedor, em tese,
propõe um cenário de adaptação para os quilombolas. As prefeituras envolvidas seguem o
mesmo padrão do empreendedor e, em função da situação, as comunidades atingidas não
conseguem advogados para defendê-los frente ao processo de realocação. Numa perspectiva
multiterritorial, esse cenário se torna bem mais complexo. O sentimento dos quilombolas não
é de adaptação, mas de perda. A dimensão simbólica do território original não desaparece com
a realocação; pelo contrário, ela se torna ainda mais contundente visto que não há mais uma
dimensão física na qual ela possa se ancorar. Enquanto quilombolas, tais comunidades não são
proprietárias de terrenos, mas de territórios que não apresentam um valor venal; há uma posse,
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configurada ao longo de um processo histórico-cultural dessas comunidades com a terra. Para
o empreendedor há acordos e indenizações que, para alguns atingidos parecem satisfatórios a
primeira vista; para os quilombolas, há o desrespeito e a sensação de estarem sendo esmagados
diante da obrigação de negociar o que é, na verdade, inegociável.
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A POLÍTICA NACIONAL DE PROTEÇÃO E DEFESA CIVIL: POR UMA
CULTURA DE PREVENÇÃO DE DESASTRES
Paula Emília Gomes de Almeida
Mestranda em Ciências Sociais pelo PPGCSO-UFJF
Resumo: Desastres com desencadeadores naturais têm composto uma agenda de intenso debate
internacional e nacional, suscitando em esforços para elaboração de políticas públicas de gerenciamento
de desastres. Um elemento que vem ganhando destaque durante todo processo de elaboração e avaliação
dessas estratégias internacionais, a noção de cultura de redução de risco de desastres. O presente trabalho
visa a analisar as diferentes formas com que essa ideia é trabalhada pela Secretaria Nacional de Defesa
Civil, buscando mostrar que embora tal debate seja um sinal de avanço, tem sido feito dando pouca
importância a questões cruciais como a produção e manutenção das desigualdades sociais no país.
Palavras-chave: Política Nacional de Proteção e Defesa Civil; Sociologia dos Desastres; Cultura de
Redução de Risco de Desastres.
Abstract: Disasters with natural triggers have made an intense national and international debate
agenda, raising efforts for development of public disaster management policies. A prominent element
that has gained evidence throughout the preparation process and evaluation of these international
strategies is disaster risk reduction culture notion. This study aims to analyze the different ways in
which this idea is worked out by the National Secretary of Civil Defense, seeking to show that
although this debate is an advance signal, it has been done by giving little attention to crucial issues
such as the production and maintenance of social inequalities in the country.
Keywords: National Policy on Protection and Civil Defence; Sociology of Disasters; Culture for
Disaster Risk Reduction.
Introdução
Desastres com desencadeadores naturais têm sido cada vez mais frequentes e
destrutivos, compondo, desse modo, uma agenda de intenso debate internacional e nacional.
O banco de dados EM-DAT registrou 6783 desastres desencadeados por forças naturais entre
os anos de 1994 e 2013, que causaram 1,35 milhões de mortes – uma média de 68 mil a cada
ano – afetando anualmente 218 milhões de pessoas durante esse período (CRED, 2015). Tais
números são, provavelmente, significativamente maiores, uma vez que nem todos países dão
conta de “alimentar” de maneira adequada o EM-DAT. De todo modo, tais eventos
indubitavelmente geram uma série de prejuízos humanos e econômicos em diversos países
ao redor do mundo, motivando o fomento de estratégias de gerenciamento de emergência
que visem à minimização de tais consequências deletérias.
No âmbito internacional, cabe apontar as iniciativas da Organização das Nações
Unidas (ONU) que, a partir da década de 1990, começou campanhas contínuas em prol da
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redução dos desastres denominados “naturais”. O Brasil, por sua vez, tem buscado
estabelecer uma política pública de gerenciamento de desastres desde meados da década de
1990, com uma série de reformas em seu aparato institucional ao longo dos anos. A atual
medida nacional nesse sentido é encabeçada pela Política Nacional de Proteção e Defesa
Civil - PNPDEC, datada de 2012.
Um elemento que vem ganhando destaque durante todo processo de elaboração e
avaliação dessas estratégias internacionais, e reverberado nas medidas nacionais, é a noção
de cultura de redução de risco de desastres. Há uma grande disputa em relação a essa ideia,
verificada pela profusão de termos correlatos e suas não consensuais definições.
Caminhando nessa direção, a PNPDEC estabeleceu como um de seus objetivos o fomento
de uma cultura de prevenção de desastres. Entretanto, não ficou claro no texto da PNPDEC,
ou nos demais dispositivos legais a ela atrelados, o que vinha a ser essa cultura e os meios
pelos quais ela pode ser fomentada.
Levando esse cenário em consideração e tendo em vista que os desastres com
desencadeadores naturais fazem parte do cotidiano e do histórico de parcelas da população
continuamente ignoradas pelo poder público, nossa intenção nesse trabalho é propor uma reflexão
sobre o que é essa cultura de prevenção de desastres pretendida pela PNPDEC, detendo-nos
especialmente nos desafios evocados pela implementação desse conceito na vida prática. Nossa
questão central é a de melhor compreender não só o desafio em precisar tal conceito, mas também
o de mostrar como Estado e população afetada podem ter diferentes noções de uma cultura de
prevenção de desastres. Um embate cuja solução não se encontra propriamente na PNPDEC, mas
trespassa questões mais complexas e delicadas, como a grande desigualdade social do país e a
relação natureza/sociedade – ambas podendo ser percebidas através dos conflitos gerados pelo
modelo de desenvolvimento econômico adotado pelo país.
1. Em busca dos sentidos da Cultura de Redução de Risco de Desastres
A história da humanidade sempre foi marcada por uma complexa relação entre o ser
humano e fenômenos da natureza da ordem de terremotos, enchentes, furacões, erupções
vulcânicas etc. – independentemente da sociedade ou cultura, tais manifestações da natureza
são relatadas em toda sorte de mitos e lendas, diferenciando-se, contudo, pelo significado
atribuído por essas populações a tais acontecimentos. A própria noção de desastre natural
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levanta uma série de questões em relação ao seu sentido. Por muito tempo, e em diferentes
sociedades, tais acontecimentos tiveram uma conotação moral de castigo divino em
consequência de algum desagrado às divindades (QUARANTELLI, 2009). Com o advento do
Iluminismo e da revolução científica que se seguiu, esse sentido religioso foi perdendo sua
força, mantendo, entretanto, a noção de que a ocorrência de tais fenômenos naturais era
sinônimo de desastre – ou seja, mantendo a acepção negativa aos eventos naturais
desencadeadores dos desastres. Essa acepção em que ao agente desencadeador – avalanche,
furação, terremoto etc. – é automaticamente atribuído a designação de desastre vigorou entre
a comunidade científica até fins da década de 1970, quando a produção de trabalhos na
temática de desastres por cientistas sociais expandiu-se, contribuindo para a alteração do
paradigma vigente. Os cientistas sociais, em especial sociólogos, propuseram uma visão de
desastre como uma construção social em detrimento de tomá-lo como um fato natural. Isso
quer dizer que não bastava levar apenas em consideração a ameaça natural (hazard) que
iniciava o desastre, mas também investigar o agrupamento social no qual esse hazard incidia
– a ameaça natural só configurava um desastre se atingisse um agrupamento social vulnerável.
Apesar de ainda não podermos falar num consenso sobre a definição de desastres, a
abordagem citada – conferindo importância tanto ao agrupamento humano quanto ao hazard
desencadeador do desastre – é hoje amplamente aceita no âmbito acadêmico e avança entre
os tomadores de decisão e criadores de políticas públicas de gerenciamento de desastres. Por
esse motivo, utilizamos a expressão desastres com desencadeadores naturais em detrimento
de desastres naturais, enfatizando o paradigma supracitado. Uma vez, portanto, que os
aspectos sociais conquistaram lugar de apreciação no debate sobre desastres, muitas questões
relacionadas à esfera social surgiram tanto entre acadêmicos quanto na elaboração de
políticas públicas de gestão de desastres. Dentre tais temas, vem ganhando destaque a
importância de pensar uma cultura de redução de risco de desastres – termo esse de muitas
variantes, como cultura de segurança, cultura de risco, cultura de desastres, cultura de
redução de desastres entre outras – cuja definição permanece, ainda, em disputa.
A ideia de que a cultura tem um papel fundamental na gestão dos riscos de desastres
ganhou força na agenda internacional de políticas públicas especialmente após a resolução
da ONU instituindo o Marco de Hyogo (2005-2015) cujo conteúdo apresenta recomendações
visando à redução dos desastres em âmbito internacional. O Marco estabelece 5 (cinco) áreas
de ação prioritárias que deveriam ser desenvolvidas pelos 168 países que se comprometeram
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com a redução de desastres, entre as quais destaca: “Desenvolver uma maior compreensão e
conscientização; utilizar o conhecimento, a inovação a educação para criar uma cultura de
segurança e resiliência em todos os níveis” (EIRD, 2005, p. 2). Seguindo as orientações das
Nações Unidas, o Brasil passa também a incorporar em sua Política Nacional de Proteção e
Defesa Civil (PNPDEC) a promoção de uma cultura de redução de risco de desastre como
uma de suas diretrizes. No texto mais recente da PNPDEC, datado de 2012, fica estabelecida
como competência da União, estados e municípios “desenvolver cultura nacional de
prevenção de desastres, destinada ao desenvolvimento da consciência nacional acerca dos
riscos de desastre no País” (BRASIL, 2012, Art. 9, inciso I). Não fica esclarecido no decorrer
do texto, entretanto, o que é essa cultura de prevenção de desastres e de que modo fomentála. O mesmo acontece no Marco de Hyogo em que a cultura aparece ora como um aspecto
de diferenciação que precisa ser respeitado na criação e aplicação de políticas públicas, ora
como um conjunto de conhecimentos e ações voltado para a prevenção e mitigação de
desastres que precisa ser promovido. Esse último sentido pode ser mais facilmente
visualizado em ambas citações supramencionadas e é sobre essa acepção que iremos
trabalhar. Destarte, procuramos em outras publicações ligadas direta ou indiretamente à
Secretaria Nacional de Defesa Civil, a maneira pela qual essa temática aparecia, buscando
alcançar contornos mais nítidos à essa questão.
Trabalhamos, sobretudo, com um conjunto de publicações produzidas pelo projeto
Promoção da Cultura de Riscos de Desastres (PCRD) desenvolvidas pela Secretária
Nacional de Defesa Civil (SEDEC), em cooperação técnica com o Centro Universitário de
Estudos e Pesquisas sobre Desastres da Universidade Federal de Santa Catarina (CEPED
UFSC), entre os anos de 2010 e 2011. Em um conjunto dos materiais, Caderno Especial:
Percebendo Riscos, Reduzindo Perdas, declara-se que o objetivo principal seria na
ampliação de troca de conhecimentos entre os diversos atores sociais ligados à defesa civil,
em especial, na promoção da cultura de risco de desastre (CEPED, 2010). Os diversos
autores que compõem os trabalhos apresentados nas edições do Caderno expõem distintas
visões sobre cultura de risco de desastres. Silveira, Santos & Balter (2010) buscam fazer
uma interface entre as noções de risco e de cultura, abordando brevemente as nuanças de
definições para cada um desses conceitos. O risco é trabalhando tanto no que tange aos riscos
ambientais propriamente ditos quanto aos riscos agravados pela atividade humana,
encarando-o como “um objeto social que faz parte do cotidiano do homem...” (SILVEIRA,
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SANTOS & BALTER, 2010), que deve ser inserido na pauta de discussão da população nas
políticas de gestão, possibilitando o uso dos valores culturais e experiência dos indivíduos
na construção da percepção de risco. Nesse sentido, a cultura é vista mais como um dos
elementos que interferem na percepção e produção do risco do que como uma finalidade a
ser alcançada através da mudança culturais.
Guzi & Cartagena (2010), mesmo tratando da percepção de riscos, adotam uma
assertiva mais pragmática ressaltando a necessidade de uma mudança cultural tanto na
percepção quanto nas práticas relacionadas aos desastres. As autoras partem de uma visão –
que será sustentada por diversos outros autores – de que a orientação da sociedade brasileira
na temática de desastres é voltada essencialmente para as ações de resposta e reconstrução,
revelando uma passividade no que concerne aos esforços de prevenção, preparação e
mitigação. Cultura é trabalhada como o processo de construção e reconstrução da realidade
pautada na interação social, elemento importante para reconhecer formas de mobilização
social – esta última, por sua vez, seria o cerne para uma mudança cultural que altere as
percepções e valores sociais atribuídos os riscos, vulnerabilidades e ameaças à sociedade
(GUZI & CARTAGENA, 2010). Adotando o esquema apresentado por Henriques (2002), a
mobilização social e mudança de comportamento podem ser alcançadas a partir de uma série
de critérios de vinculação agrupados em escala, cujo objetivo final seria a busca por
corresponsabilidade. Transportando o sentido de corresponsabilidade para as situações de
risco, o sentimento de corresponsabilidade seria a compreensão do sujeito ser
simultaneamente afetado e fabricante do risco, declaram Guzi & Cartagena (2010). As
autoras finalizam fazendo uma distinção entre cultura de desastres e cultura de risco de
desastres: a primeira se refere às ações pós desastre, resposta e reconstrução, baseada em
comportamentos de conformismo, inércia e aceitação; a segunda, por outro lado, age
primordialmente nas etapas pré-desastre – prevenção e preparação – objetivando construir
comunidades mais seguras (GUZI & CARTAGENA, 2010).
Ainda que similares na temática de mobilização social, Furtado & Lopes (2010)
agregam a esta a esfera da gestão pública. Sua análise toma em conta, sucintamente, desafios
históricos, sociais e econômicos legados pelo modelo de desenvolvimento adotado no país e
suas consequências nas diversas áreas, apontando como a expansão demográfica
desordenada, o aumento das desigualdades sociais e o processo de marginalização social que
se seguiram, potencializaram as vulnerabilidades sociais das comunidades recorrentemente
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atingidas por desastres. As autoras reiteram acepção de que as ações tomadas no Brasil
privilegiam, sobretudo, intervenções pós-desastre, contudo, enfatizam o papel que os
gestores públicos têm na manutenção desse panorama, e a necessidade de incluir a
comunidade no processo de elaboração, implementação e avaliação de políticas públicas no
gerenciamento de emergência a fim de modificar tal quadro social. Furtado & Lopes (2010)
respaldam-se em especial nas recomendações dadas pelas Nações Unidas no Marco de
Hyogo e na Estratégia Internacional para Redução de Desastres (EIRD), reforçando a
necessidade da participação social para maior êxito na redução de desastres e aumento da
resiliência nas comunidades vulneráveis.
Os demais especialistas que colaboraram na produção das edições do Caderno
Especial trouxeram propostas que caminharam entre o foco na sociedade ou a maior atenção
às questões pertinentes aos gestores públicos e à atuação da Defesa Civil nos três níveis
federados. Mesmo não estabelecendo uma definição para cultura de redução de risco de
desastres, esta parece estar ligada a dois âmbitos: o da percepção dos riscos e o da reação
prática com ações voltadas à prevenção e à preparação. Os pesquisadores concordam, porém,
com a assertiva de que seja a sociedade, seja o poder público, ou ambos, estes ainda se
baseiam em comportamentos, percepções e ações que privilegiam os esforços de resposta e
reconstrução, ou seja, o pós-desastre, em detrimento de um paradigma concentrado nas ações
pré-desastre, a saber, prevenção e preparação.
Em parcela significativa dos trabalhos, como destacado em Guzi & Cartagena (2010),
os autores classificam essa priorização das atividades pós-desastre como frutos de
conformismo, inércia e aceitação – especialmente recorrente é o uso desses adjetivos ao
comentarem sobre as comunidades vulneráveis e em situação de risco, bem como sobre a
sociedade de maneira geral. É, sobretudo, a partir dessa assertiva que iremos problematizar
alguns rumos tomados na discussão acerca da cultura de redução de risco de desastres.
Ressaltamos de antemão que não nos aventuraremos pelo espinhoso debate
antropológico acerca do conceito de cultura. O que gostaríamos de destacar centra-se na
noção supramencionada de considerar os comportamentos – ou a falta deles – em relação ao
desastre como um sinal de apatia, inércia e conformismo. Concordamos com a alegação de
que, no Brasil, tanto em relação à gestão de emergência quanto à mobilização social,
permanece o foco nas medidas pós-desastre. Entretanto, em relação à sociedade civil, essa
assertiva precisa ser um pouco mais aprofundada. No que tange ao aspecto institucional, por
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exemplo, a presença da estrutura de Defesa Civil nos municípios ainda é insuficiente,
abrangendo 50% dos municípios do país em 2013 (IBGE, 2014), sendo que em parte
significativa desses locais, o número de pessoal envolvido é módico. Os principais desastres
que afetam o país, como os decorrentes de enchentes, enxurradas, alagamentos e
deslizamento de terra, são potencializados por problemas no uso e ocupação do solo urbano,
indicando, portanto, falha em ao menos uma das etapas envolvidas no processo de gestão
dessa área. Ainda que os autores anteriormente mencionados não ignorem tal questão,
defendemos que seu tratamento permanece superficial. Se, de fato, as pessoas continuam a
ocupar áreas consideradas de risco, isso não acontece apenas por uma percepção equivocada
dos riscos ou da gravidade de um eventual desastre. Como aborda Maricato (2011), a
ocupação do solo urbano possui dois grupos de atores centrais: por um lado, um grupo
econômico, político e socialmente abastado que vive do mercado imobiliário altamente
especulativo e, de outro, uma população socialmente excluída que, marginalizada, não vê
outra solução além de ocupar terrenos irregulares, com a construção precária e pouco ou
nenhum conhecimento da legislação pertinente. Não se trata, este último, de um ator
completamente passivo ou inerte; o risco enquanto conceito é temporalmente situado no
futuro, tratando-se de uma possibilidade, antes que de um fato dado ou completamente
previsível. A realidade cotidiana, entretanto, converge com muito mais força e urgência na
vida de pessoas que têm poucas perspectivas de futuro. Ademais, ressalta Quarantelli (2008),
a noção de que as pessoas são apáticas diante dos desastres geralmente mostra-se uma
espécie de “mito” propagado, sobretudo, pela mídia de massa, tendo esse tipo de
comportamento pouca verificação na realidade.
Para entender a produção social do desastre, especialmente no contexto brasileiro, as
escolhas e consequências do desenvolvimento econômico adotado ao longo da história, bem
como outras formas de produção e manutenção das desigualdades sociais precisam tomar lugar
central no debate sobre desastres. Mesmo cientes das gravidades e resultados traumáticos das
experiências de desastres, não podemos esperar grandes mudanças comportamentais de
pessoas em situação de vulnerabilidade e risco se não lhes forem apresentadas alternativas
viáveis para a reconstrução de suas vidas. E, nesse sentido, a desconfiança institucional por
parte da sociedade civil não pode ser deixada de lado: a sociedade de modo geral, mas
sobremaneira, as parcelas da população historicamente negligenciadas pelo poder público
apresentam dificuldade em estabelecer relações pautadas na confiança junto ao Estado, uma
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vez que a face deste que normalmente lhes é familiar consiste apenas no aparato repressivo.
No que tange à gestão dos desastres, o Estado, na forma da Defesa Civil, remete comumente
ao processo de desalojamento das casas em situação de risco, consistindo numa relação, no
mínimo, delicada, entre Estado e população. Desse modo, urge uma mudança mais profunda
tanto nas causas raízes de produção e manutenção das desigualdades quanto no estreitamento
das relações entre poder público e sociedade civil.
Por fim, no que concerne à Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC),
no seu âmbito institucional, muito ainda precisa ser trabalhado. A interação entre os entes
federados precisa ser coordenada e cooperativa, bem como a relação entre municípios e
estados, uma vez que é preciso ter uma visão mais ampla do problema, na medida em que
uma política pública de caráter ambiental não se restringe aos limites políticos de estados,
municípios ou da União. A gestão de risco de desastres deve estar intrinsecamente ligada –
como prevê a própria PNPDEC – a outros instrumentos de gestão do solo e de recursos
hídricos, não podendo ser pensada de maneira isolada. Além disso, urge incentivar a
sociedade civil a participar de todo processo político envolvendo as diversas etapas de
elaboração, implementação e avaliação das políticas locais de redução de risco de desastres.
Conclusão
Sem ter a pretensão de esgotar o tema, o presente trabalho buscou apenas chamar
atenção para o grande desafio que a questão dos desastres suscita, seja no âmbito teórico,
seja no prático. Procuramos atentar aos diferentes destaques dados pelos autores
mencionados à noção de cultura de redução de riscos de desastres no material produzido
em parceria com a Secretaria Nacional de Defesa Civil. Ainda que o Caderno Especial não
buscasse exaurir a discussão, muito antes, iniciá-la, insistimos que o debate sobre o papel
das desigualdades na produção e manutenção de cenários de risco ainda é incipiente. Não
podemos, porém, nos furtar em discutir a posição negligente do Estado frente às populações
vulneráveis em razão das escolhas de desenvolvimento econômico adotadas local ou
globalmente. Ainda que isso tenha sido mencionado nos trabalhos, o foi apenas
marginalmente no conteúdo do Caderno, e quando acontecia, não tratava das
responsabilidades de Estado, iniciativa privada e sociedade civil com a mesma justiça.
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Que é necessária uma educação sobre os riscos de desastres, sobre a dinâmica da
natureza e nosso papel na produção destes riscos, não há dúvidas. Entretanto, precisamos
identificar e discutir com seriedade as responsabilidades dos diversos atores envolvidos no
processo de construção dos riscos de desastres. Só assim será possível falarmos em
mobilização social e mudança cultural em prol de uma cultura de redução de risco de desastres.
Referências
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Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC. Dispõe sobre o Sistema Nacional de
Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil CONPDEC. Autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres.
Legislação informatizada. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/2012/lei12608-10-abril- 2012-612681-publicacaooriginal-135740-pl.html>. Acesso em: 24.08.2015.
BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Instrução Normativa n. 1, de 24 de agosto de
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O “DESENVOLVIMENTO” E OS ATINGIDOS PELA HIDRELÉTRICA DE
IRAPÉ NO ALTO JEQUITINHONHA
Renata Cristina Santos
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM
Resumo: A partir do “Programa Novo Jequitinhonha”, na década de 80, é prevista a disseminação
de barragens, entre elas a Usina Hidrelétrica de Irapé, inaugurada em Junho de 2006. Pretende-se
verificar o processo de implantação da Hidrelétrica de Irapé e como o conceito de “desenvolvimento”
é utilizado para justificar a sua implantação. O conceito de “desenvolvimento” é discutido sob várias
perspectivas, entre elas a que o associa ao crescimento econômico. Existe ainda, uma visão mais
abrangente que o associa a outras formas de “desenvolvimento”, como o social, econômico, político,
cultural. No entanto, projetos como a Hidrelétrica de Irapé baseiam-se na ideia de “desenvolvimento
e progresso”, o que “justifica” sua implantação, mesmo em detrimento de milhares de atingidos que
tiveram que deixar seus territórios. Desta forma, este trabalho, baseado em análise bibliográfica e
pesquisa de campo pretende mostrar, que nem todos os moradores do Vale do Jequitinhonha
compartilham da visão dominante de desenvolvimento e, não querem ter suas vidas modificadas por
empreendimentos desenvolvimentistas e que, a implantação da Hidrelétrica de Irapé no Vale do
Jequitinhonha promoveu a desterritorialização de atingidos, ocasionando mudanças nas práticas
culturais e nos modos de vida dos reassentados no Alto Jequitinhonha.
Palavras-chave: Vale do Jequitinhonha; atingidos; territorialidade.
Abstract: From the “New Program Jequitinhonha”, in the 80s, is expected to spread dams, including
the Irapé hydroelectric plant, which opened in June 2006. It is intended to check the of hydroelectric
Irapé implementation process as well as the way that the concept of “development” is used to justify
its implementation. The concept of “development” is discussed from various perspectives, including
that the links to economic growth. There is also a broader vision of “development” related to social,
economic, political, cultural. However, projects such as the hydroelectric Irapé are based on the idea
of “development and progress”, which “justifiy” its implementation, even at the expense of thousands
of affected who had to leave their territories. Thus, this work based on bibliographic analysis and
field research aims to show that not all residents of the Jequitinhonha Valley share the dominant view
of development and do not want to have their lives changed by development projects and the
implementation of hydroelectric Irapé in Jequitinhonha Valley promoted the dispossession of people
affected, resulting changes in cultural practices and livelihoods of resettled in Alto Jequitinhonha.
Keywords: Jequitinhonha Valley; achieved; territoriality.
1. A Hidrelétrica de Irapé e o conceito de “desenvolvimento”
A partir de análises realizadas por Zhouri e Oliveira (2005), verifica-se que houve,
no início da década de 1980, uma nova frente de expansão por intermédio do “Programa
Novo Jequitinhonha”, que previa a disseminação de projetos de barragem para geração de
energia, entre elas a Usina Hidrelétrica de Irapé. Especificamente em 1986, de acordo com
Zucarelli (2006), a partir do “Programa Novo Jequitinhonha”, foi prevista a construção de
dezesseis hidrelétricas, onze delas no rio Jequitinhonha, como a hidrelétrica de Irapé.
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Conforme Hermet (2002), até o século XIX, ainda não se falava de desenvolvimento,
mas apenas de progresso. De acordo com o mesmo autor, no período de consolidação do
Estado, no Brasil, e de suas agências econômicas, surgiu, a partir de 1945, a ideologia
“desenvolvimentista”, sob influência de orientação política dos Estados Unidos. A questão
econômica passava então a ser utilizada para atrair os povos considerados deserdados da
África, Ásia e da América Latina. Nascia, nesse contexto, o conceito de
subdesenvolvimento, utilizado pelo presidente norte-americano Harry Truman no “Discurso
sobre o estado da União”. De acordo com o presidente, era necessário utilizar o progresso
científico e a indústria para a promoção de melhorias das condições de vida e crescimento
econômico nas regiões subdesenvolvidas.
Conforme Steva (2000), no discurso de posse realizado por Truman, são definidos
quem é desenvolvido e quem é subdesenvolvido1. Criava-se, assim, uma percepção do “eu”
e do “outro” e, consequentemente, ideias de discriminação eram elaboradas em relação às
diversas sociedades que passavam a ser consideradas como subdesenvolvidas. Steva (2000)
verifica, ainda, que o conceito de desenvolvimento sofreu outras mudanças quando o termo
passou a ser reduzido ou associado ao crescimento econômico.
Hermet (2002), por sua vez, considera que, na América Latina, as ideologias 2 de
desenvolvimento conservavam até período recente uma lógica “macroeconômica”. Existia,
dessa forma, um apreço pelas elites e desprezo direcionado ao “microdesenvolvimento”, ou
menosprezo pelos sentimentos das pessoas comuns.
E não deixou de ser característico nas épocas do “desenvolvimento” triunfante
e do “antidesenvolvimentismo”, durante o período compreendido entre 1950 e
1970. Subsistiu com a mesma força ou até com mais força ainda depois da brutal
virada “neoliberal” posterior a 1980 e começa apenas a dissipar-se sob o impacto
dos estragos ocasionados pela abertura dos intercâmbios, [...] e o relativo
questionamento do papel do Estado (HERMET, 2002 p. 26).
Prado Júnior (1999), por sua vez, considerou a problemática de nosso tempo como
centralizada em torno do “desenvolvimento”. Conforme o autor clássico do pensamento
1
Conforme Steva (2000), a era desenvolvimentista teve início com Truman. No entanto, o termo
subdesenvolvimento havia sido utilizado anteriormente. Wilfred Benson, membro do Secretariado da
Organização Mundial de Trabalho, provavelmente cria a palavra, quando em 1942, ao escrever suas bases
econômicas, faz referência às “áreas subdesenvolvidas”.
2
De acordo com Hermet (2002), o conceito de ideologia utilizado diz respeito ao conjunto de diferentes
crenças, princípios de atitudes, que governaram na América Latina, as representações e práticas econômicas
de maneira rígida, que contribuíram para encobrir a caráter dos modelos dominantes em momentos sucessivos.
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brasileiro, o “desenvolvimento” tem alicerce no crescimento econômico, ou a teoria do
“desenvolvimento” se desdobra a partir da teoria econômica, devido às análises e
explicações baseadas nos modos de produção que impactam a vida nas sociedades modernas.
Martins (1999), por sua vez, elabora também análises relacionadas ao crescimento
econômico e ao desenvolvimento social. De acordo com este autor, a ênfase no crescimento
não é nova, pois lembra confrontos da mesma época dos anos de 1950 e 1960 e no período
militar. Seja como for,
Uma preocupação, porém, que poderia e deveria ser desdobrada
criticamente para que pudéssemos também, examinar a hipótese oposta e
alternativa de que, no fim das contas, é a modalidade de crescimento
econômico o que, na verdade, bloqueia o desenvolvimento social e político
da sociedade brasileira. A melhor alternativa de interpretação, porém [...]
é a de que esses fatores e condições se combinam numa espécie de
causação circular e cumulativa [...] (MARTINS, 1999, p. 53).
Martins cita, nos anos de 1950, Florestan Fernandes que já discutia a superação dos
constrangimentos ao desenvolvimento e à modernização no âmbito das classes subalternas
e das populações pobres, rurais e urbanas. Seu discípulo, Octavio Ianni também trabalhou
de maneira crítica com a concepção de crescimento econômico, de modo a analisar as
dificuldades representadas pelo atraso da economia brasileira e sua condição de
subalternidade internacional. Segundo Martins:
Ao invés da concepção quantitativa e linear de crescimento (econômico),
Ianni sugeria a concepção dialética de desenvolvimento (histórico) que
levasse ao exame das contradições estruturais (e, portanto, políticas e de
classe) que erguiam obstáculos às transformações na sociedade brasileira
(MARTINS, 1999, p. 56).
Para Martins (1999), no marco do desenvolvimento juscelinista, nos anos de 1950,
vigorou um clima de preocupação com a superação do atraso econômico ainda que de menor
preocupação com o atraso político, representado pelo clientelismo das oligarquias regionais.
Neste sentido, a experiência transformadora do governo de Juscelino Kubitschek assegurava
“apoio para seu projeto de desenvolvimento econômico e de modernização da sociedade
brasileira, supondo que as elites regionais e oligárquicas, beneficiárias do atraso e por ele
responsáveis, legitimariam seu poder modernizador” (MARTINS, 1999, p. 59).
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Conforme Ribeiro (2008), o “desenvolvimento” está relacionado com diversas visões
e posições políticas, e vinculam ainda à expansão econômica. Em decorrência, são
ocasionadas lutas de poder entre instituições e atores, onde os mais poderosos entre estes
últimos podem ser designados como “indústria do desenvolvimento”. Os atores e instituições
que detêm menor poder sofrem consequências, a exemplo da destruição dos povos indígenas,
ribeirinhos, e de suas formas culturais bem como das relações com seus territórios, através
de reassentamentos construídos por empresas.
Aproximando-se das análises realizadas por Zhouri (2005) e Zucarelli (2006), quanto
a considerar o “desenvolvimento” associado não somente ao fator econômico. Paula (2011)
sugere que o conceito deve abranger outras formas de “desenvolvimento”. Segundo o autor,
o conceito passa por modificações, depende de métodos que são utilizados para explicá-lo e
é definido historicamente, revelando situações de dominação capitalista. A conceituação de
desenvolvimento de Paula (2011) aproxima-se, assim, do conceito de fato social de Mauss,3
porquanto o desenvolvimento somente pode ocorrer quando outras formas de
desenvolvimento estiverem envolvidas, ou quando o desenvolvimento social, econômico,
político, cultural, institucional, ambiental também existirem. O desenvolvimento precisa
existir de maneira total, não apenas associado ao econômico, mas associado às outras formas
de desenvolvimento, ou de acordo com o autor em questão, precisa ser fato social total.
De acordo com as explanações acima, a concepção de desenvolvimento esteve associada
ao crescimento econômico, ou seja, o desenvolvimento apenas seria alcançado de modo
quantitativo ou a partir de índices que comprovassem sua concretização. Nesse sentido, para
Zhouri et al. (2005), a ideia de “desenvolvimento e progresso” orienta o processo de
modernização do país e sua inserção no contexto de globalização econômica, mesmo que, para
que hidrelétricas sejam instaladas, comunidades rurais sejam deslocadas de seu território.
Dessa maneira, se considerarmos as explanações referentes à associação entre
crescimento econômico e “desenvolvimento”, “justifica-se” a instalação da Irapé como meio
de implementar o “desenvolvimento” na região do Vale do Jequitinhonha, devido à visão
que normalmente o associa à ideia de “Vale da pobreza”. No entanto, os projetos em geral,
considerados desenvolvimentistas não promovem o desenvolvimento do Vale do
Jequitinhonha, do pinto de vista de que a maioria da população da região não é beneficiada.
Conforme Mauss, “alguns fatos sociais, como a dádiva, eram capazes de atravessar, de fazer interagir todo o
complexo social, do individual ao coletivo, do sincrônico ao diacrônico” (PAULA, 2011, p. 34).
3
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Segundo análise de Zhouri et al (2011), nem todos os moradores do Vale do
Jequitinhonha compartilham da visão dominante de desenvolvimento, e não querem ter suas
vidas modificadas por empreendimentos desenvolvimentistas. Algumas comunidades, como
as ribeirinhas, possuem um modo próprio de produção econômica, social e cultural.
Entretanto, isso não significa dizer que não há um reconhecimento da necessidade
desenvolvimento de suas formas produtivas ou uma exclusão da importância da economia.
Como afirmam os autores, sobre as comunidades ribeirinhas.
A sua rejeição aos projetos desenvolvimentistas não significa o desejo de
estagnação ou de permanência em uma espécie de passado contínuo. Ao
contrário, querem participar e produzir o desenvolvimento da região, com
base nas condições locais, moldando o seu próprio destino (ZHOURI;
LASCHEFSKI, 2011 p. 186).
A fala a seguir confirma a afirmação da Zhouri e corresponde ao resultado de minha
pesquisa junto aos reassentados no município de Diamantina. É possível perceber como um
atingido pela hidrelétrica de Irapé justifica que não é contra o progresso, mas é contra a
maneira como o progresso é instaurado. Em uma reunião com representantes de Grão Mogol,
o atingido e uma equipe, da qual participavam professores universitários, comentam sobre o
progresso. O atingido compreende a importância da transparência no processo que envolve
a instalação de uma barragem e como esta deve beneficiar primeiramente os atingidos. Em
conversa com um prefeito, o senhor J4:
nós não somos contra o progresso, nós somos contra o progresso da maneira que
ele é chegado, sem muitas vezes, chega até você que é prefeito e não chega lá
na grota onde que está um morador lá e sobrevive lá, às vezes de um
quintalzinho de uma rocinha lá. E então nós estamos aqui pra falar pro senhor o
seguinte, que todo o progresso ele tem que chegar até o cidadão mas, quando
ele, beneficia primeiro quem é atingido [...]. Então, por isso que nós viemos cá,
pra falar pra conversar com o senhor isso, que a gente trabalha e nós não somos
contra o progresso, nós queremos fazer com que o progresso chegue até o
cidadão de uma maneira transparente, da maneira transparente, não chegando
sufocando do modo que é construído até hoje no Brasil e do progresso que vem
de interesse dos grandes (J., Entrevista, 06/12/2014).
Para Zucarelli (2006) as políticas públicas que propõem desenvolver a região são o
reflexo do contrário. Segundo o autor mencionado:
4
Para resguardar os atingidos entrevistados, optou-se por identificá-los pela primeira letra do nome.
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São projetos impositivos, alienados das condições ecológicas e
societárias do lugar, e que geralmente repercutem na exclusão dos
pequenos agricultores. O modelo de desenvolvimento sugerido pelo
governo estadual, fundado em padrões de vida urbano-industrial, tornase contrário à complexa relação dos pequenos proprietários com as
formas de concepção, apropriação e usos de suas terras e de suas
dádivas naturais (ZUCARELLI, 2006, p. 56).
Conforme o pesquisador, as opiniões de moradores do Vale do Jequitinhonha
divergem do discurso econômico do Estado e evidenciam a importância da agricultura
familiar. Eles relatam ainda a importância de parcerias e acordos realizados junto com os
moradores do Vale do Jequitinhonha (ZUCARELLI, 2006).
Dessa maneira, os projetos que procuram “desenvolver” o Vale do Jequitinhonha, a
partir de políticas econômicas, resultam na expropriação de comunidades de seus territórios,
como ocorreu com milhares de pessoas, desapropriadas pela implantação da usina hidrelétrica
de Irapé. Nas palavras do autor, “a construção da usina de Irapé é, assim, mais um exemplo da
perpetuação de um dado modelo econômico instituído para o Vale do Jequitinhonha”
(ZUCARELII, 2006, p. 57), que promove modificações socioculturais nos modos de vida das
populações desalojadas, fazendo prevalecer o privado “sob a égide de uma “cultura do bem
comum”. Essa “cultura do desenvolvimento” que pressupõe que todos teriam um futuro melhor,
maior qualidade de vida, enfim, uma melhoria de “comum acordo” (ZUCARELLI, 2006, p. 57).
Dessa forma, a visão desenvolvimentista continua presente no Brasil, e faz com que o Estado de
MG, empresas e as elites mineiras viabilizem a implantação de obras, como a Irapé.
1.1 Atingidos pela hidrelétrica de Irapé
A Hidrelétrica de Irapé encontra-se localizada no rio Jequitinhonha, o acesso ao eixo do
barramento se dá a partir da ligação entre a Rodovia BR 367. A barragem é considerada um
empreendimento de enormes extensões. O lago da Hidrelétrica em questão abrange sete
municípios: Cristália, Berilo, Grão Mogol, Botumirim, Leme do Prado, José Gonçalves de Minas,
Turmalina. Dos remanejamentos ocorridos, 565 famílias foram reassentadas em 18 municípios.
Depreende-se que muitas famílias foram reassentadas em outros municípios, que não os de origem.
A comunidade, analisada ao longo da pesquisa, encontra-se situada na fazenda
denominada Riacho da Porta, localizada à margem direita do Rio Jequitinhonha, no município de
Diamantina. A fazenda possui uma área de 2033,96 hectares, dividida em 17 lotes. Os atingidos
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reconhecem que quatorze famílias foram reassentadas pela Cemig. No entanto, outra família
atingida também foi reassentada no mesmo local, o que configura a existência de reassentamento
de quinze famílias. A mudança das famílias para a fazenda aconteceu na primeira semana de
Setembro de 2005, e era feita de duas ou três famílias por vez.
A disposição das quatorze famílias na fazenda, respeitou de maneira significativa a
forma de distribuição das casas, construídas no antigo território. Tal atitude evitou conflitos
por parte dos atingidos que aceitaram a proposta de manter a ordem de existências das
moradias no antigo município. No entanto, pequenas mudanças foram notadas, houve uma
troca consensual entre dois moradores, porque uma das referidas famílias queria ficar mais
próxima da casa dos pais.
Com relação às quinze famílias que se mudaram para a fazenda, e às mudanças na
comunidade, um reassentado vendeu as terras para outra família porque possuía um filho
que precisava de cuidados médicos, e um outro reassentado também vendeu a terra, porque
a esposa trabalhava próximo as terras de onde vieram, mas ainda frequenta a comunidade.
De acordo com os reassentados, existem na fazenda dois lotes vagos, que seriam dos
reassentados de Cana Brava e que se recusaram a deixar as terras de origem.
De acordo com os moradores, existem, na atual comunidade, vinte e duas famílias, que
originaram dos casamentos dos filhos dos reassentados. Alguns se casaram com mulheres que
viviam próximas das localidades de Virgem da Lapa, e um deles se casou com uma moça de
Diamantina. Foi mencionada por alguns reassentados, a existência de outro morador que também
vive na fazenda Riacho da Porta, trata-se de um dos herdeiros da fazenda, que segundo relatos dos
atingidos, se recusou a deixar a fazenda. Tal morador, posteriormente comprou alguns hectares de
terra de um dos reassentados, e atualmente vive junto dos atingidos.
A seguir, comenta-se um pouco sobre algumas mudanças sofridas pelos atingidos.
Foram verificadas mudanças na maneira de celebrar as cerimônias religiosas e no modo de
produção da comunidade atingida. Tais mudanças resultam do processo de deslocamento
sofrido pelos atingidos.
1.2 A religiosidade
Algumas práticas religiosas continuam sendo realizadas pelos atingidos ao longo do
ano. Comemora-se, por exemplo, a festa de São Pedro, no mês de Junho. Este ano, a festa
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de São Pedro aconteceu nos dias 27 e 29 de Junho, onde foi celebrada uma missa, seguida
de “levantar o mastro”, em seguida ocorreu um leilão, e por fim foi servida comida para
todos que estiveram na comunidade celebrando a festa. Os reassentados mencionam a
participação de parentes que moram próximos das terras em que viviam. Sendo assim, a festa
de São Pedro faz com que os parentes possam se reencontrar novamente.
As mudanças são notadas pelos reassentados. No momento anterior ao processo de
deslocamento, a comemoração de São Pedro acontecia com mais tranquilidade, havia uma
procissão que ocorria durante o dia, e não havia pressa para acabar. Atualmente, todos os
rituais da festa são realizados em um único momento e durante a noite. Sobre isso, comentou
a reassentada, M. H.:
(Pesquisadora: A festa de São Pedro esse ano, foi muito diferente da festa
que era lá?)
M. H.: Um pouco diferente, que lá tudo assim, lá tinha mais tempo pra tudo, era
procissão, lá tinha procissão durante o dia, do andor era diferente [...], quando
era a noite tinha a procissão da bandeira, tinha a levantação do mastro, aqui o
padre já chega à tarde, só tem a procissão da bandeira só. É diferente, lá a gente
fazia caminhada com o andor (M.H., Entrevista, 26/07/2015).
No território alagado, comemorava-se também a novena de Nossa Senhora de
Lourdes, ao longo do mês de maio. Na comunidade atual, as rezas acontecem no primeiro
dia e no último do mês, A comunidade se reúne na casa de um reassentado para terminar a
novena, é servido um café e biscoito para finalizar a comemoração. A diferença entre a
realização da cerimônia atual e a anterior era a existência uma pequena igreja erguida pela
comunidade especificamente para a novena de Lourdes. A construção do referido local
surgiu da demanda dos moradores que ficavam na casa de um dos reassentados para a reza
de Lourdes onde também havia na casa um altar no quarto. Devido à quantidade significativa
de pessoas, veio a ideia de construir um local para realizar a celebração mas, atualmente,
não há na comunidade a existência de um local apropriado para a novena, que volta a ser
realizada na casa da família de um reassentado.
Outra diferença com relação às festividades no território anteriores à mudança diz
respeito à festa do Divino do município de Turmalina. A festa mencionada ocorria nos meses
de maio, junho e julho, e o giro do Divino começava na casa de um morador e era levado às
demais casas da comunidade de Cana Brava de maneira que se arrecadava dinheiro para
comemorar a festa do Divino no mês de julho. Comemora-se, também, a festa do Divino na
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fazenda, em um único dia deste ano, e o dinheiro arrecadado com o giro fica para a
celebração de São Pedro ou para a Igreja. Neste ano, comemorou-se em junho, com o giro
indo às casas dos moradores da comunidade, e terminando com um jantar servido a todos os
participantes, quando se reza o terço acompanhado de um leilão.
É possível notar um esforço dos reassentados para que tais cerimônias continuem a ser
celebradas, não exatamente da maneira que eram realizadas antes, mas de modo a tentar manter
a identidade da comunidade. Observa-se também que, as comemorações antes realizadas no
outro território permanecem vivas na memória. As tentativas de continuidade das festas fazem
com que a ruptura provocada pelo deslocamento de algumas estruturas do grupo tenha alterado
a forma de realizações das celebrações, pois o território anterior não existe mais. No entanto,
para não se sentir perdido, existe a busca de ponto de apoio, adaptações nas maneiras de
realizar as comemorações, de interagir com o novo território ocupado, para que as lembranças
possam sobreviver e a identidade coletiva possa ser preservada (LUCENA, 1997). No entanto,
as práticas realizadas pela comunidade atingida, como as religiosas, não poderão ser
reproduzidas da maneira que eram realizadas antes do deslocamento.
1.3 Entre “territórios”
Assim como no caso das transformações observadas nas práticas religiosas, foram
verificadas mudanças na maneira de produção da comunidade, decorrentes do processo de
territorialidade, considerado como o esforço de um grupo para usar e ocupar, controlar o ambiente,
esforço, segundo Little (2003), da comunidade pesquisada construir uma “nova territorialidade”.
Foram verificadas tentativas de adaptação nas terras da fazenda, onde há produção
de alimentos para consumo e para comercialização em outras localidades. De acordo com os
atingidos, no primeiro ano em que se mudaram para a fazenda, houve uma produção
considerável de alimentos. No entanto, o processo de desterritorialização dos atingidos,
processo desencadeado pelo Estado e pela Cemig, que promove a destruição de formas
culturais de comunidades atingidas, “uma desterritorialização como perda de acesso à terra,
terra vista não só no seu papel de reprodução material, num sentido físico [...], mas também
como locus de apropriação simbólica” (HAESBAERT, 2005, p. 1772), sem tirar a noção da
importância da terra para os reassentados – muitos justificam a escolha da terra porque eram
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boas para produção – ao contrário, manifesta-se nos atingidos no sentimento da falta das
terras de origem, e por isso, o hábito de visitas à sua antiga morada.
Há poucos meses um atingido foi novamente com alguns filhos em Cana Brava,
mesmo com a derrubada da casa, ele ainda sente falta da morada e do antigo lugar e pretende
fazer uma construção no território modificado pela represa. De acordo com a esposa do
atingido, ele ainda não esqueceu o local. Em entrevista com o senhor A., a saudade do lugar
onde vivia também se manifesta quando retorna ao local de origem:
Pesquisadora: De vez em quando o senhor volta lá? O senhor lembra
quando foi a última vez?
A: A última vez foi em Outubro do ano passado, eu estive descendo de pé,
andando nas beiras lá, onde nós moramos.
Pesquisadora: o senhor sente falta?
A: A gente fica recordando o tempo que a gente conviveu ali era uma vida
sofrida, que nem estrada não tinha [...] a gente fica recordando o tempo que
a gente viveu ali e tem saudade (A., Entrevista, 26/07/2015).
Em outra entrevista, verifica-se a importância do território de herança dos atingidos,
e ainda existe um forte apego ao lugar onde viviam.
Que é da família, é da família que veio do meu bisavô, é tataravó, né, que a
vó, a tataravó era escrava. Então, por isso eu falo para você, a gente tem amor
na terra no lugar que nasceu, você sai você constrói outra história, mas quando
da uma trevazinha a gente quer ir lá para ver e acontece que eu vou lá, eu chego
no aterro da casa eu olho puxa vida, eu pego a chorar, eu pego a chorar porque
se lembra do tempo de infância (J., Entrevista, 06/12/2014).
A importância da terra para os atingidos, também está relacionada com a maneira
com que os camponeses reassentados se relacionam com a terra, e a consideram como um
patrimônio. De acordo com Woortmann:
Não se vê a terra como objeto de trabalho, mas como uma expressão de uma
moralidade; não em sua exterioridade como fator de produção, mas como algo
pensado e representado no contexto de valorações éticas. Vê-se a terra, não
como natureza sobre a qual se projeta o trabalho de um grupo doméstico, mas
como patrimônio da família, sobre a qual se faz o trabalho que constrói a
família enquanto valor. Como patrimônio, ou como dádiva de Deus, a terra
não é simples coisa ou mercadoria (WOORTMANN, 1990, p. 12).
Como se disse, alguns reassentados ainda sentem falta do local onde nasceram, e
fazem planos de fazer uma casa, para que as visitas possam ser feitas com maior frequência,
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pois não esqueceram o lugar, mesmo após o processo de mudança do lugar, sem a existência
das casas originais e de todos os moradores.
Nas casas atuais, as reminiscências do passado estão presentes, guardando-se as
lembranças das residências originais. Os novos quintais recordam os quintais das antigas
moradas, pois grande parte dos reassentados ainda constroem lugares para guardar os
produtos que produzem de modo muito semelhante aos que faziam nas antigas terras. Dessa
maneira, a presença das antigas lembranças também se materializa no vínculo que ainda
existe com o antigo munícipio.
A presença de relações sociais existentes com o território anterior também se revela
quando alguns reassentados precisam vender os produtos da atual fazenda em municípios
vizinhos. Apenas uma família de reassentados vende seus produtos no município de
Diamantina, outros comercializam com municípios vizinhos como Olhos D’Água, e também
em Turmalina, munícipio onde era vendido anteriormente. Em entrevista com o senhor A:
Pesquisadora: Vocês produzem só para casa ou vocês vendem em outro lugar?
A: Não, produz pra vender.
Pesquisadora: Vocês vendem onde?
A: Para todo lado, para região aqui mesmo, Bocaiúva, Olhos D’Água,
Diamantina, Turmalina, é o lugar que a gente veio, a gente tem contato
muito grande com o pessoal de lá, né, então a gente tem muita facilidade
para negociar com o pessoal de lá, até por telefone mesmo você negocia,
eles buscam a gente leva (A., Entrevista, 26/07/2015).
Dessa forma, trata-se de uma territorialidade que se constrói, que se faz com a presença
dos antigos lugares e lembranças, onde existem ainda comportamentos que tentam lembrar os
realizados no antigo território, como a distribuição das casas, mencionada anteriormente. Outro
fator observado, e que revela a existência de vínculo com o antigo território, diz respeito à relação
com os antepassados, com os mortos. Fato revelado devido a um enterro de um morador de Riacho
da Porta, até o momento houve apenas uma morte na comunidade, e seu enterro se deu no antigo
munícipio, próximo as terras onde moravam e onde os mortos da comunidade eram enterrados.
Sobre o enterro na fazenda, disse uma das entrevistadas:
G: [...] agora, depois que nós estamos aqui, já morreu só uma pessoa e
enterrou em Caçaratiba.
(Pesquisadora: e foi enterrar lá?)
G: Foi, ele era de lá eles quis ser enterrado lá, né, pois era o cemitério onde
os parentes estão enterrados, achou melhor enterrar lá (G., Entrevista,
28/02/2015).
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Os processos referidos revelam características do processo de reterritorialização.
Segundo Appadurai:
A reterritorialização pode envolver o esforço de criação de novas
comunidades residenciais localizadas (acampamentos, campos de
refugiados, albergues) que se fixam não num imaginário nacional, mas
apenas num imaginário de autonomia local ou de soberania de seus
recursos. Nestas comunidades em “trânsito”, há com frequência um
esforço no sentido de criar e defender várias formas de direitos (formais ou
informais, legais ou ilegais) que permitam que a comunidade deslocada
continue a ser reproduzir sob condições instáveis ao garantir acesso
confiável aos meios materiais para reprodução: água, eletricidade,
segurança pública, empréstimos bancários (APPADURAI, 1997, p. 11).
No contexto exposto acima, os reassentados da fazenda, mesmo em situações típicas
do processo de reterritorialização, procuram dar continuidade às vidas, coexistindo a
presença das memórias, do passado e do território atual com sua vivência.
Considerações Finais
Os dados aqui apresentados tornaram visíveis as mudanças na realização de práticas
culturais dos atingidos pela Hidrelétrica de Irapé, reassentados no município de Diamantina, no
Alto Jequitinhonha, mudanças na maneira de realizar as comemorações religiosas e no modo de
produção da comunidade. Apesar de os atingidos terem conquistado o direito de escolher um
novo local para morar, verifica-se o rompimento de alguns laços de parentesco, pois nem todos
os moradores da localidade optaram pela mudança junto com os demais parentes e conhecidos.
Mesmo decorridos quase dez anos de deslocamento compulsório, alguns atingidos ainda sentem
falta do território modificado pela represa. Dessa maneira, a ideia de justificar a implantação da
Hidrelétrica de Irapé, baseada no suposto “desenvolvimento” econômico do Vale do
Jequitinhonha, não revela as dificuldades vivenciadas pelos atingidos que tiveram suas vidas
modificadas e não condiz com a realidade de muitos moradores do Vale que não queriam as
referidas mudanças nos seus modos de vida.
Referências
APPADURAI, Arjun. Soberania sem territorialidade: notas para uma geografia pósnacional. Novos Estudos Cebrap. n. 49, novembro 1997. pp 7-32.
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HERMET, Guy. Cultura e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 2002.
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CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS NO CONTEXTO DA EXPANSÃO
URBANA/METROPOLITANA EM SÃO LUÍS-MA
Rosirene Martins Lima
UEMA
Nadloyd da Conceição P. Moraes
UEMA
Aérica Souza Malheiros
UEMA
Joallysson Desterro Bayma
UEMA
Resumo: Tem sido frequente a ocorrência de conflitos socioambientais nas cidades brasileiras. No
caso das áreas protegidas os conflitos socioambientais resultariam da disputa envolvendo diferentes
agentes pela apropriação e uso de determinados espaços e recursos, protegidos pela legislação
ambiental. Essa perspectiva privilegia apenas a ótica econômica, deixando de fora a dimensão
subjetiva. As “práticas sociais” resultam de uma representação do mundo, onde as dimensões
materiais e simbólicas estão intrinsecamente relacionadas. A análise aqui proposta parte do princípio
de que os conflitos socioambientais decorrem das diferentes formas de representação, apropriação e
uso do meio ambiente. Trata-se de refletir sobre os conflitos socioambientais considerando a maneira
como a sociedade se produz e reproduz. E, em se tratando da cidade, atentando para as diferentes
formas de produção, apropriação e uso do espaço urbano: suas contradições, diversidade de
interesses, diferentes percepções e projetos. A presente reflexão está inserida no âmbito de uma
pesquisa que tem como referência empírica a cidade de São Luís no estado do Maranhão. Objetiva
refletir sobre os conflitos socioambientais urbanos resultantes não apenas da apropriação e uso das
áreas de preservação, mas considerando também as representações dos diferentes sujeitos
envolvidos, sobre o meio ambiente.
Palavras-chave: expansão urbana; usos e apropriação; conflitos socioambientais.
Abstract: In Brazilian cities the occurrence of environmental conflicts has been frequent. In the case
of areas under environmental protection legislation such conflicts used to result from the dispute
involving different agents for the appropriation and use of certain spaces and resources. Prospects
like that only favor the economic logic, leaving out the subjective dimension and this particularly
relevant because the “social practices” resulting from a representation of the world, where material
and symbolic dimensions are intrinsically related. The analysis proposed here assumes that
environmental conflicts arise from different forms of representation, appropriation and use of the
environment and aims to reflect on the social and environmental conflicts considering the way
society is produced and reproduced. Focusing on a city, such reflection is also watch out for the
different forms of production, appropriation and use of urban space as well as its contradictions,
diversity of different interests and perceptions projects. This reflection is included as part of a
research that has as empirical reference the city of São Luís, MA and its aim is to reflect on urban
environmental conflicts arising not only the ownership and use of protected áreas but also
considering the representations of the environment of different individuals involved.
Keywords: urban expansion; uses and ownership; environmental conflicts.
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Introdução
É frequente nas cidades brasileiras a existência de conflitos decorrentes da ocupação
de áreas consideradas de risco e de proteção ambiental. O discurso ambiental tem
justificado suas ações a partir do entendimento de que a força da cidade que se expande, à
revelia do planejamento, acaba por “engolir” a “natureza”. Assim, numa “luta contra a
cidade” é que se inscrevem as políticas urbanas de ordenamento territorial, que objetivam
“proteger as áreas naturais”, alegando assegurar “qualidade de vida” para a população,
inclusive para as gerações futuras. O problema ambiental ou mais especificamente, o conflito
socioambiental, visto sob esse prisma aparta a sociedade da natureza e contribui para a
manutenção do dualismo homem/natureza. A noção de conflito resume-se à ideia de
apropriação e uso dos recursos naturais.
No caso das áreas protegidas e consideradas de risco, os conflitos socioambientais
resultariam da disputa envolvendo diferentes agentes pela apropriação e uso de determinados
espaços e recursos, protegidos pela legislação ambiental. Essa perspectiva privilegia apenas
a ótica econômica, deixando de fora a dimensão subjetiva. As “práticas sociais” resultam de
uma representação do mundo, onde as dimensões materiais e simbólicas estão
intrinsecamente relacionadas. Os sujeitos e grupos envolvidos no problema ambiental
possuem diferentes interesses e representações de mundo, mais especificamente de meio
ambiente (ACSELRAD, 2004).
A análise aqui proposta parte do princípio de que os conflitos socioambientais
decorrem das diferentes formas de representação, apropriação e uso do meio ambiente.
Trata-se de refletir sobre os conflitos socioambientais considerando a maneira como a
sociedade se produz e reproduz. E, em se tratando da cidade, atentando para as diferentes
formas de produção, apropriação e uso do espaço urbano: suas contradições, diversidade de
interesses e diferentes percepções e projetos. O presente trabalho expõe as reflexões em
torno de uma pesquisa em andamento que tem como referência empírica a cidade de São
Luís, no Estado do Maranhão.
São Luís enquanto capital concentra o maior contingente populacional do estado,
cerca de 1, 5 milhão de habitantes. A ilha onde se situa a região metropolitana de São Luís
é cortada por vários rios e composta por uma infinidade de áreas de mangues e nascentes.
Na última década a cidade de São Luís vem sendo palco de um acelerado processo de
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expansão urbana. O agressivo processo de ocupação, sobretudo por incorporadoras e
construtoras imobiliárias vêm implantando seus empreendimentos – condomínios de
apartamentos, em áreas de preservação, inclusive destruindo as nascentes.
Nesse sentido, a pesquisa tem como objetivos identificar as áreas consideradas de
preservação ambiental na cidade de São Luís, bem como os conflitos socioambientais
decorrentes das formas de ocupação e uso da cidade. Busca-se esboçar as representações
sobre cidade e meio ambiente, dos sujeitos envolvidos nesses processos e conflitos e
verificar a existência e o teor das políticas e projetos urbanos para essas áreas.
Um exercício inicial, portanto, deverá se ocupar de uma discussão primeira ainda que
breve acerca da legislação ambiental, enquanto instrumento de produção e difusão de uma
“idéia oficial” do meio ambiente, e num segundo momento, pontuar algumas situações
conflitivas identificadas no processo da expansão urbana da região metropolitana de São Luís.
1. A construção jurídica do meio ambiente
Segundo Hobsbawm (1996), a profunda transformação da sociedade ocorrida nas
últimas décadas serviu para colocar em questão os “padrões políticos tradicionais”, que se
organizavam em torno de bandeiras universais, as quais julgavam capazes de atender as
demandas da sociedade. Contudo, esse “universalismo de esquerda”, foi incapaz de
incorporar as demandas específicas de determinados grupos sociais, fazendo com que os
indivíduos passassem a se agregar de acordo com os seus interesses comuns. A despeito
desse processo que fez com que emergissem o que foi designado como sendo “novos
movimentos sociais” Hobsbawm (1996), chama atenção para o fato de que a única bandeira
capaz de ainda aglutinar esses movimentos seria a ecológica, embora tenha ressaltado a sua
pequena capacidade transformadora.
O esforço teórico do autor em compreender as dinâmicas sociais em curso, nos
remete a uma reflexão sobre a força da bandeira ecológica, que tem se demonstrado um
“eficiente” instrumento de coesão social, sobretudo pelo fato de que as questões relacionadas
ao meio ambiente vêm sendo tratadas como um elemento “natural”, afinal, ninguém seria
capaz de se opor aos ideais de preservação, proteção e defesa do meio ambiente. A “questão
ambiental” pode se inscrever no processo histórico de construção de novos fenômenos
sociais, isto é, de uma “nova questão pública” que é denominada por Lopes de “processo de
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ambientalização” (LOPES, 2004). Para esse autor, há uma incorporação nos discursos e nas
práticas sociais da dimensão ambiental.
O processo histórico de construção e incorporação do “problema ambiental” enquanto
“problema social”, implica na transformação dos indivíduos e do próprio Estado, que passam
a atentar para questões que não se apresentavam como relevantes. As sociedades elaboram um
conjunto de problemas sociais tidos como legítimos e dignos de serem discutidos e, portanto,
públicos. Fuks (2001) salienta que a definição do “problema ambiental” se dá num espaço
público por meio do debate e da ação. É nesse espaço de disputas que se observa uma
pluralidade de visões, embora esse autor ressalte as condições diferenciadas de participação
dos diferentes indivíduos, que implica em resultados também diferenciados (FUKS, 2001),
sobretudo nas questões de Direito Ambiental que envolve o próprio direito.
No caso específico da definição do “problema ambiental” enquanto “problema
público”, é importante ressaltar o papel do Direito Ambiental, que produz e difunde um
discurso “oficial” acerca do meio ambiente. O discurso do Direito Ambiental tem se
demonstrado extremamente eficaz para organizar as relações sociais e, por isso mesmo, tem
sido acionado por diversos indivíduos, inclusive, pelo poder público para justificar suas
políticas públicas e intervenções.
Assim a eficácia simbólica dos dispositivos se dá em função da forma de como se
organiza e se faz funcionar a ideia de meio ambiente, ou seja, veicula-se a ideia da natureza
como um bem comum que pertence a todos os membros da sociedade de forma indistinta. O
que se propõe é analisar esse processo, buscando afastar qualquer possibilidade de considerálo como algo natural, a exemplo do discurso produzido e difundido pelo Direito Ambiental.
Aliás, a noção de campo jurídico, tomada emprestada de Bourdieu (1989), serve também
para deslocar o debate do plano das ideias e submetê-lo ao das relações sociais.
Já no início da década de 1980, a questão ambiental tornou-se um “problema social”
merecedor de uma formulação jurídica. A sua formulação, entretanto, se deu em consonância
com os “esquemas jurídicos tradicionais”, embora existam tentativas em se afastar desses
esquemas. O direito tem se apresentado como se fosse de toda comunidade, mas na verdade
representa interesses que se encontram muitas vezes mascarados sob o manto da
universalidade. Dado essa universalidade, cabe aos interpretes “descobrir” esse direito.
A imensa maioria dos indivíduos, inclusive os próprios “operadores do direito”, tem
uma enorme dificuldade em distinguir as noções de direito e justiça de maneira que não
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haveria sequer a distinção. Nesse sentido, as pessoas “idealizam o direito”, que vai se
apresentar “isento” ou imune aos contextos sociais e políticos, o que faz com que o fenômeno
social sempre se encontre distante do direito. O distanciamento do direito em relação ao
mundo social onde se inscreve remete a discussão jurídica para o plano das ideias,
apresentadas como se destituídas de quaisquer valores, isto é, se se pode atribuir valor ao
direito, este é o da justiça. A “confusão” delineada entre as noções de direito e justiça tem
causado profundas consequências no plano do entendimento que se tem acerca do próprio
direito em todos os aspectos, incluindo o Direito Ambiental, como o de se pensar que o
direito se encontra a serviço de todos os indivíduos de forma indistinta.
Essa forma de compreender o direito de um modo geral tem servido para “encobrir”
os interesses que possam estar em jogo nas diferentes situações que envolvem diferentes
sujeitos sociais. Observam-se que os dispositivos ambientais têm sido elaborados e
incorporados no âmbito das políticas urbanas sem nenhum questionamento. Assim, tais
políticas têm rivalizado com diversos indivíduos e grupos sociais, que na maioria das vezes
disputam um mesmo fragmento da cidade. Nesse sentido, o Direito Ambiental tem se
colocado como um poderoso instrumento da política urbana, uma vez que permite organizar
uma “desordem” decorrente da utilização inadequada dos recursos naturais.
Chama-se atenção para o Direito Ambiental, que serve como balizador para a
elaboração dos dispositivos, em especial, pelo fato de que esse direito alia a noção de justiça
à noção de que o meio ambiente é um “bem de uso comum”, referido indistintamente a todos
os cidadãos. O caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 reza que “Todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” [grifo nosso]. O fato de
poder afirmar que o meio ambiente é “bem de uso comum do povo” parte do pressuposto de
que todos têm o mesmo entendimento do que seja meio ambiente e de que não há nenhum
tipo de controvérsia, pois haveria um interesse comum a todos os cidadãos no que se refere
à necessidade de preservá-lo e de protegê-lo.
Importa salientar ainda que esse sentido “bem de uso comum do povo” é
substantivado na expressão “sadia qualidade de vida”, que surge como complemento
necessário a uma perspectiva orientada não só aos aspectos unicamente materiais, mas
também espirituais e culturais, na medida em que devem contribuir para o desenvolvimento
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das potencialidades máximas dos indivíduos (DERANI, 1997). Para essa autora, a
“qualidade de vida” compreende a finalidade máxima do Direito Ambiental (DERANI,
1997) e representa o elemento orientador de todas as ações atinentes ao meio ambiente.
Nesse sentido, observa-se que um léxico de noções que dizem respeito ao meio
ambiente é incorporado ao discurso jurídico ambiental sem qualquer tipo de questionamento.
Além disso, é importante ressaltar que essas noções têm a pretensão de dar conta de todos
os fenômenos sociais. Trata-se, na realidade, de uma pretensão universalista do Direito
Ambiental. Nesse caso, haveria uma enorme possibilidade de interpretação do Direito
Ambiental, enorme grau de arbitrariedade.
É importante ressaltar que o campo jurídico, conforme Bourdieu (1989), é o espaço
de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito. Assim compreendido, esse
campo do Direito Ambiental se revela como um espaço de lutas pelo direito de “dizer” o
direito, sendo que as noções tomadas preferencialmente se encontram deslocadas dos
problemas sociais.
O fato de que a compreensão do “problema ambiental” enquanto “problema social”
se dá de forma diferenciada, em consonância com o processo que envolve distintas
compreensões do meio ambiente, o Direito Ambiental e seus dispositivos são espelhos desse
processo que, todavia, se verifica numa dinâmica bastante particular, mas que não se
encontra deslocada desse conjunto, que abarca uma compreensão do meio ambiente. A
despeito de toda pretensão do direito em tratar os interesses ambientais de forma comum,
vale ressaltar que são diversos e que, por isso mesmo, não podem ser difusos, como quer os
intérpretes. Aqui outra ideia cara ao Direito Ambiental.
Estamos diante de um Direito Ambiental que se espelha na compreensão que os
intérpretes “autorizados” e “legitimados” têm em relação ao meio ambiente. Sua força releva-se
na sua “prática cotidiana”, quando é capaz de organizar e classificar o mundo social. Observouse, por exemplo, quando de uma pesquisa realizada em Curitiba (LIMA, 2007), concluída em
2007, que os instrumentos do Direito Ambiental se constituíram num instrumento privilegiado
para a consecução das políticas urbanas. A pretexto da preservação, proteção e defesa do meio
ambiente, o poder público municipal daquela cidade conseguiu êxito em seus objetivos
coadunados com os interesses que envolviam a construção de um determinado tipo de cidade.
A reflexão que se iniciou em Curitiba orienta a busca de interpretação das situações que vêm
ocorrendo hoje em São Luís, que também incorpora a dimensão do discurso ambiental de
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pretensão universalista, cujos efeitos se apresentam como perversos para as comunidades
implicadas pelo processo de produção de um modelo de cidade.
2. Expansão Urbana e conflitos socioambientais em São Luís
A despeito das críticas acerca da constituição das regiões metropolitanas após a
Constituição de 1998, a região metropolitana de São Luís é composta dos municípios de São
Luís, São Jose de Ribamar, Paço do Lumiar, Raposa e Alcântara. É considerado o polo mais
importante do Estado do Maranhão, não somente em termos populacionais e administrativos,
mas, sobretudo, pelo novo impulso econômico desses últimos anos, em função dos
empreendimentos implantados na capital São Luís e nos municípios e cidades do entorno.
No bojo desses empreendimentos, a expansão urbana da cidade São Luís atualmente em
curso, ocorre em dois eixos, um, em direção ao Porto de Itaqui, caracterizado principalmente
pelas atividades industriais, e um outro eixo em direção aos municípios de São José de
Ribamar e Raposa, com forte atividade imobiliária, ainda que não exclusivamente.
Muito embora essa expansão venha absorvendo parte da área rural em direção aos
outros municípios da região metropolitana, observa-se um intenso processo de densificação
imobiliária no espaço intraurbano da cidade de São Luís. Nos interstícios da malha urbana
figuram diferentes empreendimentos imobiliários que compreendem condomínios fechados,
horizontais e verticais, sendo estes últimos, os de maior expressão. Tais condomínios
comportam projetos que vão dos mais modestos aos mais sofisticados ou considerados de
alto padrão, destinados a uma classe de maior poder aquisitivo.
As políticas urbanas vêm sendo pensadas a partir do entendimento da modernização
da cidade e do urbano que se efetiva através de projetos de intervenção privados ou públicos.
Os empreendimentos privados através das incorporadoras imobiliárias apropriam-se dos
espaços mais valorizados da cidade e ao implantarem seus empreendimentos acabam por
supervalorizar determinadas frações da cidade. Por sua vez, os projetos de intervenção
pública ocorrem por meio da criação de infraestrutura que privilegiam as frações da cidade
já valorizadas pela iniciativa privada. Tal entendimento enseja intervenções e organização
do território descurando da diversidade socioespacial.
Esse intenso processo de intervenção que vem ocorrendo no espaço urbano de São
Luís, orientado para determinados segmentos da população, tem acarretado muitos conflitos,
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na medida em que não considera a participação das populações atingidas por determinados
projetos. Também tem gerado conflitos em razão da ocupação das áreas de preservação
ambiental, sobretudo, áreas em que há populações ocupando de alguma forma.
Determinadas áreas como é o caso da Estação Ecológica do Rangedor (área de
preservação e recarga de aquífero, por conter várias nascentes), esta, situada no coração da
cidade, vem sofrendo o mais recente e agressivo processo de destruição por parte das
construtoras imobiliárias. Tal investida tem produzido a destruição das nascentes, a poluição
dos riachos e obrigado uma comunidade que vivia na área há muito tempo a sair do local.
Em razão da localização e dos vários empreendimentos em curso, a área tem sido cada vez
mais valorizada, e torna-se assim objeto de disputas e conflitos. Diante dos problemas, os
antigos moradores dessas áreas são responsabilizados pelos problemas relacionados à
“degradação ambiental” pois, segundo as autoridades, estariam ocupando áreas
inapropriadas, consideradas de risco e legalmente protegidas.
Outra situação de conflito que caracteriza esse processo de expansão da cidade de
São Luís relaciona-se à construção de um novo Shopping Center – chamado Shopping da
Ilha que, segundo propaganda, é o maior shopping da América Latina. Tal empreendimento
foi construído também em área de preservação, onde várias nascentes foram aterradas e a
população do entorno obrigada a deixar o local. A população efetuou várias reuniões para se
organizar com o objetivo de se manter no local. Contudo, não houve acordo e só restaram
algumas poucas famílias cujas residências encontravam-se fora da área do empreendimento.
A maioria foi obrigada a sair do local onde residia há anos.
Além desses projetos de intervenção, outro grande projeto diz respeito à construção
de uma avenida, chamada de “via expressa”, que atravessa doze comunidades localizadas no
bairro “Vinhais Velho”. A Via atravessou o bairro ao meio e o dividiu, apartou várias
famílias que foram obrigadas a sair dos seus antigos locais de moradia e perder a convivência
com seus familiares. A referida avenida, segundo publicidade do próprio poder público, tinha
como objetivo beneficiar toda a população da cidade através da liberação do fluxo de
veículos. Observa-se que o referido projeto de implantação dessa via expressa beneficiou
diretamente a população que utiliza o carro particular uma vez que não há linhas de
transporte coletivo – ônibus e van não circulam na Via Expressa. Assim, as comunidades
atingidas por tal empreendimento recusaram-se a sair de suas casas e reclamaram da falta de
participação nos processos de mudança do bairro onde moravam e, consequentemente, dessa
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“nova cidade” que vai sendo produzida. Essa situação de descompasso entre as necessidades
da população e os interesses em jogo relativos aos projetos urbanos tem gerado muitos
conflitos, sobretudo os de ordem ambiental.
Os esforços do Poder Público Municipal têm se dado no sentido de deslocar os
moradores para outras áreas, na medida em que entende resolver o problema ambiental e o
social, e mais do que isso, entende que tais empreendimentos representam o
desenvolvimento da cidade. De outra forma, significa também, para o Poder Público fazer
uma assepsia dessas áreas na medida em que são entendidas como socialmente
problemáticas ou como entraves ao dito “desenvolvimento urbano”. À condição de pobreza
dos moradores são associados vários problemas, como a violência, servindo para reforçar os
estigmas e as medidas eventualmente adotadas (WACQUANT, 2001).
Observam-se vários sujeitos em disputa pela apropriação e uso da cidade,
principalmente das áreas mais valorizadas, mesmo daquelas de preservação ambiental, em
flagrante desrespeito à Legislação Ambiental e ao Estatuto da cidade. Tais áreas, na nossa
interpretação, têm servido muito mais como “reserva de valor”, na medida em que podem
aguardar o tempo necessário para a especulação. O processo descrito delineia entendimentos
diversos acerca do direito à cidade (LEFEBVRE, 1991), do direito de morar e do direito ao
meio ambiente, expressando situações de conflito socioambiental.
Considerações Finais
A noção de conflito socioambiental apontada por Acselrad (2004) tem como
pressuposto que a sociedade no seu processo de reprodução confronta diferentes projetos de
uso e significação quanto a seus recursos ambientais, portanto, os conflitos socioambientais
comportam tanto aspectos materiais quanto subjetivos, que se colocam de forma complexa.
Assim, é preciso fugir do “objetivismo” do conflito socioambiental, comumente
expresso na aparente disputa pelo uso e pela disputa pela apropriação dos recursos naturais,
pois não se esgotam nessa fórmula matemática ocupada em contabilizar “ganhos” e
“perdas”. É preciso considerar o processo social que carrega em si um conjunto de agentes
e projetos distintos, mas, sobretudo, considerar os significados que o meio ambiente tem
para os diversos agentes sociais.
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Dessa forma, a “problemática ambiental” comporta, além da dimensão material, um
conteúdo simbólico, por isso mesmo é que contém um conteúdo conflitivo e político. Além do
conflito socioambiental, o que se encontra também na base dessa disputa é o direito à cidade, que
se expressa na possibilidade das famílias poderem escolher e definir onde e como querem viver.
Referências
ACSELRAD, Henri. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Difel/
Bertrand Brasil, 1989.
DERANI, Cristiane. Direito econômico ambiental. São Paulo: Max Limonad, 1997.
FUKS, Mário. Conflitos ambientais no Rio de Janeiro: ação e debates nas arenas
públicas. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos
Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.
LIMA, Rosirene Martins Lima. Conflitos sócio-ambientais urbanos: o lugar como categoria
de análise da produção de Curitiba/ Jardim Icaraí. São Luís: Edições UEMA, 2008.
LOPES, José Sério Leite (Coord.). A ambientalização dos conflitos sociais. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2004.
WACQUANT, Loic. Os condenados da cidade. Trad. João Roberto Martins Filho. Rio de
Janeiro: Revan; FASE, 2001.
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