SERVIÇO ALIMENTOS Comida de rua D ona Neves acorda às 6h30 da manhã todos os dias, passa no mercado para comprar pão e carne e chega quase às 10h em Pinheiros, bairro da zona oeste de São Paulo, onde pára seu carrinho de sanduíches há dez anos. Hoje, ela vende cerca de duzentos lanches por dia, entre cachorros-quentes, hambúrgueres e mistos-quentes. “E no fim do ano esse movimento dobra, porque há mais pessoas nas ruas”, diz, sorrindo. Mas nem sempre foi assim. Doze anos atrás, quando vendeu seu primeiro lanche aqui em São Paulo, a baiana passava por épocas difíceis. “Fiquei grávida e meu marido foi embora. Eu não tinha nada e precisava me virar.” Ela, então, alugou um carrinho no centro da cidade, mas o que vendia – dez lanches por dia – não pagava nem as quatro conduções diárias para ir de casa ao trabalho. Foi com a ajuda de um dos amigos que fez na profissão que ela conseguiu mudar seu “ponto” para Pinheiros, onde está até hoje. Aí a vida começou a melhorar. Depois de muita batalha ela conseguiu sua licença com a prefeitura e a clientela cresceu. É só dar meio-dia em ponto que o entorno do carrinho fica lotado. A história de dona Neves é a de muitos brasileiros que ganham a vida dessa maneira. Não há dados oficiais sobre o número de pessoas que vendem alimentos nas ruas, mas estima-se que 32 Revista do Idec | Novembro 2008 ILUSTRAÇÕES ROGÉRIO NEVES Acarajé, pastel, cachorro quente, hambúrguer, pipoca, sorvete, caldo de cana, pão de queijo... As opções são muitas e carregam um pouco da história de cada região. Devido ao preço bastante acessível e à disponibilidade, é difícil quem resista a essas tentações sejam milhões. Para a maioria deles, tudo começou com uma época de dificuldades, em que a única solução encontrada foi vender nas ruas o que sabiam fazer. E foi assim desde o início dessa atividade, que teve origem há quase trezentos anos. “A partir de meados do século 18, com o crescimento da população e para complementar o orçamento doméstico de seus senhores, algumas escravas – principalmente aquelas que moravam em Salvador e no Rio de Janeiro – saíam da cozinha para as ruas, levando comidas feitas em casa. Elas eram vendedoras ambulantes que percorriam as cidades com tabuleiros, vendendo beiju, cuscuz, bolinhos e outras iguarias”, afirma Wilma Maria Coelho Araújo, doutora em Tecnologia de Alimentos e integrante do grupo de pesquisa em gastronomia do Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília (UnB). Com o passar dos anos, já nos séculos 19 e 20, a chegada de estrangeiros dos mais diversos países trouxe para o Brasil uma variedade imensa de comidas – que não tardaram a chegar às ruas também. O mercado da alimentação evoluiu e passou-se a cozinhar “para fora”. Mais recentemente, o aumento do desemprego ou a dificuldade de conseguir um trabalho formal levou muitos outros brasileiros para a profissão. Sem contar, claro, a clientela – que cada vez mais precisa se alimentar de forma barata e rápida. “O gradual empobrecimento da população fez proliferar o consumo de alimentos preparados e vendidos em locais públicos. O hábito cultural, entretanto, já era muito popular, com as barraquinhas de sardinha, em Portugal; de chás, na Índia; de crepes, na França; de acarajé, cachorro-quente, beiju, churrasquinho, queijo de coalho, tacacá, pastel e frutas, no Brasil”, diz Wilma. GOSTINHO DE TRADIÇÃO Mais do que uma boa quantidade de comida para encher o estômago por preços que não costumam passar muito de R$ 1, a alimentação de rua é a identidade cultural de um povo, de uma região, de um país. Wilma dá exemplos, no Brasil: pão de queijo é do mineiro, tapioca é do nordestino, acarajé é do baiano. Em Manaus (AM), é o tacacá, espécie de sopa indígena servida em cuias negras. Revista do Idec | Novembro 2008 33 ALIMENTOS “É a preservação da nossa história”, diz. Estimativas da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) mostram que há pelo menos 2,5 bilhões de pessoas no mundo que consomem alimentos de rua. Pelo globo, as diferentes comidas também enchem o paladar e a tradição das populações. Uma campanha da Consumers International (CI) lançada há poucos meses pretende incentivar a preservação desse conhecimento e a garantia de acesso saudável ao alimento. No site da campanha (www.streetfood.org, em inglês) há muitos exemplos do que existe ao redor do mundo. No Peru, coco, chocolate, torta de limão e sorvete são as comidas de rua preferidas das crianças. Mas há uma variedade imensa também de salgados, com a característica comum de serem muito apimentados. Em geral, são produtos à base de batata, arroz e grãos. Em Moçambique, que fica no sudeste da África, os vendedores de comida de rua estão em todas as cidades e mesmo nas estradas entre elas. A variedade é imensa: peixe frito, carne assada, frutas, castanhas, guloseimas. Sempre há, também, vendedores de limão e de ovos. O visitante desavisado pode se perguntar o que são aqueles vendedores segurando caixas de ovos pelas ruas, até descobrir que o alimento já está cozido, pronto para a primeira dentada. Para quem compra, os vendedores quebram a casca na parte de baixo e colocam ali o tempero que o consumidor desejar: uma pitada de sal ou de piri-piri, a pimenta do país. É inegável a riqueza cultural de cada exemplo que pode ser dado. Mas há o lado perverso dessa situação, principalmente em países em desenvolvimento, como os africanos, os asiáticos e os latino-americanos. Como no Brasil, os vendedores de Moçambique estão ali para fugir do desemprego e tentar sobreviver. Por isso, cada vez mais pessoas se aglomeram nas estradas, vendendo todo gênero de produtos. Os vendedores desafiam veículos em movimento e chegam a atravessar as rodovias correndo com seus produtos na cabeça, para convencer o cliente, que está do outro lado, a comprar. Poucos países, no entanto, possuem políticas ou programas para melhorar essa situação e mesmo para incentivar a higiene na venda de alimentos nas ruas. Um bom exemplo é Cingapura, pequeno país do sudeste asiático, em que os vendedores foram transferidos para pequenos centros comerciais próximos de escritórios e de locais movimentados. Dessa forma, é mais fácil para os vendedores assegurar produtos saudáveis e, para o governo, controlar e fiscalizar a higiene. Na Malásia, situada na mesma região do globo, as autoridades oferecem um extensivo programa de incremento da infra-estrutura e de treinamento dos vendedores, inclusive distribuição de água para seus locais de trabalho. A mensagem da campanha da CI é exatamente essa: “a comida de rua é uma ótima maneira de prover de alimentos baratos e saborosos as pessoas que se movimentam pelas cidades, mas os vendedores precisam ter acesso a condições boas de higiene e ser treinados para garantir que a comida seja segura para aqueles que a experimentam”. Comércio de alimentos de rua VANTAGENS DESVANTAGENS Permite ao vendedor o uso de recursos locais; não há necessidade de muito capital inicial. ● Oportunidade de trabalho a indivíduos de qualquer idade e condição social. ● Fonte de renda a milhões de pessoas. ● Alimentos variados, acessíveis e de baixo custo. ● Possibilita a ingestão dos nutrientes necessários à saúde da população de baixa renda – que não teria como se alimentar fora de casa se não existissem os vendedores de comida de rua. Pode oferecer risco à saúde, devido à falta de higiene e à incorreta manipulação dos alimentos. ● Muitos dos profissionais não são reconhecidos pelas autoridades competentes. ● Atividade freqüentemente discriminada e considerada de baixo “status” social. ● Sistema de licença complexo e demorado. ● Inspeção sanitária pouco freqüente e ineficiente. ● 34 Revista do Idec | Novembro 2008 ● Pode fazer mal? U ma pesquisa recente do Ministério da Saúde revelou que, de 1999 a 2007, ocorreram 5.699 surtos de doenças transmitidas por alimentos, que afetaram 114.302 pessoas. Surpreendentemente, a pesquisa identificou que grande parte dos surtos foi decorrente do consumo de alimentos em casa, contra muito poucos oriundos de produtos vendidos por ambulantes. Apesar dos números, a comida de rua pode, sim, trazer problemas de saúde aos consumidores, que devem tomar certos cuidados. “A infra-estrutura é precária, pois menos da metade desses estabelecimentos tem água potável disponível, e menor ainda é o número de estabelecimentos com sanitário acessível. Muitos manipuladores de alimentos não destinam corretamente o lixo produzido em seu comércio, e igual proporção não possui sistema de refrigeração adequado para armazenar os ingredientes. Finalmente, mas não menos importante, as mãos dos manipuladores de alimentos têm sido identificadas como fonte de contaminação por todo o mundo”, afirma Aída Couto Dinucci Bezerra, professora da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e organizadora do livro Alimentos de rua no Brasil e a saúde pública. Uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP, feita pela nutricionista Alessandra Lucca com vendedores de cachorro-quente, constatou exatamente essas questões. “Havia problemas em tudo o que se pode imaginar. O purê de batata ficava em temperatura ambiente. As bisnagas de maionese não eram limpas diariamente. Alguns fritavam as carnes e aqueciam as salsichas antes do momento de pico...”, afirma. E por que quem come na rua não passa sempre mal, então? “Pela alta rotatividade, acaba não havendo conseqüências”, diz. Não dá tempo de os alimentos estragarem. “A capacitação dos manipuladores e De onde vem o cachorro-quente? Embora a origem da salsicha seja alemã, o cachorroquente foi inventado nos Estados Unidos. Provavelmente, foi introduzido em 1904, por Arnold Feuchtwanger. Ele vendia as salsichas sem o pão e emprestava luvas para que os clientes as consumissem sem sujar as mãos. As luvas não eram devolvidas, e foi aí que ele resolveu criar um pãozinho para vender junto com as salsichas e proteger os dedos dos consumidores. O crédito para a criação do nome foi dado ao cartunista Thomas Morgan. Em um dia frio, um empresário que não conseguia vender seus sorvetes e refrigerantes pediu aos empregados que comprassem todas as salsichas do tipo dachshund que encontrassem e pães. Em menos de uma hora eles estavam vendendo as salsichas quentes com o pão. Enquanto vendiam, gritavam: “peguem suas ‘dachshunds’ enquanto estão quentes”. Ao ouvir isso, o cartunista fez um cartaz cuja figura era a salsicha latindo, quentinha, aninhada no pão. Como ele não sabia como se escrevia “dachshund”, escreveu hot-dog. O desenho foi um sucesso e, assim, nascia o termo cachorro-quente. Fonte: Alessandra Lucca/American Meat Institute proprietários, bem como o monitoramento da higiene nos pontos-devenda, deveria ser realizada pela fiscalização sanitária em parceria com as universidades”, afirma Aída. Além disso, os consumidores têm papel fundamental. “Se estiverem conscientizados de que devem compartilhar da responsabilidade de fiscalizar os pontosde-venda, a situação pode melhorar.” Mas não precisa sair por aí fiscalizando cada barraquinha que encontrar pela frente. É só dar uma olhada nos lugares em que você costuma comer. “Olhe por dentro do carrinho e no entorno. Se houver moscas voando, lixo aberto e muito farelo no chão é indício de que não há muita limpeza. Veja também se há um utensílio para cada tipo de alimento, se as bisnagas estão limpas, se o vendedor usa luvas etc.”, orienta Alessandra. Infelizmente, não há como verificar tudo, mas esses são bons sinais de lugares em que se pode confiar mais – ou não – para comer. PEGOU UMA INFECÇÃO? O alimento pode ser contaminado durante o transporte, o armazena- mento ou no preparo dos pratos. Isso pode desencadear diarréia, indisposição ou até mesmo uma grave intoxicação alimentar. “As pessoas mais sensíveis são os idosos, as crianças e os pacientes com doenças crônicas”, diz Antonio Carlos Valezi, gastroenterologista do Hospital Universitário de Londrina, no Paraná. De acordo com o médico, a intoxicação ocorre quando há ingestão de toxinas produzidas pelas bactérias. Essas toxinas atuam na parte interna do tubo digestivo, prejudicando a digestão e a absorção dos alimentos, e provocando diarréia. Já a infecção acontece quando as bactérias ingeridas penetram na parede do tubo digestivo, produzindo ulcerações, sangramento e diarréia. “Perda do apetite, náuseas e vômitos, dor abdominal com cólica, diarréia e dor no corpo são alguns dos sintomas [de ambas]. Pode, ainda, haver desidratação devido à grande perda de líquidos, com queda da pressão”, afirma Antonio Carlos. A dica para ficar bem, logo, é simples: hidrate-se ao máximo e evite alimentos de procedência desconhecida. Revista do Idec | Novembro 2008 35