Universidade do Estado do Rio de Janeiro Faculdade de Educação

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Ortóptica, Oralidade e o Letramento de Brasileiros Indígenas
VIVIAM KAZUE ANDÓ VIANNA SECIN
Rio de Janeiro
Julho / 2007
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RESUMO
A educação inclusiva impõe uma reflexão a respeito dos diferentes aspectos
relacionados à oralidade e ao processo de alfabetização e letramento dos diferentes
sujeitos de uma sociedade em suas especificidades biopsicossociais, culturais e
antropológicas. O desenvolvimento global de um indivíduo é influenciado por diferentes
fatores, sendo fortemente relacionado a sua experiência visual desde o nascimento,
possibilitando a existência de diferentes modos de representação mental, diferentes
modos de pensar e agir no mundo. A busca pelo conhecimento através da leitura e da
escrita exige, entre outros aspectos, uma prontidão visual baseada na maturação de
funções oculosensoriomotoras, objeto de estudo da Ortóptica, não necessariamente
universal e, se inadequada, capaz de gerar barreiras visuais funcionais no percurso
educacional e de formação profissional. Sendo a visão influenciada tanto por aspectos
inatos quanto adquiridos durante os primeiros anos de vida, esta pesquisa objetiva
investigar a existência de uma visão binocular socialmente determinada e sua relação
com o processo de letramento, o que apontaria para a existência de uma Etnortóptica
dos distintos sujeitos brasileiros, pelo estudo comparativo da função binocular de
sujeitos urbanos da cultura escrita e de sujeitos indígenas de cultura predominantemente
oral.
Palavras-chaves: Ortóptica, Letramento, Educação Indígena, Visão
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Introdução
A visão de uma criança é um dos mais importantes instrumentos de aquisição do
conhecimento, influenciando seu modo de pensamento, sua visão de mundo, seu
comportamento e seu processo de letramento e desenvolvimento global. A adequada
experiência visual desde a pequena infância propicia a maturação e o desenvolvimento
pleno das funções oculares inatas, possibilitando obter o máximo de informação do
mundo, gerando um arquivo rico e dinâmico de dados a serem armazenados no cérebro
e associados aos demais sentidos, para serem utilizados nos diferentes momentos da
vida.
A visão é uma função inata que necessita de uma experiência adequada pósnatal para o seu pleno desenvolvimento. A partir da experiência visual, distintas funções
visuais amadurecem e se estabelecem, possibilitando o uso dos olhos com maior
qualidade e eficiência. Fatores ambientais podem interferir no processo de
desenvolvimento visual (VON NOORDEN, 1996:5-7), em seu período de
amadurecimento que se dá desde o nascimento até ao redor dos oito anos de idade,
sendo um período vulnerável a adaptações funcionais(SECIN, PFEIFFER e MESQUITA,
2004: 53-9; PRATT-JOHNSON e TILLSON, 1994:7).
A área de reabilitação ortóptica se propõe a estudar a visão binocular em seus
aspectos sensoriais e motores e suas relações com o desenvolvimento global do ser
humano, incluindo o processo de letramento e inclusão social. Nesse estudo, as áreas
da Ortóptica e da Educação se aproximam para a investigação da existência de
especificidades funcionais binoculares socialmente determinadas, com base na visão de
sujeitos brasileiros com distintas raízes antropológicas, distintos padrões de
comportamento social e diferentes modos de expressão e aquisição do conhecimento:
os sujeitos urbanos de cultura escrita e os sujeitos indígenas de cultura oral.
O processo de desenvolvimento global de um sujeito, independentemente de sua
raiz antropológica ou de sua especificidade sociocultural se pautará primordialmente nas
habilidades visuais, pois é a partir da visão que grande parte das informações do mundo
nos chega. Entretanto, o uso social da visão poderá levar a uma habilidade funcional
específica e própria a cada sociedade ou comunidade, facilitando ou dificultando o livre
trânsito dos diferentes elementos nos diferentes espaços e estilos de vida, marcados por
extremos de cultura desde a predominantemente escrita até a predominantemente oral.
Durante o processo de escolarização, a visão é exigida em padrões mais
discriminativos, exigindo uma excelência no controle funcional estático e dinâmico
binocular mesmo em idades pequenas. A visão utilizada no ato de leitura requer um
aparato sensorial e motor hiperespecializado, pois é exigido um trabalho sincronizado e
harmonioso de ambos os olhos nos movimentos, ajustando contrações musculares
específicas para o olhar nas diferentes direções do espaço e um adequado ajuste
muscular, estrutural e psicofísico para o controle dinâmico do foco das imagens de cada
olho às diferentes distâncias.
Estaríamos todos igualmente e simultaneamente aptos para aprender a ler?
Possuiríamos um padrão universal fisiológico para isso? Seriam as experiências visuais
e as visões de mundo de cada sujeito que compõe a sociedade brasileira determinantes
para o aprendizado da leitura? Estaríamos todos igualmente aptos para o letramento?
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Existiria uma Etnortóptica capaz de apresentar aspectos visuais socialmente e/ou
culturalmente determinados?
A visão em contextos diversos
Diferentes contextos sociais podem determinar experiências visuais próprias,
desde a tenra infância. Nos diferentes sujeitos brasileiros, a visão se desenvolve de
modos diferenciados desde o nascimento.
Indivíduos que vivem em um mundo cartesiano são estimulados a todo instante
para o uso da visão discriminativa, para o pensamento linear e para o reconhecimento
da importância da visão como instrumento de aquisição de conhecimento,
desenvolvendo desde cedo o conceito de visão social libertadora. (SECIN in SENNA,
2007: 339).
Indivíduos inseridos em contextos orais de transmissão do saber, fazem uso dos
olhos de modo mais globalizado, atentos ao todo, ao periférico, não sendo tão exigidos
na infância os esforços de visão proximal e particularizada, como a visão necessária à
leitura. Seu pensamento é narrativo, não linear, desenvolvendo uma visão de mundo
que lhe é própria, válida e necessária à vida em seu meio (op.cit.).
A visão central que é responsabilidade maior de uma área nobre da retina do
olho humano, fóvea e mácula, rica em fotorreceptores do tipo cone, torna-nos aptos a
reconhecer as cores e os contrastes mais finos, assim como a visão discriminativa
necessária ao reconhecimento de textos escritos. A visão binocular usada na leitura de
um livro se dá à pequena distância, exigindo movimentos binoculares finos e
harmoniosos e um perfeito ajuste de foco da imagem. (HUBEL, 1999, p.36, 162-164 ;
HURTT et cols, 1977, p.34-43)
A visão global, periférica e ampla dos sujeitos orais não necessariamente prioriza
as funções anteriormente citadas, mas, sobretudo a retina periférica, rica em
fotorreceptores do tipo bastonetes. Essas células fotorreceptoras detectam facilmente a
presença de objetos de tamanhos discretos no campo visual mais periférico, sendo
muito eficientes para detecção de objetos em movimento, eficientes também em
situações de baixa iluminação, mas pouco sensíveis à discriminação de contrastes
finos. (BEAR,CONNORS e PARADISO,2002:294; VON NOORDEN, 1996:115; SECIN,
2005: 54-9)
A possibilidade de existência de prontidões visuais diferenciadas e/ou
específicas a cada tipo de sujeito, oral ou letrado, ou seja, “padrões visuais de
normalidade” que lhes são próprios, nos faz refletir sobre possíveis barreiras para o
livre trânsito destes sujeitos plurais em seus distintos mundos.
Creio que seja difícil para uma criança da cultura oral adequar-se às exigências
fisiológicas da visão discriminativa da sociedade letrada, assim como para a criança da
cultura escrita adequar-se à capacidade panóptica dos sujeitos da comunidade oral, em
uma provável inadequação funcional de cada um ao modelo de pensamento e ao
modelo visual do outro, pela prévia experiência visual, já que nem todos os sujeitos de
uma sociedade recebem os mesmos estímulos oculomotores em sua infância, o que
exigiria um período de transição visual adaptativa, tanto para um quanto para outro.
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Essas crianças se encontrarão na escola, podendo apresentar dificuldades
adaptativas, estigmas e muitas vezes barreiras na aprendizagem, pois não se leva em
consideração que somos também diversos no olhar. Tais idiossincrasias visuais e suas
conseqüências escolares se apresentam cotidianamente nos consultórios de ortóptica,
pois prontidões visuais diversas anteriores ao processo de alfabetização, se não
consideradas podem gerar desagradáveis sintomas de fadiga binocular(astenopia) ao
esforço diário de visão discriminativa. Precisaríamos pensar novos caminhos, aceitar a
diversidade visual e facilitar a transição para a visão discriminativa rumo ao letramento.
“Educação para Todos” não se refere apenas à alfabetização, sendo mais ampla,
um processo interdisciplinar de ação no pensamento, o letramento, na formação de
leitores de mundo, seguindo identidades culturais próprias, de acordo com as diferentes
naturezas antropológicas e sócio-cognitivas. Letramento implica o reconhecimento da
diversidade cognitiva e do desenvolvimento de processos de aproximação em
contextos mentais metafóricos para inclusão social. (SENNA, 2003:2; SENNA,
2007:240)
“Saúde para Todos” requer uma ação interdisciplinar na promoção da saúde e
desenvolvimento social, sendo um dever e responsabilidade central dos governos,
compartilhada com todos os segmentos da sociedade(OMS:Declaração do
México,2000).
A proposta de cooperação entre as áreas da Saúde e Educação, associará
dados clínicos e funcionais a outros aspectos não-biológicos, para uma construção
social da saúde visual e global dos sujeitos, pela investigação da visão binocular de
sujeitos com distintos modos de pensamento, os sujeitos da cultura escrita e os sujeitos
da cultura indígena predominantemente oral, de forma a contribuir para o processo de
letramento dos diferentes sujeitos brasileiros em busca da promoção da “saúde e
educação para todos”, respeitando a diversidade cultural.
A Pesquisa
Essa pesquisa interdisciplinar está sendo desenvolvida no Programa de PósGraduação em Educação(Doutorado) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro(PROPED - UERJ) e pertence à Linha de Pesquisa “Linguagem, Cognição
Humana e Educação Inclusiva”, sob orientação do Prof. Dr. Luís Antônio Gomes
Senna, que se dedica ao estudo dos problemas teóricos-descritivos relacionados à
representação mental do processo de letramento (Senna, 2007).
A pesquisa tem como objeto de investigação a visão binocular de sujeitos
brasileiros com distintos perfis sócio-culturais e antropológicos e distintos modos de
aquisição e transmissão dos conhecimentos, pela oralidade ou pela leitura e escrita.
O objetivo geral da pesquisa é investigar a existência de aspectos visuais
binoculares específicos, antropologicamente e socialmente determinados entre sujeitos
brasileiros urbanos de cultura escrita e indígenas de cultura oral.
Objetiva-se especificamente realizar estudo comparativo de funções binoculares
ortópticas entre sujeitos dotados de distintos padrões culturais de aquisição do
conhecimento: o sujeito urbano de cultura escrita e o sujeito índígena guarani
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fluminense de cultura oral. Investigar a possibilidade de existência de uma Etnortóptica
que aponte distintos potenciais visuais para o Letramento e Inclusão Social.
A pesquisa indígena se desenvolverá no Rio de Janeiro, em Bracuí, em uma
localidade habitada por índios Guaranis Mbya, próxima ao litoral fluminense, na região
da Serra da Bocaina. A pesquisa com os sujeitos de cultura escrita se dará no
Município do Rio de Janeiro.
A pesquisa de base sócio-interacionista vygotskiana reúne as áreas de Ortóptica
e Educação, tendo como proposta metodológica a Pesquisa-Ação, envolvendo
diferentes atores sociais interdisciplinarmente e utilizando-se de recursos
metodológicos qualitativos e quantitativos, em um processo dinâmico de planejamento
e desenvolvimento de estratégias, ações, avaliações e análises, respeitando as
diretrizes internacionais e nacionais, as normas regulamentadoras nacionais para
pesquisa com sujeitos indígenas e as normas éticas para pesquisas envolvendo seres
humanos (OMS; FUNAI/MJ; CONEP/MS; CEP; CNS/MS:Resoluções 196/96 e 304/00).
Como recurso investigativo quantitativo, a pesquisa comparativa poderá fornecer
dados sobre a prontidão binocular, analisando funções visuais que integram e
interferem no modo de pensamento e no processo de letramento desses diferentes
sujeitos brasileiros. O estudo comparativo da função binocular se desenvolverá no Rio
de Janeiro, em indivíduos de ambos os sexos, envolvendo sujeitos urbanos do
Município do Rio de Janeiro de cultura escrita e sujeitos de cultura oral da comunidade
indígena Guarani Mbya de Bracuí, situada no Município de Angra dos Reis.
Essa pesquisa tem o apoio e pretende contribuir para o Programa de Estudos
dos Povos Indígenas (Pró-Índio) do Departamento de Extensão (SR-3) da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, coordenado pelo Prof. Dr. José de Ribamar Bessa Freire.
Segundo ele, essa investigação favorece uma maior compreensão sobre aspectos da
visão binocular dos sujeitos indígenas e para os estudos na área de Educação
Indígena.
Segundo FREIRE (1997), o conhecimento acumulado sobre a temática indígena
é ainda fragmentado e parcial, sendo um campo amplo para novas pesquisas de modo
a desenvolver uma melhor compreensão sobre a cultura, a oralidade, as habilidades, o
conhecimento e suas idiossincrasias.
Venho lançar uma reflexão sobre a possibilidade dos diferentes sujeitos que
compõem a sociedade brasileira de seguirem distintos padrões de experiência pósnatal visual, baseadas em suas diferentes raízes sócio-antropológicas, como membros
de comunidades ou grupos sociais predominantemente orais ou letrados.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/1996: artigos 32: §3º,78 e 79)
e a promulgação do Plano Nacional de Educação em 2001, reconfiguraram a função
social da escola indígena, tratando do fomento e o desenvolvimento de programas
integrados de ensino e pesquisa para a oferta de educação escolar bilingue e
intercultural, resgatando e preservando a memória histórica, a cultura, seus saberes,
possibilitando ainda o acesso às informações e ao conhecimento científico das demais
sociedades.
A educação escolar indígena deverá também fortalecer as práticas socioculturais e a língua materna de cada comunidade. Para isso, haverá a formação de
pessoal especializado, os professores indígenas, além do desenvolvimento de
currículos, programas e materiais didáticos específicos. Para isso, torna-se necessário
o incentivo às diferentes propostas de pesquisa que se direcionem ao estudo de
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aspectos inerentes à oralidade e suas implicações para o desenvolvimento de
propostas educativas inclusivas (LDB,1996).
Nessa pesquisa, proponho investigar aspectos fisiológicos que possam estar
relacionados aos distintos estilos de vida e culturas de cada grupo de sujeitos
brasileiros, orais ou letrados, de modo a subsidiar a proposição de uma intervenção
primária visual para o letramento que respeite as especificidades baseadas em fatores
de ordem biopsicossocioantropológicas.
Considerações Finais
A investigação sobre a existência de uma etnortóptica que aponte potenciais
binoculares socialmente e culturalmente determinados, abre espaço para a reflexão
interdisciplinar sobre a complexidade inerente aos processos educativos no Brasil,
repensando estratégias de ação e o reconhecimento de especificidades, ou seja, dos
distintos modos de pensar e agir dos brasileiros em seus percursos rumo ao letramento
e inclusão social.
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