Leca Kangussu Logos, Eros e Ágape O ensaio apresenta o ponto de vista de Herbert Marcuse sobre o que pode ser considerado como as especulações filosóficas de Sigmund Freud. É dada atenção especial ao fato de que, ao contário de Freud e de outros pensadores pertencentes à chamada Escola de Frankfurt, Marcuse atribuí à civilização uma origem fortemente erótica. > Palavras-chave: Eros, civilização, Marcuse, Freud pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 176, dezembro/2003 artigos > p. 34-40 The essay presents the point of view of Herbert Marcuse about what may be considered philosophical especulations of Sigmund Freud. Special attention is given to the fact that, against Freud himself and others thinkers of the so called Frankfurt School, Marcuse thinked that civilization has as its origin a strong erotic appeal. > Key words: Eros, civilization, Marcuse, Freud >34 Em Eros e civilização (1955), Marcuse apresenta a dialética da civilização, segundo a metapsicologia freudiana. Evocar o discurso freudiano, nesse contexto, implica reconhecer o lugar estratégico ocupado pela subjetividade nas relações sociopolíticas. Lebrun comenta que ... há pelo menos duas maneiras de escrever a história simbólica da civilização. Duas “intrigas” bem diferentes, para falar com Paul Veyne (perito no assunto). Dois roteiros: 1) cristão hegeliano (para Cecil B. de Mille); 2) freudiano (para Bergman). É o segundo que Marcuse escolhe. Enquanto passam os letreiros do segundo filme, não é o paraíso que aparece, mas o reino implacável do Pai. (1983, p. 133) Em Eros e civilização, o filósofo observa que foi aceita como axioma a proposição freudiana segundo a qual a base da civilização é a permanente repressão pulsional, em virtude da própria atitude de Freud em considerar o processo inevitável e irreversível. Marcuse percorre a teoria das pulsões a contrapelo assinalando que o próprio Freud fornece razões para se rejeitar a identidade imediata de civilização com repressão e para refutar a impossibilidade de uma civilização não-repressiva. Ao filósofo interessou a metapsicologia freudiana porque ela atinge uma dimensão do aparelho psíquico em que acontece o trânsito entre o indivíduo e o gênero, entre presente e passado, entre civilização e natureza. Conceito limite entre o psíquico e o somático, pulsão – segundo Freud, perito no assun- No primeiro estágio da teoria dos impulsos, Freud apresentou duas pulsões antagônicas: as sexuais e as de autopreservação; na formulação final da teoria, os impulsos básicos são os de vida (Eros) e os de morte: as pulsões de autopreservação e de preservação da espécie, anteriormente antagônicas, agora incidem dentro de Eros (Freud, 1940[1938], p. 173). Entretanto, o terreno é bastante inseguro. “A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia. As pulsões são entidades (Wesen) míticas, magníficas artigos ... tudo se passa, ao contrário, como se apenas houvesse faltado a Freud um pequeno impulso para dar por si mesmo esse passo final, a que o convidava todo o seu itinerário anterior, ou seja, para formular a hipótese de um “novo” princípio de realidade. (1990, p. 33) em sua imprecisão (Freud, 1933[1932], p. 119). Em ”Além do princípio do prazer” (1920), Freud enfatiza a natureza comum de Eros e da pulsão de morte, antes de diferenciá-las. E ressalta a presença de uma tendência regressiva em toda vida pulsional: uma compulsão a restaurar um estado de coisas anterior, que se foi obrigado a abandonar sob a pressão de forças externas, que pode ser considerada um atributo universal das pulsões e da vida orgânica em geral. Ilustra o caráter regressivo de Eros a hipótese fantasiosa apresentada em O banquete, segundo a qual, no seu momento de origem, a substância viva foi fragmentada em partículas que nunca mais deixaram de buscar a reunião por meio da atividade sexual (Freud, 1922[1920], p. 78 sg.) : a razão do desejo erótico, profere Aristófanes, é que “nós éramos um todo; e portanto ao desejo e procura do todo se dá o nome de amor“ (Platão, 192e, 1972, p. 31) Em “O ego e o id”, as duas pulsões ainda são consideradas “conservadoras no sentido mais estrito da palavra, visto que ambas estariam se esforçando para restabelecer um estado de coisas que foi perturbado pelo surgimento da vida” (Freud, 1923, p. 56). A relação entre Eros e Thanatos permanece obscura. É como se houvesse uma energia deslocável, neutra em si mesma, disposta a aliar-se a impulsos eróticos ou destrutivos. “É fácil observar uma certa indiferença quanto ao caminho ao longo do qual a descarga se efetua, desde que se realize de algum modo” (ibid., p. 60). Em “Ansiedade e vida instintual” (1932), Freud considera que as pulsões se mesclam: a pulsão de morte trabalha para os propósitos de Eros, e os impulsos eróticos, em seu empenho por efetuar sínteses de substâncias vivas em unidades sempre maiores, poderiam estar buscando reconstituir a situação prévia, revelando assim seu caráter regressivo. Marcuse ques- pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 176, dezembro/2003 to – é um estímulo que surge dentro do corpo, do qual, portanto, não se pode fugir; ao contrário do que se pode fazer em relação a estímulos externos. Sua origem é um estado de excitação, sua constituição é uma quantidade de energia pressionando em determinada direção, sua finalidade é pôr fim à excitação e seus objetos variam. Obscura interseção entre o mental e o físico, a pulsão primária é a de escoamento da excitação, a de libertar, manter constante, ou tão baixa quanto possível, a quantidade de excitação no aparelho mental. Não há impulso em estado puro, eles são mediados por imagens ou fantasias, por sua linguagem representativa, historicamente determinada. Marcuse julga que, não se tratando de um processo petrificado, a organização da estrutura pulsional se transforma e pode desviar-se do rumo que seria de se esperar, tendo em vista o estado de coisas existente. Julga, ainda, que essa perspectiva não fere a vocação mais profunda do pensamento freudiano. Na teoria de Marcuse, segundo Prado Jr., >35 tiona: “Eros, apesar de toda evidência, em última análise, trabalha a serviço do instinto de morte, e a vida é, realmente, apenas um longo ‘desvio da morte’?“ (Marcuse, 1969, p. 45). Freud dá uma pista para responder a essa questão em “Teoria das pulsões” (1938), em que é matizado o caráter regressivo de Eros: pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 176, dezembro/2003 artigos Se presumirmos que as coisas vivas apareceram mais tarde que as inanimadas e delas se originaram, então a pulsão de morte se ajusta à fórmula que propusemos, a qual postula que as pulsões tendem a retornar a um estágio anterior. No caso de Eros (ou impulso do amor), não podemos aplicar esta fórmula. Fazê-lo pressuporia que a substância viva foi outrora uma unidade posteriormente desmembrada e que se esforça no sentido da reunião. (p. 173) >36 E nada na história da substância viva nos permite tal pressuposição, considera Freud, abandonando as hipóteses levantadas em O banquete. O que vai permanecer é a idéia da combinação das pulsões opostas; por exemplo, a destruição do objeto no ato de comer e a agressividade presente no ato sexual, ambos vitais ao indivíduo e à espécie. A autopreservação realiza-se por meio da agressão socialmente permitida. A ação oposta e concorrente dos dois impulsos básicos dá origem aos fenômenos da vida, e a analogia destes impulsos “estende-se da esfera das coisas vivas até o par de forças opostas – atração e repulsão que governa o mundo inorgânico” (ibid.). Na história das construções do espírito, hipótese semelhante a essa já foi expressa. Nas palavras de Empédocles de Agrigento, (νεικοζ), que estão em guerra perpétua um com o outro, dirigem os eventos da vida e do universo. Enquanto um deles se esforça por aglomerar as partículas primevas dos quatro elementos numa só unidade, o outro, em contrapartida, procura destruir essas fusões e levar os elementos de volta a seus estados primitivos. Freud observou que sua teoria das pulsões se aproxima tanto da teoria de Empédocles que ele se sentiria tentado a sustentar que as duas eram idênticas, “não fosse a diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica” (Freud, 1937, p. 279). Para Freud, o mesmo impulso que incita à regressão, quando impossibilitado de expressar-se imediatamente, torna-se progressivo, e avança no sentido de uma complexidade maior. O nascimento da vida é um trauma, mas a pulsão de morte só opera em fusão com a pulsão de vida – sozinha está condenada a emudecer, seu destino depende da libido. Eros mantém a vida. Guiado pelo princípio do prazer, ou pela percepção do desprazer, desvia as tensões anuindo às exigências da libido por meio da descarga sexual. A ejeção de substâncias no ato sexual, em certo sentido, corresponde à separação da psique e do componente biológico – em outras palavras, corresponde à morte. Tão logo tudo se unifica graças ao Amor, Tão logo, de novo, cada elemento se separa, levado pela força hostil do ódio. (Brun, 1966, frag. 17, p. 166) Isto explica a semelhança do estado que se segue à satisfação sexual completa com o ato de morrer, e o fato de a morte coincidir com o ato da cópula em alguns dos animais inferiores. Essas criaturas morrem no ato da reprodução porque, após Eros ter sido eliminado através do processo de satisfação, o instinto de morte fica com as mãos livres para realizar seus objetivos. (Freud, 1923, p. 63) O filósofo grego ensinou que dois princípios, amor (ϕιλια) e discórdia, ódio Mas o ego é capaz de dominar as tensões de outro modo: sublimando um pouco da libido a obstinada persistência do bebê em sugar dá prova, em estágio precoce, de uma necessidade de satisfação que, embora se origine da ingestão da nutrição e seja por ela instigada, esforça-se todavia por obter prazer independentemente da nutrição e, por essa razão, pode e deve ser denominada de sexual . (Freud, 1940[1938], p. 179) Ainda que, na sua última formulação sobre as pulsões, os impulsos sexuais incidam nos eróticos, a função sexual não coincide com Eros. Do mesmo modo como não se pode justificar o confinamento de Eros à esfera física, também não se pode justificar – sob sua égide – a separação antagônica entre a artigos ção altera o equilíbrio vital das pulsões sempre que os impulsos destrutivos levam a melhor. Isso é sublimação repressiva. A civilização se defende do espectro de um mundo livre. A defesa consiste na manipulação da consciência. O ócio é controlado, o tempo livre é confiscado para ser transformado em anestésico. A indústria cultural, perita em manipulação de massas, não deixa o indivíduo sozinho. A extensão do controle sobre a consciência permite o relaxamento do controle sobre a sexualidade e, com isso, maior liberdade sexual. Mas não maior liberdade erótica. Concentrada numa parte do corpo, na genitália, a libido pode ser periodicamente libertada – ou melhor, descarregada –, deixando o resto do corpo, e todo o corpo, o resto do tempo, livre para ser utilizado como instrumento de trabalho. Com os impulsos agressivos mais potentes que os eróticos. Isso é dessublimação repressiva. É evidente a diferença entre Eros e sexualidade, e é necessária uma distinção nítida entre os conceitos “sexual” e “genital”: o primeiro possui maior amplitude e permite incluir atividades sem qualquer liame com os órgãos genitais. Por exemplo, pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 176, dezembro/2003 para si próprio. Marcuse apresenta diferenças – relativas à quantidade de repressão envolvida – no mecanismo de sublimação, cujos produtos serão: “sublimação repressiva”, a que costuma ser levada a cabo pela civilização regida pelo princípio de desempenho; “dessublimação repressiva”, que implica o afrouxamento dos costumes relativos ao sexo, mas não dos relativos à própria repressão; e “sublimação desrepressiva”, que significa a possibilidade de tornar o impulso erótico mais forte pela ampliação de Eros. Os perigosos impulsos de morte são tratados de diversas maneiras: em parte, são tornados inócuos, por sua fusão com componentes eróticos; em parte, são derivados para o mundo externo sob a forma de agressividade; em parte, são internalizados. As inibições impostas pela civilização afetam os impulsos de agressividade, derivados da pulsão de morte, e assim contribuem para a força de Eros. Mas também afetam os impulsos eróticos: a contínua exigência de sublimação debilita Eros. “Após a sublimação, o componente erótico não tem mais o poder de reunir o todo dos elementos destrutivos que estavam previamente combinados com ele, e estes tornam-se livres sob a forma de inclinações para agressão e destruição” (ibid., p. 71). Nesse contexto, a metapsicologia de Freud se encontra com a dialética da civilização, cujo progresso, diz Marcuse, “conduz à liberação de forças cada vez mais destrutivas” (1969, p. 65). Marcuse argumenta que “somente um Eros forte pode efetivamente reunir [bind] os impulsos destrutivos” (ibid., p. 85). E é isso que, de acordo com a teoria freudiana, a civilização desenvolvida é incapaz de fazer, porque sua própria existência depende de controles intensivos e ampliados na superação dos impulsos. Se a vida é a fusão de Eros com a pulsão de morte, então o processo de sublima- >37 pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 176, dezembro/2003 artigos parte física e a espiritual do organismo. Marcuse lembra que tal antagonismo começa com a luta do indivíduo contra suas “faculdades inferiores”: as sensuais e apetitivas; luta constitutiva da racionalidade e que culmina com a conquista da natureza externa que deve ser subjugada. “Sua subjugação é, pelo menos desde Platão, considerada como um elemento constitutivo da razão humana, a qual é, assim, em sua própria função, repressiva” (Marcuse, 1969, p. 107). Com a lógica aristotélica, a concepção de Logos como essência do Ser “fundiu-se com a idéia de uma razão ordenada, classificadora e dominadora” (ibid., p. 108). O Logos se apresenta como lógica da dominação. “A história da ontologia reflete o princípio de realidade que governa o mundo cada vez mais exclusivamente”, adverte Marcuse, e “as visões contidas na noção metafísica de Eros foram soterradas” (ibid., p. 118-9). Entretanto, pensa o filósofo que vai atrás dessas visões soterradas, só a concepção do Ser como Eros, apresentada por Freud, permite a perspectiva de uma ruptura na lógica de dominação. Perspicaz, Lebrun observa que, >38 Marcuse jamais questionou o logocentrismo (como hoje questionam, cada um a seu modo, Derrida, Deleuze e Foucault). O que ele condena é uma opção nefasta que fez deste, não apenas a instância diretriz da existência humana (instância que ele merece ser), mas também uma máquina de proibição, uma barreira brutalmente erguida contra os instinto de prazer (...) Esse Logos repressivo é o Logos falsificado, despojado do seu sentido autêntico, que é “proporção, harmonia, união” [Eros? ik]. E é este sentido que Marcuse pretendia, apaixonadamente, restituir. (Lebrun, 1983, p. 139) A idéia de que possa haver alguma identidade entre Eros e Logos soa estranha após dois mil anos de antagonismo. Contudo, lembra Marcuse, o próprio Platão celebra, com as palavras de Diotima em O banquete, a origem erótica das relações entre espíritos. Diotima diz que Eros “é um demônio poderoso”, Filho de Poros, o Engenho, e de Pênia, a Pobreza, e que foi concebido no dia do nascimento de Afrodite e, por isso, é amante do belo. Meio termo entre a sabedoria e a ignorância, “Eros consiste no amor do belo” (204d), e quem possui o belo será feliz, porque a natureza tem o desejo de gerar, mas não pode gerar no feio. A Beleza preside a geração. Assim, quando o ser, impulsionado pelo desejo de procriar, se aproxima do belo, sente o desejo e o prazer aumentar e concebe. Em contrapartida, quando se aproxima do feio, retrai-se, contrai-se e, triste, não fecunda. Guarda o germe e sofre. Daí resulta a mudança, que se verifica no ser fecundo e viril, em presença do belo, pois este o liberta do sofrimento do desejo, porque o amor não é o amor do belo (...) É o desejo de geração e procriação no belo! (206d-e). A passagem de Eros à cultura continua quando, da satisfação erótica do amor físico, o caminho apresentado por Diotima ascende ao amor a outros corpos, às belas ocupações, aos belos conhecimentos. Assim, Eros, quando cria cultura, não é subjugado e, diversamente, realiza o que Marcuse denomina “sublimação desrepressiva”, i.e., a sexualidade não é desviada nem impedida de realizar seu objetivo, mas, ao contrário, ao realizá-lo transcende-o em busca de gratificação mais plena. Iluminada pelo conceito de sublimação não repressiva, a definição freudiana da pulsão erótica como impulso de “combinar cada vez mais substância viva em unidades cada vez maiores” (Freud, 1933[1932], p. 133) alcança maior significado. Kellner observa que, na teoria de Marcuse, o conceito de Eros pode ser considerado mais platônico do que freudiano 1> Cf. Greek-English Lexicon e Novo Dicionário Aurélio. artigos e a comunhão; e, finalmente, banquete, refeição de confraternização.1 Em suma, também filologicamente, Ágape pode ser Eros. Mas o que mais interessa ao filósofo é inverter “a história da transformação de Eros em Ágape” (Marcuse, 1969, p. 119), história que, a seu ver, soterra o resíduo arcaico contido na noção mitopoética do primeiro. A diferença essencial entre o Eros mítico e o sagrado Ágape cristão se expressa no movimento por intermédio do qual os dois se realizam. Enquanto Ágape é fruto do amor divino que, em movimento descendente, se transforma em amor ao próximo (caritas) e em amor-próprio, Eros realiza esse movimento em sentido ascendente. Afirmando que Ágape é Eros, e não o contrário, Marcuse escolhe o movimento ascendente, despertado no mundo sensível. É intenção do filósofo revelar a origem erótica da civilização, origem afirmada na doutrina platônica, em que o mito de Eros é central. É ele que provoca o movimento de ascensão ao mundo das idéias, ao Logos, pode-se dizer. Associado à doutrina da anamnesis, da rememoração do que a alma discernia em sua existência pré-temporal no mundo das Idéias, Eros desperta a força para rememorar, que é impulsionada pela visão da beleza. A beleza possui esse poder porque é a mais brilhante e evidente de todas as Idéias, considera Platão no Fedro (249-251). A idéia da beleza é a última a ser esquecida e a primeira a ser rememorada quando se encontra sua imagem no mundo sensível. Na teoria de Marcuse, há uma diferença radical em relação à reminiscência proposta por Platão, uma vez que esta inclui também um esquecimento, o esquecimento da forma sensível. Marcuse mantém, contudo, o caráter erótico da beleza – e sua capacidade de pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 176, dezembro/2003 (1984, p. 434, n. 77). De acordo com Marcuse (1969), em Platão “o impulso biológico converte-se num impulso cultural” (p. 185). A ubíqua fusão, apresentada por Freud, da pulsão erótica (princípio essente) com a pulsão de morte (negação do ser) é análoga à noção metafísica de ser e não-ser na teoria platônica. A finalidade erótica de sustentar o corpo como sujeito e objeto de prazer gera seus próprios projetos para realizar-se, e requer refinamento do organismo e intensidade da percepção (Aisthésis). Essas atividades associam os indivíduos às “unidades maiores”, modificando a pulsão sem desviála de sua finalidade. Cria-se cultura por meio da sublimação, mas esta acontece numa rede libidinal em expansão. Trata-se de sublimação desrepressiva: a repressão é superada, intensivamente, pela desrepressão. “Não que Eros é Ágape, mas Ágape é Eros” (ibid., p. 184). Quando Marcuse apresenta a possível identidade entre Eros e Ágape, parece evidente que sua intenção é revelar a origem erótica da civilização. E, também, a transformação da sexualidade em Eros como sublimação desrepressiva, quando o desvio da sexualidade, de seus objetos mais imediatos, implica sua maior amplitude e intensidade. O filósofo parece estar empregando Ágape no sentido de “banquete”, realização sofisticada da civilização que ritualiza o ato natural de alimentar-se, como metáfora desse processo e para revelar sua raiz erótica. Mas é interessante lembrar o sentido primeiro do termo αγαπη, que é justamente “amor”. Sentido depois ampliado para amor entre marido e mulher, entre deuses e homens, entre irmãos; e, em seguida, para a love-feast dos primeiros cristãos, que incluía uma refeição >39 pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 176, dezembro/2003 artigos trânsito (transe?) entre áreas, tradicionalmente, consideradas antagônicas. A beleza, “idéia central nas estéticas clássicas, invoca a sensibilidade tanto quanto a racionalidade, o princípio de prazer e o princípio de realidade“ (Marcuse, 1970, p. 128). >40 Referências BRUN. Empédocle, le Philosophie de l’Amour e de la Haine. Paris: Seghers, 1966. FREUD , Sigmund. Gesammelte Werke – G.W. Frankfurt: Fischer Verlag, 1969. Tradução brasileira: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976. _____. (1922 [1920]). Jenseits des Lustprinzips. GW. Op. cit. v. 13; na tradução brasileira: Além do princípio do prazer. ESB. Op. cit.v. XVIII. _____. (1923). Das Ich und das Es. GW. Op. cit. v. 13; na tradução brasileira: O ego e o id. ESB. Op. cit. v. XIX, p. 56. _____. (1933 [1932]). Angst und Triebleben. In: Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. GW. Op. cit. v. 15; na tradução brasileira: Ansiedade e vida instintual, Conferência XXXII das Novas conferências introdutórias à psicanálise. ESB. Op. cit. v. XXII. _____. (1937). Die endliche und die unendliche Analyse. GW. Op. cit. v. 16; na tradução brasileira: Análise terminável e interminável. Esboço de psicanálise. ESB. Op. cit. v. XXIII. _____ (1940 [1938]).Triebelehre. In: Abriss der Psychoanalyse. GW. Op. cit. v. 17; na tradução brasileira: A teoria das pulsões. Esboço de psicanálise. ESB. Op. cit. v. XXIII. K ELLNER, Douglas. Marcuse and the Crisis of Marxism. Los Angeles: UCLA Press, 1984. LEBRUN, Gérard. Os dois Marcuse. In: Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983. M ARCUSE , Herbert. Eros and Civilization: a Philosophical Inquiry into Freud. Boston: Beacon Press, 1955. Tradução brasileira: Eros e cvilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. _____. Art as a form of reality. In: FRY, Edward (Ed.). On the Future of Art. New York: Viking Press, 1970. PLATÃO. O banquete. Trad. José Cavalcanti de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Os Pensadores). _____. Fedro. In: Diálogos I . Trad. Jorge Paleikat. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1970. PRADO Jr., Bento. Entre o alvo e o objeto do desejo: Marcuse, crítico de Freud. In: Filosofia da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1990. Artigo recebido em maio/2003 Aprovado para publicação em novembro/2003 C l í n i c a Dimensão Dando continuidade às suas atividades de 2003, a Clínica Dimensão convida para: CICLO DE PALESTRAS EM PSICANÁLISE III 9 o Encontro, di as 19 e 20 de dezembro dias Tema: NOVAS CONFIGURAÇÕES SUBJETIVAS – NOVAS DEMANDAS NA CLÍNICA PSICANALÍTICA Docente: Elizabeth Cruz Müller CINEMA & PSICANÁLISE III 9 o Encontro, di a 12 de dezembro dia Tema: O EU E O OUTRO Filme: Genealogias de um crime Rua 1121 Qd. 217 Lt. 10, n. 249 – Setor Marista 74175-120 Goiânia, GO Fones: (62) 242-1366 / 281-4135 e-mail: [email protected] site: dimensao-psi.com.br