Uma possível cura para a hepatite C A hepatite tipo C é uma doença grave. Entre 200 e 300 milhões de pessoas sofrem desta doença que aos poucos destrói o fígado do paciente. Ao contrario das hepatites A e B, para as quais já existem vacinas, o único tratamento conhecido para a hepatite tipo C tem efeitos colaterais sérios e não é eficiente em quase 50% dos casos. Por este motivo que a descoberta de uma nova molécula capaz de bloquear a ação do vírus é uma ótima notícia e a forma como esta molécula foi descoberta é uma lição de humildade para a ciência do século XXI. Até meados do século XX a grande maioria dos novos medicamentos era colocada em uso sem que se soubesse seu mecanismo de ação. A aspirina é um bom exemplo. A molécula foi sintetizada em 1853, seus efeitos antitérmicos foram descobertos em 1987 e sua comercialização iniciada em 1899. A patente expirou em 1917 e desde então o ácido acetyl-salicílico vem sendo vendido por centenas de companhias farmacêuticas. Mas levou quase um século para que o mecanismo através do qual a aspirina baixa a febre, cura dores de cabeça, e ajuda a evitar problemas cardio-vasculares, fosse elucidado. Isto só ocorreu entre 1960 e 1980. Nas últimas décadas a lógica da descoberta de novos medicamentos se inverteu. Grande parte dos medicamentos foi desenvolvida a partir do conhecimento gerado por médicos e biólogos. Primeiro os cientistas descobrem as bases moleculares da doença e os novos medicamentos são desenvolvidos a partir deste conhecimento. É o caso das drogas contra o HIV. O vírus foi descoberto, seu genoma seqüenciado e a partir da identificação de duas enzimas essenciais para seu funcionamento as companhias farmacêuticas desenvolveram moléculas que, ao inibirem estas enzimas, bloqueiam a ação do vírus. Em 1989, quando o vírus responsável pela hepatite tipo C foi descoberto, tudo levava a crer que rapidamente seríamos capazes de compreender como vírus funciona o que levaria ao desenvolvimento de medicamento eficientes. Mas isso não ocorreu, hoje sabemos muito sobre o funcionamento de diversas enzimas do vírus, mas até agora não havia sido possível desenvolver drogas capazes de bloquear sua replicação. Neste novo experimento os cientistas retomaram o método antigo. Primeiro desenvolveram uma linhagem de células nas quais o vírus é capaz de se multiplicar. Após cultivaram estas células em milhares de minúsculos tubos de ensaio, a cada tubo foi adicionado um dos milhares de compostos químicos existentes no laboratório. Se o composto diminuía a velocidade com que o vírus replicava eles investigavam se o composto agia sobre as enzimas mais conhecidas do vírus. Agora vem o truque. Caso o composto agisse sobre enzimas conhecidas ele era desprezado. Após testar aproximadamente um milhão de compostos distintos foi identificado uma molécula, denominada BMS-858, capaz de inibir a replicação do vírus por um mecanismo novo e desconhecido. Ao tentar modificar esta molécula para aumentar sua eficiência foi descoberto que um dímero da molécula era ainda mais eficiente. Este dímero, chamada de BMS-790052, é capaz de inibir a replicação do vírus em concentrações muito baixas. Foi descoberto que esta molécula atua ao se ligar a uma proteína do vírus chamada NS5A cuja função continua a ser um mistério. Apesar dos cientistas ainda desconhecerem o mecanismo de ação deste composto ele foi ministrado a um pequeno numero de pacientes com hepatite C. Uma única dosa de 100 miligramas reduz em 2.000 vezes a concentração do vírus e este efeito dura por até 12 dias. Com base nestes resultados foram iniciados os testes clínicos e se o BMS-790052 se comportar nos testes com milhares de pacientes como se comportou nos testes iniciais, em alguns anos teremos um composto que talvez seja capaz de curar a hepatite C. A maneira como este composto foi descoberto, ignorando deliberadamente tudo o que se sabe sobre o vírus, é uma lição de humildade para os cientistas. Apesar de todo o progresso da biologia molecular, mesmo quando analisamos organismos relativamente simples como o vírus da hepatite C, ainda somos incapazes de prever seus pontos vulneráveis. Isto demonstra que mesmo hoje, quando cientistas afirmam que são capazes de criar vida no laboratório, métodos clássicos de identificação de novos medicamentos ainda tem seu lugar no arsenal das companhias farmacêuticas. Mais informações: Chemical genetics strategy identifies an HCV NS5A inhibitor with potent clinical effect. Nature vol. 465 pag. 96 2010 Fernando Reinach ([email protected])