DA ESCURIDÃO À LUZ NA “ALEGORIA DA CAVERNA” DE PLATÃO E NA OBRA “SUBIDA DO MONTE CARMELO” DE SÃO JOÃO DA CRUZ Nara Rela RESUMO: O objetivo do presente estudo foi verificar se a forma de abordagem da ascese da alma em São João da Cruz se assemelha à relatada por Platão na “Alegoria da Caverna”. Trata-se de uma pesquisa de natureza teórica e bibliográfica. Foram selecionados para investigação o excerto 514 a 518 da “Republica” de Platão, Edipro:2006 e as quatro primeiras estrofes do Poema Subida do Monte Carmelo de São João da Cruz, Obras Completas, Editora Vozes: 2002, fazendo-se uma comparação entre ambos. Verificou-se que tanto o Poema como a “Republica”, abordam a ascese da alma como sendo um caminho da escuridão à luz para a contemplação do inteligível. No Poema a Alma é retratada como a Amada vivendo na escuridão da noite, enquanto na República esta é representada pelo habitante da caverna que vivia na escuridão. Em ambos os casos foi após o seguimento à luz que a alma pode contemplar o Inteligível/Conhecimento/Amado. PALAVRAS-CHAVE: Alma. Ascese. Escuridão. Luz Introdução São João da Cruz, erudito frei carmelitano de refinada cultura literária e de ciência filosófico-teológica tão completa como possível em sua época, foi declarado Doutor da Igreja. Nasceu e morreu no século XVI, no período Renascentista, mas ainda vivia sob os auspícios da “Escolástica”, que foi um período profundamente marcado por traços neoplatônicos que conciliava elementos da filosofia de Platão com valores de ordem espiritual, reinterpretadas pelo Ocidente cristão. Esta constante neoplatônica permaneceu presente mesmo quando Tomás de Aquino introduziu elementos da filosofia de Aristóteles. A questão básica da época era a harmonização entre a fé e a razão e, para isso, utilizou-se de algumas fontes para o aprofundamento de sua reflexão, tais como os filósofos antigos, as Sagradas Escrituras e os Padres da Igreja. Na Escolástica a atividade literária assumiu a forma de comentários ou de coletânea de questões. O problema fundamental era levar o homem a compreender a Verdade revelada através do exercício da atividade racional – ou, na prática, o uso de alguma filosofia determinada, neoplatônica ou aristotélica – com vias ao acesso à Verdade religiosa, à sua demonstração ou ao seu esclarecimento nos limites que isso seja possível, apresentando um arsenal defensivo contra a incredulidade e as heresias Em suma, a Escolástica foi marcada pela utilização de determinada filosofia para a defesa e ilustração de determinada tradição religiosa. A Espanha, lugar de nascimento de São João da Cruz, foi profundamente marcada pela filosofia neoplatônica introduzida pelos árabes sufis, principalmente pela Escola de Ibn Massara, cujo mestre teve formação neoplatônica em Alexandria no Século X. No Oriente, Ibn Masarra recolheu elementos neoplatônicos que haviam sido passados ao Islã através das traduções greco-árabes, bem como das tradições orais das gnoses cristãs que formam parte da bagagem intelectual dos sufis. A mística medieval e a patrística foram fortemente influenciadas pelo pensamento árabe na revolução da filosofia escolástica medieval e, como a mística espanhola estava fortemente ligada a elas, não foi difícil chegar à Espanha as doutrinas místicofilosóficas do semitismo que, por sua vez, são transmissão de outra fonte mais remota: o misticismo alexandrino. Como exemplo de filósofos medievais espanhóis podemos citar: Guilermo de Auvernia, Alejandro de Hales, San Buenaventura, Rogério Bacon e Raimundo Llull, além de Dominico Gundisalvo que teve grande influência na filosofia escolástica européia. O período Renascentista, no qual viveu São João da Cruz, foi um “retorno às origens”, um fenômeno espiritual de “regeneração” e de “reforma”, marcado pela maciça revivescência do platonismo, que criou uma têmpera espiritual inconfundível. A revivescência do platonismo, porém, não significa o renascimento do pensamento de Platão tal como o encontramos expresso nos diálogos. É verdade que a Idade Média leu pouquíssimos diálogos (Menon, Fedon e Timeu) e que, ao contrário, ao longo do Quatrocentos, os diálogos foram todos traduzidos para o latim, as versões de Leonardo Bruni alcançaram grande sucesso e muitos humanistas estavam em grau de ler e entender o texto grego original. Entretanto, o redescoberto texto platônico continuou a ser lido à luz da tradição platônica posterior, ou seja, em função dos parâmetros que os neoplatônicos tornaram normativos e com multisseculares incrustações. (REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia Antiga, volume 3). Os doutos bizantinos, após a queda de Constantinopla em 1453, também possibilitaram a tradução de diversos textos gregos, até então traduzidos na Idade Média conforme os preceitos da Igreja. Essa nova possibilidade de leitura e análise dos escritos gregos originais levou a uma grande transformação no pensamento da época. O grande relançamento do Neoplatonismo, do ponto de vista filosófico, ocorreu graças a Nicolau de Cusa e à Academia Platônica florentina com Marsílio Ficino e Pico de Mirandola. Esta Academia não foi uma escola organizada, mas muito mais um sodalício de doutos e amantes da filosofia platônica. São João da Cruz estudou humanidades e filosofia no Colégio dos Jesuítas de Medina del Campo, onde teve contato não só com textos filosóficos clássicos, como também com os exercícios espirituais da Ordem. Por discordar das diretrizes da Igreja, foi recolhido ao cárcere de Toledo, quando então escreveu sua obra fundamental: “Subida do Monte Carmelo”. Esta obra trata-se de um poema sobre a “noite escura da alma”, acrescido de comentários e explicações do próprio autor. Sobre seus escritos, explica Edith Stein: Em ellos su experiência, expresada antes de manera poética, se traduce al lenguaje de um pensador que conoce la tologia y la filosofia, com um empleo sóbrio de las expresiones escolásticas y el uso más copioso de las imágense expresivas.(STEIN, Edith. Ciencia de la Cruz, pagina 68.) Da Escuridão à Luz O poema sobre a “Noite Escura da Alma”, o cerne da “Subida do Monte Carmelo”, foi escrito enquanto São João da Cruz se encontrava preso na escuridão do cárcere de Toledo, de onde vislumbrava somente sombras do cotidiano que o externava. Conta-se que depois de algum tempo preso, por caridade de seu carcereiro, que na verdade havia percebido a injustiça cometida com pessoa de tão alta estirpe intelectual, recebeu papel e lápis para poder colocar em palavras toda a sua explosão reflectiva sobre a experiência que vivia. Somente depois de um longo tempo preso e de muito pensar sobre a situação da alma humana presa em um mundo de ilusões é que seus discípulos conseguiram tira-lo do cárcere. Da escuridão ele voltou à luz. Na “Alegoria da Caverna” Platão relata o caminho que a alma percorre da escuridão à verdadeira luz. Na caverna, que pode ser interpretada como a vida mundana, a alma vivia presa ao mundo sensível e tudo o que apreendia pelos sentidos era falso, não passava de sombras da realidade, esta entendida por Platão como mundo das Idéias ou o mundo inteligível. Assim, após um esforço e desejo da Verdade, ou o Bem supremo ou o Belo, que são a mesma coisa para Platão, a alma consegue se libertar e vislumbrar uma luz que, a princípio, a cega tamanha sua intensidade, mas que gradualmente vai desvelando a verdadeira realidade. Assim, após perceber a realidade, a alma pode contemplar o Belo, como explica Platão nos excertos abaixo: Toda essa imagem, Gláucon, deve ser aplicada ao que dissemos anteriormente. A região visível deveria ser comparada à morada, que é a prisão e a luz da fogueira nela ao poder do sol. E se interpretares a subida e o exame das coisas acima como a ascensão da alma à região inteligível, terás captado o que espero transmitir, uma vez que isso é o que queiras ouvir. Se isso é verdadeiro ou não, só o deus o sabe. De qualquer modo, eu o vejo assim: no domínio cognoscível, a Idéia do bem é a ultima coisa a ser vista, sendo atingida somente com dificuldade; entretanto, uma vez que alguém a tenha contemplado, será imperioso concluir que é a causa de tudo que é correto e belo em quaisquer coisas, que produz tanto a luz quanto sua fonte na região visível e que na região inteligível comanda e gera verdade e entendimento, de sorte que todos que se predispõem a agir com sensatez privada ou publicamente têm dela percepção. Ocorreu-me o mesmo pensamento, ao menos no que sou capaz. Vem então juntar-te a mim neste pensamento: não é de se surpreender que os que atingem esse ponto não estão predispostos a se ocuparem de assuntos humanos, e suas almas experimentam sempre a premência da ascensão e o anelo da permanência acima; pois, afinal, isso é indubitavelmente o que esperaríamos, se é que efetivamente as coisas se enquadram na imagem por mim descrita. (A República, Livro VII, Bauru, Edipro: 2006, p. 310 e 311, 517b – 517d) É impossível deixar de se fazer uma analogia às quatro primeiras estrofes do Poema de São João da Cruz, que relata o caminho da alma da escuridão à luz: Em uma noite escura, De amor em vivas ânsias inflamada, Oh! Ditosa ventura! Sai sem ser notada, Já minha casa estando sossegada. Na escuridão, segura, Pela secreta escada disfarçada, Oh! ditosa ventura! Na escuridão, velada, Já minha casa estando sossegada. Em noite tão ditosa, E num segredo em que ninguém me via, Nem eu olhava coisa, Sem outra luz nem guia Além da que no coração me ardia. Essa luz me guiava Com mais clareza que a do meio-dia, Aonde me esperava Quem eu bem conhecia, Em sítio onde ninguém aparecia Na Alegoria Platão mostra que os escravos estão presos às ilusões das imagens refletidas pela luz de uma fogueira e acredita corresponderem à realidade das coisas. Na “Subida do Monte Carmelo”, São João da Cruz explica o estado da Alma presa à escuridão no item 1 da página 147 das suas Obras Completas: “ As afeições às criaturas são (...) como profundas trevas, de tal modo que a alma, quando ai fica mergulhada, torna-se incapaz de ser iluminada e revestida da pura e singela claridade (...). A seguir, no item 2, explica que “ A luz é incompatível com as trevas. A razão está em que dois contrários, segundo o ensinamento da filosofia, não podem submeter ao mesmo tempo num só sujeito” No item 3 da página 163, mostra como fica a Alma presa à essa tênue luz que ilude sobre a realidade das coisas: “Assim, o apetite cinge tão de perto a alma e se interpõe a seus olhos tão fortemente, que ela se detém nessa primeira luz, contentando-se com ela, não mais percebendo a verdadeira luz do entendimento”. No excerto 516 da “Alegoria”, o Filósofo mostra que o escravo foi gradualmente adentrando à luz, que o guiava até a contemplação da luz maior: E se alguém o arrastasse dali à força em sentido ascendente através do caminho acidentado e abrupto (...) até que o tivesse arrastado até a luz do sol (...) E quando mergulhado na luz, seus olhos invadidos pelos raios do sol (grifo meu), não ficaria incapacitado para ver uma só daquelas coisas que agora se diz ser reais?”. Nos dois primeiros versos da quarta estrofe do Poema também se faz menção à Alma seguindo uma luz: “Essa luz me guiava/Com mais clareza que a do meio-dia”. Nos comentários, São João da Cruz explica o que significa o seguimento da luz e sua contemplação: (...) excessiva luz (...) converte-se em espessa trava, porque o maior sobrepuja e vence o menor, assim como a irradiante luz do sol (grifo meu) obscurece o brilho de quaisquer luzes, fazendo não mais parecerem luzes aos nossos olhos, quando ele brilha e vence nossa potência visual. Em vez de dar-nos vista, o seu esplendor nos cega, devido à desproporção entre o mesmo sol e a potência visual. CRUZ, São João da. Obras Completas, pág. 188, item 1. Tanto para Platão quanto para São João da Cruz a Alma vai paulatinamente se enchendo de luz até àquela luz maior que o cega, tamanha intensidade. Para ambos o objetivo maior é contemplar e se unir ao Bem, o que exige certa dose de sacrifício, como explica o Filósofo no excerto 517d da “Alegoria”: “De qualquer modo, eu o vejo assim: no domínio cognoscível, a Idéia do bem é a ultima coisa a ser vista, sendo atingida somente com dificuldade (...)”. São João da Cruz, por sua vez, explica esse mesmo objetivo e o esforço envolvido em sua busca, no item 3, da página 172 de suas Obras Completas: “ (...) Para se unir pela vontade e pelo amor ao seu soberano Bem, a alma deve primeiro renunciar a todo apetite voluntário (...) o que significa não dever consentir com pleno conhecimento e advertência.” O Dicionário Sanjuanista, na página 323 explica a visão de São João da Cruz em relação à experiência da “Noite Escura” e à contemplação da luz: “Em la vision Sanjuanista todo esta relacionado a la ‘noche’ como proceso cartático que culmina em la luz (...) no todo dandole conocimiento 1 de su bajeza”. Conclusão São João da Cruz viveu a experiência do cárcere e seu isolamento. A pouca luz que recebia provinha da pequena abertura da grade da prisão e algumas vezes pela luz de uma vela. Passou longos meses em completa solidão interior, quando pode refletir sobre a condição humana de prisioneiro de si mesmo, pior do que sua situação de preso em um cárcere. Depois, teve a oportunidade de revelar todo o seu poderio reflexivo durante o período preso ao escrever sobre a “Noite Escura” por que passa a Alma e sua possibilidade de contemplar o Bem mediante sua purificação através de sacrifícios. Por ajuda de seus discípulos conseguiu fugir da prisão de madrugada, sendo gradualmente inserido na luz do sol do dia que nascia. Saia da escuridão à luz. Dessa forma, São João da Cruz de forma análoga à “Alegoria da Caverna” experimentou em sua própria vida a escuridão da prisão e sua tênue iluminação, bem como um gradual mergulho na luz do sol ao caminhar para a liberdade. Fazendo-se uma análise comparativa com a “Alegoria da Caverna” de Platão, que descreve a alma como escrava vivendo na escuridão da caverna, presa à ilusão dos sentidos, iluminada por pouca luz e sua subida paulatina rumo à luz maior e à contemplação do Bem, percebe-se que a temática do Poema, que relata a Alma vivendo na escuridão da noite e depois, seguindo a luz em diferentes graus, pode finalmente se encontrar 1 à alma com o Amado, que como ele mesmo explicou em seus comentários 2 trata-se do soberano Bem, segue o mesmo contexto platônico. Levando-se em consideração o fato de São João da Cruz ter vivido na Espanha, local de florescimento da filosofia sufi – influenciada pelo neoplatonismo -; por ter vivido na época do Renascimento, quando houve a releitura dos textos gregos clássicos; de ter estudado humanidades e filosofia no Colégio dos Jesuítas de Medina del Campo, onde teve contato com textos filosóficos clássicos; por ter vivido a experiência da escuridão do cárcere; e, finalmente, por relatar o caminho da Alma da escuridão à luz para a contemplação do Bem; pode-se concluir que o Poema tratado na obra “Subida do Monte Carmelo”, possui conotações platônicas. O que significa dizer que a forma de descrição da ascese da Alma na obra de São João da Cruz se assemelha à descrita por Platão na “Alegoria da Caverna”. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª. edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CRUZ, San Juan de la. Obras Completas, Burgos, Editorial Monte Camelo: 2003. CRUZ, São João da. Obras Completas. São Paulo, Vozes: 2002 PACHO, Eulogio. Diccionario de San Juan de la Cruz, Burgos, Editorial Monte Carmelo: 2000. _____________. Estudios Sanjuanistas, volumes I e II, Burgos, Editorial Monte Carmelo: 2000. _____________. San Juan de la Cruz. História de sus escritos, Burgos, Editorial Monte Carmelo: 1998. PENSADO, Berta. La Mística, Temas Españoles 208, Madrid, 1955 disponível em < http://www.filosofia.org/mom/tem/es0208.htm >. Acesso em 16 de julho de 2007. PLATÃO, A República , Bauru, Edipro: 2006. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga, Vol. IV. São Paulo: Edições Loyola, 1993. ______________. Para uma nova interpretação de Platão, 2ª. edição, São Paulo, Loyola: 2004. ______________ e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Patrística e Escolástica. Vol II. 2ª. Edição. São Paulo: Paulus, 2006. 2 Item 3, pág. 172, Obras Completas. ________________________________. História da Filosofia. Do Humanismo a Descartes, Vol. III, 2ª. edição. São Paulo: Paulus, 2005. ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Petrópolis: Vozes, 2005. STEIN, Edith. Ciência de la Cruz. Burgos, Espanha: Editorial Monte Carmelo: 2000.