A propósito do regime interno dos bolcheviques após Outubro: as

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A propósito do regime interno
dos
bolcheviques
após
Outubro: as frações públicas
Enio Bucchioni
Mal triunfada a revolução de Outubro na Rússia, uma polêmica
infernal explode no partido bolchevique. Segundo a descrição
de Pierre Broué, ela era levada outra vez por Kamenev e
diversos outros dirigentes do partido. O processo político em
torno desse debate em muito nos ajuda a compreender os motivos
do surgimento das frações públicas no partido de Lenine como
os bolcheviques lidavam com suas divergências políticas.
Em 29 de outubro, quatro dias após a insurreição, uma reunião
do Comitê Central, onde estão ausentes Lenin, Trotsky e
Stalin, aprova negociar uma coalizão governamental com os
mencheviques e socialistas revolucionários, partidos cujas
alas direita abandonaram o II Congresso pan-russo dos sovietes
que aprovou a insurreição e a tomada do poder. Os bolcheviques
Riazanov – presidente dos sindicatos de Petrogrado em
fevereiro – e Lunacharsky – comissário do povo para a Educação
– declaram estar de acordo com a eliminação de Lenin e Trotsky
do governo se esta for a condição para a constituição da
coalizão com todos os partidos socialistas.
Em nova reunião, o Comitê Central rechaça essa postura. Lenin
propõe a imediata ruptura de negociações. Já Trotsky quer
prossegui-las em busca de condições que darão garantias de
respondência aos bolcheviques no seio da coalizão com os
partidos que no congresso se opuseram ao poder criado pelos
sovietes. A condição seria que aceitassem reconhecer os
sovietes como um fato consumado, assumindo suas
responsabilidades a este respeito. A proposta de Trotsky é
aprovada no Comitê Central.
As frações publicas em luta
Apesar da vitória na proposta de Trotsky, nem todos se sentem
contemplados pela deliberação da direção. A partir dela, se
inicia, em publico, uma disputa política que extrapola as
fronteiras do partido. Segundo Broué
a minoria bolchevique não se resigna, pois crê que a
resolução do Comitê Central impedirá, de fato, qualquer tipo
de coligação no governo. Kamenev, que segue presidindo o
comitê executivo dos sovietes, propõe a demissão do conselho
dos comissários do povo exclusivamente bolchevique, presidido
por Lenin, e a constituição, em seu lugar, de um governo de
coalizão.[1]
Kamenev propõe, publicamente e por fora dos órgãos
partidários, a destituição do governo composto por Lenin e
Trotsky. Nada mais, nada menos! Em seguida, narra Pierre Broué
[o bolchevique] Volodarsky opõe a essa moção aquela que foi
adotada pelo comitê central. Durante a votação, numerosos
bolcheviques comissários do povo [equivalentes aos ministros
de um governo burguês] como Rikov, Noguin, Lunacharsky,
Miliutin, Teodorovich e Riazanov, assim como alguns
responsáveis do partido como Zinoviev, Lozovsky e Riazanov
votam contra a resolução apresentada pelo seu próprio
partido.
Lenin, num manifesto que se difunde por todo o país, chama os
dissidentes de desertores. Em outras palavras, o regime
interno dos bolcheviques vai para o espaço e as frações
políticas do partido se expressam publicamente. Segundo Broué,
Lenin não admite qualquer tipo de vacilação: se a oposição não
aceita as decisões da maioria, ela deve abandonar o partido
A cisão seria um fato extremamente lamentável. Contudo, uma
cisão honrada e franca é, na atualidade, mais preferível do
que uma sabotagem interna e o não cumprimento de nossas
próprias resoluções.[2]
Não houve a cisão. A oposição é condenada pelo conjunto dos
militantes e pelas passeatas de operários e soldados que
haviam aprovado a insurreição. Kamenev, Miliutin, Rikov e
Noguin assim como Zinoviev, seguem no partido. Segundo Broué,
Zinoviev escreve no Pravda de 21 de novembro de 1917
Nosso direito e nosso dever é advertir o partido de seus
próprios erros. Contudo, permanecemos com o partido.
Preferimos cometer erros com milhões de operários e soldados
e morrer com eles do que nos separarmos deles nesta hora
decisiva da história. Não haverá, não pode haver uma cisão no
partido.[3]
Os fatos acima descritos mostram com precisão como era
maleável o regime interno dos bolcheviques e como funcionava o
centralismo-democrático frente às questões políticas
transcendentais concernentes aos destinos da revolução de
Outubro. A democracia interna é elevada à enésima potência e
as opiniões divergentes são expostas publicamente, todos os
militantes são chamados a decidir e até mesmo a massa de
operários e soldados interveio nos rumos do partido. Assim era
o partido de Lenin. Assim não foi o partido de Stalin.
Os debates sobre a guerra ou paz com a Alemanha imperialista
Os tempos posteriores a Outubro colocaram os bolcheviques em
imensas discussões internas para poderem decidir os rumos da
primeira revolução socialista da história. Formaram-se, em
distintas ocasiões, grupos, tendências, frações internas e
frações públicas, como era, então, a tradição do partido
bolchevique.
Um dos casos mais importantes foi sobre a continuação ou não
da guerra contra a Alemanha imperialista. Desde o começo do I
Guerra Mundial, a ditadura tzarista havia feito um bloco
beligerante ao lado da França e Inglaterra contra a Alemanha,
Itália e o império austro-húngaro. Lenin, então exilado na
Suíça, redige um manifesto do Comitê Central do partido em que
afirma
Não há dúvida alguma de que o mal menor, desde o ponto de
vista da classe operária e das massas trabalhadoras de todos
os povos da Rússia, seria a derrota da monarquia tzarista que
é o mais bárbaro e reacionário dos governos, o que oprime o
maior número de nacionalidades e a maior proporção da
população da Europa e da Ásia.[4]
A revolução de outubro materializou o pensamento leninista. No
entanto, a derrubada do czar ainda manteve, em tese, a Rússia
na guerra contra o imperialismo alemão. Assim relata Broué
para
o
governo
bolchevique,
a
paz
se
converte
numa
necessidade absoluta, tanto para satisfazer o exército e o
campesinato, como também para ganhar tempo com vistas à
revolução na Europa.
A manobra é delicada: é preciso,
simultaneamente, negociar (a paz) com os governos burgueses e
lutar politicamente contra eles, isto é, utilizar as
negociações como uma plataforma de propaganda revolucionária.
Há que se evitar qualquer aparência de compromisso com um ou
com o outro dos bandos imperialistas.[5]
As negociações se iniciam na cidade de Brest-Litovsky em
novembro de 1917, ou seja, imediatamente após a revolução,
entre uma delegação russa e uma alemã, já que o outro bando
imperialista – França e Inglaterra, aliados dos czares – se
negou a delas participar. Um armistício é assinado em 2 de
dezembro, permanecendo os exércitos russo e alemão inamovíveis
em suas respectivas posições territoriais. As conversações de
paz começam em 22 de dezembro e Trotsky é designado pelo
governo soviético para encabeçar a delegação russa.
Em 5 de janeiro, o governo alemão, através do general Hoffman,
coloca na mesa a proposta do imperialismo: a Polônia,
Lituânia, Rússia branca e metade da Letônia – todos eles
territórios da então Rússia –devem permanecer ocupadas pelo
exército alemão. É dado aos soviéticos apenas dez dias para
dizer se aceitam, sim ou não. Se sim, a paz é assinada. Se
não, a guerra continua.
As três posições do comitê central dos Bolcheviques
Segundo Broué, a delegação russa abandona Brest-Litovsky com
uma posição baseada nas propostas de Trotsky
Devem os bolcheviques ceder ao facão que ameaça com decapitálos? Podem opor resistência, como sempre disseram que fariam
em semelhante circunstância, declarando a ‘guerra
revolucionária’? Nem Lenin, que defende a primeira dessas
posturas, nem Bukarin, partidário da segunda, conseguem a
maioria no Comitê Central, que, por último, resolve seguir a
posição de Trotsky por 9 votos a 7, que é colocar um fim à
guerra sem assinar a paz.[6]
No entanto, no dia 17 os alemães lançam um grande ofensiva nas
frentes de guerra. Lenin propõe ao Comitê Central retomar as
negociações de paz com a Alemanha. Novamente Lenin perde e sua
proposta é derrotada por 6 a 5. Bukarin se junta a Trotsky e
impõem retardar o recomeço das negociações de paz até que
fique claro o rumo da ofensiva alemã e seus reflexos no
movimento operário dos dois países.
No dia 18 o Comitê Central volta a se reunir, já que o avanço
das tropas alemãs é profundo e rápido na Ucrânia, país que, a
época, fazia parte da Rússia. Lenin, ao saber disso, propõe
recomeçar as negociações, Trotsky o acompanha nessa votação e
ela é aceita por 7 votos a 5.
o governo soviético, em consequência, tomará de novo contato
com o Estado Maior alemão, cuja resposta chega no dia 23 de
fevereiro. As condições se tornaram ainda piores… Desta vez
se exige a evacuação da Ucrânia, Livônia e Estônia. A Rússia
vai ser privada de 27% de sua superfície cultivável, de 26%
de suas vias férreas e de 75% de sua produção de aço e de
ferro.[7]
O tratado que mutila a Rússia é assinado no dia 3 de março de
1918 em Bret-Litovsky. A retirada da guerra foi um dos
principais objetivos da revolução e uma das prioridades do
recém-criado governo bolchevique. Impopular entre os russos
devido às imensas perdas humanas – cerca de quatro milhões de
mortos- essa guerra havia trazido fome para todo o povo e uma
desmoralização e decomposição do exército do czar frente às
derrotas nos campos de batalha. Contraditoriamente, ela foi um
dos fatores vitais para o sucesso de Outubro, já que os
soldados, em sua imensa maioria camponeses, foram ganhos para
a política dos bolcheviques pela oposição principista do
partido ao confronto armado.
Os termos do Tratado de Brest-Litovski eram humilhantes.
Através deste, a Rússia abria mão do controle sobre a
Finlândia, Países Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia),
Polônia, Bielorrússia e Ucrânia, bem como dos distritos turcos
de Ardaham e Kars, e do distrito georgiano de Batumi. Estes
territórios continham um terço da população da Rússia, metade
de sua indústria e nove décimos de suas minas de carvão.
O regime e os ‘comunistas de esquerda’
A decisão do Comitê Central de aceitar a paz com os
imperialistas alemães, longe de aquietar os bolcheviques e
fazer com que a minoria acate a decisão da maioria (como
muitos poderiam pensar que funcionava o regime interno e o
centralismo-democrático dos revolucionários de 1917) provocou
ainda mais discussão no partido. Bukarin e Uritsky, ambos
membros do Comitê Central, junto com Piatakov, presidente dos
Comissários do Povo em Kiev e Vladimir Smirnov, dirigente da
insurreição de outubro em Moscou. O grupo se afasta de suas
funções e retomam a liberdade de agitação dentro do partido.
Segundo Broué
o comitê regional de Moscou declara que deixa de reconhecer a
autoridade do Comitê Central até que se leve a cabo a reunião
de um Congresso extraordinário (…)
Baseado numa proposta de Trotsky, o Comitê Central vota uma
resolução que garante a Oposição o direito de se expressar
livremente no seio do partido. O jornal moscovita dos
bolcheviques, o Social Democrata, empreende uma campanha
contra a aceitação do tratado (de Brest- Litovsky) desde o
dia 2 de fevereiro. A República soviética da Sibéria se nega
a reconhecer a validade (do tratado de paz) e permanece em
estado de guerra coma Alemanha.[8]
Essa descrição de Broué mostra toda a versatilidade o regime
interno dos partido enquanto Lenin viveu; como é necessário
adaptar essa estrutura organizativa aos desígnios da luta de
classes e às decisões que todos os militantes do partido
deveriam tomar.
Contrariamente ao que o stalinismo divulgou posteriormente,
não há Comitê Central todo-poderoso e monolítico, não há
“direção histórica” de Lenin e Trotsky que conseguiriam,
organizativamente, impor suas posições de cima a baixo pelas
goelas dos militantes.
Diga-se de passagem, não há nada de excepcional nessa
divergência que se materializou em frações públicas. Não seria
a primeira vez, como já vimos nas discussões sobre a
insurreição, nem a última em que as travas organizativas
pudessem impedir as discussões entre os bolcheviques. Mais a
frente, nas páginas de Broué sobre o partido bolchevique,
pode-se ver que é sob a batuta do stalinismo que se encerrará
toda e qualquer discussão no seio do partido. Dessa maneira, o
bolchevismo será sepultado. Como diria Trotsky cerca de 10
anos depois, Stalin será o coveiro da revolução.
Narrando a logica das frações publicas, Broué afirma
no dia 4 de março, o comitê do partido em Petrogrado publicou
o primeiro número de um jornal diário, o Kommunist, cujo
comitê de redação está formado por Bukarin, Karl Radek e
Uritsly, e que será, daqui em diante o órgão público da
oposição, cujos integrantes serão conhecidos como ‘comunistas
de esquerda’.[9]
O Congresso do partido é realizado, tal qual pleiteia a
oposição, mas estes ficam em minoria e suas teses são
derrotadas. Nesse Congresso, entre outras coisas, a fração
bolchevique
abandona
em
definitivo
o
nome
de
social–democracia, que daqui em diante ficará propriedade até
os dias atuais de todos os mencheviques que rastejam por esse
mundo afora. É adotado o nome de partido comunista russo
(bolchevique).
A continuidade legal da fração após o Congresso
No entanto, as discussões sobre fazer ou não a guerra
revolucionária contra a Alemanha imperialista seguem. O jornal
público da oposição, o Kommunist passa a ser semanal. Porém, o
panorama muda radicalmente pouco tempo depois. Em 25 de maio
de 1918, estala a guerra civil contra os inimigos da revolução
de outubro que se sublevaram militarmente, guerra que
permanecerá por cerca de dois anos e meio.
Em
junho,
a
ala
esquerda
do
partido
Socialistas
Revolucionários, os SR, que fazia parte do governo soviético,
“decide empreender uma campanha terrorista com o objetivo de
que se recomece as hostilidades contra a Alemanha. Por ordem
do seu Comitê Central, um grupo de SR de esquerda, do qual faz
parte o jovem Blumkin, membro da Checa, comete um atentado com
êxito contra a vida do embaixador da Alemanha, o conde Von
Mirbach. Outros SR de esquerda, que também pertencem à Checa,
prendem alguns responsáveis comunistas e tentam provocar um
levantamento em Moscou.”[10]. Os comunistas de esquerda, com
Bukarin à frente, vão participar da repressão aos SR de
esquerda e se integram por completo nas frentes de batalha da
guerra civil.
Um ano mais tarde, em 13 de março de 1919, Segundo Broué,
Lenin assim se referirá aos episódios das divergências sobre o
tratado de paz com a Alemanha imperialista e sobre os
“comunistas de esquerda” dos bolcheviques
A luta que se originou em nosso partido no ano passado foi
extraordinariamente proveitosa: suscitou inumeráveis choques
sérios, porém não há luta que não tenha choques.[11]
Assim Lenin compreendia as divergências internas, como algo
fecundo, positivo para o partido. A democracia era o prérequisito para a unidade na ação e o mais eficaz antídoto
contra toda e qualquer divisão do partido. Assim era o partido
bolchevique!
Bibliografia
BROUÉ, Pierre. El partido bolchevique, Editorial Ayuso, 1973,
Madrid
LENIN, Vladimir. Oeuvres Complétes, Tomo XXVI,
[1] Broué, 139
[2] Lenin, 293
[3] Broué, 139
[4] Broué, 107
[5] Broué, 155
[6] Broué, 156
[7] Broué, 157
[8] Broué, 158
[9] Broué, 158
[10] Broué, 162
[11] Broué, 162
Centralismo
versus
democracia? Reflexões sobre o
regime leninista de partido
Henrique Canary
O artigo de Enio Bucchioni “A propósito do regime interno dos
bolcheviques antes de fevereiro de 1917”, publicado
recentemente no Blog Convergência, retoma um apaixonante e
decisivo debate acerca das características mais profundas do
regime leninista de partido. Trata-se de uma excelente
contribuição, que deve ser conhecida por todos os ativistas,
jovens e trabalhadores que ora ingressam na luta social. Sem a
superação dos mitos stalinista e liberal sobre o Partido
Bolchevique, não é possível construir uma organização
socialista e revolucionária à altura dos desafios colocados
por este início de século.
A publicação de “A própósito…” coincidiu para mim com a
finalização de um texto sobre o qual já vinha trabalhando há
algum tempo e que acreditei conveniente publicar agora, de
forma que se pudesse estabelecer um certo “diálogo” entre
todos que assim o desejarem.
A ideia que desenvolvo abaixo não é nem original, nem inédita.
Em certa medida, ela esteve presente nas discussões do
Seminário Internacional de Organização e Estrutura Partidária,
promovido pelo PSTU e pela LIT-QI (Liga Internacional dos
Trabalhadores – Quarta Internacional) em janeiro de 2014. Os
debates desse seminário já se encontram publicados na revista
Marxismo Vivo Nº 5 (em espanhol), que aguarda publicação em
português. A única coisa que fiz foi, portanto, misturar
algumas ideias minhas com ideias de muitos outros camaradas.
Nada mais.
Centralismo e disciplina na concepção bolchevique de partido
Em 1973, o trotskista argentino Nahuel Moreno, fundador da
LIT-QI, travou uma longa e complexa polêmica com outro
dirigente da Quarta Internacional, o belga Ernest Mandel.
Intitulado originalmente “Um documento escandaloso”, o extenso
trabalho de Moreno acabou se tornando mais conhecido como O
partido e a revolução, e foi editado na forma de livro
inúmeras vezes e em diversos idiomas. Nele, Moreno travava uma
série de debates teóricos, políticos e estratégicos contra as
concepções então predominantes na IV Internacional, em cuja
direção central se encontrava Mandel. Entre os vários temas
tratados por Moreno, estava o problema do centralismo
democrático, mais especificamente, a relação entre centralismo
e disciplina. A certa altura do livro, Moreno diz:
“Mas a fórmula ‘centralismo democrático’ compõe-se de dois
pólos que, no limite, são antagônicos: o mais absoluto
centralismo significa que a direção resolve todos os
problemas – desde teoria e caracterizações até os mais
ínfimos detalhes táticos, passando pela linha política geral.
Quando isso é levado à prática, a democracia desaparece.
Simultaneamente, a mais absoluta democracia leva a que todos
esses mesmos problemas resolvam-se através de discussões que
só podem acontecer num permanente estado coletivo de
deliberação. E, com isso, desaparece o centralismo.
A proporção com que cada elemento contribui para essa
combinação, a cada momento, não pode ser fixada de antemão.
Isto não é uma receita nem uma fórmula aritmética. Não é
possível estabelecer, por exemplo, que o partido seja
constantemente 50% centralista e 50% democrático, ou algo
parecido. Nossos partidos são organismos vivos, em processo
permanente de construção, razão pela qual o centralismo
democrático é uma fórmula algébrica. A combinação específica
entre os elementos centralista e democrático varia de acordo
com o momento da construção partidária e, em cada momento,
deve ser cuidadosamente redefinida.”[1]
O fragmento acima citado possui uma ideia extremamente correta
e útil: a de que o centralismo e a democracia não são
constantes imutáveis, mas sim variáveis dentro do regime do
partido. Ou seja, às vezes o partido é mais democrático, e às
vezes menos. Às vezes é mais centralizado, e às vezes menos.
Com isso todos concordarão porque é uma verdade evidente
comprovada pela prática de todo e qualquer partido
revolucionário.
Mas junto com essa ideia correta está embutida uma outra, em
nossa opinião errada: a de que a democracia e a disciplina
variam uma em relação à outra, ou seja, de que são, em última
instância, antagônicas, “dois polos”, de que quanto mais
centralismo, menos democracia e vice-versa. Acreditamos que
tal oposição entre centralismo e democracia é imprecisa e pode
alimentar inúmeras confusões. Vejamos.
Em que consiste a disciplina partidária? Ora, em primeiro
lugar, no cumprimento estrito das resoluções votadas. Mas se
essas resoluções são a expressão da vontade da maioria, então
o seu cumprimento é também uma garantia da democracia interna,
pois não há democracia se não há respeito às decisões da
maioria. Assim, Moreno acerta quando diz que a democracia e a
disciplina variam dentro do partido. Mas erra ao afirmar que
quando uma aumenta, a outra diminuiu. Na verdade, quanto mais
disciplinado é um partido de tipo bolchevique, mais
democrático ele é, pois as resoluções votadas são aplicadas
por todos. E o contrário: quanto mais democracia interna, mais
disciplinado tende a ser o partido, pois todos os militantes
participam ativamente do processo de elaboração e consideram,
portanto, a política adotada como fruto também de sua
atividade, de suas opiniões, de suas críticas etc. Então, os
militantes se jogam com mais garra para a atividade partidária
e isso fortalece a disciplina, que será a garantia de mais
democracia posteriormente etc. Trata-se de um verdadeiro
“círculo virtuoso”, e não de uma contradição ou luta
permamente entre polos opostos. Se não há democracia interna,
a centralização tende a desaparecer e o partido se desagrega
em lutas fratricidas. Se não há disciplina, a liberdade de
discussão torna-se uma farsa, pois nenhuma decisão tomada
precisa ser realmente aplicada. É isso que nos permite afirmar
que o Partido Bolchevique de Lenin, que foi o partido mais
disciplinado da história, era também extremamente democrático.
Trotski diz:
“O regime interno do partido bolchevique é caracterizado
pelos métodos do centralismo democrático. A união dessas duas
noções não implica qualquer contradição. O partido velava
para que as suas fronteiras se mantivessem estritamente
delimitadas, mas entendia que todos os que penetrassem no
interior dessas fronteiras deviam usufruir realmente o
direito de determinar a orientação da sua política. A livre
crítica e a luta de idéias formavam o conteúdo intangível da
democracia do partido. (…) A clarividência da direção do
partido conseguiu, muitas vezes, atenuar e abreviar as lutas
de fração, mas não podia fazer mais. O Comitê Central
apoiava-se sobre essa base efervescente e dela recebia a
audácia para decidir e ordenar. A manifesta justeza das
idéias da direção, em todas as etapas críticas, conferia-lhe
uma elevada autoridade, precioso capital moral da
centralização.”[2] (grifos meus, HC)
Veja-se que o CC bolchevique recebia sua autoridade “para
decidir e comandar” (centralismo) da “base efervescente”
(democracia). Ou seja, no Partido Bolchevique, democracia e
centralismo não eram polos opostos de uma contradição
dialética, como sugere Moreno. Ao contrário, a democracia era
a fonte da autoridade, do centralismo.
Assim, segundo Trotski, democracia e centralismo são opostos
apenas enquanto subsistem separadamente (“a união destas duas
noções não implica qualquer contradição”). Uma vez unidos,
estes dois fatores deixam de ser contraditórios e formam uma
síntese superior: o centralismo democrático. Isso não quer
dizer que, em determinados momentos, democracia e disciplina
não possam variar em sentido inverso, dando, aparentemente,
razão a Moreno. Mas se trata justamente disso: momentos
especiais. Essas inflexões momentâneas do regime interno
(durante ditaduras, combates de rua etc) não devem se refletir
em todo o processo de construção do partido. São episódios.
A ação prática como mediação entre disciplina e liberdade
A liberdade existente dentro de um partido revolucionário não
é uma concessão ao indivíduo ou às correntes internas de
pensamento e suas distintas sensibilidades. Estas existem e
devem seguir existindo. Mas não se trata delas. A liberdade de
discussão e crítica é, antes de tudo, uma necessidade da
elaboração política. O partido revolucionário impulsiona a
luta e o debate político e teórico interno porque quer
acertar. Assim, o próprio debate só tem sentido se conectado
com as necessidades da luta real, da intervenção partidária.
Ou seja, o partido leninista é a materialização da concepção
altamente marxista de que o conhecimento é social e de que a
verdade é um processo. Em um partido leninista, a verdade não
provém da discussão. Ou não provém apenas da discussão. A
discussão é um momento da busca pela verdade. Um momento
decisivo, mas ainda assim, um momento.
O partido leninista elabora políticas, que são sempre verdades
parciais, e as leva ao movimento de massas, onde serão
testadas. Da aplicação da política, surge um balanço, que
deverá subir pela estrutura do partido até a direção, que por
sua vez aperfeiçoará a política em base a esse balanço,
chegando a um patamar superior de verdade (uma nova política,
uma política ajustada), sem atingir jamais uma verdade ou
política absoluta, definitiva. Por isso, o partido bolchevique
rejeita o horizontalismo. Porque o horizontalismo corresponde
a uma concepção falsa de que a verdade seria obtida
diretamente da discussão, do simples choque de opiniões,
quando ela provém de fato da combinação entre discussão e
ação. E a ação mais eficaz é a ação centralizada. Por isso, a
combinação entre a livre discussão e a ação centralizada é a
melhor forma de se chegar à verdade. Daí se conclui que o
centralismo democrático, tal como o concebe Lenin, é o melhor
regime interno para um partido revolucionário. Como dizia Marx
nas “Teses sobre Feuerbach”:
“A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma
verdade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão
da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem
tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a
natureza interior [Diesseitigkeit] de seu pensamento. A
disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento –
que é isolado da prática – é uma questão puramente
escolástica.”[3]
Assim, a verdade do partido bolchevique provém dos milhares de
trabalhadores que recebem a sua política e respondem a ela
positiva ou negativamente, acolhem ou rejeitam seus slogans,
atendem ou ignoram seus chamados. A ação das massas é o
critério da verdade da política bolchevique.
Como era o Partido Bolchevique de Lenin?
A correta compreensão da relação entre centralismo e
democracia nos permite determinar a verdadeira característica
do Partido Bolchevique de Lenin (não a caricatura pintada pelo
stalinismo): a de que se tratava de um partido extremamente
centralizado, mas com enorme iniciativa na base e grande
democracia em todos os seus organismos. Como explica Broué:
“De fato, nenhum argumento é mais eficaz na hora de desmentir
abertamente a lenda do partido bolchevique monolítico e
burocratizado do que o relato destas lutas políticas, destes
conflitos ideológicos, destas indisciplinas públicas que,
definitivamente, nunca são punidas. (…) Lenin, que no calor
da discussão foi o primeiro a chamar Kamenev e Zinoviev de
‘covardes’ e ‘desertores’, uma vez superada esta etapa, é
igualmente o primeiro a manifestar veementemente seu desejo
de conservá-los no partido, onde são necessários e onde
cumprem um papel difícil de substituir. No fim de 1917, o
partido tolera mais que nunca os desacordos e inclusive a
indisciplina, na medida em que a paixão e a tensão das
jornadas revolucionárias os justificam. Enquanto há um acordo
sobre o mais fundamental, ou seja, sobre o objetivo, a
realização da revolução socialista, um acordo sobre os meios
para realizá-la não pode surgir a não ser da discussão e do
convencimento.”[4]
O clima de polêmica e debate existente dentro da fração
bolchevique pode ser comprovado por inúmeras e diversas
fontes. Ainda em 1894, em sua polêmica com o populista
Mikhailovski, Lenin afirmava:
“É rigorosamente correto que não existe entre os marxistas
completa unanimidade. Esta falta de unanimidade não demonstra
a debilidade, mas sim a força dos sociais-democratas russos.
O consenso daqueles que se satisfazem com a unânime aceitação
de ‘verdades reconfortantes’, essa tenra e comovente unidade,
foi substituída pelas divergências entre pessoas que precisam
de uma explicação sobre a organização econômica real, sobre a
organização econômica atual da Rússia, uma análise de sua
verdadeira evolução econômica, de sua evolução política e do
restante de suas superestruturas.”[5]
Mesmo na etapa inicial de construção do partido, quando
enfrentava a autocracia czarista, Lenin sempre se esforçou por
garantir ao partido o máximo possível de democracia interna e
iniciativa de ação na base. Pierre Broué, mais uma vez, nos
conta:
“Desde a época de Stalin, a maioria dos historiadores e
comentaristas insiste sobre o regime autoritário e fortemente
centralizado do partido bolchevique, e encontram nisto a
chave da evolução da Rússia durante mais de trinta anos. No
que se refere à forte centralização do partido, certamente
não faltam fatos que podem dar base às suas teses. No
entanto, as referências no sentido oposto são igualmente
abundantes.”[6]
Não faltariam citações de Lenin, Trotski ou Broué para apoiar
esse ponto de vista e aprofundá-lo. Mas não parece necessário.
Por último, diremos apenas que esta visão é amplamente
confirmada pelo próprio Moreno, que a precisa ainda mais,
distinguindo a relação entre disciplina e democracia para cada
nível da estrutura partidária:
“Na medida em que ascendemos no partido e vamos até os
organismos de direção, o centralismo democrático se aplica de
forma diferente. O centralismo e a disciplina são cada vez
maiores. (…) Porém, na medida em que vamos descendo, a
democracia é cada vez maior; quando chega à base é total,
quase dá a impressão de que é um partido anarquista. O
stalinismo desfigurou completamente a concepção de Lenin
sobre o centralismo democrático, montando partidos
monolíticos, em que, de cima até abaixo, todos pensam igual,
todos fazem a mesma coisa. (…) A disciplina, quanto mais
acima, mais severa; quanto mais abaixo, menos severa.”[7]
Poderia parecer que a expressão “quase dá a impressão de que é
um partido anarquista” é um um mero exagero de Moreno.
Opinamos que isso não é assim, que a frase é consciente e
resume corretamente um dos centros da concepção bolchevique de
partido. Em primeiro lugar, porque é uma afirmação cuidadosa.
Moreno não diz que “é” um partido anarquista. Diz que “quase
dá a impressão”. Em segundo, porque é uma afirmação correta em
seu conteúdo. O problema é como entender esse “partido
anarquista”. Obviamente, não se pode entendê-lo como um
partido indisciplinado, inorgânico, horizontal, sem direção
etc. Moreno quer dizer simplesmente que, nos organismos de
base de um partido de tipo bolchevique, deve primar um clima
de ampla liberdade de discussão. Todo militante revolucionário
deve saber que sua opinião é muito importante para o partido,
que aquilo que ele reflete de seu local de trabalho, estudo ou
moradia é a matéria-prima de toda a elaboração partidária.
Todo proletário que sente na pele a opressão e a exploração
deve encontrar no partido leninista um ambiente oposto ao do
seu local de trabalho: um ambiente onde ele é escutado, onde
suas ideias podem mudar o rumo dos debates. E tudo isso com um
único objetivo: encontrar a melhor política.
A verdadeira liberdade
Os marxistas rejeitam o conceito de liberdade entendida como o
“livre arbítrio” cristão. Para o marxismo, a liberdade nada
mais é do que a satisfação consciente das necessidades. Assim,
quando adotam o regime centralista democrático, os
revolucionários não estão fazendo nada além de reconhecer a
necessidade deste regime para a sua luta. Até certo ponto,
pode-se dizer que quem “decide” realmente o regime do partido
leninista é a burguesia e seu Estado, ou seja, os inimigos do
proletariado. Os revolucionários apenas aceitam o terreno e as
armas do duelo. É claro que qualquer partido revolucionário
tem a “liberdade” de realizar um congresso e mudar o regime
centralista democrático para um regime horizontalista, mas
isso seria um ato de ilusão, e não um ato de liberdade. Nas
belas palavras de Gramsci:
“Associar-se a um movimento significa assumir uma parte das
responsabilidades dos acontecimentos que se preparam, tornarse destes acontecimentos os artífices diretos. Um jovem que
se inscreve no movimento juvenil socialista cumpre um ato de
independência e de libertação. Disciplinar-se é torna-se
independente e livre. A água é pura e livre quando corre
entre as duas margens de um riacho ou de um rio, não quando
se espalha caoticamente no solo ou, rarefeita, paira na
atmosfera. Quem não segue uma disciplina política é por isso
matéria em estado gasoso ou matéria contaminada por elementos
estranhos: portanto inútil e danosa. A disciplina política
faz precipitar estas sujidades e dá ao espírito o seu melhor
metal, à vida uma finalidade, sem a qual não valeria a pena
ser vivida. Cada jovem proletário que sinta quanto é pesado o
fardo da sua escravidão de classe, deve cumprir o ato inicial
da sua liberdade, inscrevendo-se no Centro Juvenil Socialista
mais próximo de sua casa.”[8]
Assim sendo, a oposição “disciplina x liberdade”, “centralismo
x democracia”, “discussão x ação” etc só pode ser fruto de
erros práticos de conduta (erros bonapartistas, anarquistas
etc) ou erros teóricos na compreensão da própria natureza do
centralismo democrático e do conceito marxista de liberdade.
Em Lenin, no entanto, tal oposição nunca existiu.
Notas:
[1] MORENO, Nahuel, O partido e a revolução. São Paulo:
Desafio, 1996, pp. 268-269.
[2] TROTSKY, Leon, A revolução traída. São Paulo: Editora
Sundermann, 2005, pp. 111-112.
[3] MARX, Karl, “Ad Feurbach” [Sobre Feuerbach], in: MARX,
Karl e ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2014, p. 533.
[4] BROUÉ, Pierre, O partido bolchevique. São Paulo: Editora
Sundermann, 2014, pp. 101-102.
[5]
LENIN,
Vladimir,
Selected
works.
Moscou:
Progress
Publishers, 1948, vol. IX, p. 92. (Apud BROUÉ, 2014)
[6] BROUÉ, Pierre, Op. cit., p. 53.
[7] MORENO, Nahuel, “Como se aplica o centralismo democrático”
in: FELIPPE, Wiliam (org.), Teoria e organização do partido.
Coletânea de textos de Lênin, Trotsky e Moreno, São Paulo:
Editora Sundermann, 2006, p. 152.
[8]
Futura.
GRAMSCI, A. “Disciplina e libertá”. La Cittá
(https://www.marxists.org/italiano/gramsci/17/cittafutura.htm#
d – Consulta em 15 de abril de 2015)
A propósito do regime interno
dos
bolcheviques
entre
fevereiro e outubro de 1917
Enio Bucchioni
A revolução de fevereiro de 1917 que derrubou a ditadura
tzarista, segundo Broué, foi chamada de “insurreição anônima”.
Levantamento espontâneo das massas, surpreendeu a todos os
socialistas, inclusive os bolcheviques, cujo papel, como
organização, foi nulo durante o processo insurrecional. Apesar
de tal fato, seus militantes desempenharam individualmente um
importante papel no trabalho político no interior das fábricas
e nas ruas, como agitadores e organizadores.
O pano de fundo do levante de fevereiro de 17 era a miséria
das massas e a guerra. A fome, que reinava nas cidades, foi
consequência da participação do governo russo na sinistra I
Guerra Mundial. Nela, cerca de quatro milhões de soldados
russos morreram. O tzar, ao lado da França e Inglaterra e
contra a vizinha Alemanha, integrava a guerra imperialista
pela dominação e hegemonia do planeta.
Imediatamente após fevereiro, produz-se uma imensa fissura
política na fração bolchevique, provocando uma polêmica que
perdurará, na Rússia, até Outubro. Seu conteúdo e concepção,
porem, perdurará até nossos dias.
As teses de Abril
Stalin e Kamenev, recém-libertos da prisão, assumem a direção
do jornal Pravda e sustentam a posição de que a Rússia deveria
continuar na guerra. Segundo Broué, para ambos, “a função dos
sovietes era manter o governo provisório na medida em que siga
o caminho de satisfação das reivindicações da classe
operária”[1], ou seja, dão um “apoio condicional” ao governo
burguês de colaboração de classes. Em essência, Kamenev e
Stalin tinham a mesma posição dos mencheviques. Na conferência
dos bolcheviques efetuada no dia 1 de abril fica acertado se
considerar a reunificação com os mencheviques. Alguns membros
da direção dos bolcheviques que estavam na Rússia, como
Alexandra Kolontay e Alexander Shliapknov, são contrários a
essas posições.
Ao mesmo templo, Lenin, então exilado, escreve as famosas
teses de abril, iniciando a explosão de discussões no interior
da fração bolchevique. Todos os militantes são chamados a
decidir o futuro do partido e da revolução.
Dois aspectos deste caso são importantes de realçar. Primeiro,
haverá, além de dois Congressos e inúmeras reuniões do seu
Comitê Central, várias conferências da fração bolchevique
durante os oito meses de intervalo entre fevereiro e outubro.
Nelas, como sempre, os militantes participarão das discussões
de todas as questões candentes pertinentes à revolução.
Nenhuma discussão ficou bloqueada no interior da direção
central. Houve total democracia interna para resolver as
questões de estratégia e tática, bem como de concepções da
revolução, sem que as diversas alas ou agrupamentos formados
fossem expulsos por divergirem da linha oficial da maioria
ocasional dentro do Comitê Central. A bem da verdade, nenhuma
das alas em pugna quis expulsar a outra, nem tampouco qualquer
uma delas ameaçou cindir o partido.
Segundo, quando Lenin retornou à Rússia depois de muitos anos
de exílio, já ao descer do vagão blindado que o trouxe de
volta, defendeu publicamente uma linha política oposta ao da
Conferência de 1 de abril. Mais tarde, no dia 7, ela foi
publicada no jornal Pravda, o órgão de propaganda dos
Bolcheviques. Sob o título “Das Tarefas do Proletariado na
Presente Revolução”, suas famosas teses de Abril saíram do
espaço do debate interno, podendo ser lida pelo publico como
um todo.
Assim era a fração bolchevique e o seu regime interno, bem
como a materialização versátil do centralismo-democrático em
plena revolução em marcha. Será que Lenin não teria de esperar
o próximo Congresso ou Conferência dos bolcheviques, baixar
suas teses de abril após a abertura oficial do pré-Congresso,
e só depois disso, os militantes teriam acesso às divergências
dentro da direção? Se assim o fizesse, se assim fosse o regime
interno dos bolcheviques, não teria havido, com certeza, a
revolução de Outubro.
Uma vez mais, as questões políticas centrais antecedem
qualquer regime interno e suas normas organizativas. Diante de
tais polêmicas de vulto, o centralismo tem de ceder diante da
necessária democracia interna.
Dezessete dias depois da publicação das Teses no Pravda, foi
realizada uma conferência nacional. Ela contou com a
participação de 149 delegados eleitos por cerca de 80 mil
militantes, isto em um país cuja população era de cerca de 160
milhões de pessoas. Do ponto de vista das proporções, em abril
havia 1 bolchevique para cada 2 mil habitantes. Em outubro o
número de militantes bolcheviques passou para perto de 240
mil, o que significaria 1 bolchevique para cada 667
habitantes, cifras absurdamente altas se as comparássemos com
o Brasil atual.
Lenin jamais foi advertido por sua conduta no começo de abril.
O máximo que a direção fez foi uma publicação de Kamenev no
Pravda alegando que “tais teses representam apenas a opinião
pessoal de Lenin”[2].
Também se engana quem crê que Lenin ganhou de cabo a rabo a
totalidade das discussões propostas em suas Teses nessa
Conferência. Ele ganhou – junto com Zinoviev e Bukarin , por
ampla maioria – sobre a questão da guerra, ou seja, propondo a
retirada da Rússia da guerra inter-imperialista. Venceu sobre
a transferência do poder do Estado para os sovietes após um
trabalho paciente e prolongado de conquistar as massas para
tal fim. No entanto, obteve tão somente 60% dos votos na
resolução que afirmava a necessidade de empreender a via da
revolução socialista. E, finalmente, é derrotado no que se
refere à resolução de mudança de nome do partido, já que o
tradicional nome social-democrata significava, desde 1914, o
conceito de traidores e defensores das burguesias nacionais em
relação à I Guerra mundial dentro do movimento operário russo
e internacional.[3]
O regime interno às vésperas da insurreição
Nas Teses de Abril, Lenin afirmava:
enquanto estivermos em minoria, desenvolveremos um trabalho
de crítica e esclarecimento dos erros, defendendo ao mesmo
tempo a necessidade de que todo o poder de Estado passe para
os Sovietes de deputados operários, a fim de que, sobre a
base da experiência, as massas se libertem dos seus erros.[4]
Ou seja, não estava na ordem do dia a tomada do poder. Cerca
de quinze anos depois, Trotsky recordaria desse mês de abril
no livro “Revolução e Contra-Revolução” na Alemanha com as
seguintes palavras
Entretanto, o Partido chegou à insurreição de outubro,
passando por uma série de degraus. Durante a demonstração de
abril de 1917, uma parte dos bolcheviques lançou a palavra de
ordem: “Abaixo o governo provisório”. O Comitê Central logo
chamou à ordem os ultra-esquerdistas. Devemos, bem entendido,
propagar a necessidade de derrubar o governo provisório; mas,
não podemos ainda chamar as massas à rua por essa palavra de
ordem, pois estamos ainda em minoria na classe operária. Se,
nessas condições, conseguirmos derrubar o governo provisório,
não o poderemos substituir e, por conseguinte, auxiliaremos a
contra-revolução. É preciso explicar pacientemente às massas
o caráter antipopular desse governo antes que soe a hora de
sua derrubada. Tal foi a posição do Partido.[5]
Porém, cinco meses depois, refugiado na Finlândia devido às
perseguições das jornadas de julho, Lenin escreve em 13 de
setembro para o Comitê Central bolchevique, que se reuniria no
dia 15 sem a sua presença
Depois de haver conseguido a maioria no interior dos sovietes
das duas capitais (Petrogrado e Moscou), os bolcheviques
podem e devem tomar o poder (…) A história jamais nos
perdoará se não tomarmos o poder agora.[6]
Novamente a fração bolchevique se vê engalfinhada numa brutal
luta interna. Segundo Broué “Lenin está separado da maioria
dos dirigentes bolcheviques por uma distância igual a que
estava no mês de abril”. Mais adiante, as cartas de Lenin com
esse conteúdo “não conseguem convencer o Comitê Central.
Kamenev se pronuncia contrário às propostas de Lenin e exige
que o partido tome medidas contra qualquer tentativa de
insurreição. Trotsky é partidário da insurreição, porém pensa
que esta deve ser decidida pelo congresso pan-russo dos
sovietes. Por fim, a maioria dos membros do Comitê Central se
inclina pela posição de Kamenev, que propõe que sejam
queimadas as cartas de Lenin, deixando-as sem resposta.” Assim
era a receptividade que a maioria do CC dava às posições da
“direção histórica” do partido, a mais alta “autoridade”, ao
mais “prestigiado” dos bolcheviques. [7]
Esse relato expõe, uma vez mais, a fratura aberta na fração
bolchevique em torno da discussão sobre ir ou não à
insurreição e, se sim, de que maneira. Aí se misturam questões
de estratégia e tática sem precedentes. A luta interna
extravasa por completo os limites do regime interno, do
centralismo-democrático. Novamente a política ultrapassa a
esfera organizativa. De modo fracional, fora dos marcos do
regime interno, uma vez mais, Lenin começa a batalha política.
A história mostraria se tinha ou não razão em sua ação. Afirma
Broué
Lenin convence plenamente o jovem Smilga, presidente do
soviet regional do exército, marinha e dos operários da
Finlândia e começa a conspirar com ele contra a maioria do
comitê central e o utiliza para ‘fazer propaganda dentro do
partido’ em Petrogrado e em Moscou, examina com ele os mais
diversos planos para por em marcha a insurreição e bombardeia
o comitê central com uma série de cartas veementes que
denunciam os “titubeios” e “vacilações” dos dirigentes.[8]
Em 29 de setembro, menos de um mês antes da revolução, Lenin
“afirma que considera inadmissível que não se tenha respondida
às suas cartas e, mais ainda, que o Pravda censure os seus
artigos, pois isso tem toda uma aparência de ‘uma delicada
alusão ao amordaçamento e um convite a se calar”[9]. Assim, ao
insistir que suas posições sejam veiculadas no Pravda, Lenin
se propõe organizar uma fração política pública e ameaça se
demitir do Comitê Central de modo a poder, legalmente no
sentido do regime interno, ter o direito de fazer propaganda
nas fileiras do partido.
Afinal, em 10 de outubro, consegue, por 10 votos a 2, que o
comitê central aceite sua proposta sobre a insurreição. Os
dois votos contrários são de Zinoviev – braço direito de Lenin
durante os anos anteriores – e Kamenev. Segundo Broué, estes
dois ”desde o dia seguinte apelam contra a decisão do Comitê
Central em sua ‘Carta sobre o momento atual’, dirigida às
principais organizações do partido”.[10]
Uma vez mais esse episódio revela o funcionamento do regime
interno da fração bolchevique, que extrapola o senso comum de
todos os que viveram uma militância em partidos que se
reivindicam leninistas. Naquele momento, todos os militantes
da fração bolchevique são imediatamente convocados a
participar da discussão e decidir os rumos do partido. Os
bolcheviques não aprisionam as divergências na redoma do seu
Comitê Central e, via o centralismo-democrático ou por fora
dele, as posições divergentes chegam aos quadros partidários
e, daí, às bases. Tanto é assim que alguns poucos dias depois,
Zinoviev e Kamenev lançam suas posições contra a insurreição
publicamente no jornal de Maximo Gorki. Lenin, em cartas
enviadas ao partido, chama Zinoviev e Kamenev de “fura-greves”
e exige a expulsão deles, o que não é aceito pelo comitê
central após duras discussões.
Vitoriosa a insurreição, na tarde de 25 de outubro é
inaugurado o Congresso dos Sovietes que tomaria o poder em
suas mãos. Kamenev é proposto para ocupar a presidência do
órgão representando o partido bolchevique. Em 1919, Zinoviev é
eleito presidente do Comitê Executivo da Internacional
Comunista, a recém-criada III Internacional.
Assim se forjava a unidade e a coesão do partido. Assim eram
tratados os militantes que divergiam, nas ocasiões mais tensas
e fundamentais, sobre as questões políticas mais
transcendentais nos dias que abalaram o mundo.
Assim era a fração bolchevique.
Referencias Bibliográficas:
BROUÈ, Pierre. El partido bolchevique, Editorial Ayuso, 1973,
Madrid
LENIN, Vladimir. Obras Escolhidas em três tomos, Edições
Avante!,
1977,
Lisboa
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm
(consultado dia 16 de Abril de 2015)
TROTSKY, Leon. Revolução e Contra-Revolução na Alemanha,
Editora Lammert, 1968, Rio de Janeiro
BUCCHIONI, Enio. A propósito do regime interno dos
bolcheviques
antes
de
fevereiro
de
1917,
Blog
Convergência, http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=
4096 (consultado dia 16 de Abril de 2015)
Notas:
[1] Broué, 116
[2] Broué, 119
[3] Broué, 121
[4]
Lenin
–
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm
[5] Trotsky, 71
[6] Broué, 130
[7] Broué, 133
[8] Broué, 131
[9] Broué, 132
[10] Broué, 132
A propósito do regime interno
dos bolcheviques antes de
fevereiro de 1917
Enio Bucchioni
Recentemente foi traduzido e impresso para a língua portuguesa
pela editora Sundermann o precioso livro O Partido
Bolchevique, do renomado historiador francês Pierre Broué. Eu
havia lido em espanhol e, por mero acaso e curiosidade, voltei
a folheá-lo por inteiro. Inúmeras são as informações que nos
fazem saborear avidamente o texto de Broué do princípio ao
fim, conforme a brilhante resenha recentemente feita pelo
companheiro Ramsés Eduardo Pinheiro no Blog Convergência.
Nas primeiras dezenas de páginas de um montante de oitocentas
e cinquenta e nove há um assunto extremamente interessante e
apaixonante que talvez passe despercebido pelos leitores que
tenham pouca militância política ou que nunca foram adeptos de
algum partido. Trata-se da concepção do regime interno baseado
no centralismo-democrático criado por Lênin na fração
bolchevique do Partido Operário Social-Democrata Russo, POSDR, cujas linhas mestras estão delineadas no livro “Que Fazer”,
de 1902.
A bem da verdade, porque poucos sabem ou se recordam, antes de
1918, todas as correntes marxistas existentes na antiga Rússia
se encontravam no
POSD-R. No seu interior havia as mais
variadas frações, tendências e grupos ao redor das duas
principais correntes: os mencheviques e os bolcheviques.
Havia, no entanto, um só Partido. A rigor não havia o Partido
Bolchevique até alguns meses após a revolução de 1917, mas sim
a fração bolchevique do POSD-R. Somente em março de 1918 é que
foi fundado o Partido Comunista Russo (bolchevique).
Nas páginas de Broué está a descrição trágica da passagem do
regime interno baseado no centralismo e na democracia da época
de Lênin, para o centralismo burocrático ou de caserna, em
vigor desde a crescente dominação do stalinismo. A partir de
meados da década de 20, este centralismo burocrático
implantado no Partido Comunista da União Soviética, logo se
espalhou para todos os partidos da III Internacional,
incluindo aí o Partido Comunista do Brasil e o seu sucedâneo,
o Partido Comunista Brasileiro. Tal processo levou à morte da
democracia interna e o surgimento do poder absoluto e da
infalibilidade dos seus secretários-gerais tipo Stalin,
Prestes e demais burocratas.
Lênin vota contra a sua própria fração
Após a primeira revolução de 1905, derrotada, seguiu-se um
período de muitos anos de extrema reação por parte da ditadura
tzarista. O movimento operário entrou em profundo refluxo,
foram inúmeras as prisões de militantes do POSD-R e até mesmo
muitos deles abandonaram suas atividades partidárias. Segundo
Broué
“Apesar da desilusão de muitos militantes, bem como das
numerosas deserções, os bolcheviques voltam a empreender as
tarefas que haviam iniciado clandestinamente antes de 1905.
No entanto, eles também não se veem livres de divergências
internas. A maioria queria boicotar as eleições, desta vez
porque a lei eleitoral de Stolypin faz com que seja
impossível para a classe operária estar representada
equitativamente. Sobre essa questão, Lênin opinava que tal
palavra de ordem, lançada num momento de apatia e de
indiferença na classe operária, corre o risco de isolar os
revolucionários, que, em vez de disso, deveriam se apegar a
todas as ocasiões que lhes fossem oferecidas para desenvolver
publicamente o seu programa. Tanto as eleições como a III
Duma devem ser utilizadas como tribuna para os socialistas
que, apesar de não terem nenhuma ilusão sobre a sua
verdadeira natureza, não podem desperdiçar essa forma de
propaganda. Apesar do isolamento em que se encontrava dentro
de sua própria fração, Lênin não vacila em votar sozinho,
junto com os mencheviques, contra o boicote das eleições ,
isso na conferência de Kotka no mês de julho de 1907.
Contudo, os partidários do boicote voltam a tomar a
iniciativa depois das eleições, pedindo a demissão dos
socialistas que tinham sido eleitos. Esses partidários da
“retirada”, conhecidos como “otzovistas”, encabeçados por
Krasin e Bogdanov – ambos até então braço direito de Lênin e
membros do Comitê Central do POSD-R ,segundo Broué – seguem
aumentando seus contingentes através do apoio do grupo
“ultimatista” do comitê de Petrogrado, que se manifestam
contrários a toda participação nas atividades legais,
inclusive nos sindicatos, intensamente vigiados pela
polícia”.[1]
Lênin não foi expulso pela quebra do centralismo-democrático,
nem sequer censurado por ter votado com os mencheviques contra
todos os bolcheviques de sua própria fração. Nessa ocasião
Lênin julgava importantíssima a participação da socialdemocracia nas eleições parlamentares, tanto assim é que foi o
responsável direto na orientação dos bolcheviques nesse
processo e entendia como nenhum outro toda a complicada e
insólita legislação eleitoral da Russia tzarista. Lênin
escreveu muitas centenas de páginas sobre as eleições para a
Duma, polemizando contra os mencheviques – que propunham
aliança com a burguesia liberal – em detrimento da conformação
de um bloco de esquerda entre a social-democracia, os
socialistas revolucionários e os trudoviques. Posteriormente,
Lênin convence a maioria dos bolcheviques para suas posições.
O que se pode depreender dos fatos relacionados acima é que
não é o modelo organizativo que deve reger a política, mas sim
é a política prática é que deve modelar o regime interno de um
partido. A política rege a organização e não o seu inverso.
A concepção de Lênin sobre as divergências internas
Conforme registra Broué
“Desde 1894 Lênin afirmava em sua polêmica com o populista
Mikailovsky:
‘É rigorosamente certo que não existe entre os marxistas a
completa unanimidade. Esta falta de unanimidade não revela a
fraqueza mas sim a força dos social-democratas russos. O
consenso daqueles que se satisfazem com a aceitação de
“verdades reconfortantes”, esta terna e comovedora
unanimidade, foi substituída pelas divergências entre pessoas
que necessitam uma explicação da organização econômica real,
da organização econômica atual da Rússia. Uma análise de sua
verdadeira evolução econômica, de sua evolução política e do
resto de suas superestruturas”.[2]
Mais adiante Broué dá a visão cabal de como Lênin encarava as
discussões internas dentro de sua fração bolchevique:
“As divergências de opinião no interior dos partidos
políticos ou entre eles” escreve Lênin em julho de 1905, “se
solucionam geralmente não somente com as polêmicas, senão
também com o desenvolvimento da própria vida política. Em
particular, as divergências a propósito da tática de um
partido terminam por se liquidar, de fato, pela adesão à
linha correta pelos mantenedores das teses errôneas, já que
o próprio curso dos acontecimentos elimina dessas teses o seu
conteúdo e o seu interesse”.[3]
Assim era a compreensão leninista acerca do regime interno do
seu partido. As diferenças são necessárias, benvindas e
fortalecem o partido. A unanimidade é burra, diria alguém anos
mais tarde. No partido stalinista, a unanimidade sempre foi um
fator constante.
No entanto, as divergências internas, em consequência da visão
de Lênin, devem ter um desfecho no transcorrer da luta de
classes real e não apenas nas discussões intestinas, pois as
visões corretas ou equivocadas são testadas e verificadas na
realidade. A prática seria o critério da verdade. A justeza da
linha política – defendidas pela maioria ou pelas minorias –
seria posta à prova pelo partido em suas ações e/ou em seus
balanços de atividades.
Aqui também há em Lênin o critério da provisoriedade de tempo
em relação às divergências internas, ou seja, o surgimento de
blocos, grupos, tendências e frações devem ser fenômenos
conjunturais em função de qual seria a melhor política para a
intervenção do partido na luta de classes no momento dado. Não
há espaço, na visão Leninista, para agrupamentos vitalícios.
Os agrupamentos eternos são da era stalinista, em função dos
interesses em comum da casta burocrática e dos seus
privilégios materiais e de prestígio derivados da manutenção
do poder.
O regime interno: meio e não fim
Um partido tem sua unidade baseada em pressupostos
programáticos e históricos reivindicados em comum por seus
militantes. Na época de Lênin, era a reivindicação das
heranças teóricas de Marx e Engels que forjavam essa unidade.
Tanto assim é que havia um único partido, o Partido Operário
Social-Democrata Russo, POSD-R, e todos os seus membros se
reivindicavam marxistas. No entanto, havia várias
interpretações distintas acerca do marxismo e de sua aplicação
na prática política. Isso configurava tendências teóricas,
políticas, estratégicas e táticas, muitas vezes distintas
tanto no seio da II Internacional bem como em suas secções
nacionais.
No entanto, o centralismo-democrático garantia o fundamental,
ou seja, a unidade do partido para a ação baseada nas
proposições políticas da maioria. Segundo Broué
“Em realidade, o propósito fundamental de Lênin foi construir
um partido para a ação e, desde esse ponto de vista, nem a
sua organização, nem a sua natureza, nem o seu
desenvolvimento, nem seu próprio regime interno podiam ser
concebidos com independência das condições políticas gerais,
do grau de liberdades públicas existentes e da relação de
forças entre a classe operária, o Estado e as classes
possuidoras”.[4]
Ou seja, a política é que determina o regime interno e a
organização, e não o inverso. Como veremos adiante, muitas
vezes o próprio Lênin “quebrará” o centralismo-democrático, o
regime interno, em função de momentos importantes da luta de
classes onde um erro político de estratégia ou de tática
poderia trazer prejuízos incalculáveis para o proletariado e
suas lutas.
O obrerismo stalinista sepultou a democracia interna
Um dos aspectos mais relevantes da fração bolchevique era a
formação teórica dos seus quadros mais antigos que iriam
formar a coluna vertebral revolucionária de Outubro. Essa
verdadeira obsessão de Lênin vem desde muito cedo, desde ,
pelo menos, 1902, conforme se pode ler no “Que Fazer”:
“Este fato testemunha que a primeira e mais imperiosa das
nossas obrigações é contribuir para a formação de operários
revolucionários que, do ponto de vista da sua atividade no
partido, estejam ao mesmo nível que os revolucionários
intelectuais (sublinhamos: do ponto de vista de sua atividade
no partido, porque sob outros aspectos não é, antes pelo
contrário,, tão fácil nem tão urgente, embora necessário, que
os operários atinjam o mesmo nível). Por isso, devemo-nos
dedicar principalmente a elevar os operários ao nível dos
revolucionários e não a descer, nós próprios, ao nível da
“massa operária”, e infalivelmente ao nível do ‘operário
médio’”.[5]
Broué em seu livro reforça a visão leninista sobre a questão
da formação
“Em suas fileiras se acostuma a aprender a ler e cada
militante se converte em responsável pelos estudos de um
grupo onde se educa e se discute. Os adversários do
bolchevismo costumam se burlar desse gosto deles pelos livros
que, em determinados momentos, converte o partido numa
espécie de “clube de sociologia”; no entanto, a preparação da
conferência de Praga contribuiu com toda espécie de garantias
para a efetividade da escola de quadros de Longjumeau,
integrada por várias dezenas de militantes que escutam e
discutem quarenta e cinco lições de Lênin, trinta das quais
versam sobre economia política e dez sobre a questão agrária,
e além disso, são vistas aulas de história do partido russo,
de história sobre o movimento operário ocidental, de direito,
de literatura e técnica jornalística”.[6]
Toda essa formação de quadros nos anos anteriores à revolução
foi extremamente importante. Entre outros motivos, porque só
pode haver democracia interna num ambiente entre militantes em
certa igualdade de condições culturais, intelectuais e de
formação marxista, de modo que cada um tenha opinião própria,
não ficando a reboque dos mais “politizados”, dos “mais
velhos” ou dos “dirigentes” tradicionais. O estímulo à
formação coletiva e individual deve ser sempre uma diretriz de
todo partido que se reivindica do socialismo. Muitas vezes o
que se vê é o estímulo ao “tarefismo” desenfreado, ou seja, há
uma divisão de funções num partido despolitizado: aos
dirigentes cumpre pensar e “dirigir”, para os demais cumpre
executar, cumprir as tarefas. Outras ocasiões o que se nota é
o “estudo dirigido”, ou seja, o estudo “selecionado” apenas
para aprovar a linha política estabelecida pelo partido. Em
ambos os casos não se formam militantes comunistas, marxistas,
capazes de raciocinar, debater e opinar conforme o que pensa.
O que se tem é um militante médio que tenda a seguir, de forma
acrítica, o raciocínio de outro “mais capaz” ou “mais “velho”,
gerando a desigualdade e o emblocamento de posições de forma
automática.
Há quem ignore a história da fração bolchevique ou apenas a
conheça de modo superficial. O próprio Lênin esteve várias e
várias vezes em minoria dentro do partido, perdendo discussões
para os seus próprios discípulos. Mas, há quem creia que Lênin
foi Deus e sempre esteve certo. Como se fosse possível um
eterno vencedor das polêmicas internas, um dirigente
infalível. O único infalível, segundo os stalinistas, foi o
próprio Stalin, ainda que os cristãos acham que o Papa assim o
é.
O começo do fim da democracia interna no partido bolchevique
acontece com sinistra “Promoção Lênin”, em 1924, logo após sua
morte. Em essência, tal política consistiu no recrutamento
massivo para o partido, sem estágio probatório, de duzentos
mil novos membros operários, que foram incorporados nessa
“promoção”. Quase todos eram inexperientes, mas já elegíveis
para cargos de responsabilidade. Desse total, 30% apenas
sabiam ler, e não mais do que 10% eram capazes de manter um
debate político sério. Em cima e no controle deles existia um
aparelho enorme e piramidal, em cujo vértice encontrava-se
Stalin, secretário-geral do Politburo e membro do Burô de
Organização. Em mãos do aparato, esse contingente de operários
despolitizados se converte numa dócil massa de manobra que
sempre seguia e votava nos dirigentes oficiais. Evidentemente,
já não temos mais a igualdade entre os membros do partido e,
portanto, morre a democracia interna e o regime leninista.
Inteligentes e imbecis, rebeldes e disciplinados
Broué narra um episódio extremamente interessante no livro
citado, onde, durante a I Guerra Mundial, ele e Bukarin não
chegavam a um acordo em relação ao problema do Estado. Note-se
que Bukarin, bem mais jovem que Lênin, havia sido educado
politicamente pelo maestro. Nessa controvérsia entre os dois,
Lênin pede a Bukarin que não publique nenhum trabalho sobre
essa questão de modo a não acentuar os desacordos entre eles,
já que, segundo Lênin, nenhum dos dois tinha estudado
suficientemente o tema. No decorrer dos anos, Lênin e seu
discípulo Bukarin iriam ter outras divergências, entre as
quais a mais famosa ficou por conta da assinatura ou não do
tratado de paz de Brest-Litovsky com a Alemanha imperialista
meses após a revolução de Outubro. Broué expõem da seguinte
forma a visão de Lênin sobre o regime interno do partido:
“Que os sentimentais se lamentem e deem os seus gemidos: mais
conflitos!Mais diferenças internas! Ainda mais polêmicas! Nós
responderemos: jamais se formou uma social-democracia
revolucionária sem o contínuo surgimento de novas lutas”.[7]
Mais adiante, Lênin sentencia que o primeiro dos deveres de um
revolucionário é criticar os seus próprios dirigentes. A
opinião dele quando escreve a Bukarin, segundo Broué, é “que
se o partido excluísse os militantes inteligentes, porém pouco
disciplinadas, e ficasse apenas com os imbecis disciplinados,
afundaria.”[8] A esse respeito, completa Broué, a história do
partido bolchevique, como a de sua fração, são de uma larga
sucessão de conflitos ideológicos que Lênin vai superando
sucessivamente através de uma prolongada dose de paciência. Da
unidade de critérios surge da discussão, quase permanente, que
se opera, tanto sobre as questões fundamentais como a
propósito da tática a seguir a cada momento.
Notas:
[1] Broué, p. 60
[2] Broué, p. 72
[3] Broué, p. 73
[4] Broué, p. 73
[5] Lenine, p. 132
[6] Broué, p. 91
[7] Broué, p. 94
[8] Broué, p. 94 – 95
Bibliografia
BROUÉ, Pierre. El partido bolchevique, Editorial Ayuso, 1973,
Madrid
LENINE, Vladinir Ilich Uianov. Que Fazer, Editorial Estampa,
1973, Lisboa
História e engajamento: uma
resenha
de
O
Partido
Bolchevique de Pierre Broué
Ramsés Eduardo Pinheiro
Recentemente publicado pela Editora Sundermann, o livro O
Partido Bolchevique[1], escrito pelo historiador trotskista
Pierre Broué, cujo falecimento completa 10 anos em 2015, é uma
obra de fôlego sobre a trajetória da organização
revolucionária que transformou a história da Rússia e
influenciou profundamente os acontecimentos políticos do
século XX.
O leitor que pretende ler esta obra esperando encontrar alguma
glorificação do Partido Bolchevique[2] certamente se
decepcionará. Tão pouco encontrará os bolcheviques como
“homens com a faca nos dentes” ou “assassinos de crianças”
como pontua o próprio autor[3]. Ao contrário, durante os vinte
capítulos que constituem o livro, Broué nos apresenta este
partido vivo, cujo principal mérito foi ter “conquistado o
poder político e colocado o problema prático da realização do
socialismo”.
O ponto de partida de Broué para a elaboração desta obra,
publicada originalmente em 1963, pode ser localizado no seu
prefácio à edição de 1972, escolhida para iniciar a edição
brasileira. Neste prefácio, o historiador pontua que “A
história do Partido Comunista (Bolchevique) constitui, sem
dúvida, um dos fenômenos decisivos para a compreensão do mundo
contemporâneo”. Acrescentando em seguida que “o passado deve
nos servir para compreender e interpretar o presente”[4].
Ao adotar tal perspectiva, Broué assume um lugar preciso na
produção do conhecimento que está longe de se pretender
neutro. Este historiador escreveu a história do Partido
Bolchevique visando compreender o seu próprio presente, tempo
no qual àquele partido havia se convertido em obstáculo à
mobilização dos trabalhadores e à revolução socialista.
Todavia, na esteira da sólida tradição do materialismo
histórico, Broué não pretende apenas interpretar seu tempo,
também quer transformá-lo, motivo este que o levou anos antes
a combater na resistência francesa contra a ocupação nazista
na 2º Guerra e se integrar nas fileiras da IV Internacional.
Ainda no prefácio, Broué apresenta a perspectiva que atravessa
todo seu trabalho, mas deixemos que ele mesmo a exponha:
“Considerar o fato, tão óbvio e tão esquecido, de que nada
estava realmente “escrito” de antemão. Sem dúvida, tal
movimento era historicamente necessário e o nascimento do
partido bolchevique não foi um acidente, nem fruto do mero
azar, mas sua vitória ou sua derrota em 1917, seu pleno
desenvolvimento ou sua posterior degeneração estavam em ambos
os casos profundamente enraizados nas realidades da época. Em
outras palavras, trabalhamos guiados pela certeza de que,
tanto antes como depois de 1917, na União Soviética se
enfrentaram uma série de forças sociais, econômicas e
políticas, antagônicas e contraditórias, num cenário comum e
muitas vezes sob a mesma bandeira, gerando uma série de
conflitos cuja resolução não estava determinada de
antemão”[5].
Ao se guiar por esta orientação geral, Broué rejeita qualquer
concepção determinista de história, filiando-se a uma tradição
“antideterminista e antidogmática da história” da qual o
próprio Trotsky foi um dos principais representantes com a
obra História da Revolução Russa como ressaltou Álvaro Bianchi
em texto sobre o tema[6]. Broué não poupa esforços em
ressaltar, durante todo seu trabalho, que a degeneração do
partido bolchevique não era algo que estava previamente
determinado pelas condições e sociais da Rússia do início do
século XX.
Embora Broué ressalte em diversas ocasiões o atraso econômico,
a guerra civil e o isolamento da Rússia como elementos que
explicam a burocratização do partido, ele também pontua que
esse processo não era inexorável. O enfoque do historiador
recai, sobretudo, sobre as incessantes lutas internas que
marcaram a trajetória do partido bolchevique. Reconstitui,
assim, as diversas batalhas da oposição que enfrentou o
aparato burocrático no interior desta organização e que, em
circunstancias históricas diferentes, poderiam ter reconduzido
o partido e o Estado Soviético a posição de vanguarda da
revolução socialista mundial.
Nesta abordagem reside toda a magnitude do livro de Broué, os
06 primeiros capítulos desta obra reconstituem o percurso
destes homens de carne e osso, aqueles jovens que escolheram
se tornar militantes do partido bolchevique e dedicar suas
vidas à causa da revolução. Destaco o terceiro capítulo, “O
bolchevismo: o partido e os homens”, onde Broué se debruça
sobre a concepção de partido defendido pelos bolcheviques, o
funcionamento desta organização, o perigo e as incertezas da
militância cotidiana e também o papel de Lênin na construção
do partido, não o ser infalível criado pelo stalinismo, mas “o
velho”, como era chamado por seus camaradas, o “professor” e,
ao mesmo tempo, “veterano”[7].
Nos cinco capítulos seguintes (7º ao 11º), Broué aborda o
processo de burocratização do partido bolchevique e a luta da
oposição contra este fenômeno. Sobre as origens da
burocratização do partido, o historiador argumenta que “desde
a tomada do poder e, principalmente, desde o começo da guerra
civil, os antigos revolucionários profissionais deixam de ser
militantes cujo campo de ação é o partido e a classe”,
transformando-se, como disse Bukharin, em “chefes do exercito,
soldados, administradores e governantes operários”[8].
Enfatizando o caráter objetivo deste processo, no qual os
militantes do partido foram sugados pelas atividades de
administração do Estado, Broué recorre a Trotsky para explicar
de forma pedagógica como este processo gerou uma casta
privilegiada no interior da União Soviética. Como acentuado
por Broué, este processo tem conseqüências diretas sobre o
partido
bolchevique.
A
multiplicação
de
funções
administrativas no Estado foi acompanhada por transformações
na estrutura do partido, seja através da criação do birô de
organização no seu VIII Congresso (1919), cuja principal
atribuição era a distribuição dos dirigentes bolcheviques em
diferentes postos, ou da criação do cargo de Secretário do
Comitê Central, auxiliado por inúmeros outros secretários[9].
O crescimento do número de funcionários do partido que formam
este aparato, ou “apparatchiks” na expressão do bolchevique
Sosnovsky, passa por uma escalada vertiginosa a partir de
então. De forma silenciosa um grupo de apparatchiks se
fortalece no interior do partido, constituindo-se aos poucos
como seu núcleo dirigente, cuja principal expressão será
Stálin que se torna secretario geral em 1922[10].
É nesta perspectiva que Pierre Broué reconstitui as primeiras
manifestações contra a burocratização do partido bolchevique,
acentuando que ainda era possível uma reorientação do seu
caráter, o que foi defendida até as últimas conseqüências
pelos velhos bolcheviques. Nesta perspectiva o historiador
revisita a formação da oposição de esquerda em 1923, formada
por combatentes bolcheviques da velha guarda como
Preobrazhensky, Serebriakov, Sosnovsky e Trotsky que
denunciaram sem cessar a “hierarquia do secretariado”.
Um dos pontos altos do livro é a narrativa de Broué sobre a
última batalha da oposição na URSS, tratava-se de garantir a
participação dos seus delegados no XV Congresso do partido que
ocorreria no final de 1927. A despeito da repressão do aparato
burocrático, os oposicionistas conseguem imprimir 30 mil
exemplares de sua plataforma. Sobre este derradeiro combate,
Broué pontua que militantes oposicionistas como Trotsky e
Zinoviev foram aos bairros operários de Moscou e Leningrado,
distribuíram sua plataforma, ocuparam um dos anfiteatros da
Escola Técnica Superior de Moscou e discursam a luz de vela
por duas horas expondo suas críticas ao aparato. Apesar dos
esforços imensuráveis da oposição, o restante da história já é
bem conhecido, poucos dias depois os mesmos Trotsky e Zinoviev
serão expulsos do Comitê Central e, posteriormente, do próprio
partido, o que desencadeia uma profunda repressão contra todo
e qualquer dissidente.
A consolidação definitiva do aparato que formava o núcleo
dirigente do partido desde o inicio dos anos 1920 se efetiva
no início da década seguinte. Broué dedica os 07 capítulos
seguintes (12º ao 18º) à análise da trajetória do partido
durante o apogeu do processo de burocratização, período no
qual o grupo representado por Stálin exerceu um domínio quase
absoluto sobre o partido e o Estado. O ponto alto desta
análise recai sobre o processo de depuração promovido pelo
aparato contra seus inimigos, do qual os processos de Moscou e
o assassinato de Trotsky foram apenas os casos mais
expressivos de um extermínio físico de milhões de dissidentes.
Os dois últimos capítulos do livro de Broué (19º e 20º)
abordam o processo de desestalinização, iniciado com o informe
secreto de Krushev no XX Congresso do PCUS em 1956 que expôs
os “Crimes de Stálin”. O historiador francês enfatizou que a
desestalinização não questionou em nenhum momento o processo
de burocratização subjacente às atrocidades cometidas por
Stálin, tampouco a repressão às diferentes oposições que
combateram a burocratização do partido nos anos 1920,
evidenciando os limites intrínsecos a este processo.
Nestes capítulos finais, Broué expõe com toda sua habilidade o
que a meu ver constitui seu principal argumento: o
renascimento do pensamento socialista e revolucionário que
ocorreu em meio ao processo de desestalinização e se expressou
através de uma retomada da tradição bolchevique de 1917. Broué
argumenta que:
Depois
da
reação
provocada
pelo
isolamento
da
URSS
e
alimentada entre as duas guerras pela repressão exercida pelo
aparato burocrático, uma série de novas gerações retomam em
1956 e 1957 os vínculos com a tradição, o pensamento e a
prática revolucionários de 1917, ocultadas até então por obra
de comentaristas parciais[11].
Este movimento revolucionário é sobejamente analisado por
Broué através da insurreição dos operários de Berlin Oriental
e da greve dos prisioneiros do Campo de Concentração de
Vorkuta na URSS, ambas ocorridas em 1953, bem como da
“primavera de outubro” na Hungria e Polônia em 1956. Para
Broué, os jovens comunistas poloneses e húngaros que se
insurgiram contra o caráter burocrático dos partidos que
dominavam seus países e também a URSS, representavam “uma nova
geração de comunistas” que redescobria o “pensamento da
oposição e o genuíno espírito do bolchevismo”[12].
O historiador ainda estabelece conexões entre o pensamento dos
comunistas húngaros e poloneses e as idéias defendidas por
Trotsky em relação à burocratização do partido bolchevique,
inclusive no tocante ao programa deste movimento: a derrubada
da burocracia através da tomada do poder por conselhos
operários e a formação de um poder “soviético”. Esta consigna
de uma “segunda revolução” foi associada por Broué à
“revolução política” defendida por Trotsky para derrotar a
burocracia stalinista e reorientar as forças do partido e do
Estado na URSS para a revolução socialista internacional,
reforçando sua tese do movimento revolucionário de 1956-1957
como renascimento do bolchevismo.
No epílogo à edição de 1963, Broué relembra a seus leitores
que a “história está cheia de encruzilhadas contraditórias” e
por isso mesmo “na revolução estavam implícitos, os processos
de Moscou, mas também o Outubro polonês e húngaro”[13],
reiterando, assim, a concepção exposta no prefácio segundo: a
história não está aprisionada em uma lógica pré-concebida, mas
se faz a partir das lutas travadas por homens que representam
interesses antagônicos e cujas ações conferem singularidade à
cada período histórico. São estas lutas que Pierre Broué busca
enfatizar em todo seu trabalho e, principalmente, no posfàcio
à edição de 1971, sugestivamente intitulado “Renascimento do
Bolchevismo”.
Transcorridos quase dez anos da 1º edição de sua obra, Broué
aduz que este decênio apenas reafirmou a “continuidade
histórica entre a oposição no interior da sociedade russa pósstalinista e a tradição revolucionária de outubro de
1917”[14]. Esta afirmação é reforçada por dois acontecimentos
históricos de grande importância para este historiador: a
“Primavera de Praga” em 1968 e a luta dos jovens comunistas
tchecoslovacos contra o aparato stalinista em seu país; e o
surgimento de uma nova oposição comunista na URSS nos anos
sessenta que realizou em 25 de agosto de 1968 a primeira
manifestação pública contra o governo após 40 anos, quando
sete jovens abriram suas faixas na Praça Vermelha protestando
contra a ocupação da Tchecoslováquia por tropas soviéticas.
Ao defender neste posfácio o reatamento do “fio da história”,
rompido pela ascensão do aparato burocrático na URSS, mas
restabelecido através da relação de continuidade entre a
tradição bolchevique de 1917 e a oposição comunista que se
forma na Rússia após 1968, Broué chama a atenção dos leitores
para a possibilidade de uma grande transformação naquele
momento por meio da derrubada da burocracia nos Estados
Operários e da retomada da luta pela revolução socialista
mundial. Em ambos os casos, o renascimento do bolchevismo
nestes países e em todos aqueles onde o stalinismo havia
asfixiado a luta revolucionária, era imprescindível para o
êxito desta empreitada.
Pierre Broué jamais escreveria esta obra da forma que escreveu
se não possuísse, como ele próprio afirmou no prefácio à
edição de 1972, “uma grande dose de simpatia para com o seu
tema, compreensão, e às vezes até mesmo amor para com todos
aqueles que tentam fazer ou reescrever a história e mudar o
mundo e a vida”[15], Sua paixão por aqueles velhos
bolcheviques que dedicaram suas vidas à revolução e quando
preciso discursaram por horas a luz de velas diante de
centenas de operários para defender esta mesma revolução em
face do aparato que a ameaçava, reconduz à história do partido
bolchevique seus verdadeiros protagonistas, os homens que “são
donos de sua própria história” e, exatamente por isso, podem
“construir uma história diferente”[16]. Este é certamente o
principal mérito da obra de Broué.
Enfim, uma leitura imprescindível não apenas para os que
reivindicam a tradição marxista ou bolchevique, mas para todos
àqueles que, como Broué, se interessam em estudar o passado
para compreender o mundo contemporâneo e, como diria Marx,
transformá-lo.
[1] BROUÉ, Pierre.
Sundermann, 2014.
O
Partido
Bolchevique.
São
Paulo:
[2] O partido bolchevique abordado por Broué se constitui a
partir da fração bolchevique que se forma em 1903 durante o II
Congresso do POSDR, e que a partir de 1912 passa a atuar como
um partido autônomo.
[3] BROUÉ, op. cit., p. 16.
[4] Ibidem, p. 09.
[5] BROUÉ, op. cit., p. 16.
[6]BIANCHI, Álvaro. História da Revolução Russa: Trotsky como
historiador.
Disponível
em:
<http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1089>. Acesso
em 20 de fevereiro de 2015.
[7] BROUÉ, op. cit., p. 68.
[8] Ibidem, p. 126-127.
[9] Ibidem, p. 128-129.
[10] Ibidem, p. 163.
[11] Ibidem, p. 480.
[12] Ibidem, p. 465.
[13] Ibidem, p. 512.
[14] Ibidem, p. 517.
[15] Ibidem, p. 16-17.
[16] Ibidem, p. 17.
Comunistas contra Stalin
Frederico Costa
Pierre Broué (1926-2005), historiador mundialmente conhecido,
nasceu em Privas no sul da França. Jovem entrou na resistência
contra a ocupação nazista e aderiu ao Partido Comunista.
Porém, divergiu do partido ao tentar organizar propaganda
internacionalista entre os soldados alemães, sendo expulso por
“trotskismo”. No final da II Guerra mundial integrou-se ao
movimento trotskista francês, tornando-se membro ativo durante
várias décadas. Simultaneamente, consolidou uma carreira
acadêmica como professor do Instituto de Estudos Políticos de
Grenoble, como historiador destacado das revoluções do século
XX. Suas obras mais conhecidas foram traduzidas para vários
idiomas: Revolução e Guerra Civil na Espanha, (em co-autoria
com Émile Térmime), O Partido Bolchevique, Revolução na
Alemanha (1917–1923), História da Internacional Comunista, Os
processos de Moscou, as biografias de Trotsky e Rakovsky,
Stalin e a revolução: o caso espanhol e A revolução e a guerra
da Espanha. Dedicou-se intensamente à criação e organização do
Instituto Leon Trotsky e à publicação dos Cahiers Leon
Trotsky, que publicaram inúmeros trabalhos sobre o movimento
trotskista em diversos lugares do mundo.
Broué foi o primeiro historiador autorizado a entrar nos
arquivos fechados de Trotsky em Havard, quando de sua abertura
em 1980 – antes Isaac Deutscher (1907-1967) os tinha
consultado com autorização especial. A partir de 1989 dedicouse à direção da revista Le marxisme aujourd’hui. Com o colapso
da União Soviética, Pierre Broué foi à busca dos arquivos
recém-abertos, incluindo os da polícia secreta stalinista. Ele
também se reuniu com membros das famílias de velhos
bolcheviques assassinados, e alguns dos poucos e últimos que
não foram exterminados. Além disso, colaborou com a
organização russa Memorial, dedicada a defender a memória das
vítimas de Stalin.
O livro Comunistas contra Stalin: masacre de una geracion
(Málaga: Sepha, 2008), é produto das pesquisas de Broué nos
arquivos abertos da ex-URSS. O resultado é a revelação de uma
história zelosamente ocultada durante mais de meio século.
Nos anos vinte numerosos militantes comunistas se uniram à
Oposição de Esquerda e a outras correntes anti-stalinistas na
URSS. Foram chamados de oposicionistas ou trotskistas.
Milhares deles seriam fuzilados em 1937 e 1938 nas prisões ou
nos campos de Vorkuta e Kolyma. O seu extermínio foi o
capítulo final de uma luta que duraria algo mais que quinze
anos. Começando com a expulsão de militantes do Partido
Comunista, seguindo com o exílio, as deportações, ao suicídio,
as prisões, os isolamentos e os campos de trabalho. Assim, os
defensores da democracia proletária tornaram-se as vítimas
prioritárias da contrarrevolução burocrática.
De maneira objetiva e fundamentada, Broué relata a história da
luta, da perseguição e do assassinato de milhares de
revolucionários. Demonstrando não só que Stalin consolidou seu
poder mediante o massacre de uma geração de militantes
comunistas, que rebelou-se contra sua tirania, mas que existia
uma alternativa ao domínio da burocracia. Noutras palavras,
que a revolução russa e o bolchevismo não estavam
predestinados a desaguar no “socialismo real” e suas mazelas.
A batalha não estava decidida de antemão.
Mais do que um resgate de um processo histórico, que trouxe
consequências trágicas para o movimento comunista
internacional até os dias atuais. Broué vai além do simples
relato dos fatos ocorridos, o que já seria um grande feito.
Ele nos fala de indivíduos concretos, mulheres e homens,
revolucionários acima de tudo, que lutaram até o fim pela
emancipação social. O autor, assim, revela suas intenções:
“há anos que quero falar de milhares de mulheres e homens, de
velhos e crianças, que morreram metralhados a dezenas. Quero
mostrá-los vivos, pensando, amando, sofrendo. Dizer quem eram
antes, durante e depois de seu calvário. Fazê-los reviver, na
medida do possível” (p. 24).
Nessa perspectiva, entramos em contato com militantes de
diversas gerações, nacionalidades e trajetórias individuais.
Adolf Abramovich Joffe, um dos criadores da organização
interbairros que se integrou ao Partido Bolchevique em 1917;
Christian Georgievich Rakovsky, antigo chefe do governo
vermelho da Ucrânia durante a guerra civil e primeiro chefe da
administração política do exército vermelho; Vladimir A.
Antonov Ovseenko, jovem oficial que se amotinou em 1905 com
seus soldados e substituiu Rakovsky como chefe dos comissários
políticos do exército vermelho; o doutor Iván Zalkind
comissário do povo adjunto aos Assuntos Exteriores; Igor
Poznansky, jovem estudante de matemática, que em 1917
apresentou-se voluntariamente para ser guarda-costas de
Trotsky; Varsenika Djavadovna Kasparova, uma das formadoras de
mulheres comissárias políticas; Olga Afanasievna Varentsovna,
que trabalhava no escritório do comissário do povo; Iván
Nikitich Smirnov, apelidado “o Lênin da Sibéria”; Karl
Ivanovich Grüstein, que dirigiu a Escola do Ar; Larissa
Reisner, comissária política que participou da Batalha de
Kanzan contra os brancos e escreveu uma brilhante reportagem
sobre ela; Yakov G. Blumkin, que após tentar matar o
embaixador alemão e ser condenado à morte, foi convencido por
Trostky do bolchevismo em sua cela e tornou-se posteriormente
membro do serviço de informação do exército vermelho; Sergei
Vitaliévich Mrachkovsky, nascido na prisão de pais
prisioneiros políticos; o gigante Nikolai Ivanovich Muralov,
que comandou em 1919 a guarnição de Moscou. A geração de
1923-1925 constituída por um grupo de jovens do Instituto de
Professores Vermelhos, a elite do ensino superior do país:
Grigori Yakovin, Man Nevelson, Eleazar Solntsev, Galina Byk.
Também há ao redor de Rakovsky um grupo de jovens ucranianos:
Lipa A. Volfson, G. M. Vulfovich, o dirigente operário Vasili
Golubenko, a economista Tania Semenovna Miagkova. Há
georgianos como David (Datiko) Efremovich Lordkipanidze, herói
da lutas pela organização operária e contra a polícia do Czar,
Budu Mdvani, militante operário, Vaso Donadze, que presidiu o
soviete de Tíflis no princípio da revolução. Essa é uma mostra
mínima e aleatória dos milhares que ousaram enfrentar o
processo de burocratização representado pela ascensão de
Stalin.
Nas páginas de Comunistas contra Stalin: masacre de una
geración, é exposto a luta desigual entre as forças da
revolução e os mecanismos da contrarrevolução que se
apoderaram do Estado operário, do Partido e dos sindicatos.
Vislumbramos a ação dos que resistiram à destruição dos ideais
da Revolução de Outubro. Acompanhamos suas contradições, seus
avanços, suas ilusões, seus retrocessos, suas vitórias
parciais e seu destino final, que enfrentaram como
revolucionários. Como frisa Broué:
“Seus inimigos lhes batizaram de trotskistas, mas eles se
chamavam de bolcheviques-leninistas, sentindo-se e querendo
ser os verdadeiros continuadores do Partido Bolchevique de
Lênin e de Trotsky. Eram sua geração de Outubro, enquadrada e
as vezes freada pelos velhos de um partido sangrado,
fatigado, desgastado e muitas vezes desmoralizado. A um jovem
cabo que haviam mandado disparar sobre dezenas de
prisioneiros, lhe impressionou que morreram cantando e disse
que eram uns fanáticos. Erro grosseiro, mas útil para os
chefes dos verdugos. Em realidade tratavam-se de militantes
convencidos. Tinham uma moral, mas também uma moral rigorosa
que lhes granjeou o respeito de seus companheiros de
calvário. Como outros grupos perseguidos por suas convicções,
como os protestantes em tempos de Rei Sol, não cessaram em
sua luta, apesar de terríveis sofrimentos, por uma maior
tolerância, pela democracia e a livre discussão. Assim, os
trotskistas, que não haviam encontrado palavras
suficientemente duras para condenar a capitulação de Zinoviev
e de Kamenev, levantaram-se em sinal de respeito e dor ao
conhecer sua execução quando foi anunciada em Vorkuta.” (p.
31)
Pela pesquisa realizada é possível compreender porque a luta
não estava perdida antecipadamente. Um fato demonstra tal
perspectiva. Num momento de tensão do aparato burocrático –
quando o bloco de centro-direita (Stalin-Bukharin), como se
dizia então, entrou em crise pela exclusão de Trotsky e
Zinoviev do Comitê Central do Partido – Stalin, escrevendo a
Molotov expressa a lógica da luta em curso: “Entre duas
coisas, uma. Ou bem restabelecemos aos chefes da oposição os
direitos como membros do Partido Bolchevique e criamos um
partido de coalizão, ou bem lhe vencemos imediatamente e
conservamos o monolitismo do partido. Ou bem para trás, ou bem
para diante.” (p. 272)
O importante desse fato é que não há uma linha de continuidade
entre Lênin e Stalin, mas sim uma ruptura colossal. Por isso,
afirma o autor, comentado a citada mensagem:
“É esta a chave que a maior parte dos historiadores não
querem ver, porque desmente o que eles creem ou pelo menos
afirmam: a continuidade entre Lênin e Stalin, entre
bolchevismo e stalinismo, a equivalência entre Trotsky e
Stalin. Para trás: é o partido de Lênin, com suas tendências
e frações, suas discussões abertas e públicas – em
definitivo, a democracia do partido e dos sovietes. Para
diante: é o partido stalinista monolítico, mantido no terror
pela GPU.” (p. 272)
Stalin do ponto de vista da contrarrevolução burocrática tinha
razão. Não poderia existir acordo entre as duas perspectivas.
Por isso, os métodos para derrotar foram tão escusos e a
repressão tão brutal. Os oposicionistas, anos antes, em 1923,
tinham tido a maioria da conferência do partido de Moscou, mas
foram derrotados pela fraude:
“Em Moscou, a Oposição conseguiu a maioria em 40 células
(6.954 membros) contra 32 (2.790), a maioria das células do
Exército Vermelho, 30% das células operárias, a maioria em
22.000, e… três delegados no total. Vítima de um assalto, foi
caluniada na
funcionários
conferência, na qual os delegados eram
mal eleitos, arrogantes e grosseiros,
condenando-a por desvio menchevique” (p. 48).
Velhos quadros do partido do partido simpatizavam com a
Oposição de Esquerda – mais tarde Stalin viria a dissolver a
Associação dos Velhos Bolcheviques. Os jovens a ouviam e não
poucos a apoiavam. Operários percebiam que ela expressava suas
necessidades. Em Moscou, na Geórgia e na Ucrânia os
oposicionistas tinham bases sólidas. Até em Leningrado, área
de influência de Zinoviev, a oposição de esquerda, os
bolchevique-leninistas estavam presentes. Com o surgimento da
Oposição Unificada de 1927 – oposição de esquerda,
zinovievistas, decistas (grupo centralismo-democrático) e
outros setores defensores da democracia socialista -, ficou
evidente a disjuntiva indicada por Stalin. A polícia passou a
ser utilizada nas discussões políticas. Transferências e
expulsões arbitrárias de militantes, intervenções em células e
exílio forçado passaram a ser comuns. Eis a lógica das forças
da contrarrevolução, expressa na tese de Stalin “entre duas
coisas, uma”, da mentira, da intimidação, da fraude, da
exclusão às prisões, torturas, deportações, repressão brutal
e, finalmente ao massacre dos revolucionários. Mesmo assim,
muitos não se intimidaram, como o exemplo singular do jovem
operário Boris Vajnshtok: “que ficou isolado depois da prisão
de dezenas de seus camaradas em 1927. Esperou o Congresso do
ano seguinte e tomou a palavra para exigir sua liberação. Não
duvidava de que esse era seu dever. Encontrou-se com alguns
quando foram fuzilados, dez anos mais tarde, em Kolyma” (p.
373).
De acordo com a lista oficial, os membros da Oposição de
Esquerda, isto é, pessoas acusadas de “trotskismo” pela
polícia e pelo aparato do partido, e por isso detidas ou
excluídas, apresentavam a seguinte composição social e
profissional:
“44% dos excluídos por pertencer à Oposição eram operários de
fábrica, e 25% antigos operários colocados em postos de
responsabilidade [o números destes últimos aumentariam muito
se fosse possível conhecer a profissão anterior dos
comissários políticos do Exército Vermelho e dos estudantes
da Rabfaki]. Em que concerne à idade, as pessoas da Oposição
são jovens e inclusive muito jovens; 85% tem menos de 35 anos
[…]. Em Kharkov dos 259 membros excluídos de 1927, entre os
quais haviam 196 operários, 70% tem menos de 30 anos, 38%
menos de 25 anos” (p. 369).
Isso significa que: “Estamos diante de um movimento da
juventude operária. Os jovens que combatem nas fileiras da
Oposição são os que eram adolescentes, inclusive crianças, na
época da revolução, e cuja maré ainda os impulsionava: a parte
mais dinâmica da sociedade, seu futuro;o resultado profundo, a
pegada mais duradoura da revolução” (p. 369).
E que teve também forte presença feminina:
“Outro elemento é o papel das mulheres. Em nenhum outro país
do mundo podemos encontrar nessa época mulheres jogando um
papel como o jogam na URSS as da Oposição. Não só é uma onda
feminina a que reforçar des 1928 o centro de B. M. Eltsin,
senão também as encontramos nos grupos clandestinos, nas
impressoras, como operárias. São mulheres como Mussia, depois
Nadejna Ioffe, as que conseguem ganhar o respeito de temíveis
bandidos, dos demais detidos e, frequentemente, o de verdugos
e torturadores. Talvez não devemos recordar que a
participação das mulheres é, e sempre foi, o signo infalível
da profundidade de uma revolução, da ancoragem de uma
revolução?” (p. 369).
No entanto, a Oposição de Esquerda provou sua superioridade de
maneira ainda mais marcante nos campos de prisioneiros. Pois,
mesmo nas piores condições, as relações entre os
revolucionários oposicionistas não deixaram de espelhar
elementos de uma sociabilidade emancipada: “a tolerância (…)
não parou de crescer entre as vítimas (…) lhes abriu aos
debates políticos e aos grandes horizontes. Desse modo
puderam, no Gulag, homenagear todas as vítimas do inumano
sistema estalinista (p. 373). Além disso, “havia ali não só um
progresso, mas também uma conquista. A superioridade moral dos
opositsioneri deve conhecer e reconhecer-se para poder um dia
alcançar seus frutos. É por isso que os inimigos do gênero
humano se encarniçam em desfigurar as revoluções e os
revolucionários, com a esperança de lançar o resto da
humanidade ao culto do bezerro de ouro.”
Por isso, nas palavras do historiador francês, um livro como
Comunistas contra Stalin, masacre de una generación é tão
necessário:
Esta é a razão de ser deste livro. Deveria ser uma arma contra
o horror do passado e contra tudo o que se parece com ele
hoje; uma lição de valor e de dignidade, jamais inútil; um
balanço de uma experiência coletiva sem a qual estaríamos
condenados a repetir indefinidamente os mesmos erros e a
sofrer as mesmas derrotas. E que depois de havê-lo lido, cada
leitor, venha de onde vier, se alinhe no campo dos oprimidos e
dos combatentes de Vorkuta e de Magadan (p. 373-374).
Daí que a palavra final seja dada, por direito, a Tatiana,
filha de um oposicionista, Ivar Smilga fuzilado por Stalin: “A
memoria se conservou. Os homens, os livros foram conservados,
inclusive o ambiente mesmo que eles criaram em Outubro com
seus estandartes. A verdade nunca abandona a vida. Pertence ao
futuro” (p. 374).
(Publicado
originalmente
Crítica, a. 3, n. 3, 2011.)
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Revista
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