Michelle Carneiro da Silva

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MICHELLE CARNEIRO DA SILVA
OCUPAÇÃO DE BENS PÚBLICOS: POSSE OU MERA DETENÇÃO? UMA
REFLEXÃO SOBRE SUA NATUREZA E SUAS CONSEQUÊNCIAS.
Monografia apresentada ao curso de graduação
em Direito da Universidade Católica de
Brasília, como requisito parcial para a
obtenção do Título de Bacharela em Direito.
Orientador: Me. Mauro Sérgio dos Santos
Brasília
2012
Monografia de autoria de Michelle Carneiro da Silva, intitulada “OCUPAÇÃO DE
BENS PÚBLICOS: POSSE OU MERA DETENÇÃO? UMA REFLEXÃO SOBRE SUA
NATUREZA E SUAS CONSEQUÊNCIAS”, apresentada ao Curso de Bacharelado em
Direito da Universidade Católica de Brasília como requisito parcial para a obtenção do
Diploma de Bacharela em Direito em novembro de 2012, apresentada à banca examinadora
abaixo assinada:
_____________________________________________________________________
Profª. Esp. Simone Pires Ferreira de Ferreira Batana
Presidente da Banca Examinadora
Direito – UCB
_____________________________________________________________________
Prof. (titulação). Nome do membro da banca
(curso/programa) – sigla da instituição
_____________________________________________________________________
Prof. (titulação). Nome do membro da banca
(curso/programa) – sigla da instituição
Brasília
2012
O Reno corre para o norte, o Ródano para o sul: contudo
ambos brotam na mesma montanha e são também
acionados, para suas direções opostas, pelo mesmo
princípio da gravidade. As diferentes inclinações do
solo por onde correm provocam toda a diferença de seus
cursos.
David Hume
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha família por sempre estar ao meu lado, marchando junto, em
qualquer caminho que eu insista em percorrer. Especificamente, aos meus pais, Ribeiro e Das
Neves, pelo amor e pela preocupação ininterruptamente ofertados ao longo de minha vida. E
ao meu irmão, Quécio, pela amizade, pela ajuda e pela parceria que fundem as relações de
irmandade e amizade.
Agradeço ao Professor Mauro Sérgio dos Santos, que me orientou neste trabalho com
o profissionalismo e a integridade que lhe são característicos, sem deixar nunca de manifestar
o carinho e o cuidado que são próprios de sua pessoa.
Agradeço a todos aqueles que foram meus Professores, em sala de aula ou na vida, que
contribuíram com cada conhecimento que eu acumulei até agora.
Agradeço a todas essas pessoas, pois sem a passagem delas em minha vida eu não teria
sido capaz de chegar até aqui.
RESUMO
Referência: SILVA, Michelle Carneiro da. OCUPAÇÃO DE BENS PÚBLICOS: POSSE
OU MERA DETENÇÃO? UMA REFLEXÃO SOBRE SUA NATUREZA E SUAS
CONSEQUÊNCIAS. 2012. 89 f. Monografia. Universidade Católica de Brasília, Brasília –
DF, 2012.
A nova leitura dada ao sistema jurídico pela Constituição de 1988 convida a todos a uma
mudança de raciocínio a fim de tornar coeso e operacional o que preceitua o texto
constitucional. Tal convite, em pontos nevrálgicos para a sociedade, reveste-se de um caráter
de exigência, não restando aos estudiosos e aplicadores do Direito caminho diverso que não
seja o da busca da integração principiológica combinado a uma revisitação conceitual de
temas que, historicamente, se apresentam como absolutos, como é o caso da propriedade
pública, mas que urgem por uma relativização, legítima e eficaz, para ter-se a concretude dos
objetivos maiores da nação, resguardados pelo manto da justiça. Assim, entender a
propriedade pública como um instrumento que o Poder Público tem para desenvolver sua
finalidade é, contemporaneamente, bem mais que aceitá-la como um conjunto de bens
inatingíveis, sempre vinculado a um “interesse público” inanimado que muitas vezes não
representa mais que um jargão, que pela conveniente banalização e inexatidão de definição
permite a manutenção de situações totalmente dissonantes do que espera e ordena a
Constituição. Requer, pois, a percepção de que os bens têm a necessária obrigação de serem
úteis; noutras palavras, a propriedade, seja pública ou privada, não pode estar afastada da
função social, de ofertar à sociedade algum produto que sirva às suas necessidades. Desta
forma, não há guarida constitucional para a ociosidade de bens públicos. Há, no entanto, a
autêntica validação de atuações, estatais ou particulares, que deem a qualquer propriedade
destinação que promova o bem estar social, o que torna aceitável juridicamente a
possibilidade de reconhecimento de ocupações de bens públicos por particulares como posse e
não apenas como mera detenção, diferentemente da posição majoritariamente adotada pela
doutrina e também pela jurisprudência nacionais.
Palavras-chaves: Bens públicos. Função social. Posse.
ABSTRACT
Reference: SILVA, Michelle Carneiro da. OCCUPATION OF PUBLIC ASSETS:
POSSESSION OR SHEER ARREST? A REFLECTION ON THEIR NATURE AND
ITS CONSEQUENCES. 2012. 89 f. Monograph. Catholic University of Brasília, Brasília DF, 2012.
The new interpretation given to the legal system by the 1988 Constitution invites everyone to
a change of thinking in order to make cohesive operational and what the Constitution
prescribes. Such invitation in crucial spots for society is a character of requirement, not
leaving to scholars and law enforcers from different path than the pursuit of integration
combined with a meaningful revisiting conceptual themes that historically was presented as
absolute, as in the case of public property, but that urge for a relativization, legitimate and
effective, to take up the concreteness of the larger goals of the nation, sheltered by the cloak
of justice. So understanding public ownership as a tool that the Government has to develop its
purpose is contemporaneously, much more than accept it as a set of unattainable assets,
always linked to a "public interest" inanimate which often represents no more that jargon,
which by convenient oversimplification and inaccuracy of definition allows servicing of
situations totally dissonant than expected orders and the Constitution. Therefore, requires the
perception that the assets have the necessary requirement to be useful, in other words,
property, public or private, cannot be away from the social function of offering society a
product that meets your needs. Thus, there is no constitutional shelter for idleness of public
assets. There are, however, validation of the authentic performances, state or private, that
gives to any property a destination that promotes social welfare, which makes the possibility
of legally acceptable recognition of occupations of public assets by private ownership and not
just as mere possession, unlike the position overwhelmingly adopted by the doctrine and also
by case law.
Keywords: Public assets. Social function. Possession.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------------------------------- 9
1
O FENÔMENO DA POSSE NO DIREITO BRASILEIRO --------------------- 12
1.1 POSSE ------------------------------------------------------------------------------------- 12
1.1.1 Posse como mera extensão da propriedade --------------------------------- 15
1.1.2 Posse como fato social ------------------------------------------------------------ 17
1.2 POSSE VERSUS PROPRIEDADE --------------------------------------------------- 17
1.2.1 Classificação da posse ---------------------------------------------------------- 20
1.2.2 Elementos da propriedade como direito subjetivo ---------------------- 23
1.2.3 A função social da posse ------------------------------------------------------- 24
1.2.4 A propriedade funcionalizada ----------------------------------------------- 26
1.3 EFEITOS DA POSSE ------------------------------------------------------------------- 28
1.3.1 Direito aos frutos ------------------------------------------------------------------ 29
1.3.2 Responsabilidade civil do possuidor ------------------------------------------ 30
1.3.3 Direito às benfeitorias ------------------------------------------------------------ 31
1.3.4 Direito à usucapião --------------------------------------------------------------- 32
1.4 PROTEÇÃO DA POSSE --------------------------------------------------------------- 34
2
OS BENS PÚBLICOS ------------------------------------------------------------------- 38
2.1 CONCEITO ------------------------------------------------------------------------------ 38
2.2 CLASSIFICAÇÃO ---------------------------------------------------------------------- 40
2.2.1 Quanto à titularidade ------------------------------------------------------------ 40
2.2.2 Quanto à destinação -------------------------------------------------------------- 42
2.2.3 Quanto à disponibilidade-------------------------------------------------------- 43
2.3 CARACTERÍSTICAS ------------------------------------------------------------------ 45
2.3.1 Inalienabilidade ------------------------------------------------------------------- 45
2.3.2 Impenhorabilidade --------------------------------------------------------------- 47
2.3.3 Imprescritibilidade --------------------------------------------------------------- 48
2.3.4 Não oneração ---------------------------------------------------------------------- 48
2.4 USO DO BEM PÚBLICO POR PARTICULAR ----------------------------------- 49
2.4.1 Uso comum ------------------------------------------------------------------------- 50
2.4.2 Uso privativo ----------------------------------------------------------------------- 50
3
REFLEXÃO SOBRE O INSTITUTO DA POSSE EM RELAÇÃO AOS
BENS PÚBLICOS: LIMITES E POSSIBILIDADES --------------------------------- 56
3.1 POSSE OU MERA DETENÇÃO?---------------------------------------------------- 56
3.2 A IMPOSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS ------------- 58
3.3
CONFLITO
PRINCIPIOLÓGICO:
SUPREMACIA
DO
INTERESSE
PÚBLICO FRENTE À FUNÇÃO SOCIAL VALIDADOR DO DIREITO SUBJETIVO
DA PROPRIEDADE --------------------------------------------------------------------------------- 59
3.4 CONSEQUÊNCIAS DA OMISSÃO ESTATAL ----------------------------------- 68
3.5 TEORIA DO FATO CONSUMADO------------------------------------------------- 72
3.6 PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS -------------------------------------------- 77
CONCLUSÃO ---------------------------------------------------------------------------------- 82
REFERÊNCIAS ------------------------------------------------------------------------------- 85
9
INTRODUÇÃO
A propriedade é um tema que há muito fascina e consome os estudiosos de diversas
áreas. As implicações sociológicas, econômicas, jurídicas, urbanísticas e outras de qualquer
natureza repercutem indelevelmente na vida de cada indivíduo, tenha ele propriedade ou não.
Os conflitos gerados por ter ou não uma propriedade transfiguram-se conforme os
valores de cada cultura e os modos de produção de cada época, perpassando a história.
Tal problemática foi abordada até mesmo por Rousseau (2001), em seu clássico O
Contrato Social, quando afirmou que “é a relação das coisas, e não dos homens, que produz a
guerra”. Segundo ele, a propriedade se origina com o Estado, vez que no estado natural o que
há é a posse, o direito do primeiro ocupante.
Ainda seguindo o que escreveu Rousseau, cabe ao contrato social “encontrar uma
forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de
cada associado”, donde, “vê-se, por essa fórmula, que o ato de associação encerra um
compromisso recíproco do público com os particulares”.
Assim, os indivíduos juntaram-se e transferiram ao Estado os seus poderes para que
este dirigisse a todos conforme a vontade geral, defendendo-os uns dos outros, trocando a
liberdade natural pela liberdade civil.
Do que se apreende da lógica rousseauniana, a ideia originária de patrimônio é apenas
particular, os bens eram dos particulares, ainda que não houvesse nenhum título positivado.
Não havia bem público. Este surge com o Estado, que é produto da soma das vontades dos
particulares.
Sendo desta forma, como pode hoje o Estado voltar-se contra os que lhe deram a força
gerencial de suas vidas? Como o Estado pode manter-se alheio às necessidades de
sobrevivência daqueles que representa?
Este trabalho busca analisar a relação dos conceitos, alardeados como do direito civil,
de propriedade e posse, sob a ótica do direito administrativo, para demonstrar que tal
distinção não é, e nem poderia ser, acobertada pela Constituição, no tocante à atuação de
controle, gestão e utilização, por parte do Estado, de seus bens, ao mesmo tempo em que
acena com a possibilidade de que a ocupação de tais bens por particulares tenha a natureza
jurídica de posse e não de mera detenção, como tem ostentado a maioria das leituras sobre
esta questão.
10
As dúvidas acima lançadas serviram de base para questionamentos sobre a validade
das interpretações feitas pela doutrina e pela jurisprudência acerca da intangibilidade dos bens
públicos, ainda quando não se prestam a nenhuma utilidade.
Essas inquietações, no entanto, não são originais e nem de agora, visto que Rousseau
já as tinha feito doutra forma: “quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de
administração legítima e segura, considerando os homens tais como são e as leis tais como
podem ser”.
Seja à luz das ideias rousseaunianas, seja sob o enfoque constitucionalista, seguindo a
evolução dos chamados direitos fundamentais, mesclando os principais objetivos de suas
diversas gerações, ou dimensões, destacando: na primeira, a esfera de autonomia individual
por meio dos direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade de todos perante a lei; na
segunda, quando o Estado passou a ser chamado para promover um reajustamento social,
agenciando o bem-estar social, reduzindo material e concretamente as desigualdades sociais e
econômicas que debilitam a dignidade humana; na terceira, os chamados direitos de
solidariedade, em que se busca preservar a própria existência do grupo, caracterizando-se por
destinarem-se à proteção, não do homem em sua individualidade, mas do homem em
coletividade social; e por fim, a quarta dimensão que abarca o direito de participação direta
nas decisões políticas, definindo as ações prioritárias para a sociedade, por meio da
democracia direta, esta pesquisa se prestou a enxergar argumentações jurídicas capazes de
desconstituir o argumento legalista-formal da imprescritibilidade do bem público não
destinado à função social e da negativa de reconhecimento da posse nas ocupações desses
bens.
Com o mesmo intuito investigativo de Rousseau, buscou-se “aliar o que o direito
permite ao que o interesse prescreve, a fim de que a justiça e a utilidade não se encontrem
divididas” para que se averiguasse como os institutos jurídicos e as instituições podem se
tornar funcionais também, a fim de que as realidades de favelas, de movimentos de sem-terra
ou sem-teto e, de outro lado, de bens públicos abandonados ou mesmo desconhecidos, possam
se encontrar, gerando uma solução aceita jurídica e socialmente.
O trabalho foi desenvolvido em três capítulos. No primeiro foram apresentadas as
delimitações conceituais sobre a posse, analisando suas distinções perante a propriedade, seus
efeitos e consequências.
O segundo capítulo foi dedicado ao estudo dos bens públicos, sendo abordadas sua
classificação e suas características, além das formas de uso por particulares.
11
No terceiro capítulo buscou-se fazer uma análise sobre a ocupação dos bens públicos
por particulares, considerando as possibilidades jurídicas de reconhecimento do instituto da
posse em relação aos bens públicos não afetados a nenhuma atividade do Estado e que estão
recebendo uma destinação de grande utilidade aos particulares, ponderando sobre os limites
principiológicos da Constituição e a abrangência do requisito da função social da propriedade.
O trabalho foi elaborado através de exame bibliográfico e documental, no qual foi
utilizada a principal doutrina que lastreia os estudos do tema, bem como as decisões e
entendimentos jurisprudenciais que norteiam a prática dos Tribunais brasileiros. Utilizou-se
como método a pesquisa analítica, fazendo-se uma revisitação por meio de análise, avaliação
crítica e integração de parte da literatura publicada sobre o tema, bem como de algumas
fundamentações de decisões judiciárias.
12
1
O FENÔMENO DA POSSE NO DIREITO BRASILEIRO
1.1 POSSE
Para iniciar o estudo sobre o instituto da posse necessário se faz que sejam pinceladas
algumas notas sobre a clássica e didática divisão dos direitos patrimoniais de uma pessoa: os
chamados direitos reais (também denominados de direitos das coisas) e os obrigacionais.
Os direitos reais regulam “[...] o poder do homem sobre os bens e os modos de sua
utilização econômica” (PEREIRA, 1999, p. 21), enquanto os obrigacionais têm como objeto
da relação jurídica uma prestação pelo devedor, em favor do credor.
A fim de tornar apartadas tais categorias de direitos, importante trazer as três
distinções entre os direitos reais e obrigacionais delineadas por Farias e Rosenvald (2008, p.
4):
a)
quanto à eficácia: erga omnes dos diretos reais, e relativa nos direitos
obrigacionais [...];
b)
quanto ao objeto: a coisa nos direitos reais e a prestação nos direitos
obrigacionais [...];
c)
quanto ao exercício: nos direitos reais, o titular age direta e imediatamente
sobre a coisa (jus in re); já nas obrigações, o titular do crédito necessariamente
dependerá da colaboração do devedor para a sua satisfação. [...]
Superada a distinção entre tais classes de direitos, deve-se fazer um exame dos direitos
reais, mesmo que este seja panorâmico, para que sejam identificadas as principais
características deste grupo do direito, vez que ao tempo da análise sobre a natureza jurídica da
posse, que se fará adiante, imprescindível será o conhecimento de tais características.
Destarte, os direitos reais apresentam como particularidades:
a)
absolutismo – esta característica sofreu uma ressignificação ao longo dos
tempos. Como bem apontou Lévy (1973, p. 25) ao traçar o que chamou de
caracteres da propriedade no mundo romano: “a propriedade, repetiam os
autores desde meados do século passado, é, quase por essência e para toda a
eternidade, um direito absoluto, exclusivo e perpétuo”. Nessa perspectiva, o
absolutismo se revestia do sentido de poder ilimitado que o proprietário exercia
13
sobre a coisa, oponível a todos os indivíduos. Aqui, tinha-se a ideia de que a
relação jurídica existente era entre a pessoa proprietária da coisa e a coisa em
si, largamente conhecida como teoria realista.
Atualmente, no entanto, a doutrina tem aceitado mais a teoria personalista,
que, conforme Farias e Rosenvald (2008, p. 3), “partindo da premissa kantiana
que só existem relações jurídicas entre pessoas, é estabelecida uma relação
jurídica em que o sujeito ativo é o titular do direito real e o sujeito passivo é a
generalidade anônima das pessoas”. Implicaria em entender os direitos reais
como o direito subjetivo que o proprietário da coisa tem de exigir a abstenção
dos outros indivíduos com relação àquela coisa determinada. Assim, o
absolutismo continua sendo, como sempre fora, a possibilidade de o detentor
do direito real se opor a qualquer indivíduo que atente contra a sua coisa (em
oposição à relatividade dos direitos obrigacionais, segundo a qual o credor só
pode exigir daquele indivíduo que lhe é devedor e não da coletividade. Frisese que até esta relatividade já vem sofrendo uma releitura, vez que o próprio
sistema jurídico brasileiro já alberga a chamada eficácia externa da obrigação,
ao tornar oponível a terceiros a abstenção de intervenção em relação
obrigacional, quando tal intervenção se reveste de má-fé), mas não
corresponde mais ao poder ilimitado que revestia a propriedade de um
conceito quase sagrado, exigindo agora uma apreciação em torno dos sujeitos
abrangidos pela relação jurídica e dos usos feitos da coisa envolvida.
b)
a sequela é uma característica derivada do absolutismo, visto que, se o
proprietário pode exigir de todos um dever de abstenção, nada o impede de
retirar a coisa daquele que viola tal comando. A sequela é, pois, o poder de
perseguir a coisa em poder de terceiros onde quer que se encontre.
c)
a preferência, na suficiente lição de Farias e Rosenvald (2008, p. 8), “é o
privilégio do titular do direito real em obter o pagamento de um débito com o
valor do bem aplicado exclusivamente à sua satisfação”.
d)
o fato de os direitos reais serem taxativamente enumerados se vincula à
característica do absolutismo. Para que se possa exigir a abstenção da
coletividade, mister que haja uma referência pouco mutável e que seja
14
aplicável e aplicada por todos; que seja uma norma. A norma, então, exibe os
direitos reais numerus clausus, impedindo a criação indiscriminada por
particulares de novos direitos reais.
Assim como os direitos reais, a posse tem como característica marcante a
manifestação por meio do exercício de poder sobre as coisas, reclamando a existência da coisa
e do possuidor. Todavia, a posse, quando exercida por si só, independentemente de qualquer
outro direito real, não se faz representar através de registro imobiliário. É essa autonomia que
confere ao possuidor a possibilidade de opor o seu direito a quem quer que o moleste,
bastando provar este incômodo e que tem posse melhor do que aquele que embaraça seu
exercício.
Após essa incursão necessária, mas secundária, a pesquisa retorna ao seu eixo central,
qual seja a posse, para que se busquem as delimitações conceituais de tal instituto e se
verifique a qual das categorias de direitos acima narradas ele pertence, ou se, ainda, a
nenhuma delas.
Para tanto é imprescindível averiguarmos a posse, instituto que é um dos que mais
despertam divergências no Direito. Historicamente, tem-se a clássica “disputa conceitual”
travada entre Friedrich Karl von Savigny e Rudolf von Jhering com suas teorias subjetiva e
objetiva, respectivamente.
Para Savigny, a posse era um composto formado pelo corpus e pelo animus domini, ou
seja, tinha a posse aquele que exercia o controle material sobre a coisa, traduzindo-se na
possibilidade de se apoderar, de servir-se e de dispor imediatamente dessa coisa, exercendo tal
poder como se proprietário fosse, com a intenção e a vontade de ter a coisa para si.
Jhering enxergava a posse como mero exercício da propriedade. Ele não a reconhecia
como modelo jurídico autônomo. De acordo com Farias e Rosenvald (2008, p. 31), “para
Ihering (sic) a tutela da posse não decorre da necessidade de evitar a violência, mas tem como
único fundamento a defesa imediata da propriedade”.
Assim, enquanto a teoria de Savigny teve como mérito projetar a autonomia da posse,
pelo reconhecimento desta como fato em sua origem e direito em suas consequências, a teoria
objetiva de Jhering reduz a posse a simples exteriorização da propriedade.
Savigny percebia a posse apenas fora da propriedade, por isso sua autonomia plena.
Ou exercia-se a propriedade ou a posse. Com o expurgo do elemento psicológico existente na
teoria subjetiva, a teoria objetiva possibilita a ampliação do entendimento de posse como
15
direta e indireta, apesar de não fazer com esta denominação e ainda de entender como posse o
que, atualmente, se compreende como detenção propriamente dita.
1.1.1 Posse como mera extensão da propriedade
Nesta perspectiva, não existe posse sem propriedade. A posse se limita a ser a
exteriorização da propriedade. Aqui se pode visualizar a ideia da posse plena e da posse
fracionada, em que a primeira ocorre quando o próprio proprietário exerce a posse. Ele tem o
título e ele exerce o poder sobre a coisa. Na posse fracionada tem-se uma posse indireta, que é
a posse “in abstrato” do proprietário, a posse decorrente do título de propriedade, e se tem
uma posse direta, que é aquela exercida por um terceiro, originada de um direito obrigacional
ou real, em que o proprietário entrega a coisa ao outro, o chamado possuidor.
Frise-se que as posses indireta e direta atuam concomitantemente como forma de
proteger e defender a propriedade contra os possuidores (leia-se, aqueles que tenham a posse
direta), visto que permite que de forma ficta (posse indireta) o proprietário também esteja
legitimado a buscar proteção possessória mesmo quando um terceiro tem o exercício fático do
poder (posse direta) sobre a coisa em disputa, e esta foi a finalidade primeira da defesa
possessória, que segundo Jhering (2009, p. 32), que considerava “o possuidor como
proprietário presuntivo”, tal defesa “aparece como um complemento indispensável da
propriedade”. No entanto, em momento mais tardio, quando do reconhecimento da autonomia
da posse, essa proteção revestiu-se de uma grandeza maior para os simples possuidores que
puderam debater a posse sem a intromissão da titularidade proprietária.
Resta ainda tratar da detenção, que é, senão, uma posse desqualificada pelo sistema
jurídico, ou, como bem explanou Limongi França (1964 apud PEREIRA, 1999, p. 21), “a
posse não assistida pela proteção possessória e inábil a gerar o (sic) usucapião”.
A detenção constitui a pedra angular que distingue as teorias de Savigny e Jhering. O
primeiro defendia que a detenção se configurava pela ausência de animus domini por parte
daquele que detém o poder físico da coisa. Já Jhering, que desconsiderava qualquer elemento
psíquico na análise, entendia que a detenção existiria em situações em que, apesar de
denotarem posse, houve uma opção legislativa de não as ofertar a tutela possessória a fim de
proteger a relação originária de tal situação.
No ordenamento brasileiro atual, há quatro hipóteses de detenção, quais sejam:
16
a)
os servidores da posse (ou fâmulos da posse) – são aqueles que cumprindo
ordens ou seguindo instruções dos proprietários ou dos possuidores diretos
exercem o poder físico sobre a coisa. Aqui há uma relação de subordinação que
descaracteriza a posse in natura.
b)
os atos de permissão ou tolerância – nesta situação, o proprietário ou o
possuidor direto permite (autorizando expressamente) ou tolera (consentindo
tacitamente) que outra pessoa faça uso de uma determinada coisa, sem que haja
nenhum negócio jurídico que fundamente tal utilização. Essa situação pode ser
desfeita a qualquer tempo pelo real possuidor, constituindo para este um direito
potestativo.
c)
a prática de atos de violência ou clandestinidade - importante proteção dada
pelo legislador ao proprietário ou possuidor direto contra ilícitos, que os
considera como detenção com a finalidade de impedir o decurso do tempo
necessário à prescrição aquisitiva. Assim, a reação do titular originário contra
os atos que violam o seu direito à coisa (real sentido do termo violência, que
não exige necessariamente a prática de atos atentatórios às pessoas, bastando
qualquer ato direcionado à coisa que implique em limitação do direito do
possuidor) torna a suposta “posse” não pacífica, enquanto a clandestinidade
impede que o possuidor tenha consciência da situação, impossibilitando-o de
agir na defesa de seu direito, sendo, pois, tais atos considerados antijurídicos,
evitando que condutas em desconformidade com o bom direito sejam
posteriormente legitimadas pelo instituto, por exemplo, da usucapião, o qual
exige posse pacífica e não clandestina.
d)
a atuação em bens públicos de uso comum do povo ou de uso especial – neste
rol estão as situações em que particulares utilizam-se de bens públicos, de uso
comum ou especial, sem que lhes acolham nenhum direito possessório, seja
pela própria exclusão legislativa de tais direitos ao classificar esses casos como
de detenção, seja pela natureza dos referidos bens, visto que os primeiros têm
em sua essência a vocação para a satisfação e gozo de qualquer um dos
indivíduos, e os segundos operacionalizam as atividades do Estado, não
podendo ser restringida sua funcionalidade para atendimento de demandas
17
particulares. Vale aqui destacar que não está enquadrada nesta condição de
detenção a ocupação de bens públicos dominicais que, como será exposto mais
à frente, são aqueles que não têm nenhuma finalidade pública, ou ainda, como
muito bem frisado por Santos (2012, p. 713), “constituem o patrimônio
disponível da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, e que
são os que interessam a este estudo.
Assim, da análise das possibilidades legais de detenção, pode-se estabelecer a
existência de duas espécies distintas: a detenção dependente (dos chamados servidores da
posse ou dos que têm a permissão ou tolerância do proprietário, ou ainda, dos que utilizam
bens públicos de uso comum ou especial) e a detenção autônoma (aquele que violenta ou
clandestinamente faz a ocupação de um bem alheio).
Lévy (1973, p. 24) apresenta com precisão tais ideias:
Há com efeito relações materiais com as coisas, revestindo, aliás, os caracteres da
permanência e de continuidade que não dão origem a qualquer interesse, que não
têm portanto um valor social; e há, ainda, relações materiais de valor social, mas que
a lei não protege, pois fazê-lo seria prejudicar interesses mais importantes.
1.1.2 Posse como fato social
Utilizando a explanação do Lévy acima citada, ainda é possível visualizar o caráter de
fato social que envolve a posse, tornando uma referência conceitual a ponto de se criar a
definição de detenção pela ausência desse valor social, ou pela negativa desse valor social
feita através do legislador. Em outras linhas, o valor social da posse é uma característica
intrínseca a este instituto.
1.2 POSSE VERSUS PROPRIEDADE
Apesar de os vocábulos possuidor e proprietário serem comumente utilizados como
sinônimos, tecnicamente isso não é correto, podendo ou não coincidir em um mesmo sujeito
os dois conceitos.
18
Como bem disse Jhering (2009, p. 13):
Em geral, o possuidor de uma coisa é ao mesmo tempo o seu proprietário.
Ordinariamente, o proprietário é o possuidor, e, enquanto subsista tal relação
normal, é inútil estabelecer-se uma distinção. Mas, desde o momento em que a
propriedade e a posse se separam, o contraste produz-se imediatamente [...]
Nessa relação de semelhanças e contrastes, Jhering (2009, p. 14) ainda se propôs a
conceituar cada instituto a fim de tornar possível a operacionalização jurídica de ambos: “a
posse é o poder de fato, e a propriedade o poder de direito sobre a coisa”.
Mas a contribuição de maior valor dada por Jhering foi a de trazer a ideia de utilidade
econômica da coisa, vez que para ele é a posse que condiciona a utilização econômica da
propriedade. E em figura de linguagem traz a brilhante ilustração de seu pensamento: “a
propriedade sem a posse seria um tesouro sem a chave para abri-lo, uma árvore frutífera sem a
competente escada para colher os frutos” (JHERING, 2009, p. 14).
De forma menos filosófica, o direito subjetivo de propriedade diz respeito à relação
jurídica entre a pessoa que detém a titularidade formal do bem (o proprietário) e a
coletividade de pessoas. A propriedade (enquanto direito) confere ao titular o elemento
essencial da relação jurídica, que é o domínio, já que é nele que está o poder de subter a coisa
ao seu senhorio. O domínio se instrumentaliza pelas faculdades de utilização que oferta ao
proprietário: usar, gozar ou dispor, e ainda, reivindicar.
A relação entre posse e propriedade sempre foi oscilante, e suas ordens de aparição
nas relações com a coisa se alternavam em cada período, valendo a pena uma breve
revisitação aos relatos históricos:
a)
Às vezes, a posse aparece como necessária precedente da propriedade:
Torres (2010, p. 16) relata que entre 1516 e 1519, época subsequente ao
descobrimento do Brasil, “o rei de Portugal, diante da possibilidade de perder as terras
descobertas, tendo em vista a cobiça de outras nações” enviou Martim Afonso de Souza, com
“a missão de expulsar invasores e tomar efetivamente posse da terra”. (grifo nosso).
E ainda, ao tratar da chamada presúria (ocupação de terras sem dono, das terras
tomadas dos conquistados), expediente largamente utilizado na Idade Média, e novamente
utilizado por Portugal nas terras do Brasil, indicou a precedência da posse frente à
19
propriedade: “parece aqui que a ocupação que gera posse imediata do bem só se traduz em
propriedade caso se configure a utilização efetiva do bem”.
b)
Em outras, como circunstancialmente indispensável para a existência da
propriedade:
De acordo com as exposições de Jhering (2009, p. 21), aqui cabe a ideia que lastreou o
Direito Romano, segunda a qual a posse tinha importância “somente como ponto de transição
momentânea para propriedade”. Vislumbra-se a cumulação de atos jurídicos para a realização
de negócio capaz de gerar consequências jurídicas: “motivo por que uma simples convenção
sem entrega da posse não será bastante para transferir a propriedade”.
c)
E ainda, quando a ausência da posse não revela imediatamente implicações
para a propriedade:
Com base no que diz Jhering (2009, p. 21), “uma vez adquirida a persistência da
propriedade, esta se desliga da posse. O proprietário conserva ainda mesmo depois de haver
perdido a posse”, pode-se iniciar a análise acerca da mutação que tais institutos sofreram,
visto que, atualmente, é possível conceber as ideias de posse plena e posse compartilhada,
entendendo esta como a subdivisão da posse, como dito anteriormente, em posse indireta e
posse direta. Assim, mesmo quando o proprietário realiza algum negócio jurídico de natureza
real ou obrigacional que lhe faça transferir, não definitivamente, o exercício do poder fático
para outrem (posse direta), ainda lhe resta a posse indireta, que consiste em uma ficção
jurídica criada com o intuito de proteger a propriedade. Desta forma, quando João,
proprietário de determinado imóvel, o aluga a José para que este se estabeleça
comercialmente, João se mantém como proprietário e como possuidor indireto, apesar de ser
José quem diariamente exteriorizará a posse com os poderes práticos provenientes do uso do
imóvel, sendo, pois, seu possuidor direto.
Outro é o caso quando João, proprietário do mesmo imóvel, não faz uso dele de forma
nenhuma, deixando o imóvel abandonado. Aqui, tem ele posse plena, apesar de sua omissão
em exercê-la. Se José, observando que ninguém nunca vai ao imóvel, resolve morar no local
por não ter outro lugar, essa posse também é uma posse plena e desconexa da posse
presumida do proprietário. Em um embate entre as duas posses muitas podem ser as decisões,
dependendo da época em que pode ter ocorrido a disputa e a interpretação dada pelo
20
sentenciador, depende ainda de fatores intrínsecos à situação como a forma e o tempo de
ocupação por parte de José.
Nos dias atuais, após as diversas resignificações do instituto da posse, algumas
definições se estabelecem como corriqueiras. Enquanto a propriedade é normalmente definida
pela doutrina por meio das principais possibilidades de atuação do titular, resumindo-se na
faculdade de usar, gozar e dispor de alguma coisa e, ainda, o direito de reavê-la do poder de
quem quer que injustamente a possua ou obtenha, tendo um título como símbolo de sua
existência; a posse, por sua vez, partindo do conceito de possuidor apresentado pelo art. 1.196
do Código Civil Brasileiro vigente, chegar-se-á indiretamente, considerando que possuidor é
aquele que tem posse, à definição de que posse é o exercício de fato de alguns dos poderes
inerentes ao domínio ou propriedade.
Vale destacar que o projeto nº 6.960/2002, que visa alterar diversos dispositivos do
CC/2002 propõe nova redação ao art. 1.196, tratando de forma mais clara a qualificação do
possuidor, fazendo involuntariamente uma extensão do conceito de posse: “poder fático de
ingerência socioeconômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem
da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício”.
1.2.1 Classificação da posse
A doutrina classifica a posse segundo dois elementos: objetivo e subjetivo. Tais
critérios influenciam determinantemente na eficácia e proteção jurídica dispensada para cada
um dos tipos. Assim, uma posse pode ser justa ou injusta, de boa ou de má-fé, conforme a
presença ou não de um determinado vício.
Para Farias e Rosenvald (2008, p. 75), “enquanto os vícios objetivos se referem ao
modo pelo qual a posse foi externamente adquirida e a sua situação no mundo fático, os vícios
subjetivos concernem à convicção interna do possuidor acerca da legitimidade de sua posse”.
a)
Quanto aos elementos objetivos:
- Posse justa – o código civil conceitua como a posse que não for
violenta, clandestina ou precária, conforme art. 1.200 do CC.
21
- Posse injusta – por contraposição, é a posse que denota os vícios citados
no art. 1.200 do CC, em outras palavras, a doutrina a trata como toda
posse que é adquirida de forma viciosa e proibida. Aqui não se avalia
os motivos que determinaram, verifica-se apenas o modo que a posse
nasceu:
• Posse violenta – adquirida pelo uso da força ou da ameaça.
Violência aqui deve ser entendida como conduta contrária à
vontade do possuidor originário. Desta maneira, a remoção de
obstáculos físicos como correntes, cercas, cadeados, não é
aceita como violência, bem como nos casos em que há
abandono da coisa e posterior apossamento, não se verifica
violência. A violência é contra a vontade da pessoa (possuidor
ou servidor da posse) que se oponha à conduta do agressor, não
é contra a coisa especificamente, e nem necessariamente a
violência física contra o possuidor. Havendo manifestação do
possuidor contra o ato do agressor por meio do desforço
imediato, o agressor será considerado detentor enquanto durar a
reação. Apenas quando o possuidor deixar de resistir é que
nascerá a posse para o até então detentor.
• Posse clandestina – trata-se da posse adquirida às escondidas
daquele que tem a posse tomada. Como tratado anteriormente, a
publicidade é uma das características dos direitos reais, visto
que faz nascer para o que tem a coisa o direito de exigir de toda
a coletividade o respeito à sua relação com a coisa. Nesta
perspectiva, a clandestinidade obstaculiza que haja proteção
jurídica em favor do agente ocultante perante o qual foi ocultada
a ação. Há de se destacar que mesmo que outras pessoas vejam
e saibam, deve-se verificar se a ação foi camuflada para aquele
que tinha interesse de recuperar o bem tomado.
22
• Posse precária – esta posse surge após uma relação jurídica que
conferia ao que tenta se apoderar da coisa o acesso a ela, seja
por meio de mera detenção (ex.: contrato de emprego), ou de
posse direta (ex.: contrato de aluguel), proveniente de um
direito real (ex.: usufruto) ou obrigacional (ex.: locação,
trabalhista). Finda a relação jurídica que permitia a retenção da
coisa, aquele que age injustamente permanece, se comportando
como se ainda estivesse resguardado pela relação pretérita, não
devolvendo a coisa ao proprietário ou possuidor originário,
apropriando-se indevidamente do bem.
b)
Quanto aos elementos subjetivos:
- Posse de boa-fé – aqui o que tem importância é como o possuidor
internamente percebeu a sua relação jurídica com a coisa. Se tinha em
seu âmago a certeza de que possuía a coisa plenamente, sem agressão a
direito de ninguém, se está diante da boa-fé, que é considerada como a
ausência de conhecimento sobre o vício ou o empecilho que bloqueia a
aquisição da coisa.
Entretanto, não é qualquer desconhecimento que valida a boa-fé. É o
desconhecimento sem culpa, o que torna necessário que o possuidor
tenha agido de forma prudente ao adquirir a coisa, atentando para o que
se poderia exigir que o homem comum soubesse a respeito do negócio
jurídico que deu origem à posse.
Ocorre que tal verificação é praticamente impossível, visto que boa
parte do que é preciso observar são abstrações internas. Por conta dessa
impossibilidade, a legislação fez nascer a presunção de boa-fé sempre
que a posse fosse acompanhada de justo título, entendido este como o
título hábil a transferir a posse, e que efetivaria a transferência, caso não
houvesse o vício.
A ausência de justo título, por sua vez, não impede o reconhecimento
da posse de boa-fé. No entanto, ela terá que ser provada por aquele que
a alega, enquanto na posse com justo título, caberá ao reclamante
provar a má-fé capaz de descaracterizar a posse.
23
- Posse de má-fé – por exclusão, seria toda posse que, não possuindo
justo título, não foi comprovada a boa fé, ou ainda, a partir da
inteligência do art. 1.202 do CC, quando as circunstâncias façam
presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente, quando
ocorre, então, a perda do caráter de boa-fé que tinha aquela posse.
Tais classificações não trazem entre si nenhum vínculo obrigatório, ou seja, a posse
justa nem sempre é de boa-fé (Ex.: João adquire um imóvel utilizando-se de algum vício de
consentimento. A sua posse será justa, pois que não praticou violência, clandestinidade e nem
precariedade, mas não é de boa-fé, vez que sua conduta foi norteada pela fraude e dolo). Da
mesma forma, pode haver uma posse injusta e de boa-fé, por exemplo, quando um indivíduo
furta outro e doa o produto do furto a um terceiro. Neste caso, o terceiro tem posse de boa-fé,
pois desconhecia os vícios da aquisição, e sua posse é injusta, já que o vício originário
(clandestinidade) acompanha a posse.
1.2.2 Elementos da propriedade como direito subjetivo
O termo propriedade não é unívoco, apesar de suas interpretações se correlacionarem.
A palavra propriedade é usada para indicar tanto o direito proveniente do título que declara
que o sujeito x é o dono do bem y, como para indicar o próprio bem.
A este estudo, logicamente, interessa apenas o primeiro significado, o chamado direito
subjetivo de propriedade, que concerne à relação jurídica que vincula a pessoa que tem
formalmente a titularidade do bem e a coletividade de pessoas.
Esse direito confere ao proprietário um poder de escolher o que fazer com o bem: o
bem está subjugado à sua vontade porque é ele quem domina a coisa, ou seja, é ele quem
exerce o domínio sobre ela. O domínio, então, é o composto formado pelo direito de usar,
direito de gozar e direito de dispor conferido ao proprietário.
a)
Direito de usar – é a faculdade mais clara e evidente, pois que é a possibilidade
de o proprietário se servir da coisa, utilizando para a sua destinação econômica
própria. Assim, quando o proprietário de uma casa mora nela está exercendo
24
seu direito de uso. Entende-se também como direito de uso o acesso ou a
colheita ou dos frutos naturais do bem, como por exemplo, quando o mesmo
proprietário da ilustração acima retira um maracujá da árvore que tem no
quintal daquela casa.
b)
Direito de gozar – é o poder que tem o proprietário de explorar
economicamente o bem, seja pela extração de frutos industriais, seja pela
percepção de frutos civis. Um proprietário de uma fábrica de bolsa de couro, ao
vender as bolsas aufere renda, originada de sua ação de transformar o couro em
bolsas (frutos industriais). Se, ao contrário, ele resolve alugar sua fábrica para
que outro use, obterá renda com esse uso alheio (frutos civis).
c)
Direito de dispor – é a possibilidade que o proprietário tem de fazer
literalmente o que quiser com a coisa, dispondo dela materialmente
(destruindo-a ou abandonando-a) ou juridicamente (totalmente, quando aliena
de forma onerosa ou gratuita; ou parcialmente, quando institui um ônus real
sobre o bem, como hipoteca ou usufruto).
Há ainda o chamado direito de reivindicar que é, em verdade, uma tutela conferida ao
titular contra aqueles que desrespeitaram o dever genérico e universal de abstenção, não
correspondendo exatamente a um direito direcionado a obtenção das vantagens dos elementos
internos da coisa.
d)
Direito de reivindicar – é tido como elemento externo ou jurídico da
propriedade uma vez que representa a pretensão do titular do direito subjetivo
de excluir terceiros de ingerência indevida sobre a coisa. É o direito apto a
proteger o proprietário, por meio de ação reivindicatória, de posse não passível
de ataque por ação possessória, vez que não é violenta, clandestina ou precária.
1.2.3 A função social da posse
A Constituição Federal em seu artigo 170, inciso III consagra explicitamente o
princípio da função social da propriedade, o qual reveste o direito de propriedade como o
dever de dar utilidade social à coisa que se tem como sua.
25
Ocorre que, como já exposto anteriormente, entende a doutrina que é na posse que a
função social se exerce, vez que é a posse que torna possível a utilização econômica da
propriedade. Assim, a função social está diretamente relacionada com a finalidade econômica
manifestada através da posse e não pura e simplesmente da propriedade em si, exigindo-se,
pois a análise daquela para que se averigue ou não a função social de um bem.
Torres chega a afirmar que “a função social em relação aos bens imóveis não se
diferencia na propriedade ou na posse [...] não se diferencia a visibilidade de atuação do
proprietário ou do possuidor” (2010, p. 303).
Ainda diz que,
[...] na propriedade, se admitirmos, [...], que a utilização é condição de cumprimento
da função social da coisa, o não-exercício da posse, gerará um enfraquecimento do
direito de propriedade, embora, para alguns, [...] elimine o próprio direito, sendo,
portanto, para estes últimos, condição da própria existência do direito (TORRES,
2010, p. 300).
Nesta perspectiva é que a doutrina tem entendido que o princípio constitucional da
função social é melhor aplicado quando tem a posse como sua operadora. Esse argumento é
validado pela própria Constituição ao tratar da usucapião, estabelecendo, nas duas únicas
oportunidades em que aborda tal assunto, como requisitos necessários ao sujeito ativo da
prescrição aquisitiva a condição de possuidor somada às finalidades que dão mais expressão à
função social, conforme seu art. 183:
Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros
quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua
moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário
de outro imóvel urbano ou rural.
E o art. 191:
Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por
cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a
cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo
nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Nas disposições constitucionais acima transcritas é possível ver as duas faces de maior
destaque social que a posse apresenta: a posse-moradia e a posse-trabalho. Analisando a
Constituição Federal de forma sistemática, tem-se no seu art. 6º que a moradia e o trabalho
26
foram destacados como direitos fundamentais sociais, assim, a posse utilizada para a moradia
ou o trabalho constitui o veículo que oportuniza a realização desta previsão constitucional.
Percebe-se, pois, a grande relevância social que a posse apresenta. A posse é
instrumento dinâmico em contraposição à propriedade, porque propriedade sem posse não
passa de mera abstração jurídica.
Torres demonstra a função social da posse até mesmo sob a ótica capitalista:
Aquele que adquire propriedade imóvel, urbana ou rural, o faz pelo valor de
utilização da terra, seja para a construção seja para cultivo e criação de animais. Ou
seja, mesmo o capitalista, que não vai nem pretende utilizar diretamente a coisa, por
ela só se interessa se for possível a utilização por alguém, uma vez que, para ele
alienar o imóvel com vantagem, a possibilidade de utilização é fundamental
(TORRES, 2010, p. 305).
Vale destacar que, apesar de estar muito em voga a ideia da função social, ela, mesmo
sem o rótulo denominativo, já se fazia presente há muito, como se pode observar em estudo
sobre as sesmaria:
A instituição da sesmaria não tinha como prioridade o componente punitivo próprio
da instituição, mas sim a necessidade de utilização social e economicamente
adequada para os fins do reino e da povoação da terra (TORRES, 2010, p. 23)
E mais ainda na primorosa ilustração de Jhering, que serve de resumo:
Se me entregassem um quadro em uma caixa fechada, a posse dele seria desprovida
de valor para mim. A posse sem proveito possível seria a coisa mais inútil do
mundo. Seu valor consiste unicamente na função indicada: é um meio para alcançar
um fim (JHERING, 2009, p. 15).
1.2.4 A propriedade funcionalizada
A ideia de a propriedade exercer uma função é, antes de ser uma condição jurídica, um
entendimento lógico, pois que de qualquer coisa se espera uma utilidade. A racionalidade da
expectativa de uso é de tal monta que seria desnecessária a sua evidência pelo sistema jurídico
se não fossem as pretensões de acumulação de bens pelo mero intuito de tê-los, ainda que não
se receba deles nenhum proveito efetivo.
27
Não é raro que o direito de propriedade seja influenciado pelo uso que se faz da
coisa possuída. Isto se apresenta muito claramente entre os esquimós. Se um
homem constrói uma armadinha para raposa, pertence-lhe evidentemente, mas
se não a utiliza, cada qual pode utilizá-la, porque o proprietário deu a conhecer
indiretamente que não fez uso dela [...] Um esquimó que já possui uma tenda
não pode herdar outras, porque não se pode habitar sob duas tendas ao mesmo
tempo (Birket-Smith, 1965, apud CASTRO, 2001, p. 27-28). (grifo nosso)
O texto em destaque apresenta, por meio de raciocínio simples, o que se espera da
propriedade e o que fez e ainda faz toda a doutrina e os tribunais dispensarem muitas horas e
muitas laudas com ponderações e contraposições ideológicas.
Pergunta-se: se a forma de pensar e de conceber a propriedade utilizada pelos
esquimós, apesar de simples, era plenamente satisfatória, por que se consome tanta energia
com polêmicas jurídicas?
Para responder a essa questão é necessária a análise da propriedade como valor
histórico, e, como tal, carregada de interesses vigentes em cada época e lugar. Por motivos
práticos, listar-se-ão momentos pontuais de maior relevância ao estudo ora apresentado:
Lévy-Bruhl, tratando a propriedade primitiva, considerou que “a propriedade consiste
numa ligação mística, numa participação entre o possuidor e o possuído... A essência da
propriedade é um laço místico estabelecido entre a pessoa que possui e os objetos” (LévyBruhl, 1910, apud Lévy, 1973, p. 11).
Tal era o sentido de ligação que, de acordo com Lévy (1973, p. 11):
Muitos objetos mobiliários, sobretudo os produzidos ou fabricados pelo próprio ou
que são do seu uso exclusivo (por vezes também o local de habitação em que se
vive) [...] trazem [...] a sua marca; são enterrados ou queimados com a pessoa.
E mais revelador ainda, sobre a relação do proprietário e de suas coisas: “são
inseparáveis da pessoa, fazem parte dela, são ela própria” (Lévy-Bruhl, 1910, apud Lévy,
1973, p. 11).
A propriedade romana tem excepcional importância na história jurídica, por terem sido
os Romanos que separaram radicalmente a propriedade de outros direitos reais, além de terem
apartado os direitos reais dos obrigacionais. Mas, o que vale atentar aqui é para as
características da propriedade, quais sejam: absolutismo, exclusividade e perpetuidade. Não
existia a ideia de propriedade individual propriamente dita, o que existia era uma propriedade
familiar, na qual o proprietário, paterfamilias, figurava mais como ente público que privado,
visto seu papel social na estrutura vigente.
28
Nesses dois exemplos de sociedades (primitiva e romana), apesar de seus conceitos de
propriedade serem revestidos de particularidades que as distanciam, há entre eles um
elemento que as tornam próxima que é o caráter individual de satisfação de necessidades,
sejam elas espirituais, de poder ou patrimoniais. Não se percebe a propriedade ventilada por
nenhuma fresta social, no sentido de produtora ou fornecedora de bem comum.
Por outro lado, Torres cita, nas palavras de Thais Colaço, o que representa a
propriedade para os índios:
A terra, assim como o ar e a água, são bens considerados sagrados, aos quais o
homem tem acesso para uso comum. O território é considerado propriedade da
comunidade como um todo e jamais poderá vir a ser alienado. [...] Não existe
apropriação por prescrição aquisitiva, qualquer que seja a duração de detenção de
uma parcela, ela deve sempre retornar à comunidade. Enfim, a comunidade é a
proprietária da terra, e as famílias detêm a posse (Thais Colaço, 1998, apud
TORRES, 2010, p. 36).
Na sociedade brasileira atual, regida pelo princípio da função social da propriedade,
em que, assegurando a livre iniciativa, elemento próprio do sistema capitalista, insere na
ordem econômica a exigência de tornar/manter digna qualquer existência humana, tomando o
capitalismo, de peculiar valoração individual, somente, como modo de produção. Visto que, o
art. 5º da CF condiciona o direito de propriedade à funcionalização social desta.
Importante buscar o significado da expressão “funcionalização social” para que se
possa dimensionar a amplitude da condição estabelecida pela Constituição para acolher o
direito à propriedade. Assim, o termo funcionalização deriva da palavra função, e descreve o
exercício ou a efetivação da função social, que, por sua vez, diz respeito à satisfação das
necessidades da sociedade.
1.3 EFEITOS DA POSSE
Aquele que possui a coisa recebeu do ordenamento jurídico alguns direitos e deveres
por conta da relação jurídica com o bem possuído e das consequências dessa relação para o
possuidor e/ou para o terceiro alcançado.
29
1.3.1 Direito aos frutos
O exercício efetivo da posse gera como um de seus efeitos o direito do possuidor
tomar para si os frutos da coisa possuída, caso sua posse tenha sido exercida de boa-fé.
Os frutos, nas palavras de Farias e Rosenvald (2008, p. 93), “são as utilidades que a
coisa periodicamente produz, sem alteração ou perda de sua substância”.
Na legislação brasileira, o possuidor que não agiu de má-fé (aquele que ignora o
melhor direito de outrem sobre a coisa) tem o direito de perceber os frutos enquanto mantiver
a qualidade da posse. Quando esta deixar de ser boa, terá direito aos valores referentes às
despesas de produção e custeio dos frutos pendentes (aqueles ainda não percebidos), e terá
que devolver os frutos percebidos antecipadamente, mesmo que, quando os tenha percebido,
tenha agido de forma proba.
A doutrina classifica os frutos em:
a)
Naturais – são aqueles que têm sua origem na própria coisa, decorrem da força
orgânica desta. Renovam-se periódica e naturalmente, sem perder suas
características. Ex.: colheitas
b)
Industriais – são os produzidos pela atuação humana, com a utilização de
algum engenho. Ex.: produção de uma fábrica
c)
Civis – são as rendas periódicas decorrentes de concessões de uso e gozo por
outra pessoa que não o proprietário de uma coisa frutífera. Ex.: alugueres
Apesar da garantia dada ao possuidor, várias são as condicionantes para a efetivação
deste direito, quais sejam: a boa-fé do possuidor ao tempo da percepção dos frutos, que os
frutos tenham sido separados da coisa, e tenham sido descontadas as despesas necessárias à
frutificação. Desta forma, se João adquire um terreno de José, acreditando ser este o
proprietário, passa a trabalhar a terra, plantando tomate, terá direito a colher todos os tomates
que estiverem aptos a serem retirados do pé até o momento em que cessou sua ignorância
sobre o real proprietário. A partir de então, terá direito ao reembolso por toda a despesa que
teve com o plantio, deixando a colheita para o proprietário do terreno, visto que tais frutos são
considerados pendentes, e aderem naturalmente à coisa.
30
Se, por acaso, João tivesse firmado um contrato cuja obrigação era a entrega dos
tomates a serem colhidos posteriormente à manifestação de sua boa-fé, e o contratante tivesse
lhe adiantado o dinheiro, estaria configurada uma situação de percepção antecipada dos
frutos, tendo que restituir o valor recebido ao proprietário do terreno, se este for honrar o
contrato, ou ao contratante, rescindindo o contrato (alternativa que não interessa neste estudo,
vez que se trata de direito obrigacional).
Por fim, se João entregou uma colheita no período em que tinha direito aos frutos, e
acordou o recebimento para momento futuro, coincidindo com ocasião na qual não teria mais
direito à percepção de frutos, ainda assim o crédito é seu, visto tratar-se de frutos
percipiendos, que já deveriam ter sido percebidos e ainda não o foram, mesmo que por
liberalidade do possuidor.
Entretanto, se fosse um possuidor de má-fé, e este retirasse os tomates e os vendesse,
ou ainda, cortasse os pés de tomates, ele responderia, devendo ressarcir o reclamante.
1.3.2 Responsabilidade civil do possuidor
Outro efeito da posse é a possibilidade de imputação de responsabilidade civil ao
possuidor pela perda ou deterioração da coisa.
Assim terá o dever de indenizar o possuidor que deu causa ao dano da coisa, mas este
dever percorre vias diferentes conforme a presença ou não da boa-fé do possuidor.
O possuidor de boa-fé somente responde civilmente pela perda ou deterioração da
coisa, quando a vítima provar sua culpa pelo perecimento da coisa. O entendimento é que se
não houve culpa do possuidor e ele não possuiu a coisa de má-fé, o perecimento poderia
ocorrer até mesmo se estivesse nas mãos de quem lhe reclama a propriedade, não sendo justo
onerar o possuidor.
No outro extremo, o possuidor de má-fé será responsabilizado pela perda ou
deterioração coisa, exceto se conseguir provar que haveria a perda ou a deterioração mesmo
sem a sua posse. Aqui ocorre a inversão do ônus da prova, por já haver a presunção da
responsabilidade subjetiva do possuidor de má-fé.
31
1.3.3 Direito às benfeitorias
As benfeitorias são entendidas como as despesas realizadas com a finalidade de
conservar, melhorar ou embelezar o bem. Quando tais melhoramentos objetivam evitar a
deterioração, revestindo-se de caráter conservatório ou de possibilitar a exploração normal do
bem, está-se diante de uma benfeitoria necessária. Quando a melhoria visa aumentar a
utilidade do bem, será uma benfeitoria útil. Por fim, a benfeitoria voluptuária é aquela cuja
realização não seria imprescindível, mas é efetuada buscando maior lazer e conforto.
Apesar da aparência de conceitos fixos, tal classificação pode mostrar uma
relatividade alta dependendo do bem analisado e do uso que se faz dele. Assim, enquanto uma
piscina em uma casa de praia teria o caráter de benfeitoria voluptuária, se essa casa fosse
utilizada como escolinha de natação, a piscina passaria a ser necessária.
Em um prédio de dois andares com escadas, se houver também um elevador, este será
uma benfeitoria voluptuária. Se o prédio tiver seis andares, será útil. Se o número de andares
for vinte, o elevador será uma benfeitoria necessária. Entretanto, se em todos os prédios
houver moradores com deficiência física, que faça uso, por exemplo, de cadeiras de roda, o
elevador, em qualquer deles reveste-se da qualificação de benfeitoria necessária, vez que é o
elevador que vai oportunizar a utilização do bem em sua plenitude por parte dos deficientes
físicos.
Desta forma, a análise da classificação das benfeitorias deve ser feita com base no
quão determinante esta é para a operacionalização ou utilização do bem. O quanto o bem
precisa daquela obra para ser eficaz, para atingir a sua finalidade naquele cenário.
A determinação da benfeitoria é importante tendo em vista os reflexos de uma ou
outra. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis,
podendo ainda reter a coisa até o recebimento da indenização de tais benfeitorias. Quanto às
benfeitorias voluptuárias, ele poderá levantá-las, se não danificar a coisa, e não lhe confere o
direito à indenização.
O raciocínio para a determinação do direito à indenização é que as benfeitorias
necessárias cuidaram para que o bem se mantivesse em uso, sendo que tais despesas
aconteceriam independentemente de quem estivesse possuindo a coisa. As benfeitorias úteis,
embora a coisa pudesse ser usada sem a realização destas, elas serviram para aumentar-lhe a
utilidade, incrementando seu valor. Nesses dois casos, o possuidor de boa-fé age em proveito
do proprietário, visto que cuidou da coisa com o mesmo zelo deste.
32
Nas benfeitorias voluptuárias, com se prestam apenas ao mero deleite do possuidor,
não está o proprietário obrigado a indenizar, podendo, se quiser, indenizar para permanecer
com elas.
Em se tratando do possuidor de má-fé, sendo ele conhecedor de sua conduta lesiva,
não teve resguardado pelo legislador direito de indenização, senão quanto às benfeitorias
necessárias, e nem direito à retenção, mesmo no tocantes a estas.
O direito de retenção foi concedido apenas ao possuidor de boa-fé, consistindo em
meio de defesa ofertado a este, enquanto credor, como forma de constranger o retomante a
indenizá-lo pelas benfeitorias necessárias e úteis. Cabendo ao possuidor de má-fé apenas o
direito de indenização, como registrado acima. As consequências desse tratamento
diferenciado se dão tanto no plano material como processual, vez que ao possuidor de boa-fé
deu-se a possibilidade de manter seu pleito no mesmo processo originário e especial ou,
querendo, em um processo apartado (opção pouco usual por ser menos proveitosa ao credor),
enquanto ao possuidor de má-fé a lei deixou apenas o caminho da ação autônoma,
concorrendo como credor geral.
Por fim, importante diferenciar as benfeitorias das pertenças: enquanto as primeiras se
incorporam ao bem e perdem sua identidade, as segundas se caracterizam pela não-aderência
ao bem principal, mantendo sua autonomia, sendo passíveis de remoção e alienação
destacada, vez que não integram fisicamente a coisa. São exemplos de pertenças as máquinas,
os veículos, os animais usados na exploração industrial, ou para aumentar a comodidade ou a
estética da propriedade.
1.3.4 Direito à usucapião
A usucapião é modo originário (o novo proprietário não mantém nenhum tipo de
relação de direito real ou obrigacional com o antigo proprietário) de aquisição de propriedade
e de outros direitos reais, pela posse prolongada da coisa, acrescida de demais requisitos
legais.
A usucapião é por muitos chamada de prescrição aquisitiva. Tal denominação se dá
porque a aquisição da propriedade pelo beneficiário da usucapião ocorre no imediato
momento da perda do direito do usucapido de exercer a sua pretensão. A usucapião é somente
33
forma de obtenção de direito, mas que está ligada umbilicalmente à inércia por tempo
prolongado do titular do direito prescrito.
Trata-se do efeito mais relevante da posse. E a posse é, em qualquer de seus tipos, um
dos elementos essenciais à sua ocorrência.
São requisitos inafastáveis de quaisquer modalidades de usucapião o tempo, a posse
mansa e pacífica (sem oposição) e o animus domini (excluindo os detentores).
Em breve explanação, serão apresentados os critérios que norteiam cada forma de
usucapião:
a)
Usucapião extraordinária – aqui se exige apenas a posse ininterrupta e sem
oposição com o animus domini, sem necessidade de justo título (posse de boafé) e da boa-fé, variando a duração da posse conforme a utilização que foi feita
da coisa, assim:
- Quinze anos de posse simples, que se dá quando o possuidor exercita
algum dos poderes do domínio, não sendo qualificada pela moradia ou
pela produtividade.
- Dez anos de posse qualificada pela moradia ou pela realização de obras
ou serviços de caráter produtivo, redução do fator tempo pela
efetivação da função social pela posse.
b)
Usucapião ordinária – nesta além da posse contínua, mansa e pacífica se faz
necessários o justo título e a boa-fé, alternando-se também o requisito temporal
para a contagem do tempo:
- Dez anos de posse com título que aparente ser legítimo e válido, mas
que não foi apto a transferir a propriedade, tendo o possuidor o
desconhecimento desta inaptidão, credita ao referido título a sua
posição legítima de dono. Ex.: João comprou terreno de Pedro, que não
era o proprietário, mas João acreditava que fosse.
34
- Cinco anos de posse qualificada (estabelecimento de moradia ou
realização de investimento de interesse social ou econômico)
decorrente de aquisição onerosa cujo registro no cartório competente
tenha sido cancelado posteriormente.
c)
Usucapião especial – devido à sua origem constitucional, além de ter alguns
critérios que a distancia das demais, permite a transmissão de propriedade em
um espaço de tempo relativamente curto (cinco anos), mesmo sem a exigência
de justo título ou de boa-fé, em contrapartida, impõe condicionantes pessoais
(não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural), limitações dimensionais
e finalidade da posse. Sofrendo pequenas variações, subdividindo-se em:
- urbana – decorrente de posse ininterrupta e sem oposição, com animus
domini, por cinco anos, de área urbana de até duzentos e cinquenta
metros quadrados, para uso seu ou de sua família como moradia.
- rural – decorrente de posse ininterrupta e sem oposição, com animus
domini, por cinco anos, de área de terra em zona rural, não superior
a cinquenta hectares, morando nela e a tornando produtiva por seu
trabalho ou de sua família.
Então, a posse, seja ela simples ou funcionalizada, ganha valor no tempo a ponto de
fazer surgir o direito subjetivo de propriedade, que socialmente não traz implicações, e nem se
reveste de importância, visto que não modifica a ordem já existente na prática, no entanto,
juridicamente aumenta a proteção, conforme será analisado em seguida.
1.4 PROTEÇÃO DA POSSE
São muitas as teorias que buscam justificar a proteção possessória pelo Estado. As
mais recorrentes são a de Savigny, que entendia que a tutela decorria da necessidade de
restabelecimento do statu quo ante, que fora afetado pela violência do ofensor, seguindo sua
35
lógica de que a posse era um fato convertido em direito, e que a violência seria sempre
contrária ao direito; e a de Jhering, que, por outro lado, acobertava a ideia de que a defesa da
posse era apenas uma complementação da defesa da propriedade, fundando-se no argumento
do possuidor com proprietário presumido.
Tais teorias, apesar de suas grandes contribuições, se tornaram insuficientes à
realidade contemporânea. A posse, hoje, é tutelada como um modelo jurídico autônomo à
propriedade, que tem seu abrigo lastreado pelo valor que o sistema jurídico vigente deu ao uso
dos bens por meio do trabalho e da moradia e de seu aproveitamento econômico.
A proteção da posse, então, repousa não no valor desta para o indivíduo, mas no
interesse econômico e social de um país por meio da produção e povoamento que são
vocações da posse.
Vale destacar a diferença entre os juízos possessório e petitório. Enquanto no jus
possessionis (possessório) são exercitadas as faculdades jurídicas provenientes da posse em si
mesma, no jus possidendi (petitório), a proteção da posse decorre do direito de propriedade ou
de outro direito dela decorrente.
Segundo Farias e Rosenvald (2008, p. 110-111), no juízo possessório há a tutela do
“direito de possuir pelo simples fato de uma posse preexistente hostilizada por uma ofensa
concreta sem qualquer discussão no tocante ao fenômeno jurídico da propriedade”. E no
petitório, “pretende-se alcançar o direito à posse como um dos atributos conseqüentes a um
direito de propriedade ou negócio jurídico transmissivo de direito real ou obrigacional”.
O juízo possessório se reveste de uma característica de urgência, tendo inclusive
procedimento especial, desde que observado o prazo máximo de um ano e um dia para o
ajuizamento, e oferta três gradações de ações, conforme o grau de ofensa sofrido pelo
possuidor. Em ordem crescente de hostilidade, a agressão pode derivar de uma ameaça, pode
intensificar-se por meio de uma turbação e chegar à ofensa máxima do esbulho.
Enquanto a ameaça consiste em palavras escritas ou orais, ou mesmo em ato
inequívoco de que há a intenção de molestar a posse, a turbação é ato de terceiro que impede
ou obsta a ação do possuidor, diminuindo, alterando ou modificando o gozo ou modo de
exercício de direito, sem destruir sua fruição. O esbulho, por sua vez, é o arrebatamento da
posse pelo ofensor, deixando o possuidor privado da posse que tinha.
As ações possessórias em espécies são:
36
a)
Interdito proibitório – também chamado de embargos à primeira, por ser uma
defesa preventiva e que figuraria como o instrumento de proteção contra
primeira investida do agressor.
Sempre que houver fundado receio por parte do possuidor de ter sua posse
turbada ou esbulhada, poderá se utilizar da via processual oferecida pelo
interdito proibitório.
Nas palavras de Pereira (1999, p. 109):
A ação de interdito proibitório tutela a posse, garantindo a permanência do
possuidor e a abstenção por parte de terceiros da prática de turbação ou esbulho que
ainda não se concretizaram, mas que ele tem justo receio de que sejam realizados
futuramente.
São pressupostos para a interposição desta ação a posse, a ameaça de turbação
ou esbulho por parte do réu e o justo receio. Entretanto, não basta a simples
apreensão, o receio só se caracteriza como justo quando a turbação ou o
esbulho forem vislumbrados como consequência lógica dos fatos praticados ou
ainda quando existirem sérias razões que validem a suposição de que o autor
da ameaça a porá em execução.
A ideia de iminência deve ser entendida como um futuro próximo, não
restringindo ou exigindo o imediatismo e a brevidade, mas também não
aceitando o demorado, remoto ou longínquo.
Como ilustração pode ser citado o exemplo de um grupo de sem-terra que
chegou a uma região e está promovendo ocupações nas fazendas que julgam
improdutivas. O dono de uma das fazendas da região, ao ver um número
razoável de membros do referido grupo, sente-se ameaçado de que a sua
fazenda seja ocupada. Tal situação ensejaria uma ação de interdito proibitório,
entendendo a proximidade do grupo e seu ânimo de ocupação como
justificação do receio do possuidor.
b)
Manutenção de posse – nesta ação se busca a conservação da posse, quando da
ocorrência de atos praticados que atentem contra o possuidor sem que o tenha
efetivamente o excluído da posse.
37
Os requisitos próprios da ação de manutenção de posse são a posse do autor, a
turbação com a data de sua ocorrência e a continuação da posse, embora
turbada.
Caberia uma ação de manutenção de posse, por exemplo, no caso em que A,
vizinho de B, retira as cercas de seu terreno para que seu gado paste em terras
de B, ou faça obras nas proximidades da entrada da fazenda de B, dificultando
o acesso à propriedade deste.
Percebe-se que B não teve sua posse privada, mas sim a diminuição do seu
direito de uso, vez que não poderá percorrer sua propriedade livremente, por
conta da presença dos gados de A, no primeiro caso, ou ainda não poderá
entrar em sua fazenda sem que atente para os óbices da obra de seu vizinho.
c)
Reintegração de posse – o maior grau de violência à posse é combatido com a
ação de reintegração de posse, visto que a espoliação afasta do alcance do
possuidor a coisa possuída anteriormente, necessitando, como remédio, o
retorno do bem ao poder fático do ofendido.
A ação de reintegração de posse pressupõe a existência de elementos e
informações que denotem a posse do autor ao tempo do esbulho, o esbulho e o
tempo do cometimento deste.
O caso em que o vizinho X constrói muro em parte do terreno pertencente ao
vizinho Y representa um exemplo de esbulho parcial, vez que o vizinho Y não
teve privação da plenitude de sua propriedade. Se o vizinho X tivesse murado
todo o terreno do vizinho Y, teria ocorrido o esbulho total. Nas duas
ocorrências é cabível a ação de reintegração de posse, visto que não há a
exigência de que a posse perdida se refira à totalidade do bem.
Após o estudo da posse como fenômeno jurídico, passa-se, no capítulo seguinte, à
análise dos bens públicos e o regime jurídico que incide sobre eles.
38
2
OS BENS PÚBLICOS
2.1 CONCEITO
Antes de se analisar os bens públicos, faz-se necessário caracterizar os bens. Nas
palavras de Santos (2012, p. 707), “bens são valores que correspondem a tudo que pode ser
apreciado economicamente e que traz alguma satisfação às pessoas, podendo, por isso, ser
objeto de relações jurídicas”.
Desta forma, percebe-se que para algo ser caracterizado como bem deve haver um
vínculo entre sua utilidade e sua capacidade de ser economicamente valorado.
Com relação aos chamados bens públicos tem-se que, de acordo com o art. 98 do
Código Civil, são os bens de domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito
público interno, e ainda, com base no entendimento da jurisprudência, no sentido de que
também são bens públicos aqueles bens de pessoa jurídica de direito privado que estejam
sendo usados na prestação de serviço público, conforme decisão da Segunda Turma do
Tribunal de Justiça de Sergipe abaixo transcrita:
PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. OMISSÃO
QUANTO A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. AUSÊNCIA DE
INTERESSE JURÍDICO. TRIBUTÁRIO. EMSURB. EMPRESA PÚBLICA
PRESTADORA DE SERVIÇOS PÚBLICO DE PRESTAÇÃO OBRIGATÓRIA
PELO ESTADO. EQUIPARAÇÃO À FAZENDA PÚBLICA. EXECUÇÃO POR
PRECATÓRIO. PRECEDENTE DO SUPREMO. CITAÇÃO DO MUNICÍPIO.
NECESSIDADE.535CPC1. O Supremo Tribunal Federal, diferentemente desta
Corte, adota o chamado "prequestionamento ficto", de modo que a mera oposição
dos embargos declaratórios, por si só, já preenche o requisito do prequestionamento
para fins de interposição de recurso extraordinário, não havendo prejuízos à parte
pela rejeição dos aclaratórios, em face do disposto na Súmula 356/STF.2. As
empresas públicas, quando prestadoras de serviços públicos de prestação
obrigatória pelo Estado, devem ser processadas pelo rito do art. 730 do CPC,
inclusive com a expedição de precatório. Precedentes da Suprema
Corte.730CPC3. "A EMSURB é empresa pública prestadora de serviço público de
prestação obrigatória e exclusiva do Estado. Diferencia-se, pois, das empresas
públicas que exercem atividades econômicas. Dentro desse quadro, pode-se afirmar
que a EMSURB é pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, não se aplicando,
portanto, as restrições do art. 173, § 1º da Constituição Federal. Nesse sentido, é
reiterada e uníssona a jurisprudência desta Suprema Corte, a saber: ACO/RN 959,
Rel. Min. Menezes Direito , DJ 16/05/2008; ACO 1095, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ
02/05/2008; AC 1947 MC/DF, Rel. Min. Carlos Britto, decisão monocrática, DJ
21/02/2008; AgR 243250/RS">AI-AgR 243250/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
Primeira Turma, DJ 23/04/2004; ED 230051/SP">RE-ED 230051/SP, Rel. Min.
Maurício Corrêa, Pleno, DJ 08/08/2003" .173§ 1ºConstituição FederalACO
1095AgR 243250/RSEDED4. Todavia, há no caso dos autos peculiaridade que
39
influi diretamente no julgamento. É fato incontroverso, atestado pelo Oficial de
Justiça, que a empresa executada não mais dispõe de dinheiro nem de bens
penhoráveis, que todo o seu patrimônio já está constrito pela Justiça do Trabalho e
que continua a funcionar com bens pertencentes à própria Prefeitura Municipal de
Aracaju. Nesses termos, embora processada a execução sob o rito do art. 730 do
CPC, a Fazenda Municipal deve ser chamada a integrar o pólo passivo da lide como
responsável subsidiária da dívida, já que a EMSURB hoje já não tem patrimônio e
opera graças aos bens municipais de que se utiliza.730CPC5. Para preservar-se o
princípio da efetividade da jurisdição, evitando decisões inexequíveis em prejuízo
do credor, deve ser acolhida em parte a pretensão da recorrente a fim de possibilitar
a citação do Município de Aracaju/SE como litisconsorte passivo necessário, não
obstante deva a execução prosseguir sob o rito do art. 730 do CPC.730CPC6.
Recurso especial provido em parte (1086745 SE 2008/0186316-8, Relator: Ministro
CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 14/04/2009, T2 - SEGUNDA TURMA,
Data de Publicação: DJe 04/05/2009). (grifo nosso)
Deve-se, no entanto, alargar tal percepção, visto que a Constituição Federal em seus
artigos 20 e 26, por exemplo, estabelece como bens da União e dos Estados, respectivamente,
coisas como mar territorial, lagos, rios, cavidades naturais subterrâneas, águas superficiais ou
subterrâneas, dentre outros, que em uma primeira abordagem, apesar de citados como bens,
não aparece de forma clara a sua possibilidade de valoração econômica.
Ocorre, pois, que os bens públicos nem sempre precisarão da imediata noção
quantificativa de valor econômico, visto que são bens públicos “todas as coisas materiais ou
imateriais pertencentes às pessoas jurídicas de Direito Público e as pertencentes a terceiros
quando vinculados à prestação de serviço público” (GASPARINI, 2009, p. 881) e também
serão aqueles determinados pela Constituição com finalidade alheia à questão econômica, ou
mesmo que haja esta, seja ela secundária.
Os bens públicos estabelecidos constitucionalmente têm a nítida função de proteger,
ou resguardar a soberania do país ou a união federativa, internamente organizada.
Nesta perspectiva protecionista, surge a ideia de domínio eminente, que se define
como o poder que o Estado tem de, com base na supremacia do interesse público, restringir o
exercício da propriedade privada. Destaque-se que aqui não há propriedade pública; a
propriedade é de particulares, tendo o Estado algumas prerrogativas que lhe conferem o
exercício de um domínio, chamado eminente, como espécie do domínio público, lato sensu.
Assim, o Estado exerce o domínio público sobre os seus bens (cujo domínio público
propriamente dito origina-se da titularidade da propriedade) e sobre os bens de particulares
(baseado na figura ficta do domínio eminente).
40
2.2 CLASSIFICAÇÃO
A doutrina, observando alguns critérios, distribui os bens públicos em algumas classes,
conforme seja o ente que os detêm, sua vocação de uso e sua disponibilidade.
2.2.1 Quanto à titularidade
A Constituição traçou os primeiros, e mais importantes liames desta forma de
classificação, visto que estabeleceu a titularidade dos bens da União, dos Estados, do Distrito
Federal, e por analogia e em respeito à autonomia entre os entes federativos, os dos
Municípios.
a)
De acordo com seu art. 20 são bens da União:
- os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;
- as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das
fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação
e à preservação ambiental, definidas em lei;
- os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio,
ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros
países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem
como os terrenos marginais e as praias fluviais;
- as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as
praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as
que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao
serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26,
II;
- os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica
exclusiva;
- o mar territorial;
- os terrenos de marinha e seus acrescidos;
41
- os potenciais de energia hidráulica;
- os recursos minerais, inclusive os do subsolo;
- as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e préhistóricos;
- as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
b)
Conforme o art. 26 da CF, são bens dos Estados:
- as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em
depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de
obras da União;
- as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio,
excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros;
- as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União;
- as terras devolutas não compreendidas entre as da União.
c)
Bens dos Municípios:
Quanto aos bens dos Municípios, apesar de não haver previsão expressa, entende-se
que são seus todos os imóveis por eles construídos ou de outra forma adquiridos, além dos
bens móveis, obtidos de forma civilmente aceita, bem como os bens de característica pública,
como os por eles construídos ou mantidos, como praças, parques e ruas, ou que naturalmente
integram seu território, e a eles se limitam, como lagos, rios, dentre outros.
d)
Bens do Distrito Federal
O Distrito Federal que, nas palavras de Cunha Júnior (2008, p. 833), “não se confunde
com os Estados nem com os Municípios. Nada obstante concentra as competências destes, já
que é vedada a sua divisão em Municípios” têm como seus os bens que não são da União e
que estão dentro de seu território.
42
2.2.2 Quanto à destinação
Esse critério de classificação trata da relação de utilização que existe entre o Estado e
o bem. Importa aqui se há uso pelo Estado e, existindo tal uso, qual a forma de sua
operacionalização. Destarte, de acordo com a finalidade do bem, tem-se:
a)
Bens de uso comum do povo – são bens que por suas próprias características se
destinam à satisfação de necessidades coletivas, não podendo ter seu uso
restrito. Para Gasparini (2009, p. 883), “são as coisas móveis ou imóveis
pertencentes ao Poder Público [...], usáveis, sem formalidade, por qualquer do
povo”. No mesmo sentido, para Mello (2011, p. 921), “são os destinados ao
uso indistinto de todos”.
São de titularidade do Estado, que os deve construir, manter, conservar e/ou
regular, justamente pela impossibilidade de que seja titularizado por um
particular, vez que se destinam à utilização de qualquer indivíduo do povo.
O inciso I, do art. 99 do Código Civil exemplifica como sendo bens de uso
comum do povo os mares, os rios, as estradas, as ruas e as praças.
Não há restrição de uso ou acesso a este tipo de bens, observado logicamente o
uso que respeite a ordem pública, os bons costumes e a preservação do meio
ambiente. As limitações que se impõem, então, são abstratas, de caráter
principiológico, representadas pela exigência de não conduta.
Ex.: um município que tem uma praia dentro de seu território não pode
estabelecer o horário de permanência dos banhistas ou de número de
frenquentadores.
Santos (2012, p. 711) chama a atenção para o fato de que “embora, geralmente,
a utilização dos bens de uso comum seja gratuita, é possível a cobrança de
tarifa pela utilização, como ocorre com os pedágios”.
b)
Bens de uso especial – neste grupo estão os bens que são utilizados pelo Estado
na execução de sua função típica, ou seja, na prestação de serviço à população,
ou na execução de outras tarefas de interesse público.
43
Os bens de uso especial constituem instrumentos-meio que o Estado emprega
para atingir o seu fim. Aqui há uma destinação específica, podendo haver
controle e restrição para o acesso e uso destes bens.
Nas palavras de Meirelles (2009, p. 527):
[...] são os que se destinam especialmente à execução dos serviços públicos e, por
isso mesmo, são considerados instrumentos desses serviços; não integram
propriamente a Administração, mas constituem o aparelhamento administrativo.
Ex.: um prédio onde funcionam algumas repartições públicas pode ter seu
horário de entrada estipulado, vez que existe a necessidade de servidores para o
atendimento e a carga horária destes servidores é previamente estabelecida
conforme contrato ou estatuto, não sendo possível que o indivíduo queira ter
acesso e ser atendido a qualquer hora.
c)
Bens dominicais ou dominiais – são bens públicos que nem têm as
características de uso pelo povo em geral e nem estão sendo utilizados pelo
Estado para algo específico. Podem ser usados para qualquer fim, inclusive
permitem que o Estado os negocie, observadas as exigências legais.
De acordo com Santos (2012, p. 713), os bens dominicais constituem o
“patrimônio disponível da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, podendo, por isso, serem utilizados pelo ente que lhe possua o
domínio em qualquer finalidade, inclusive para alienação”.
No mesmo sentido, Gasparini (2009, p. 886) afirma que “são os destituídos de
qualquer destinação, prontos para ser utilizados ou alienados ou, ainda, ter seu
uso trespassado a quem por eles se interesse”.
Ex.: uma casa, que fica na praia, de propriedade da União, que não está
destinada a nenhuma finalidade pública.
2.2.3 Quanto à disponibilidade
A disponibilidade é uma das manifestações do domínio. É o direito de dispor que
detém o proprietário, já tratado anteriormente neste trabalho, quando se verificou que é a
44
possibilidade do proprietário de manifestar a sua vontade com relação ao bem, destruindo,
abandonando, alienando, doando, etc.
Com relação aos bens públicos, a disponibilidade não é tão ampla e irrestrita, vez que
estes têm, formalmente, como titulares de sua propriedade as pessoas de direito público
interno, no entanto, materialmente é a coletividade que é sua proprietária. O que faz com que
os sujeitos que atuam como titulares possam exercer apenas as funções de administração,
regulação e conservação de tais bens, não lhes sendo dado o direito de disposição natural de
destruição ou abandono.
No tocante à disponibilidade jurídica dos bens públicos, esta se mostra intimamente
ligada à sua destinação. É comum a doutrina falar sobre afetação e desafetação dos bens
públicos, quando quer dizer se um bem tem ou não uma finalidade pública.
Neste sentido, Santos (2012, p. 714) bem ensina que “afetação é o fato
administrativo que atribui a determinado bem público uma finalidade também pública e
específica”. Enquanto, “desafetação é o fato administrativo pelo qual um bem público
deixa de cumprir a finalidade pública anteriormente exercida”.
A desafetação é também chamada por Gasparini (2009, p. 887-888) como
“desconsagração”, que pode acontecer por fato jurídico, ato administrativo ou lei, bem
exemplificado pelo autor:
Uma creche, por exemplo, bem de uso especial, perde essa destinação se em razão
de um terremoto vier a ser destruída. É a desafetação por fato jurídico. Se o
desaparecimento (demolição) da referida unidade assistencial for determinado pela
Administração Pública, também ocorre desafetação. É a desafetação por ato
administrativo. Em ambas as situações, o terreno em que estava instalada a creche,
salvo expressa disposição legal ou administrativa, readquirirá sua qualificação de
bem dominical. Ainda, se mediante ato legislativo for retirada de um bem, destinado
ao lazer da população, essa consagração, há desafetação. É desafetação por lei.
(grifo nosso)
Serão disponíveis aqueles bens que não têm utilização pelo Estado, os que nunca
foram afetados ou os que se tornaram desafetados. Sob outra perspectiva, a disponibilidade
pode ser determinada pela possibilidade de patrimonialização do bem, ou seja, de verificação
de caráter patrimonial do bem.
a)
Bens indisponíveis – a partir da classificação da destinação pode-se determinar
que os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial são bens
indisponíveis, vez que existe uma finalidade pública esperada deles.
45
Os bens de uso comum do povo são indisponíveis não por mera afetação
administrativa, mas sim por suas próprias características. Justen Filho (2010, p.
1039) respalda esta ideia quando trata do que chama de “afetação intrínseca”:
“há casos em que a composição material da estrutura institucional abrange
necessariamente certos bens, no sentido de que a única destinação possível e
imaginável para o bem é a satisfação das necessidades comuns do povo”.
A sua configuração como bem indisponível se dá pela impossibilidade de
valoração patrimonial, tornando-os bens não negociáveis, fora do mercado e,
assim, indisponíveis.
Os bens de uso especial, por sua vez, são passíveis de quantificação
econômica,
entretanto,
são
indisponíveis
por
terem
sua
destinação
especificada, sofrem afetação pela destinação que o Estado lhe investe.
b)
Bens disponíveis – por via inversa, serão bens disponíveis todos os que não se
caracterizam como indisponíveis, podendo ser negociáveis, tendo valor
econômico e ainda não estando a serviço do Estado. Os bens dominicais são
bens disponíveis, independente de nunca terem sido afetados ou, caso já tendo
sido, posteriormente tenha ocorrido a desafetação.
2.3 CARACTERÍSTICAS
As características dos bens públicos são consequências de sua indisponibilidade,
considerando que têm destinação pública, e que servem ao Estado como veículos de
funcionalização deste, tais bens são inalienáveis (ou de alienação condicionada),
impenhoráveis, imprescritíveis e não oneráveis.
2.3.1 Inalienabilidade
Meirelles (2009, p. 541) conceitua alienação como sendo “toda transferência de
propriedade remunerada ou gratuita, sob a forma de venda, permuta, doação, dação em
pagamento, investidura, legitimação de posse ou concessão de domínio”.
46
Os bens públicos de uso comum e de uso especial, exemplos de bens indisponíveis,
visto que estão vinculados à suas destinações, são também inalienáveis, devido à
impossibilidade de torná-los negociáveis, seja pela não possibilidade de determinação de
valor econômico, ou mesmo por sua natureza de uso não individual, como no caso dos bens
de uso comum, seja pela limitação legal/administrativa da afetação, no caso dos bens de uso
especial.
Na lição de Justen Filho (2010, p. 1039), “a afetação é a subordinação de um bem
público a regime jurídico diferenciado, em vista à destinação dela à satisfação das
necessidades coletivas e estatais, do que deriva inclusive a sua inalienabilidade”. (grifo
nosso)
Os bens dominicais podem ser alienados, justificando a terminologia alienação
condicionada, desde que sejam observados os requistos legais, conforme autoriza o art. 101
do Código Civil.
A lei nº 8.666/93, que institui normas para licitações e contratos da Administração
Pública, em seu art. 17 dispõe que:
Art. 17- A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de
interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá
às seguintes normas:
I – quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos da
administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos, inclusive
as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e de licitação na modalidade
de concorrência, dispensada esta nos seguintes casos:
[...]
II - quando móveis, dependerá de avaliação prévia e de licitação, dispensada esta nos
seguintes casos:
[...]
Em resumo, os requisitos para a alienação de bens públicos imóveis são: existência de
interesse público devidamente justificado, de autorização legislativa (apenas para órgãos,
autarquias e fundações), de avaliação prévia e de licitação na modalidade de concorrência.
Com relação aos bens públicos móveis, sua alienação se condiciona também à
existência de interesse público devidamente justificado, de avaliação prévia e de licitação.
Santos (2012, p. 716) chama a atenção para o fato de que apesar de o citado art. 17
exigir a modalidade concorrência para a alienação de bens imóveis, o art. 19 da mesma lei
47
também autoriza a modalidade leilão, nos casos de bens imóveis cuja aquisição pela
Administração Pública derive de procedimentos judiciais ou de dação em pagamento.
O autor ainda ressalta que, normalmente, a alienação de bens móveis é realizada pela
modalidade de licitação leilão, ou concorrência, quando o valor assim exige.
2.3.2 Impenhorabilidade
A penhora é ato do Estado, quando chamado por meio do Poder Judiciário, para
garantir ao credor, por meio da apreensão dos bens do devedor, o recebimento de seu crédito.
A penhora, no entanto, é uma proteção dada pelo Estado quando o devedor for um particular,
visto que não há a possibilidade de garantir uma dívida do Estado pela apreensão de seus
bens.
Os bens públicos não estão sujeitos à penhora. O Estado oferta como forma de
garantia, lato sensu, o sistema de precatórios, pelo qual por meio de sentença judicial, o
Estado se obriga, registrando em seu orçamento as parcelas que configuram créditos de
terceiros, pagos de acordo com a ordem de reconhecimento judicial.
Destaque-se que os bens de empresas públicas ou sociedades de economia mista, que
são pessoas jurídicas de privado, estão, em regra, à disposição do Estado para penhora,
excetuando-se, por entendimento jurisprudencial, aqueles que são usados na prestação de
serviços públicos.
Valendo transcrever uma decisão da Primeira Turma do Tribunal de Regional Federal
da Quinta Região em que afastou a proteção da impenhorabilidade dos bens de empresa
pública prestadora de serviços públicos que não estavam relacionados diretamente à referida
prestação, ou seja, segregou os bens da empresa em penhoráveis e impenhoráveis, conforme o
uso direto ou não na execução do serviço público:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL.
EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇOS PÚBLICOS. ECT.
PECULIARIDADE NORMATIVA. REGRA GERAL. IMPENHORABILIDADE
DOS BENS AFETADOS À PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO. REGIME DE
PRECATÓRIO. NÃO APLICAÇÃO. RESPONSABILIZAÇÃO SUBSIDIÁRIA
DO ESTADO DE SERGIPE. NÃO DESINCUMBÊNCIA DO ÔNUS
PROBATÓRIO.1. Em relação à impenhorabilidade total de seus bens e a
submissão ao regime de precatório, a situação da ECT é peculiar, vez que o
Decreto-Lei n.º 509/69, expressamente, conferiu-lhe essas prerrogativas, tendo o
STF entendido pela recepção dessa norma por ser a ECT empresa pública
48
prestadora de serviço público.5092. No caso da agravada (COMPANHIA DE
SANEAMENTO DE SERGIPE - DESO), não há norma de cunho equivalente,
tendo, apenas, a norma estadual que a institui lhe atribuídos os privilégios da
Fazenda Pública em relação à tributação (fl. 87) e a LC Estadual n.º 33/96 prevê a
impenhorabilidade apenas dos seus bens afetados ao serviço público (fl. 88),
conforme afirmado pela própria agravada, razão pela qual não é a sua situação
idêntica à da ECT.3. Nesse aspecto, em face da prestação de serviços públicos pela
agravada, mas da inexistência de regra de impenhorabilidade de todos os seus
bens, apenas aqueles afetados aos serviços públicos por ela prestados é que são
impenhoráveis, razão pela qual merece reforma a decisão agravada que a submeteu
ao regime de precatório.4. Em relação ao pleito de integração do Estado de Sergipe à
lide, como responsável subsidiário, não obstante as alegações da agravante quanto à
insuficiência dos bens da agravada para fazer frente à dívida executada, não trouxe
ela provas nesse sentido, não se desincumbindo, assim, de seu ônus probatório
recursal.5. Provimento, em parte, do presente agravo de instrumento, apenas para
reformar a decisão agravada na parte em que submeteu a agravada ao regime de
precatório. (90253 SE 0060932-94.2008.4.05.0000, Relator: Desembargador Federal
Emiliano Zapata Leitão (Substituto), Data de Julgamento: 12/02/2009, Primeira
Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça - Data: 18/03/2009 - Página:
467 - Nº: 52 - Ano: 2009). (grifo nosso)
2.3.3 Imprescritibilidade
No capítulo anterior, quando se tratou da usucapião, que é uma forma de obtenção do
direito de propriedade surgido para o possuidor pelo exercício da posse ao longo dos tempos,
evidenciou-se que, para que tal direito se operacionalize, torna-se necessário que o titular se
mostre inerte prolongadamente, não exercendo sua pretensão de reaver a propriedade que está
sob a posse de outrem, fazendo com que seja prescrito o seu direito de agir.
Quando se trata de bens públicos, a lei e a doutrina entendem pela impossibilidade de
ocorrência da prescrição, podendo o Estado, a qualquer tempo, buscar os bens que foram
retirados de seu poder fático. Voltaremos a abordar esse assunto em momento mais oportuno.
2.3.4 Não oneração
O termo oneração empregado pela doutrina vem do direito de dispor, faculdade que
tem o titular da propriedade de oferecer seu bem como garantia de alguma dívida. Diz-se que
o bem dado como garantia foi onerado, visto que fica sujeito ao cumprimento da obrigação,
não podendo o proprietário dele dispor enquanto a obrigação existir.
O art. 1.419 do Código Civil assim autoriza:
49
Art. 1.419. Nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, o bem dado em
garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação.
No art. 1.420 do mesmo Código, o legislador disse que apenas podem ser dados em
penhor, anticrese ou hipoteca os bens que podem ser alienados, excluindo, portanto, os bens
públicos de uso comum e de uso especial, que são inalienáveis, logo não podem ser oferecidos
como garantia, não podem ser onerados.
Quanto aos bens dominicais, os quais podem ser alienados, se atendidos os requisitos
legais, a impossibilidade de oneração decorre da característica da impenhorabilidade, visto
que os bens onerados são executados por via da penhora. Se os bens públicos não podem ser
penhorados, sendo aplicado a estes o regime de precatório, por via transversa, os bens
públicos dominicais não podem ser onerados.
Vale destacar, no entanto, o que afirma Gasparini (2009, p. 891):
O regime de execução contra a Fazenda Pública é instituído [...] em benefício do
Estado, e este, segundo o interesse público, pode abrir mão desse privilégio e
designar, previamente, certos bens para garantir uma dada operação. A Constituição
Federal, no art. 167, IV, expressamente, prevê a vinculação de receita de impostos
para garantir operações de crédito por antecipação de receita. De sorte que é legítima
a garantia hipotecária incidente sobre bens públicos, bem como as consequências
decorrentes, se tal oneração for permitida em lei.
2.4 USO DO BEM PÚBLICO POR PARTICULAR
O uso do bem público pelo particular pode ocorrer conforme a destinação originária
deste bem, quando se diz que a utilização é normal; ou pode ter um objetivo diferente do
almejado por sua destinação principal, sendo então a utilização anormal.
Apesar de a distinção dos usos com base na destinação ser importante, não é ela que
norteia a divisão traçada pela doutrina, que se dá considerando as formas de uso comum ou de
uso privativo dos bens públicos por parte dos particulares:
50
2.4.1 Uso comum
Neste grupo estão os bens públicos propriamente ditos, vez que seu uso é
indiscriminado, sem necessidade de consentimento. O uso é ofertado a todo e qualquer
indivíduo do povo, o que impede o uso exclusivo por algum dos particulares, ou algum tipo
de privilégio na fruição do bem, dispensando identificação ou determinação do usuário,
respeitando a isonomia de tratamento.
Meirelles (2009, p. 530) destaca que:
[...] os bens públicos de uso comum, não obstante estejam à disposição da
coletividade, permanecem sob a administração e vigilância do Poder Público, que
tem o dever de mantê-los em normais condições de utilização pelo público em geral.
Todo dano ao usuário, imputável à falta de conservação ou a obras e serviços
públicos que envolvam esses bens, é de responsabilidade do Estado, desde que a
vítima não tenha agido com culpa.
2.4.2 Uso privativo
O uso exclusivo pelo particular é possível e se reveste de várias formas. Caracteriza-se
pela necessidade de autorização (lato sensu) do Poder Público, o qual poderá exigir do
particular interessado algum encargo.
Mesmo sendo a utilização feita de forma exclusiva pelo particular, o interesse público
deve estar presente nesta forma de uso, ainda que de forma mediata; em outras palavras,
deverá se reverter em algum tipo de serviço ofertado à população.
O uso privativo de um bem público requer a emissão por parte da Administração
Pública de título jurídico individual que confira poder de exercício deste uso a pessoa ou
grupo de pessoas determinadas.
Santos (2012, p. 726) diz que:
O uso de bem público em caráter privativo tanto pode ser outorgado a pessoas
físicas como jurídicas, públicas ou privadas, sendo certo que, em todos os casos,
haverá sempre de exigir um instrumento formal que, [...] poderá ser um ato ou
contrato administrativo.
51
A Administração Pública emprega os seguintes instrumentos legais para consentir que
algum particular use privativamente um bem público:
a)
Autorização de uso – origina-se de ato administrativo, o que denota a carga de
discricionariedade envolvida nesta forma de instrumento. Apesar de ser
solicitado pelo particular, é unilateral e depende exclusivamente do juízo de
conveniência do Poder Público sobre sua emissão ou não. Fortemente precário,
visto que não exige a previsão de prazo, bastando a sinalização da
precariedade, reconhecendo a sua revogabilidade a qualquer tempo por parte da
Administração Pública.
Para Santos (2012, p. 727) “é o ato administrativo unilateral, discricionário e
precário, por meio do qual a Administração Pública admite que uma pessoa
física ou jurídica utilize privativamente determinado bem público”.
Mello (2011, p. 935) dá ênfase ao tempo de utilização, estabelecendo uma
sensação de precariedade determinada pelo uso e não só pela possibilidade de o
Poder Público revogar o ato a qualquer tempo: “é o ato unilateral pelo qual a
autoridade administrativa faculta o uso de bem público para utilização
episódica de curta duração”. (grifo nosso)
Embora sempre haja algum interesse público, a autorização apresenta com
maior preponderância o interesse do particular. Um bom exemplo seria o caso
de um circo que chega a um determinado município e requer autorização para
se instalar ali, por um período de tempo. Mesmo sendo de interesse público o
oferecimento do lazer à população, destaca-se aqui o interesse maior do
empreendedor circense, que se configura como interesse financeiro.
b)
Permissão de uso – Meirelles (2009, p. 532) a conceitua como “ato negocial,
unilateral, discricionário e precário através do qual a Administração faculta ao
particular a utilização individual de determinado bem público”.
Assemelha-se muito à autorização de uso por também ser ato administrativo
discricionário e precário, mas aqui já há um equilíbrio entre os interesses, o
que faz diminuir a carga de precariedade.
A unilateralidade deste ato não se apresenta da mesma forma que na
autorização, pois nesta a própria emissão se dá de forma unilateral, enquanto
na permissão, existe uma negociação, com base no interesse mútuo da
52
utilização do bem público pelo particular. Assim, a unilateralidade da
permissão deve ser vista apenas sob o aspecto da precariedade, como o poder
da Administração Pública revogá-lo ou modificá-lo sem anuência do
permissionário, não acarretando inclusive direito à indenização, ressalvada as
permissões com prazo estipulado.
Exemplo a ser dado é a permissão para utilização de bancas ou boxes em feiras
públicas, além do interesse do permissionário em ter a permissão para vender
seus produtos, interessa também ao Poder Público que comerciantes
autônomos como os feirantes se concentrem em área específica, evitando o
comércio ao longo das avenidas, tumultuando os espaços de circulação de
pedestres e gerando conflitos com os comerciantes de lojas típicas.
Importante ressaltar que nos casos em que haja interesse de grande número de
particulares, a permissão de uso deve ser precedida de processo licitatório,
oferecendo condições iguais de participação.
c)
Cessão de uso – Apesar de Gasparini (2009, p. 929) a definir como o ato que
“consubstancia a transferência do uso de certo bem de um órgão [...] para outro
[...] da mesma pessoa jurídica [...], para que este o utilize segundo sua natureza
e fim, por tempo certo ou indeterminado”, tal transferência não ocorre apenas
entre órgãos de uma mesma pessoa jurídica, podendo inclusive ser transferida
de um órgão (que pertence a uma pessoa jurídica de direito público –
administração direta) para uma pessoa jurídica de direito privado.
O item diferenciador desta forma de consentimento é a cooperação.
Caracteriza-se, em regra, pela colaboração entre órgãos públicos ou entidades
privadas sem finalidade lucrativa que têm objetivos em comum ou
comunicáveis. Quando oportuno, a Administração Pública emite um ato
administrativo unilateral, discricionário, precário e gratuito possibilitando a
melhoria na prestação do serviço público ofertado conjuntamente pelos
envolvidos.
As salas onde funcionam os núcleos de prática jurídica das universidades
dentro dos fóruns são exemplos da cessão de uso do bem público.
d)
Concessão de uso – nas situações em que o particular precisa ter uma maior
segurança jurídica por conta da necessidade de um investimento financeiro
53
maior, o instrumento adequado é a concessão de uso, que se dá na forma de um
contrato
administrativo,
perdendo,
portanto,
as
características
da
unilateralidade e precariedade presentes na autorização, permissão e cessão de
uso.
A discricionariedade do Poder Público limita-se a escolha da melhor forma e
do momento para haja a concessão, mas sendo realizada a licitação e firmado o
contrato, não caberá revogação e sim rescisão.
Tendo em vista que haverá uma exploração econômica do bem público,
conforme destinação própria deste, a lei exige a prévia licitação e contrato com
prazo determinado.
Os restaurantes que funcionam nos Ministérios da Presidência da República,
quando explorados por algum particular, pessoa física ou jurídica, tiveram o
consentimento da Administração Pública, realizado por meio de concessão de
uso.
Santos (2012, p. 731-732) destaca que a concessão de uso é marcada pela
“discricionariedade, [...] somente será levada a efeito se a Administração
julgar conveniente e oportuno [...]. No entanto, não ostenta a precariedade
[...], tendo em vista sua natureza jurídica de contrato administrativo” o que a
diferencia da autorização, da permissão e da cessão de uso.
As duas formas de utilização do bem público que serão tratadas agora são as mais
importantes para este trabalho, tendo em vista que tais concessões estão revestidas do mais
relevante caráter social, constituindo-se na concretização, por uma medida administrativa, do
princípio constitucional da função social.
e)
Concessão de direito real de uso – constitui-se por contrato administrativo em
que a Administração Pública concede o uso de terrenos públicos como direito
real resolúvel, onerosa ou gratuitamente, por tempo determinado ou
indeterminado, tendo como objetivo a urbanização, a industrialização, a
edificação, o cultivo da terra ou outro uso que seja de interesse social,
validando a regularização fundiária.
O Decreto-Lei nº 271/1967, alterado pela Lei nº 11.481/07, incluiu também
terrenos particulares fazendo com que se instrumentalizasse a Administração
Pública com mecanismos para a realização da reforma agrária, transferindo de
54
um particular ao outro o uso de uma propriedade, desde que o particular
concessionário desse ao bem utilidade de maior relevância social que o
proprietário, forçosamente “concedente”.
Neste momento do estudo, interessa tratar da concessão de direito real de uso
dos terrenos públicos. Consistente na transferência de direito real, incluindo as
características que lhe são pertinentes, como: oponibilidade erga omnes
aderência e sequela. Distancia-se, então, da concessão de uso, por esta ser uma
relação jurídica de natureza obrigacional.
De acordo com Araújo (2010, p. 57), a concessão de direito real de uso “tem
um caráter resolúvel à medida que o concessionário impuser ao bem destinação
diversa da pactuada, ou descumprir cláusula do acordo”. De outra forma, o
cumprimento do contrato de concessão, confere ao concessionário um quase
título de propriedade, tendo em vista que não é composto pela totalidade dos
poderes dominiais.
f)
Concessão de uso especial para fins de moradia – esta modalidade de
concessão exige os mesmos requisitos da usucapião especial urbana: posse
ininterrupta e sem oposição, com o animus domini, por cinco anos, área urbana
de até duzentos e cinquenta metros quadrados, para uso seu ou de sua família
como moradia, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou
rural.
É uma “usucapião resolúvel”, pois que a única possibilidade de o imóvel
retornar ao domínio pleno do Poder Público é destinação diversa da moradia do
possuidor ou de sua família.
Assemelha-se à concessão de direito real de uso por não ter o poder de dispor
do bem, entretanto, diferencia-se dela por ter como única destinação a moradia
(do possuidor ou de sua família), enquanto a outra reúne um leque maior de
opções para a destinação, conquanto seja esta destinação promovedora da
função social. Outra diferença é que a concessão de uso especial para moradia
consubstancia-se em um direito subjetivo daquele que possuiu, até 30 de junho
de 2011, área urbana nas condições citadas, ao contrário da concessão de
direito real de uso que é uma faculdade do Poder Público.
De acordo com Santos (2012, p. 734), esta modalidade de concessão foi criada
“exatamente com a finalidade de possibilitar a regularização da situação de
55
famílias de baixa renda que ocupavam imóveis públicos urbanos, com vistas a
promover sua inclusão social”.
56
3
REFLEXÃO SOBRE O INSTITUTO DA POSSE EM RELAÇÃO AOS BENS
PÚBLICOS: LIMITES E POSSIBILIDADES
3.1 POSSE OU MERA DETENÇÃO?
Considera-se posse como o exercício fático de alguns dos poderes inerentes ao
domínio ou propriedade, a partir da interpretação do que dispõe o art. 1.196 do CC, e
detenção uma posse descaracterizada, visto que ela ocorre em situação em que é plenamente
possível observar a posse de forma abstrata sendo exercida, tendo, no entanto, havido uma
exclusão legislativa, para que a referida situação não gerasse todos ou alguns dos efeitos da
posse.
Vale destacar o voto do relator Jeronymo de Souza, proferido no julgamento Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e Territórios, manifestado na Apelação nº 2003.01.1.041022-4:
Urge ressaltar que, por determinação emanada da Carta Magna (art. 183, § 3º e 191,
parágrafo único), os bens públicos imóveis não podem ser adquiridos por usucapião.
Ora, não sendo os bens públicos dominiais suscetíveis de aquisição por
usucapião, o poder de fato exercido sobre eles não induz posse, mas mera
detenção, decorrente de atos de permissão ou tolerância por parte do Poder Público.
(20030110410224 DF , Relator: JERONYMO DE SOUZA, Data de Julgamento:
06/05/2004, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: DJU 10/08/2004 Pág. : 136). (grifo
nosso)
Ao analisar tal afirmação do eminente relator, percebe-se uma incoerência de ordem,
visto que a usucapião é resultado possível (e não necessário) do exercício da posse, não pode
a impossibilidade daquela determinar a inexistência desta. Aceitar tal argumento seria o
mesmo que aceitar que uma mulher que não pode ter filhos, não é mulher pela
impossibilidade orgânica da gestação.
O filho e a usucapião são produtos da mulher e da posse, respectivamente, mas não
são elementos essenciais à existência de cada um daqueles.
Tanto é que a usucapião, na doutrina, é estudada como um dos efeitos da posse. Logo,
inconcebível que se justifique a ocupação de bens públicos como detenção pela simples
vedação de usucapião. O que afastaria a posse seria a exclusão legislativa como ocorre nos
arts. 1.198 e 1.208 do CC, quando desclassificam expressamente a posse dos chamados
servidores da posse e dos que têm permissão ou tolerância.
57
Por outra via, o art. 100 do CC estabelece que os bens públicos de uso comum do povo
ou de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação. Com base nesta
previsão, que os torna bens fora do comércio, a doutrina trata da atuação de particulares em
bens públicos como insuscetível de posse.
A lei retira a comercialidade da coisa e, então, pouco importa que alguém a detenha
e se comporte em relação à coisa como dono. Esta exteriorização do domínio é
juridicamente impossível e não gera, portanto, o jus possessionis (GOMES, 2004, p.
44 apud ARAUJO, 2010, p. 106).
O Código Civil excetuou da caracterização de posse a ocupação de bens públicos de
usos comum e especial, conferiu-lhes a categoria de detenção. No entanto, quanto aos bens
dominiais não existe a opção legislativa de exclusão, de descaracterização da posse.
Ainda assim, o entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência é de total
insuscetibilidade de posse sobre os bens públicos, negando, inclusive a possibilidade de
intentação de ações possessórias por particulares que ocupam bens públicos (mesmo os
dominiais) contra o Poder Público, sendo aceitas apenas quando propostas em face de
terceiros.
Parece-nos, descabido tal posicionamento, que além de carecer de dispositivo legal
que valide a desconfiguração da posse de bens dominiais, ainda confronta com a lógica mais
simples: se ações possessórias só podem ser intentadas por aquele que exerce a posse, e, por
isso, o Estado as assegura ao particular ocupante de bem público contra terceiros que tentem
violar seu estado de possuidor, como pode concomitantemente negar a mesma relação
jurídica, usurpando um direito do particular, por conta apenas da mudança de quem figura no
polo passivo da ação?
Araujo (2010, p. 108) afirma que “trata-se da aplicação dos tradicionais dogmas do
Direito Administrativo: os princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e o
da legalidade”.
Então, necessária a análise de tais princípios.
De acordo com o princípio da legalidade, expresso no art. 5º, inciso II da CF, ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. A
Administração Pública, conforme caput art. 37 da CF, deve obrigatoriamente obedecer a este
princípio que, por via oblíqua, proíbe o Poder Público de agir na ausência de lei.
Se o Poder Público, na figura do Poder Judiciário, restringe o direito de ação do
particular, sem lei que o autorize, fere mandamento constitucional.
58
Analisando o princípio da supremacia do interesse público, segundo o qual o interesse
da coletividade deve prevalecer sempre que houver confronto entre este e o interesse de um
particular, percebe-se que não há um critério objetivo a ser averiguado. Como saber qual é o
verdadeiro interesse da coletividade? Em uma situação em que uma família, por exemplo,
esteja morando em prédio público desativado, que não serve mais à comunidade, mas é o lar
desta família, há interesse da coletividade em choque com o interesse da família? E qual o
interesse da coletividade? Dar utilidade ao prédio, destinando-o à moradia da família, não
pode ser o interesse público? O interesse público é o interesse do Estado? E o interesse do
Estado respeita o interesse público?
Mesmo considerando a ausência de respaldo teórico, defendemos a ideia de que a
detenção dos bens públicos por particulares limita-se às categorias de uso comum do povo e
de uso especial pela cadeia implicativa de suas afetações, e de suas próprias características, o
que torna inaplicável o exercício de poder fático exercido por um particular. Restando aos
bens públicos dominiais a possibilidade de reconhecimento da posse, de fato e juridicamente.
3.2 A IMPOSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS
A Constituição Federal em dois momentos expressou a não possibilidade de usucapião
de imóveis públicos: § 3º do art. 183 e parágrafo único do art. 191, ambos com o mesmo
texto, in verbis: Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Considerando que a usucapião é produto de uma posse continuada e sem oposição,
somados ainda os outros requisitos de cada uma de suas modalidades, mesmo que não
houvesse tal vedação constitucional, o posicionamento da doutrina e da jurisprudência a
respeito da ocupação de bens públicos constituiria um óbice a tal forma de aquisição de
propriedade, visto que a mera detenção não gera direito à usucapião.
Assim, a impossibilidade de usucapião, além de ser evidenciada na Constituição
Federal, ainda passa pelo obstáculo da interpretação jurídica, a qual faz uma exegese literal da
norma constitucional, não observando os princípios reinantes no ordenamento pátrio, nem a
intenção do poder constituinte originário.
59
3.3 CONFLITO PRINCIPIOLÓGICO: SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO
FRENTE À FUNÇÃO SOCIAL VALIDADOR DO DIREITO SUBJETIVO DA
PROPRIEDADE
A palavra princípio é derivada do latim principium, que significa começo.
Juridicamente a doutrina costuma defini-lo como um pensamento diretivo que orienta a
formação de uma base que conecta os elementos do sistema.
Moraes, J. (1999) lista, com base na visão tetradimensional de Bobbio, as funções dos
princípios como de interpretação, de integração, de direção e de limitação. Sendo as três
primeiras norteadoras do sistema jurídico e a última condicionadora da atuação dos Poderes
Públicos.
No entanto, Moraes, J. (1999, p. 55) acresce a função prescritiva, quando os princípios
indicam condutas, “formalmente autônomas e prescindindo de qualquer desenvolvimento ou
desdobramento posterior”.
Para Streck (2011, p. 542),
[...] os princípios, longe de serem vistos como cláusulas de abertura ou como
protético de fechamento de “lacunas” do sistema, [...] são operados como um prático
“fechamento hermenêutico”, isto é, não vinculam nem autorizam o intérprete desde
fora, mas justificam a decisão no interior da prática interpretativa que define e
constitui o direito.
De forma ilustrativa o autor traz uma ideia de princípio que desconsidera a derivação
terminológica largamente apresentada pela doutrina, mas não deixa de reconhecê-lo como
sinalizador do sentido pretendido pelo direito.
A faticidade de nossa existência mostra que sempre estamos situados no meio.
Literariamente, poderíamos dizer que a existência é sempre travessia. Travessia é
caminho e esse caminho se torna percorrível a partir das marcas que são nele
impressas pela tradição. Os princípios são, portanto, estas marcas que balizam a
formação da história institucional do direito. Esta história institucional possibilita a
formação legítima de algo como uma decisão judicial (STRECK, 2011, p. 545).
A partir dessas ponderações, ressaltam-se os princípios envolvidos na questão da
ocupação de bens públicos, sem descartar a possibilidade de interferência de outros, ganham
mais notoriedade, pois, o princípio da supremacia do interesse público e o princípio da função
social.
60
Válido enfatizar que o princípio da supremacia do interesse público não foi
expressamente tratado pela Constituição como tal, mas, como na ideia metafórica de Streck,
figura como “marca” a ser seguida, vez que aparece como indício que mostra o caminho para
a formação do direito. Quanto ao princípio da função social, este aparece como norteador da
ordem econômica, conforme arts. 5º, inciso XXIII e 170, inciso III da CF.
Necessário ao estudo o detalhamento, mínimo que seja, de cada um desses princípios:
a)
Princípio da supremacia do interesse público – mandamento largamente
vinculado às decisões da Administração Pública como seu “pano de fundo”,
visto em conjunto com o princípio da legalidade como validadores das
deliberações do Poder Público.
Santos (2012, p. 37) diz que o princípio da supremacia do interesse público
“sinaliza que, via de regra, todas as vezes em que se confrontarem o interesse
privado e o interesse público, deverá este último prevalecer, pela simples ideia
de que o coletivo deve ponderar sobre o individual”.
Ocorre que para que seja aplicado o interesse público é imprescindível saber
em que consiste tal interesse. Para tanto, de grande valia é a lição de Mello
(2011, p. 60):
[...] o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a
dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada
indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado).
Mello (2011, p. 60) ainda se preocupa em explicar que, “embora seja claro que
pode haver um interesse público contraposto a um dado interesse individual”,
exemplifica com a ideia de que um indivíduo que está sendo desapropriado terá
interesse contrário, mas, de forma abstrata, cada indivíduo, inclusive esse que
sofrerá a desapropriação, tem interesse que o instituto da desapropriação exista
para que possam ser abertas ruas, estradas, etc.
Assim, conclui o autor que o interesse público não é um interesse constituído
autonomamente, dissociado do interesse das partes. Sendo apenas mais uma
faceta dos interesses dos indivíduos.
b)
Princípio da função social da propriedade – a função social é princípio não só
pela sua previsão constitucional como tal, mas pelo poder que tem de irradiar
61
seus objetivos sobre diferentes normas, servindo de critério para compreensão
e aplicação conforme vontade do sistema jurídico.
Moraes, J. (1999, p. 70-71) lista três formas distintas de conceituar
juridicamente o princípio da função social da propriedade:
- como princípio geral do Direito – não tendo “caráter meramente
supletório, mas principal, na aplicação, interpretação ou integração da
lei ou contrato ao caso concreto”. O autor ainda diz que a função social
da propriedade “é antes de tudo uma concepção com eficácia autônoma
e incidência direta no próprio direito de propriedade, prescindindo de
indicação legislativa específica”.
- como princípio politicamente conformador – aqui, apesar de não negar
sua função de princípio geral de Direito, tem outra importância, visto
que está direcionado à atividade econômica e produtiva.
-
como princípio-garantia – deixando aqui de ser conceito aberto e de
propulsão, para se concretizar na norma de forma determinada e
objetiva. Como direito individual impõe deveres em proveito da
sociedade e dos não-proprietários.
Nas palavras de Moraes, J. (1999, p. 73), a função social como
princípio-garantia:
[...] reflete em dois sentidos diversos: garante ao proprietário a inviolabilidade do
seu domínio quando a satisfaz, impedindo que o legislador ou o administrador
público empreendam disciplina ou atividade diversas, sob o mesmo fundamento; e
garante aos interessados [...] medidas idôneas a combater atos incompatíveis com o
fundamento da atribuição do domínio, ou em razão dele, quando não atendido o
princípio da função social da propriedade.
Importantes distinções do princípio da função social da propriedade, enquanto
princípio politicamente conformador e enquanto princípio-garantia, devem ser
abordadas.
De acordo com Moraes, J. (1999, p. 68-69), como princípio-garantia (art. 5º,
XXIII da CF) “não pode ser objeto de reforma nem de emenda constitucional,
62
só podendo ser afastado do sistema jurídico afastando-se a própria
Constituição” (em respeito ao art. 60, §4º, IV da CF); como princípio de ordem
econômica (politicamente conformador) (art. 170, III da CF) pode ser afastado
por meio de emenda constitucional.
Ainda, como princípio-garantia “pode ceder em colisão com outro qualquer
princípio de igual valor ou superior, ou seja, pode não se efetivar”, entretanto
como princípio fundamental da ordem econômica, como é um princípio que
estrutura a própria ordem econômica, esta não pode existir sem ele. “Ali a
propriedade é garantida de forma autônoma; aqui só existe a ordem econômica
instituída pela constituição (sic) se houver o princípio da função social da
propriedade”.
Após a apresentação panorâmica dos princípios envolvidos e que poderiam de alguma
forma concorrer entre si, conflitando, com relação à ocupação de bens públicos, deve-se
verificar se há realmente alguma colisão entre eles e, se houver, em que momento ela ocorre.
Sobre o choque entre princípios, Streck (2011, p. 49) aponta que “os princípio são,
para Alexy, mandados de otimização e possuem, por isso, uma estrutura alargada de deverser. Essa estrutura, que é dada prima facie, tensiona os princípios, fazendo-os colidir”.
Quando ocorre a colisão, necessária se faz a valoração, que, de acordo com Streck,
(2011, p. 49) “é um momento subsequente – ou seja, posterior à colisão – que incorpora o
procedimento da ponderação”.
Entretanto, critica Streck (2011, p. 49) a prática desenvolvida no Brasil:
O mais paradoxal [...] é que Alexy elabora sua teoria exatamente para “racionalizar”
a ponderação de valores, ao passo que, no Brasil, os pressupostos formais –
racionalizadores – são praticamente desconsiderados, retornando às estratégias de
fundamentação da jurisprudência da valoração.
A ponderação, na teoria originária, foi pensada não como uma operação em que se
colocam dois princípios em uma balança e se aponta para aquele que pesa mais. Segundo
Streck, Ricardo Alexy, não defendeu em sua teoria da ponderação a escolha direta. A
ponderação deveria ser feita com base em critérios, conduzindo a uma regra que seria aplicada
ao caso por subsunção.
No entanto, Streck (2011, p. 50) repreende os tribunais no Brasil dizendo que “no uso
descriterioso da teoria alexyana, transformaram a regra da ponderação em um princípio”,
63
como se fosse “um enunciado performático, uma espécie de álibi teórico capaz de
fundamentar os posicionamentos mais diversos”.
Ainda na análise dos possíveis conflitos principiológicos, sob o entendimento dos
ensinamentos de Hesse (1991), deve-se atentar para o fato de que o texto constitucional traz
uma necessária vinculação (constitucional), o que faz com que, no texto escrito da
Constituição, nasçam fixações que aumentam o efeito estabilizador e racionalizador, que se
perdem quando a Constituição escrita não é mais considerada taxativamente vinculativa.
Hesse (1991, p. 14) entende que há uma tensão entre “a realidade fluida e irracional” e
a “norma jurídica fundamentalmente estática e racional”, que é “necessária e imanente”, mas
não se pode perceber esses dois aspectos (a realidade e a norma jurídica) de forma dissociada,
pois poderia levar “aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou
de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo”.
Ainda de acordo com Hesse, “a norma constitucional não tem existência autônoma em
face da realidade”, o que pressupõe que seu sucesso depende da averiguação e percepção do
ambiente social, buscando atender as necessidades dos diversos setores da sociedade e, ainda,
sabendo utilizar os meios de que dispõem tais setores para a sua manutenção. No entanto, a
Constituição não se restringe ao “ser”, determinado pelas relações de fato, ela expressa
também o “dever ser”, quando utiliza da racionalidade jurídica para determinar direções. Esse
“dever ser” se configura como a pretensão de eficácia da Constituição e para alcançar a sua
efetivação deverá dar forma à matéria disponível, ou seja, a Constituição estimulará a força
que existe nas coisas, dirigindo-as, prestando-lhes direção.
Assim, diante de situações aparentemente conflitantes à luz da Constituição, os
intérpretes deverão buscar um entendimento que se manifeste como uma composição, um
ajuste entre os princípios.
Essa busca de conversação entre os princípios seria a manifestação da vontade da
Constituição, tratada por Hesse, que afirma: “a força normativa da Constituição não reside,
tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade”. Diz ainda que, “embora a
Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição
transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas”. Para que tais
tarefas sejam realizadas, ou seja, para que haja a obediência à Constituição, é necessária que
haja a vontade de Constituição.
A vontade de Constituição se baseia na exigência da necessidade de que a ordem
normativa não seja quebrada, na ideia da constante legitimação desta ordem e ainda na
consciência de que esta ordem normativa só tem eficácia se houver a vontade humana. No
64
caso da ponderação pelos tribunais, a vontade de Constituição só existirá se sua interpretação
conseguir abarcar contradições que se complementam, e quando possível, for capaz de
acompanhar as mudanças sociais, e, quando não, instigar a alteração da Constituição a fim de
que estabeleça as normas aptas a dar conformidade às novas relações jurídicas advindas das
mudanças.
Em síntese, tem-se que a interpretação da Constituição está condicionada pela
realidade histórica, não podendo ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão
de eficácia somente pode ser efetivada pela Constituição se esta levar em conta a situação
fática, retirando dela os limites e possibilidades, ordenando e conformando a força das coisas
em direção do que dispõe a sua racionalidade. Assim, correlaciona o ser com o dever-ser, e
torna ativa a sua força normativa. É a resolução dos conflitos a partir da interpretação
sistêmica e integral da Constituição que permitirá o respeito e a manutenção desta, analisando
o ser (realidade) com o dever-ser (norma jurídica – no caso, constitucional).
Possível, pois, chegar à proposta de enfrentamento dos conflitos constitucionais de
Alexy, apresentada por Streck (2011), a partir da lógica de normatividade da teoria de Hesse
(1991), onde “a Constituição jurídica não significa simples pedaço de papel”. E, “em cada
eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais
fraca. Ao contrário, existem pressupostos realizáveis que, mesmo em caso de confronto,
permitem assegurar a força normativa de Constituição. Somente quando esses pressupostos
não puderem ser satisfeitos, dar-se-á a conversão dos problemas constitucionais, enquanto
questões jurídicas, em questões de poder”.
No entanto, a ocupação de bens públicos por particulares, que não componham as
categorias de uso comum do povo ou de uso especial, exibe uma situação conflituosa apenas à
primeira vista, uma análise mais aprofundada permite inferir que se trata apenas de uma
aparente contradição constitucional, mas que em essência são partes de um todo que se
complementam.
Essa complementaridade é identificada à medida que se interpreta os princípios
envolvidos considerando a necessidade de mútua validação dos princípios constitucionais.
Assim, ao esmiuçar o princípio da supremacia do interesse público, terá o estudioso que
atentar para algumas questões de relevância determinante da amplitude deste princípio:
a)
os interesses qualificados como públicos são suscetíveis de serem defendidos
por particulares – reconhece-se o direito de defesa a cada particular contra
65
desvios na conduta estatal, que faz esta se desencontrar do que seria o
verdadeiro interesse público, por estar violando substancialmente a legalidade.
Nas palavras de Mello (2011, p. 62):
[...] será evidentemente descabido contestar que os indivíduos têm direito subjetivo à
defesa de interesses consagrados em normas expedidas para a instauração de
interesses propriamente públicos, naqueles casos em que seu descumprimento pelo
Estado acarreta ônus ou gravames suportados individualmente por cada qual.
O descumprimento de dado interesse público atinge individualmente cada
particular, mas o alcance do descumprimento é sentido por uma generalidade
de indivíduos, confirmando sua característica de público por responder à
conveniência de uma multiplicidade de indivíduos. A agressão ao direito
individual de cada prejudicado faz nascer para o particular o direito de defesa,
que se não houvesse impossibilitaria a responsabilização do Estado por agir em
desacordo com a legalidade, e de forma mediata, com o interesse, realmente,
público.
b)
nem todo interesse público é interesse do Estado – este é o destaque mais
importante no tocante ao entendimento do interesse público para se determinar
a extensão do que seja o princípio da supremacia do interesse público.
Neste ponto, toda a ênfase se dá à ideia de que o interesse público não é
exclusivamente um interesse do Estado, com mais precisão disse Mello (2011,
p. 65) “não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse
do Estado”, pois, segundo ele, além de o Estado “subjetivar estes interesses”,
como os demais particulares, ele é uma pessoa jurídica, “existe e convive no
universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito”.
Dessas premissas, conclui-se que o Estado, apesar de encarregado de
defender/garantir os interesses públicos, pode ter interesses que lhe são
particulares, individuais, como as demais pessoas.
Sob esta perspectiva questiona-se o real interesse do Estado em ter a propriedade de
bens que não usa, que não se presta a instrumentalizar quaisquer das funções estatais. Nesse
caso, há interesse público ou interesse do Estado, enquanto pessoa particularizada e
concorrente com os demais sujeitos?
66
Avançando no desnudamento da interpretação dos princípios aparentemente
conflitantes, resta a abordagem do princípio da função social da propriedade.
A Constituição Federal estabelece que a ordem econômica do país deve assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social e para isso, pontua como
princípio a ser observado, dentre outros, a função social da propriedade.
Entende-se, pois, que a função social está na atividade exercida pelo titular da relação
sobre a coisa à sua disposição. A função social não se compatibiliza com a inércia do titular,
este tem que desenvolver uma conduta que atenda ao mesmo tempo à destinação econômica e
à destinação social do bem.
Torres (2010, p. 220) diz que “o aspecto mais importante do princípio da função social
da propriedade é a sua concretude. [...] em nada adianta o princípio se ele não tiver aplicação
prática”. O autor segue dizendo que “os institutos jurídicos existem e sobrevivem se e quando
atendem aos interesses do homem e muito pouco adianta sua existência se não resultarem em
benefício para o homem”.
Considerando que o exercício da propriedade se dá pela posse e, que, para que haja o
cumprimento da função social da propriedade é necessário o exercício da faculdade de uso do
bem e este uso só se materializa pela posse, conclui-se que, na verdade, é a posse que tem
função social.
Nesse diapasão, questiona-se se a propriedade de bens públicos dominiais pelo Estado
observa o princípio da função social. O Estado titularizar a propriedade de inúmeros imóveis
que não são usados gera qual o benefício aos indivíduos desta sociedade? Ainda em uma
perspectiva de questionamento, não seria a ocupação fática da coisa o modo de efetivação da
função social?
Segundo Alfonsin (1997, p. 40-41 apud TORRES, 2010, p. 384), “a uma eficácia
jurídica erga omnes de um título de propriedade vazio, opõe-se uma eficácia fática de uma
posse não-formalmente titulada, mas cheia, e cheia de um direito elementarmente ligado à
vida, como o de comer e o de morar”.
A abordagem da função social da propriedade pela doutrina, em geral, se limita a
perceber como destinatários da norma os particulares, mas nos parece errônea tal restrição.
Senão, como o Estado pode exigir dos particulares que atuem solidariamente entre eles sem
que ele próprio aja com solidariedade para com os seus representados?
Como justificar uma propriedade, ainda que pública, sem a utilidade que comumente
se espera de cada coisa? Torres (2010, p. 364) aponta que “o ter, em si mesmo, não é um
problema: social, econômico ou jurídico. [...] O que traz conflito é o acesso ao ter e o que se
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faz com aquilo que se tem, num tempo de escassez acentuada.” E ratifica a ideia da
necessidade de ponderação sobre o que se tem e o que se necessita ter, sob o prisma da
cooperação social, esperada de todos que compõem a sociedade, incluindo o Estado:
Neste tempo em que a solidariedade é elevada a princípio constitucional, deve-se
repensar a destinação que se dá ao excesso de bens em propriedade, relembrando a
doutrina tomista que admite a apropriação como direito humano, desde que vise o
atendimento das necessidades do homem e por direito natural, ao sustento dos
pobres, deixando de considerar como ilícita a apropriação de tais bens pelos
necessitados (TORRES, 2010, p. 364).
Nesta mesma linha de entendimento segue Ruy Azevedo Sodré, citado por Torres
(2010, p. 365):
Todo homem tem direito absoluto à quantidade de bens necessários ao
preenchimento dos deveres inerentes à sua condição social. [...]
Na propriedade superabundante, distinguem-se dois elementos: - o social – usus –os
bens exteriores devem ser detidos em proveito da comunidade, e o individual –
procuratio et dispensatio – isto é, fazê-los produzir e distribuí-los
proporcionalmente às necessidade de cada um.
Torres (2010, p. 383) valida a interpretação mais alargada sobre a inclusão do Estado
como destinatário da ponderação suficiência - necessidade quando expõe que “contrariando a
lógica do capital pode-se vislumbrar na ocupação de terras, públicas ou particulares uma
lógica da necessidade. Necessidade de moradia, de abrigo, de sustento. Necessidade de ser
reconhecido e ser tratado como pessoa”.
Na excelente colocação de Farias e Rosenvald (2008, p. 207) “a função social será
sempre o resultado da ponderação de valores sociais objetivamente justificáveis na
Constituição Federal, criando-se a norma do caso”.
Diante da explanação, conclui-se que não há qualquer conflito entre os princípios da
supremacia do interesse público e da função social da propriedade na ocupação de bens
públicos sem afetação. Ao contrário, um princípio valida o outro à medida que a propriedade
obriga o atendimento dos interesses sociais. Há, sim, uma perfeita complementação dos
princípios que faz com que a propriedade, ainda que pública, satisfaça a função social, que é o
interesse da coletividade, logo o interesse público a ser instado como supremo.
Este último é o significado que nos interessa, sendo o único compatível com o
conceito de função e o único que se presta a ser univocamente usado nas expressões
‘bem-estar social’, ‘utilidade social’, ‘fim social’: todas as expressões referem-se a
um ‘máximo social’, que é exatamente o fim a cuja realização são coordenados os
68
vários instrumentos jurídicos tomados em consideração. (RODOTÀ, 1981, p. 137
apud MORAES, J., 1999, p. 107)
3.4 CONSEQUÊNCIAS DA OMISSÃO ESTATAL
Pouca importância se dá à inércia do Estado como elemento comprobatório do não
exercício da função social por parte deste. Há inclusive o entendimento do que a doutrina
chama de posse ficta, para reconhecer a ausência do Estado na efetiva ocupação de seus bens.
O título causal da União ou dos Estados sobre as terras devolutas ou dominicais
apuradas por arrecadação ou discriminação, quer seja decorrente da própria
Constituição Federal, ou de normativos infraconstitucionais, opera também, além da
aquisição do domínio, a posse ficta (jurídica, presuntiva, pressuposta, implícita:
ex re) dessas terras (GUIMARÃES, 2007, p. 82). (grifo nosso)
Os atos de posse do Poder Público sobre seus bens imóveis, quando não se dão
por ocupação efetiva – prédios públicos, campos de experimentos – são aferidos
mediante fiscalização, a exemplo do que ocorre com as áreas devolutas arrecadadas
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) mediante os atos
de medição, demarcação e posteriormente, de regularização fundiária, instituição de
assentamentos, fiscalização e sobre as quais detém gerenciamento e poderes de
destinação (GUIMARÃES, 2007, p. 83). (grifo nosso)
No entanto, vale ressaltar que não há mais espaço para a aceitação de tal argumento,
tendo em vista que a nova ordem constitucional abarcou valores que extrapolam o
entendimento de que a Administração Pública deve ser resguardada de forma absoluta pelo
simples fato de ser representante do poder do Estado. Exige-se nesta nova conjuntura jurídica
que os argumentos demonstrem fundamentação que os validem pelos seus objetivos em
conformidade com a função social e não apenas uma juntada de dispositivos legais e ou
entendimentos que se repetem pela comodidade trazida pelo tempo de uso e não pela
razoabilidade de sua aplicação.
Neste sentido, Justen Filho (2010, p. 1023) opina que:
O direito administrativo continua a conceber os bens públicos como uma espécie de
patrimônio sagrado. Seriam bens intocáveis, vedando-se a sua utilização
instrumental para satisfação das necessidades humanas. [...]
Essa concepção é incompatível com a ordem constitucional vigente. O Estado é um
instrumento para promover e assegurar os direitos fundamentais. Os bens públicos
são essencialmente um conjunto de instrumentos para que o Estado desempenhe os
seus deveres. Os bens públicos devem ser utilizados, de modo direto, para a
realização dos interesses da comunidade e para a obtenção das necessidades
essenciais à dignidade humana.
69
Desde a promulgação da Constituição de 1988, se percebe um esforço para se
promover mudanças interpretativas no que tange às normas que tratam das relações privadas,
movimento que fez surgir expressões como “darwinismo jurídico”, “constitucionalização do
direito civil” (LÔBO, 1999, p. 99) ou mesmo “direito civil constitucionalizado” (MORAES,
M., 1991). Tal movimento objetiva expor a “inexorável necessidade de revisão de conceitos:
não há mais como proteger o interesse individual sem imaginar seu reflexo no corpo social”,
“concebendo as linhas de um sistema jurídico [...] voltado à promoção da dignidade da pessoa
humana” (EHRHARDT JÚNIOR, 2009, p. 97-99).
A despeito da releitura que foi imposta ao direito privado, não se pode admitir que tal
mudança tenha acontecido apenas no âmbito do direito civil, e que tenha o direito
administrativo,
dito
“direito
público
instrumental”,
sido
poupado
dos
objetivos
constitucionais.
Em elucidativa explanação, Cardoso (2010, p. 18) escreve que:
Esta experiência democrática exige o repensar da dicotomia entre o público e o
privado, ao ampliar e democratizar a esfera pública. Exige o repensar da propriedade
pública, da Administração Pública e do interesse público.
Neste contexto, é necessário repensar não apenas a propriedade privada, a partir do
princípio da função social, como já se reconhece. É necessário rever o conceito de
propriedade pública, entendida muitas vezes como propriedade “ da Administração
Pública” em sentido estrito e antagônico à função social destes imóveis para a
cidade e muitas vezes ao interesse coletivo. A mera dominialidade pública não
garante o cumprimento do princípio da função social da propriedade, que
depende, sim, da efetiva destinação e utilização destes imóveis conforme
preceitos que atendam o interesse público e efetivem uma ordem urbanística
justa e sustentável. (grifo nosso)
A Constituição Federal ao tratar dos impostos e definir as competências dos entes
federativos, cuidou de instrumentalizar a Administração Pública para que esta pudesse exigir
dos particulares funcionalização de suas propriedades. Assim, tanto o art. 153 em seu
parágrafo 4º, ao tratar do Imposto Territorial Rural – ITR, de competência da União, quanto o
art. 156, § 1º, que dispõe sobre a competência municipal de instituição do Imposto Predial e
Territorial Urbano – IPTU, municiou esses dois tributos com uma função extrafiscal, que é a
de estimular a utilidade social das propriedades particulares.
Reproduzem-se in verbis:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
[...]
70
VI - propriedade territorial rural;
[...]
§ 4º O imposto previsto no inciso VI do caput:
I - será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a
manutenção de propriedades improdutivas;
E art. 156:
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana;
[...]
§ 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso
II, o imposto previsto no inciso I poderá:
I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e
II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.
Outro dispositivo constitucional de grande valia é o art. 182, § 4º, que estrutura
gradualmente a forma de o Poder Público sancionar o particular pela reiterada conduta de não
destinação útil, ou de subdestinação do solo urbano.
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público
municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus
habitantes.
[...]
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão
previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos,
em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os
juros legais.
Em um primeiro momento está a Administração Municipal autorizada a exigir do
particular que detenha solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que proceda
71
ao parcelamento do solo, desmembrando-o ou loteando-o, ou que realize compulsoriamente a
edificação, em conformidade com o plano diretor do município.
Há ainda a possibilidade, prevista na Lei nº 10.257/2001, de a Administração Pública
exigir a sua utilização de forma compulsória.
Em momento posterior, em caso de inércia do particular, não atendendo as exigências
de uso do solo, o município poderá cobrar o IPTU com alíquotas progressivas no tempo,
limitando-se a cinco anos de progressão, quando o município permanecerá cobrando o IPTU
com a alíquota referente ao último ano, ou já poderá efetuar a desapropriação para fins de
reforma urbana.
A referida desapropriação se realizará mediante pagamento em Títulos da Dívida
Pública, com um prazo de resgate de dez anos, configurando-se como desapropriação sanção.
Diante de tal aparato coercitivo para que o particular bem utilize sua propriedade, o
que legitima o não uso de seus bens pelo Poder Público? Qual o elemento jurídico validador
da ociosidade do Estado com relação aos seus bens?
Inclusive, o art. 519 do Código Civil estabelece, em clara vinculação do Estado à
realização da função social da propriedade, que se a coisa expropriada para fins de
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino conforme o fim
para o qual foi desapropriada, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao
expropriado o direito de preferência, pelo preço atual da coisa.
Pela inteligência do referido artigo, entende-se que o particular que tivera seu imóvel
desapropriado poderá reavê-lo, caso a Administração Pública não lhe dê uma destinação em
conformidade com a função social, assim, a ociosidade do bem, agora de propriedade do
Estado, se iguala, à ociosidade do bem de propriedade particular.
É o instituto denominado retrocessão, que Medauar (2010, p. 374) definiu como:
[...] o retorno do bem expropriado ao patrimônio do antigo dono, quando não lhe foi
dado o destino previsto. A retrocessão fundamenta-se na ausência do vínculo entre o
sacrifício do direito do particular e a utilização concreta do bem; as justificativas
para a desapropriação não se concretizaram. Pode ser vista, assim, como sanção em
garantia do direito de propriedade, pois o proprietário tem direito de não ser privado
do seu bem senão para atendimento do interesse público efetivamente ocorrido.
E ainda diz que:
[...] aceitar a não utilização do bem, sem consequência alguma, sem que o
expropriado possa agir perante o Judiciário, é o mesmo que admitir a desapropriação
sem fundamento, o que seria inconstitucional. A inércia da Administração revela a
desnecessidade da expropriação realizada; se não ensejar retrocessão, estimula a
desapropriação por razões subjetivas, por motivos de vingança ou para beneficiar
72
alguém. Melhor seria a consideração de prazo razoável para o aproveitamento do
bem (MEDAUAR, 2010, p. 376).
A omissão da atuação do Estado na utilização dos seus bens é destituída de qualquer
defesa, fazendo com que a abstração jurídica da posse ficta entre em choque com a ideia do
uso necessário trazida pela Constituição.
Em posicionamento sobre o assunto, Justen Filho (2010, p. 1024) esclarece que:
A função social dos bens públicos é incompatível com a sua ociosidade e implica a
sua natureza instrumental para a realização dos fins impostos ao Estado. [...]
Excluídos os bens destinados à preservação, todo o restante do patrimônio estatal
deve ser explorado do modo mais intenso possível. É evidente que isso não equivale
a defender [...] a eliminação do patrimônio estatal ou a comercialização dos valores
essenciais à Nação. [...] não teria cabimento, por exemplo, a cessão onerosa do
direito de denominação do Palácio do Planalto, monumento que simboliza a Nação
brasileira. Mas se impõe que o Estado promova, por exemplo, a cessão de uso de
seus terrenos dominicais ociosos.
3.5 TEORIA DO FATO CONSUMADO
Apesar de não haver muitos registros doutrinários sobre a teoria do fato consumado,
tal teoria aparece recorrentemente em justificações dos Tribunais Superiores, como forma de
dar sustentação a decisões sobre relações conflituosas que exigiam um posicionamento do
Poder Público, seja administrativa, seja judicialmente, mas que pela demora na resposta
estatal, consolidou-se uma situação fática ilegal, e que o seu desfazimento seria causador de
um prejuízo, econômico ou social, de tal monta que, em detrimento da disposição legal, o
Judiciário opta pela manutenção da situação.
A referida teoria caberia com exatidão se aplicada aos casos de ocupação de bens
públicos, em que não há qualquer utilização pelo Poder Público, tendo o particular feito uso
por longo período de tempo, dando ao bem a funcionalidade que dele se espera, como
moradia, por exemplo.
Em situações em que se evidencia a inércia da Administração Pública e o ininterrupto
emprego social do bem pelo particular, com muita clareza se evidenciam institutos largamente
acolhidos pelo Direito, como o estado de aparência, que é "a situação de fato que manifesta
como real uma situação jurídica não real. Este aparecer sem ser coloca em jogo interesses
humanos relevantes que a lei não pode ignorar”, segundo Falzea (1958 apud MOTA, 2000, p.
154), e a supressio,
73
Uma modalidade de abuso do direito que se verifica na desleal contradição entre
duas condutas: inicialmente, uma longa omissão do titular na tutela de seu direito
subjetivo, fato que gera legítimas expectativas em outrem quanto à desistência no
seu exercício. Posteriormente, após longa inação, o direito subjetivo é exercitado,
frustrando as expectativas geradas na contraparte ao longo do tempo (FARIAS e
ROSENVALD, 2008, p. 187).
Entretanto, tais institutos, em uma visão hermética dos tribunais e doutrinadores, não
são nem mesmo ventilados quando se trata de ocupação de bens públicos. Fecham-se os
debates com rasas argumentações de inconstitucionalidade, baseadas em textos e não no
entendimento holístico da Constituição Federal.
Noutro canto, a aplicação da teoria do fato consumado, reveste-se de total
discricionariedade, visto que não há nenhum critério objetivo, implicando em decisões
diametralmente opostas, conforme o entendimento e a sensibilidade de cada julgador ou
colegiado.
Destaque-se o julgamento recente da ação mais antiga do STF, noticiado em seu sítio e
aqui apresentado:
STF julga causa mais antiga na Corte e mantém validade de alienação de terras
em MT
Por votação majoritária, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou
improcedente, nesta quinta-feira (15), a ação mais antiga que estava em
tramitação na Corte, protocolada em 17 de junho de 1959. Trata-se da Ação
Cível Originária (ACO) 79, em que o Tribunal convalidou a concessão do
domínio de uma área de 200 mil hectares pelo Estado de Mato Grosso a 20
empresas colonizadoras.
A Corte aplicou o princípio da segurança jurídica para manter a validade da
operação, em caráter excepcionalíssimo, pois reconheceu que a operação foi
ilegal, por ofender o parágrafo 2º do artigo 156 da Constituição Federal (CF) de
1946, então vigente, que condicionava à prévia autorização do Senado a alienação
ou concessão de terras públicas com mais de 10 mil hectares. Pelo artigo 188,
parágrafo 1º, da Constituição Federal de 1988, a área sujeita a prévia autorização foi
reduzida para 2,5 mil hectares, porém também a Câmara, além do Senado, deve
pronunciar-se.
Situação de fato
Na decisão de hoje, prevaleceu o voto do relator, ministro Cezar Peluso. Embora
ele concluísse pela inconstitucionalidade da alienação das terras, pela via de
concessão de domínio, sem prévia autorização legislativa, ele ponderou que a
situação de fato da área se tornou irreversível. Observou que, hoje, ela é
ocupada por cidades, casas, estradas, propriedades rurais, indústrias,
estabelecimentos comerciais e de serviços, abrigando dezenas de milhares de
pessoas. Por isso, propôs a convalidação da operação, invocando o princípio da
segurança jurídica, até mesmo porque as terras foram repassadas pelo estado a
colonos, na presunção da boa-fé.
Na decisão ficou claro que ela não implica a legalização da posse de terras
localizadas em área indígena, pois essas são de propriedade da União, nem em área
de preservação ambiental. Portanto, a decisão de hoje não afeta pleitos formulados
nas Ações Cíveis Originárias (ACOs) 362, 365 e 366, que envolvem terras
indígenas. Esta preocupação foi manifestada pela ministra Rosa Weber, relatora da
74
ACO 365, que, diante desse esclarecimento prestado pelo relator, ministro Cezar
Peluso, acompanhou o voto dele, pela improcedência da ACO.
A ação
A ação foi ajuizada pela União contra a Empresa Colonizadora Rio Ferro Ltda., a
Construções e Comércio Camargo Corrêa S.A. e outras colonizadoras, bem como
contra o Estado de Mato Grosso. Pleiteava a nulidade de contratos de concessão de
terras públicas, feitos com diversas empresas de colonização, com área superior ao
limite então previsto no artigo 156, parágrafo 2º, da Constituição Federal de 1946.
Na ação, a União se reportou ao relatório final de Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) do Senado Federal, de 2/7/1955, destinada a apurar as alienações ou
concessões de terras devolutas pelo Estado de Mato Grosso, que confirmou ter
havido concessão de largas porções de terras públicas, com área superior ao limite
constitucional, sem prévia autorização do Senado.
O Estado de Mato Grosso contestou as alegações. Sustentou que a cessão das terras
estava inserida num projeto de colonização da área, mediante introdução de 300
famílias de pecuaristas e agricultores, além da população do núcleo, cabendo às
empresas colonizadoras apenas a execução de trabalhos ou benfeitorias necessárias à
vida humana e ao desenvolvimento do lugar.
No julgamento de hoje, o advogado que se manifestou em nome da Construções e
Comércio Camargo Corrêa disse que não se tratava de alienação de área superior a
10 mil hectares, pois as concessões teriam sido feitas diretamente pelo governo
estadual aos agricultores, e os lotes nunca teriam sido superiores a 1.000 hectares.
Ainda segundo ele, as colonizadoras apenas atuaram como intermediárias, não
havendo contratos de cessão de terras firmadas entre elas e os agricultores.
Extinção
Em petição datada de 1986, a própria União, autora da ACO, chegou a pedir a
extinção da ação, sem julgamento, alegando não mais existirem os pressupostos de
constituição e desenvolvimento válido. Entretanto, em 1987, requereu a desistência
do pedido de extinção do processo, em razão de “fatos supervenientes e conexão de
causas”, bem como que o Estado de Mato Grosso fornecesse o nome dos adquirentes
de glebas ou lotes localizados nos imóveis questionados. E, ainda em fevereiro deste
ano, elaborou memorial reiterando pedido de anulação dos contratos objeto da ação.
Por seu turno, o Estado de Mato Grosso requereu a extinção do processo. Alegou
impossibilidade prática de reverter a situação fundiária da área; que não foram
cedidos lotes além do limite legal e, portanto, o pedido da União seria inepto, uma
vez que a causa de pedir não teria relação direta com a situação dos lotes alienados.
Divergência
O ministro Ricardo Lewandowski abriu a divergência, advertindo que uma decisão
pela improcedência da ação representaria a legalização de latifúndios além das
dimensões permitidas.
Ele disse que a área em questão envolve 40 mil quilômetros quadrados, equivalente
a duas vezes a extensão do Estado de Sergipe. Lembrou que Mato Grosso tem
problemas fundiários (mais de 8 mil latifúndios ocupando 69% da área agricultável
do estado), problemas ambientais e de fronteiras. O ministro fez
considerações acerca da dimensão da área ilegalmente alienada, apesar da
situação lá consolidada, e observou que caberia aos Estados de Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul (surgido após o início deste processo) resolver a situação decorrente
de uma eventual anulação dos atos de alienação.
Também os ministros Marco Aurélio e Ayres Britto divergiram da maioria. O
primeiro manifestou sua estranheza por considerar que a Constituição Federal não
reflete um documento rígido, mas flexível, que deva ser colocada em plano
secundário ante uma situação de fato, em detrimento de princípios constitucionais.
No mesmo sentido se manifestou o ministro Ayres Britto, por considerar que a causa
está “envolta em nebulosidade sobre a ambiência dessas terras públicas”, ocupadas
por grandes empresas, estrangeiros e ONGs. Ele também considerou obscura a
própria natureza jurídica dos atos celebrados.
O ministro Cezar Peluso observou, em resposta, que, para os latifúndios
improdutivos, da mesma forma que para a área indígena, existe legislação própria de
que o governo poderá valer-se em tais casos, e que a decisão de hoje não interfere
neles
(SUPERIOR
TRIBUNAL
FEDERAL.
Disponível
em:
75
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=202762>
Acesso em 19/09/2012). (grifo nosso)
EMENTA: ATO ADMINISTRATIVO. Terras públicas estaduais. Concessão de
domínio para fins de colonização. Área superiores a dez mil hectares. Falta de
autorização prévia do Senado Federal. Ofensa ao art. 156, § 2º, da Constituição
Federal de 1946, incidente à data dos negócios jurídicos translativos de domínio.
Inconstitucionalidade reconhecida. Nulidade não pronunciada. Atos celebrados há
53 anos. Boa-fé e confiança legítima dos adquirentes de lotes. Colonização que
implicou, ao longo do tempo, criação de cidades, fixação de famílias, construção de
hospitais, estradas, aeroportos, residências, estabelecimentos comerciais, industriais
e de serviços, etc.. Situação factual consolidada. Impossibilidade jurídica de
anulação dos negócios, diante das consequências desastrosas que, do ponto de
vista pessoal e socioeconômico, acarretaria. Aplicação dos princípios da
segurança jurídica e da proteção à confiança legítima, como resultado da
ponderação de valores constitucionais. Ação julgada improcedente, perante a
singularidade do caso. Votos vencidos. Sob pena de ofensa aos princípios
constitucionais da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima, não podem
ser anuladas, meio século depois, por falta de necessária autorização prévia do
Legislativo, concessões de domínio de terras públicas, celebradas para fins de
colonização, quando esta, sob absoluta boa-fé e convicção de validez dos negócios
por parte dos adquirentes e sucessores, se consolidou, ao longo do tempo, com
criação de cidades, fixação de famílias, construção de hospitais, estradas, aeroportos,
residências, estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços, etc..
(ACO 79, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO (Presidente), Tribunal Pleno, julgado
em 15/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-103 DIVULG 25-05-2012
PUBLIC 28-05-2012) (grifo nosso)
Enquanto em outro julgado, cujo relatório indica:
Aduz, quanto à questão de mérito, que a Câmara Legislativa do DF apreciou Projeto
de Lei Complementar n. 249/97, que dispõe sobre a regularização das ocupações
existentes na região denominada Chácaras do Park Way, às margens dos córregos
Arniqueira, Vereda da Cruz e Vicente Pires, ocupada por chacareiros, dentre os
quais os contestantes, sem serem molestados em suas posses. E ainda, teria a autora
tentado regularizar mencionada área, sem sucesso, sendo que a Lei Complementar n.
17, de 28.01.97, aprovou o PDOT, incluindo as chácaras do Trecho 03 do Setor de
Mansões Park Way entre as Áreas Remanescentes. Que a área ocupada enquadra
perfeitamente na Lei Distrital n. 1.823, de 13.01.98, que criou o Setor
Habitacional Vicente Pires. Lembra sobre impossibilidade de concessão de
liminar em posse velha. Que exercem posse na Colônia Agrícola Vereda
Grande, há mais de 30 (trinta) anos, a qual teria sido objeto de arrendamento e
assinala que não houve prova do domínio. Alude a doutrina e preceptivos legais
inerentes à posse e lembra sobre as benfeitorias edificadas e sobre a possibilidade de
interposição de embargos. Qualifica a ação da autora de má-fé por faltar com a
verdade. Roga pelo reconhecimento da ilegitimidade da autora; improcedência do
pedido com nulidade da ação; que seja reconhecido a possibilidade de
reconhecimento de legalização de suas posses.
EMENTA:CONSTITUCIONAL,
CIVIL,
PROCESSUAL
CIVIL,
REIVINDICATÓRIA DE BEM PÚBLICO POR ÓRGÃO DO ESTADO.
CONFRONTO DE LIMITES ENTRE BENS DO ESTADO E DA UNIÃO NÃO
TRANSFERE OU PRORROGA COMPETÊNCIA FEDERAL. USUCAPIÃO EM
MATÉRIA DE DEFESA: IMPOSSIBILIDADE. POSSE JUSTA VINTENARIA A
FAVOR DOS INVASORES: INEXISTÊNCIA. INDENIZAÇÃO DE
BENFEITORIAS: IMPOSSIBILIDADE.
76
1Os bens públicos são insuscetíveis de prescrição aquisitiva, CF art.183,§3º,
STF Súmula 340. 1.1- Constitui sofisma afirmar que os bens das entidades públicas,
quando regidas pelo direito privado, se tornam privados por força de norma de
regência. Tal entendimento fere o princípio da hierarquização das normas. 2- O fato
de um imóvel público estadual estar na vizinhança de um imóvel público federal não
tem o condão de modificar a competência jurisdicional para a justiça federal. 3- Não
se confunde usucapião em matéria de defesa com usucapião extraordinário, que tem
ritual próprio e é capaz de gerar matrícula primária no registro de imóveis. 3.1- É
impossível juridicamente admitir usucapião em matéria de defesa sobre imóvel
público, por impedimento constitucional, CF art. 183,§3º. 4- Não existe posse
justa sobre imóvel público por particular, pois a posse para ser justa deve ser sem
violência, sem clandestinidade e sem precariedade. 4.1- A ocupação clandestina do
imóvel público é sempre feita com violência social, pois obriga os demais cidadãos
a aceitar tal ato como fato consumado contra legem. 5- A construção de
particular sobre imóvel público não constitui benfeitoria, mas acessão e deveria
pertencer ao Estado lesionado pelo uso indevido do imóvel, em detrimento dos
demais cidadãos. 5.1- O que se tolera é a retirada das benfeitorias no prazo marcado
pelo Estado (705289020008070001 DF 0070528-90.2000.807.0001, Relator: JOÃO
MARIOSA, Data de Julgamento: 19/04/2004, 2ª Turma Cível, Data de Publicação:
26/05/2004, DJU Pág. 27 Seção: 3). (grifo nosso)
Em um caso de grande repercussão social, a concessão da liminar para reintegração de
posse da comunidade conhecida como Pinheirinho, em São José dos Campos, São Paulo, a
situação das famílias que ali residiam não fora suficiente para que a Juíza fizesse uso da teoria
do fato consumado, vejamos um breve relato do caso:
MASSA FALIDA DE SELECTA COMÉRCIO E INDÚSTRIA SA propôs ação de
REINTEGRAÇÃO DE POSSE C.C. PEDIDO DE LIMINAR contra
ESBULADORES. Alegou que é proprietária do imóvel mencionado na inicial que
está invadido por mais de 550 famílias, totalizando mais de 8.000 pessoas.
Requereu a reintegração liminar na posse do imóvel.
A liminar foi concedida (fls. 41).
[...]
Conforme se verifica do Agravo de Instrumento n. 375.157.4/1 (fls. 157/159)
interposto por José Nivaldo de Melo foi reconhecida a competência do Juízo do
local do imóvel, sendo os autos distribuídos a este Juízo.
Às fls. 169/172 compareceu aos autos JOSÉ NIVALDO DE MELO que apresentouse como representante dos ocupantes do imóvel, ocasião em que juntou procuração,
inclusive. A petição foi juntada aos autos em 17/05/05.
A ordem não foi cumprida. Houve recurso.
Em obediência à determinação do Tribunal, foi determinada novamente a execução
da liminar (fls. 233), ocasião em que o Juízo determinou o cumprimento da liminar
sem a utilização de arma de fogo por parte da Polícia Militar.
O acórdão enfrentou Agravo Regimental e Mandado de Segurança que não foram
providos (fls. 366/381).
Às fls. 242 o requerido José Nivaldo de Melo apresentou os termos de um
acordo acerca da ocupação do imóvel. O acordo não foi firmado com o autor desta
ação.
VALDIR MARTINS DE SOUZA compareceu aos autos e ofertou contestação (fls.
253/266). Alegou que o posseiro João Alves de Siqueira reivindicou a área através
de ação de reintegração de posse na qual a liminar somente foi concedida através de
recurso de Agravo de Instrumento. Houve acordo entre João Alves de Siqueira e o
Movimente Sem Teto suspendendo os efeitos da medida liminar, sendo que este
acordo foi recentemente renovado.
77
Ajuizou ação de oposição em face de João Alves Siqueira. Agora comparece a
Massa Falida autora que nunca teve posse do imóvel. Discorreu sobre o direito à
moradia e aspectos sociais.
A área estava abandonada. Requereu a improcedência da ação.
Às fls. 383/387 José Nivaldo de Melo informou que há projeto de lei para
desapropriação da área objeto dos autos e requereu a suspensão do processo
até que referido projeto se torne lei.
Também foi informado nos autos que acerca da área mencionada na inicial há
dívidas com a Prefeitura decorrentes de impostos e taxas não pagos.
Às fls. 408/415 José Nivaldo de Melo informou que o Mando de Segurança ainda
está em trâmite e que conta com efeito suspensivo.
Para otimizar recursos, às fls. 437 o Juízo determinou o cumprimento da ordem
de reintegração de posse juntamente com a ordem exarada pelo Juízo da
Fazenda Pública em processo de Demolição proposto pela Prefeitura Municipal
local. A ordem da Fazenda Pública foi suspensa e o oficial de justiça devolveu o
mandado expedido (fls. 441/442) (0273059-82.2005.8.26.0577 Decisão
Interlocutória, Juíza de Direito: Márcia Faria Mathey Loureiro, Data da Decisão:
01/07/2011, 6ª Vara Cível da Comarca de São José dos Campos, São Paulo). (grifo
nosso)
Não há fundamento jurídico para suspensão do feito por 120 dias. A área do
"Pinheirinho" foi invadida há oito anos e desde então, tramita junto ao Poder
Judiciário ação reintegratória. A intenção de regularização da área pelo Poder
Executivo e/ou Legislativo vem sendo noticiada pelos requeridos desde a ocupação
irregular e até hoje nenhuma atitude palpável foi tomada no sentido de legalizar o
assentamento. Desta forma, igualmente falece o pedido de qualquer fundamento
jurídico que fosse capaz de produzir efeito modificativo no normal andamento
do feito. Trata-se, enfim, de um relato do Ministério das Cidades que se traduz
somente em mais uma intenção. Posto isso, aguarde-se o cumprimento do
mandado de reintegração na posse (0273059-82.2005.8.26.0577 Decisão
Interlocutória, Juíza de Direito: Márcia Faria Mathey Loureiro, Data da Decisão:
10/01/2012, 6ª Vara Cível da Comarca de São José dos Campos, São Paulo). (grifo
nosso)
3.6 PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS
A quase totalidade das decisões consultadas nas bases de dados dos Tribunais
Superiores, bem como dos Tribunais de Justiça dos Estados da Bahia, Distrito Federal, Minas
Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, é uníssona no entendimento da
impossibilidade de usucapião de bens públicos e, por conseguinte, a ocupação de tais bens por
particulares perde a sua característica de posse, não gerando os efeitos advindos deste
instituto. No entanto, observa-se que na grande maioria dos desembaraços judiciais não há o
enfrentamento do mérito em sua profundidade, não se confronta a validade da propriedade
pública à luz da necessidade do atendimento da função social, deixando tanto as sentenças e
acórdãos capengas, quanto à própria sistematização constitucional, vez que bifurca o
78
entendimento em público e privado de forma cartesiana, sem o respeito devido às interações
que tais quadrantes se permitem e necessariamente precisam fazer entre si.
Vale a pena trazer alguns exemplos:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. EMPRESA
PÚBLICA. BEM AFETADO AO SERVIÇO PÚBLICO. CLASSIFICAÇÃO
COMO BEM PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE DE POSSE E INDENIZAÇÃO DE
BENFEITORIAS. MERA DETENÇÃO. APELO IMPROVIDO. SENTENÇA
MANTIDA. DECISÃO UNÂNIME.1.Preliminar de cerceamento de defesa
inacolhida.2.Os bens de propriedade das empresas públicas quando afetados à
prestação do serviço público gozam das prerrogativas inerentes aos bens
públicos,
quais
sejam
a
imprescritibilidade,
inalienabilidade,
impenhorabilidade e não-onerosidade, de tal sorte que não constitui posse a
ocupação indevida desses bens, mas mera detenção. 4.Tratando-se de detenção,
é impossibilitada a indenização por benfeitorias, haja vista ser cabível somente
quando existir posse. 5.Precedentes do STJ. 6.Apelo improvido. Sentença
mantida. Decisão unânime (151548 PE 0400004860, Relator: Fernando Cerqueira,
Data de Julgamento: 16/03/2010, 7ª Câmara Cível, Data de Publicação: 62). (grifo
nosso)
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE
POSSE. IMÓVEL PÚBLICO. DISTINÇÃO POSSE NOVA E POSSE VELHA.
DESNECESSIDADE. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
1. A apropriação de terras e imóveis públicos implica dever de imediata
desocupação da área, sendo desnecessária a prova de posse anterior por parte
do
Município,
pois
possui
a
'posse
jurídica'.
2. A posse dos bens que não podem ser usucapidos não tem eficácia, pois a
ocupação de imóvel público caracteriza apenas mera detenção.
3. Deve ser mantida a liminar que determinou a reintegração da posse do Município
(Agravo de Instrumento Cv 1.0687.12.002303-5/001, Rel. Des.(a) Bitencourt
Marcondes, 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 23/08/2012, publicação da súmula
em 04/09/2012). (grifo nosso)
CIVIL - USUCAPIÃO ESPECIAL DE IMÓVEL URBANO - PROVA PERICIAL
- BEM PÚBLICO PERTENCENTE AO ESTADO DE MINAS GERAIS IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - EXTINÇÃO MANTIDA. Sendo o
BEM objeto da pretensão integrante do patrimônio PÚBLICO, o pedido de
declaração de USUCAPIÃO é juridicamente impossível (TJMG - Número do
processo: 1.0024.98.018620-9/001(1) - Relator: MAURÍCIO BARROS - Data do
Julgamento: 08/07/2008 - Data da Publicação: 25/07/2008). (grifo nosso)
AÇÃO DE USUCAPIÃO - IMÓVEL DESAPROPRIADO PELO MUNICIPIO DE
IPATINGA - IMPOSSIBILIDADE DE USUCAPIR BEM PÚBLICO - A POSSE
EM BENS PÚBLICOS NÃO GERA USUCAPIÃO - APELAÇÃO DESPROVIDA
- SENTENÇA CONFIRMADA. 1 - Segundo o § 3º do art. 183 da C.F. os imóveis
públicos não serão adquiridos por USUCAPIÃO. 2 - A posse, mesmo anterior,
à desapropriação, não gera USUCAPIÃO, após a desapropriação de BEM
imóvel, que passa a ser um BEM PÚBLICO. 3 - Comprovado que o imóvel,
objeto da ação hoje pertence ao MUNICIPIO DE IPATINGA, que o adquiriu por
regular desapropriação, a ação é improcedente (Súmula 340 do STF). 4 – Apelação
desprovida. 5 - Sentença confirmada (TJMG - Número do processo:
1.0313.03.080316-4/001(1) - Relator: FERNANDO BRÁULIO - Data do
Julgamento: 29/06/2006 - Data da Publicação: 20/09/2006). (grifo nosso)
79
Percebe-se uma opção por absolutizar a regra da imprescritibilidade dos bens públicos,
produzindo-se decisões que se repetem, quase em semelhança a uma produção em série e
padronizada, beirando mesmo ao automatismo industrial.
Mas, fugindo ao lugar comum, poucas decisões destoaram da maioria da
jurisprudência:
AÇÃO
DE
USUCAPIÃO.
CONTESTAÇÃO
PELO
MUNICÍPIO.
APONTAMENTO DE ÁREA UTILIZADA, EM TEMPOS ANTIGOS, COMO
VIA DE TRÂNSITO, ATUALMENTE DESATIVADA. LOTEAMENTO
CONSTITUÍDO SOBRE O LOCAL. AUSÊNCIA DE REGISTRO EM NOME DO
MUNICÍPIO. FINALIDADE PÚBLICA NÃO COMPROVADA. DOMÍNIO
PÚBLICO INEXISTENTE. POSSE 'AD USUCAPIONEM' FARTAMENTE
DEMONSTRADA. Inexistindo comprovação efetiva de que a via de trânsito
integrou o domínio público, não há cogitar da aplicação do artigo 183, § 3º, da Carta
Maior. Loteamento registrado sobre a área antigamente ocupada pela via, sem
qualquer oposição da municipalidade. Ausência de registro em nome da pessoa
jurídica de direito público. Inexistência de prova acerca da antiga destinação
pública. Âmbito local indicado pela prova. Posse vintenária e 'animus domini'
inequívocos. Ação procedente. Primeiro apelo provido. Segundo apelo e reexame
necessário prejudicados (Apelação e Reexame Necessário nº 70.002.094.753, 2a
Câmara Especial Cível, Relator Des. Ícaro Carvalho de Bem Osório, julgado em
23/04/02). (grifo nosso)
USUCAPIÃO - BEM PÚBLICO - Distrito Industrial de Campinas (DIC) - Áreas de
terrenos desapropriadas e vendidas para construção de indústrias - Empresa
municipal de economia mista (EMDEC) constituída para proceder à formação do
sinalado Distrito Industrial - Alegação de impossibilidade de usucapião de bem
público - Afastamento, uma vez desafetados os bens imóveis desapropriados,
dai poderem ser alienados. ITBI - Usucapião é aquisição originária, não
havendo transferência de anterior proprietário, daí não ser exigível imposto de
transmissão de bens imóveis. POSSE - A data do início da posse é fundamental
na ação de usucapião - A posse ad usucapionem se perfaz após a quitação do
compromisso de compra e venda, quando se evidencia animus domini
(6133834600 SP , Relator: Silvério Ribeiro, Data de Julgamento: 11/03/2009, 5ª
Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/03/2009). (grifo nosso)
Destaque-se o voto da Relatora Lucila Toledo, acerca de Embargos Infringentes em
processo envolvendo as mesmas partes da decisão citada imediatamente acima, mostrando a
cisão decorrente do entendimento não unânime do Colegiado, de magistral elucidação, que se
conota como aula:
A embargante insurge-se contra acórdão a fls. 695, cujo relatório adoto, que deu
provimento à apelação interposta pela embargada Coppersteel Bimetalicos Ltda.,
para declarar a aquisição de propriedade pelas embargadas, por usucapião, de imóvel
público dominial, previamente desafetado para fins de alienação.
Afirma que não há possiblidade de se usucapir bens públicos, independentemente de
sua destinação. Em contrarrazões, a embargada sustenta a lisura do acórdão.
É o relatório.
É fato incontroverso que a autora está instalada no imóvel objeto do litígio, com seu
estabelecimento comercial. O cerne do litígio é definir se o bem público dominial
80
já desafetado pode ser objeto de usucapião. Em primeiro lugar, cumpre analisar as
posições da doutrina sobre o tema.
Celso Antônio Bandeira de Mello diferencia os bens públicos conforme sua
destinação. [...] (Curso de Direito Administrativo, 28ª edição, Malheiros, 2010, p.
921). Explica que apenas os bens dominiais podem ser alienados, por não
estarem afetados a uma destinação pública. Contudo, é contrário à
possibilidade de usucapião, tendo em vista a imprescritibilidade dos bens
públicos.
A mesma posição é adotada por Diógenes Gasparini (Direito Administrativo, 15ª
edição, Saraiva, São Paulo, 2010), Neyde Falco Pires Correa (Direito
Administrativo, coord. Sônia Tanaka, Malheiros) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro
(Direito Administrativo, 24ª edição, Atlas, 2011). A última lamenta a vedação da
usucapião nos casos em que a propriedade tenha preenchido sua função social
pela posse do particular. Doutrina recente, interpretando a Constituição de
forma sistemática e teleológica, busca nos princípios a flexibilização de normas
que, interpretadas literalmente, geram injustiças em determinadas
circunstâncias.
Nesse sentido, argumenta-se pela possibilidade de usucapião do bem público,
com base na função social da propriedade. Wagner Inácio Freitas Dias alega
que o bem pertencente ao Estado ganha a característica de público pela
“relevância e utilidade social que possa vir a demonstrar” (Da possibilidade
(constitucional) de usucapião sobre bens públicos, Revista Forense, vol. 352, ano 96,
p. 575 e ss., p. 583). O bem estatal deve se reverter de forma benéfica a toda
sociedade, derivando daí a especial proteção conferida a ele pela Constituição.
Assim, o bem público que não cumpre com sua função social não faz jus à
proteção constitucional da imprescritibilidade.
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias classificam os bens públicos em
bens material e formalmente públicos. Os materialmente públicos possuem
uma destinação público-social específica. Já os bens formalmente públicos
dispõem apenas de potencial de destinação. Nessa segunda hipótese, viabilizarse-ia a aquisição por usucapião nos casos em que a não afetação violar a função
social da propriedade, que é o parâmetro constitucional que legitima qualquer
modalidade de domínio. Alegam que a impossibilidade de usucapião de bens
públicos formais fere o princípio da proporcionalidade. E complementam:
“vivenciamos uma época em que não se avalia o rótulo, mas a efetividade dos
modelos jurídicos” (Direitos Reais, 2ª edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p.
269).
Silvério Ribeiro argumenta em outro sentido pela possibilidade de usucapião de
bens públicos. Defende que a imprescritibilidade dos bens públicos encontra seu
fundamento em sua inalienabilidade. A partir do momento em que se torna viável
a alienação, admite-se também o usucapião. “Se é certo que imóveis públicos
não são adquiridos por usucapião (arts. 183, §3º, e 191, parágrafo único, da
CF), cabe lembrar que uma vez que foram desafetados, perderam o caráter de
imprescritíveis, sendo possível, em tese, sejam adquiridos por usucapião”
(Tratado de Usucapião, 6ª edição, Saraiva, 2008, p. 545).
Em que pese a Súmula 340 do Egrégio Supremo Tribunal Federal, sua
aplicação não deve ser vista de forma absoluta: Ação de usucapião
extraordinária - Titularidade do domínio atribuída à Municipalidade de Mogi
das Cruzes na matrícula do imóvel - Lei n° 16, de 13 de novembro de 1891 Registro de loteamento, com a finalidade de alienação de lotes a particulares Desafetação - Existência de compromisso de venda e compra, que, embora não
registrado, indica a finalidade específica atribuída aos lotes compromissados Bem passível de usucapião - Sentença reformada. (TJSP AP. nº 925185333.2008.8.26.0000, Rel. Des. Christine Santini, 5ª Câmara de Direito Privado, j.
13/05/2009)
Em casos anteriores envolvendo as mesmas partes, este Tribunal já decidiu pela
possibilidade da usucapião:
[...]
Área já desafetada, não mais integrando o patrimônio público. Possibilidade de
aquisição pela usucapião. Expressa manifestação da Municipalidade no sentido
81
de que a área não pertence ao domínio público. Precedente deste Tribunal em
caso parelho. Sentença mantida. APELO IMPROVIDO. (AP. nº 012233546.2008.8.26.0000, Rel. Des. Donegá Morandini, 3ª Câmara de Direito Privado, j.
28/04/2009)
A conjugação dos argumentos acima leva à conclusão da possibilidade do
usucapião de bens públicos dominais, desafetados para a alienação, cumprida
sua função social pelo particular usucapiente. Conforme exposto, a doutrina
ensina que a natureza jurídica do bem público define-se pela destinação que ele
recebe. Atenho-me ao bem dominial, que é o objeto da presente demanda.
Os bens públicos dominiais são os desprovidos de afetação. São bens que podem
ser destinados à alienação. A partir do momento em que o bem entra para a
esfera de disponibilidade do Estado, ele perde seu caráter público. A
desafetação para alienação demonstra que o Estado já não possui mais
interesse naquele bem. Significa que ele já não desfruta de interesse público. Se
assim ocorre, não devem mais ser aplicadas as prerrogativas de que dispõem os
bens essencialmente públicos. O imóvel destinado à alienação, como o do
presente caso, torna-se apenas formalmente público. Não se pode afirmar que a
sua natureza jurídica continua a mesma de, por exemplo, uma escola ou um
hospital mantidos pelo Estado. Não há, portanto, razão para a sua
imprescritibilidade, cuja observância, nesses casos, fere a proporcionalidade.
Se é possível ao Estado alienar certo tipo de bem, não faz sentido que ele não
possa perdê-lo, pela sua própria inércia. Impedir a prescrição aquisitiva do
bem desprezado pelo Estado afronta a função social da propriedade.
A função social passou do limite da propriedade para se tornar o seu conteúdo.
Ela é uma cláusula geral que visa funcionalizar o direito contemporâneo. A
norma constitucional que estabelece que os bens públicos são insuscetíveis de
usucapião, deve ser interpretada de acordo com a destinação do bem. E o bem
já desafetado não tem mais destinação pública. Pelo exposto, rejeito os embargos
infringentes (Embargos Infringentes nº 9172311-97.2007.8.26.0000/50000. Voto da
Relatora Lucila Toledo. 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São
Paulo. 22 de maio de 2012). (grifo nosso)
Tal panorama mostra que, apesar da aparente linearidade interpretativa quanto a
ocupação de bens públicos ser entendida como mera detenção, há poucas, mas respeitáveis e
coerentes interpretações que se desviam desse sentido e que já sinalizam para uma
relativização dos conceitos que permeiam tais decisões, como a inteligente classificação dos
bens públicos em bens material e formalmente públicos, que torna a análise dinâmica,
averiguando a efetividade do uso do bem no momento da decisão.
82
CONCLUSÃO
O estudo mostrou que o princípio da função social da propriedade consagrado pela
Constituição Federal torna o direito de propriedade um direito-dever, criando para o
proprietário uma relação obrigacional dúplice, lato sensu, de fazer, dando a melhor destinação
possível ao bem, e de não fazer, impedindo-o de usar de modo a causar dano à coletividade,
que nesta relação se reveste de sujeito passivo universal.
Para tanto, o proprietário para ter garantido seu direito subjetivo necessariamente
precisa exercer a posse, único veículo do seu exercício finalístico da propriedade, pois é a
destinação dada à coisa que torna possível está ser funcional ou não.
Desta forma a ideia de a propriedade exercer uma função é uma expectativa inevitável
transformada em uma condição jurídica, considerando que o puro acúmulo dos bens com
finalidade especulativa ou qualquer outra que não repercuta positivamente na sociedade não
satisfaz a perspectiva projetada naquela propriedade.
Assim, naturalmente se identifica na posse a melhor operadora da função social.
Entretanto, não serve qualquer posse, mas sim a posse capaz de ofertar proveito à
comunidade, ainda que pelo uso individual. Tal entendimento é de tal sorte aceito e protegido
pela Constituição que a usucapião, que é, em verdade, a posse exercida em um longo período
de tempo, somada a outros elementos, foi por ela flexibilizada e estendida a novas situações.
A leitura da posse-moradia e da posse-trabalho como maiores expoentes da
funcionalização social da propriedade denota a grande relevância jurídica dispensada pela
Constituição a este instituto.
A partir desta perspectiva, apesar de a doutrina se manter superficial quanto à
abordagem dos bens públicos, o trabalho ponderou sobre a necessária subordinação aos
preceitos da função social da propriedade.
A doutrina, em sua maior parte, se limita a tratar dos bens públicos a partir do enfoque
de sua destinação, não adentrando na qualidade desta, restringindo a explanação ao bem estar
ou não condicionado a uma afetação, sem questionar se tal afetação é real ou meramente
formal, ou ainda se serve ao interesse social, se é eficaz à coletividade. Cuidando
redundantemente de descartar a posse de bens públicos pela inalienabilidade, e não
reconhecendo a possibilidade desta, unicamente pela vedação da prescrição aquisitiva, quanto
aos bens de uso comum e de uso especial.
83
Quanto aos bens dominiais, relampejam algumas faíscas de luz, tendo alguns
doutrinadores condicionado a imprescritibilidade à necessidade de demonstrar a característica
de público através da relevância e da utilidade social que evidenciar.
Apegando-se à minúscula minoria, este estudo filia-se à ideia de que o bem estatal
obriga-se a se reverter de forma benéfica a toda sociedade, tornando a imprescritibilidade
similar ao direito de propriedade, garantidos ambos desde que cumpridas suas funções.
Neste sentido, o bem público que não cumpre com sua função social não faz jus à
proteção constitucional da imprescritibilidade, sendo estes bens públicos meramente formais,
tornando possível (e necessária) a aquisição por usucapião nos casos em que a não afetação
violar o critério constitucional da função social da propriedade, que legitima qualquer
propriedade, pública ou privada.
Em que pese o quase consenso doutrinário e jurisprudencial sobre o tema, o estudo
demonstrou que essa consonância coletiva não se respalda em análise concreta capaz de
caracterizar a validade da norma que indica que a ocupação de bens públicos é mera detenção,
vez que tal entendimento decorre de um pseudo produto de outra norma que seria a
imprescritibilidade aquisitiva do bem público, a qual novamente não se mostra devidamente
analisada, limitando-se aqueles que defendem sua absoluta manutenção a fazerem-na
alegando apenas a formalidade do texto constitucional.
Os repetidos argumentos soam demasiadamente legalistas, desconsiderando a
necessária conversação entre os princípios constitucionais da supremacia do interesse público
e da função social da propriedade que, como mostrado neste trabalho, em nada se chocam,
sendo ao contrário complementares e retroalimentáveis, vez que a própria funcionalização de
qualquer bem em proveito da sociedade é, por óbvio, o interesse de qualquer grupo social.
Assim, o simples domínio público da propriedade não se basta a efetivar a função
social exigida da propriedade pela Constituição, mais que isso, está o Poder Público obrigado,
como qualquer outro proprietário, senão mais, a promover a utilização fática de seus bens,
seja ofertando serviços à coletividade, seja os cedendo para moradia, ou até mesmo,
reconhecendo o particular como merecedor do título proprietário, uma vez que, no decorrer de
períodos extensos de tempo, o Estado não elegeu determinado bem como sendo de sua
prioridade, não lhe dirigindo atenção e cuidados próprios de um dono, enquanto aqueloutro
ofertou ao bem, diuturnamente, preocupação e zelo, utilizando-o em conformidade plena com
os preceitos constitucionais.
O reconhecimento da posse em bens públicos dominicais se apresenta como uma
possibilidade de atendimento da função social por parte do Estado. Este seria o caminho
84
ofertado por um dos braços do Estado, que é o Poder Judiciário, fazendo com que direitos
elementares dos indivíduos fossem devidamente garantidos e exercidos.
Por outro lado, a possibilidade de atuação efetiva da Administração Pública por meio
de seus bens mostra-se como a opção de maior proveito para os dois lados, Estado e
particulares, donde se pudesse construir uma gestão democrática e partilhada do patrimônio
público, que extrapolasse os interesses estatais, acolhendo e elegendo interesses
complementares de todos os envolvidos.
Conclui-se, por todo o exposto, como inevitável que a interpretação do sistema legal
pátrio, observando a função social da propriedade e a garantia do verdadeiro interesse público
e não do Estado, deve ser no sentido de possibilidade do reconhecimento da natureza da
ocupação dos bens públicos como posse e seus consequentes reflexos, quando não forem os
bens públicos efetivamente destinados a um fim social pelo Estado.
85
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338,369, 421, 422, 423, 425, 429, 450, 456, 471, 472, 473, 474, 475, 478, 479, 480,482,
496,502, 506, 533, 549, 557, 558, 559, 563, 574,576, 596, 599, 602, 603, 607, 623, 624, 625,
633, 637, 642, 655, 765, 788, 790, 872, 927, 928,931, 944, 947, 949,950, 953, 954,966,
977,999, 1053, 1060, 1086, 1094, 1099, 1158, 1160, 1163, 1165, 1166, 1168, 1196, 1197,
1204, 1210, 1228, 1273, 1274, 1276, 1316, 1341, 1347, 1352, 1354, 1361, 1362, 1365, 1369,
1371, 1374, 1378, 1379, 1434, 1436, 1456, 1457,1473, 1479, 1481, 1512, 1515, 1516,1521,
1526, 1561, 1563, 1573, 1574, 1575, 1576, 1581, 1583, 1586, 1589, 1597, 1601, 1605, 1606,
1609, 1614, 1615, 1618, 1623, 1625, 1626, 1628, 1629, 1641, 1642, 1660, 1665, 1668, 1694,
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