A propósito do regime interno dos bolcheviques após Outubro: as frações públicas Enio Bucchioni Mal triunfada a revolução de Outubro na Rússia, uma polêmica infernal explode no partido bolchevique. Segundo a descrição de Pierre Broué, ela era levada outra vez por Kamenev e diversos outros dirigentes do partido. O processo político em torno desse debate em muito nos ajuda a compreender os motivos do surgimento das frações públicas no partido de Lenine como os bolcheviques lidavam com suas divergências políticas. Em 29 de outubro, quatro dias após a insurreição, uma reunião do Comitê Central, onde estão ausentes Lenin, Trotsky e Stalin, aprova negociar uma coalizão governamental com os mencheviques e socialistas revolucionários, partidos cujas alas direita abandonaram o II Congresso pan-russo dos sovietes que aprovou a insurreição e a tomada do poder. Os bolcheviques Riazanov – presidente dos sindicatos de Petrogrado em fevereiro – e Lunacharsky – comissário do povo para a Educação – declaram estar de acordo com a eliminação de Lenin e Trotsky do governo se esta for a condição para a constituição da coalizão com todos os partidos socialistas. Em nova reunião, o Comitê Central rechaça essa postura. Lenin propõe a imediata ruptura de negociações. Já Trotsky quer prossegui-las em busca de condições que darão garantias de respondência aos bolcheviques no seio da coalizão com os partidos que no congresso se opuseram ao poder criado pelos sovietes. A condição seria que aceitassem reconhecer os sovietes como um fato consumado, assumindo suas responsabilidades a este respeito. A proposta de Trotsky é aprovada no Comitê Central. As frações publicas em luta Apesar da vitória na proposta de Trotsky, nem todos se sentem contemplados pela deliberação da direção. A partir dela, se inicia, em publico, uma disputa política que extrapola as fronteiras do partido. Segundo Broué a minoria bolchevique não se resigna, pois crê que a resolução do Comitê Central impedirá, de fato, qualquer tipo de coligação no governo. Kamenev, que segue presidindo o comitê executivo dos sovietes, propõe a demissão do conselho dos comissários do povo exclusivamente bolchevique, presidido por Lenin, e a constituição, em seu lugar, de um governo de coalizão.[1] Kamenev propõe, publicamente e por fora dos órgãos partidários, a destituição do governo composto por Lenin e Trotsky. Nada mais, nada menos! Em seguida, narra Pierre Broué [o bolchevique] Volodarsky opõe a essa moção aquela que foi adotada pelo comitê central. Durante a votação, numerosos bolcheviques comissários do povo [equivalentes aos ministros de um governo burguês] como Rikov, Noguin, Lunacharsky, Miliutin, Teodorovich e Riazanov, assim como alguns responsáveis do partido como Zinoviev, Lozovsky e Riazanov votam contra a resolução apresentada pelo seu próprio partido. Lenin, num manifesto que se difunde por todo o país, chama os dissidentes de desertores. Em outras palavras, o regime interno dos bolcheviques vai para o espaço e as frações políticas do partido se expressam publicamente. Segundo Broué, Lenin não admite qualquer tipo de vacilação: se a oposição não aceita as decisões da maioria, ela deve abandonar o partido A cisão seria um fato extremamente lamentável. Contudo, uma cisão honrada e franca é, na atualidade, mais preferível do que uma sabotagem interna e o não cumprimento de nossas próprias resoluções.[2] Não houve a cisão. A oposição é condenada pelo conjunto dos militantes e pelas passeatas de operários e soldados que haviam aprovado a insurreição. Kamenev, Miliutin, Rikov e Noguin assim como Zinoviev, seguem no partido. Segundo Broué, Zinoviev escreve no Pravda de 21 de novembro de 1917 Nosso direito e nosso dever é advertir o partido de seus próprios erros. Contudo, permanecemos com o partido. Preferimos cometer erros com milhões de operários e soldados e morrer com eles do que nos separarmos deles nesta hora decisiva da história. Não haverá, não pode haver uma cisão no partido.[3] Os fatos acima descritos mostram com precisão como era maleável o regime interno dos bolcheviques e como funcionava o centralismo-democrático frente às questões políticas transcendentais concernentes aos destinos da revolução de Outubro. A democracia interna é elevada à enésima potência e as opiniões divergentes são expostas publicamente, todos os militantes são chamados a decidir e até mesmo a massa de operários e soldados interveio nos rumos do partido. Assim era o partido de Lenin. Assim não foi o partido de Stalin. Os debates sobre a guerra ou paz com a Alemanha imperialista Os tempos posteriores a Outubro colocaram os bolcheviques em imensas discussões internas para poderem decidir os rumos da primeira revolução socialista da história. Formaram-se, em distintas ocasiões, grupos, tendências, frações internas e frações públicas, como era, então, a tradição do partido bolchevique. Um dos casos mais importantes foi sobre a continuação ou não da guerra contra a Alemanha imperialista. Desde o começo do I Guerra Mundial, a ditadura tzarista havia feito um bloco beligerante ao lado da França e Inglaterra contra a Alemanha, Itália e o império austro-húngaro. Lenin, então exilado na Suíça, redige um manifesto do Comitê Central do partido em que afirma Não há dúvida alguma de que o mal menor, desde o ponto de vista da classe operária e das massas trabalhadoras de todos os povos da Rússia, seria a derrota da monarquia tzarista que é o mais bárbaro e reacionário dos governos, o que oprime o maior número de nacionalidades e a maior proporção da população da Europa e da Ásia.[4] A revolução de outubro materializou o pensamento leninista. No entanto, a derrubada do czar ainda manteve, em tese, a Rússia na guerra contra o imperialismo alemão. Assim relata Broué para o governo bolchevique, a paz se converte numa necessidade absoluta, tanto para satisfazer o exército e o campesinato, como também para ganhar tempo com vistas à revolução na Europa. A manobra é delicada: é preciso, simultaneamente, negociar (a paz) com os governos burgueses e lutar politicamente contra eles, isto é, utilizar as negociações como uma plataforma de propaganda revolucionária. Há que se evitar qualquer aparência de compromisso com um ou com o outro dos bandos imperialistas.[5] As negociações se iniciam na cidade de Brest-Litovsky em novembro de 1917, ou seja, imediatamente após a revolução, entre uma delegação russa e uma alemã, já que o outro bando imperialista – França e Inglaterra, aliados dos czares – se negou a delas participar. Um armistício é assinado em 2 de dezembro, permanecendo os exércitos russo e alemão inamovíveis em suas respectivas posições territoriais. As conversações de paz começam em 22 de dezembro e Trotsky é designado pelo governo soviético para encabeçar a delegação russa. Em 5 de janeiro, o governo alemão, através do general Hoffman, coloca na mesa a proposta do imperialismo: a Polônia, Lituânia, Rússia branca e metade da Letônia – todos eles territórios da então Rússia –devem permanecer ocupadas pelo exército alemão. É dado aos soviéticos apenas dez dias para dizer se aceitam, sim ou não. Se sim, a paz é assinada. Se não, a guerra continua. As três posições do comitê central dos Bolcheviques Segundo Broué, a delegação russa abandona Brest-Litovsky com uma posição baseada nas propostas de Trotsky Devem os bolcheviques ceder ao facão que ameaça com decapitálos? Podem opor resistência, como sempre disseram que fariam em semelhante circunstância, declarando a ‘guerra revolucionária’? Nem Lenin, que defende a primeira dessas posturas, nem Bukarin, partidário da segunda, conseguem a maioria no Comitê Central, que, por último, resolve seguir a posição de Trotsky por 9 votos a 7, que é colocar um fim à guerra sem assinar a paz.[6] No entanto, no dia 17 os alemães lançam um grande ofensiva nas frentes de guerra. Lenin propõe ao Comitê Central retomar as negociações de paz com a Alemanha. Novamente Lenin perde e sua proposta é derrotada por 6 a 5. Bukarin se junta a Trotsky e impõem retardar o recomeço das negociações de paz até que fique claro o rumo da ofensiva alemã e seus reflexos no movimento operário dos dois países. No dia 18 o Comitê Central volta a se reunir, já que o avanço das tropas alemãs é profundo e rápido na Ucrânia, país que, a época, fazia parte da Rússia. Lenin, ao saber disso, propõe recomeçar as negociações, Trotsky o acompanha nessa votação e ela é aceita por 7 votos a 5. o governo soviético, em consequência, tomará de novo contato com o Estado Maior alemão, cuja resposta chega no dia 23 de fevereiro. As condições se tornaram ainda piores… Desta vez se exige a evacuação da Ucrânia, Livônia e Estônia. A Rússia vai ser privada de 27% de sua superfície cultivável, de 26% de suas vias férreas e de 75% de sua produção de aço e de ferro.[7] O tratado que mutila a Rússia é assinado no dia 3 de março de 1918 em Bret-Litovsky. A retirada da guerra foi um dos principais objetivos da revolução e uma das prioridades do recém-criado governo bolchevique. Impopular entre os russos devido às imensas perdas humanas – cerca de quatro milhões de mortos- essa guerra havia trazido fome para todo o povo e uma desmoralização e decomposição do exército do czar frente às derrotas nos campos de batalha. Contraditoriamente, ela foi um dos fatores vitais para o sucesso de Outubro, já que os soldados, em sua imensa maioria camponeses, foram ganhos para a política dos bolcheviques pela oposição principista do partido ao confronto armado. Os termos do Tratado de Brest-Litovski eram humilhantes. Através deste, a Rússia abria mão do controle sobre a Finlândia, Países Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), Polônia, Bielorrússia e Ucrânia, bem como dos distritos turcos de Ardaham e Kars, e do distrito georgiano de Batumi. Estes territórios continham um terço da população da Rússia, metade de sua indústria e nove décimos de suas minas de carvão. O regime e os ‘comunistas de esquerda’ A decisão do Comitê Central de aceitar a paz com os imperialistas alemães, longe de aquietar os bolcheviques e fazer com que a minoria acate a decisão da maioria (como muitos poderiam pensar que funcionava o regime interno e o centralismo-democrático dos revolucionários de 1917) provocou ainda mais discussão no partido. Bukarin e Uritsky, ambos membros do Comitê Central, junto com Piatakov, presidente dos Comissários do Povo em Kiev e Vladimir Smirnov, dirigente da insurreição de outubro em Moscou. O grupo se afasta de suas funções e retomam a liberdade de agitação dentro do partido. Segundo Broué o comitê regional de Moscou declara que deixa de reconhecer a autoridade do Comitê Central até que se leve a cabo a reunião de um Congresso extraordinário (…) Baseado numa proposta de Trotsky, o Comitê Central vota uma resolução que garante a Oposição o direito de se expressar livremente no seio do partido. O jornal moscovita dos bolcheviques, o Social Democrata, empreende uma campanha contra a aceitação do tratado (de Brest- Litovsky) desde o dia 2 de fevereiro. A República soviética da Sibéria se nega a reconhecer a validade (do tratado de paz) e permanece em estado de guerra coma Alemanha.[8] Essa descrição de Broué mostra toda a versatilidade o regime interno dos partido enquanto Lenin viveu; como é necessário adaptar essa estrutura organizativa aos desígnios da luta de classes e às decisões que todos os militantes do partido deveriam tomar. Contrariamente ao que o stalinismo divulgou posteriormente, não há Comitê Central todo-poderoso e monolítico, não há “direção histórica” de Lenin e Trotsky que conseguiriam, organizativamente, impor suas posições de cima a baixo pelas goelas dos militantes. Diga-se de passagem, não há nada de excepcional nessa divergência que se materializou em frações públicas. Não seria a primeira vez, como já vimos nas discussões sobre a insurreição, nem a última em que as travas organizativas pudessem impedir as discussões entre os bolcheviques. Mais a frente, nas páginas de Broué sobre o partido bolchevique, pode-se ver que é sob a batuta do stalinismo que se encerrará toda e qualquer discussão no seio do partido. Dessa maneira, o bolchevismo será sepultado. Como diria Trotsky cerca de 10 anos depois, Stalin será o coveiro da revolução. Narrando a logica das frações publicas, Broué afirma no dia 4 de março, o comitê do partido em Petrogrado publicou o primeiro número de um jornal diário, o Kommunist, cujo comitê de redação está formado por Bukarin, Karl Radek e Uritsly, e que será, daqui em diante o órgão público da oposição, cujos integrantes serão conhecidos como ‘comunistas de esquerda’.[9] O Congresso do partido é realizado, tal qual pleiteia a oposição, mas estes ficam em minoria e suas teses são derrotadas. Nesse Congresso, entre outras coisas, a fração bolchevique abandona em definitivo o nome de social–democracia, que daqui em diante ficará propriedade até os dias atuais de todos os mencheviques que rastejam por esse mundo afora. É adotado o nome de partido comunista russo (bolchevique). A continuidade legal da fração após o Congresso No entanto, as discussões sobre fazer ou não a guerra revolucionária contra a Alemanha imperialista seguem. O jornal público da oposição, o Kommunist passa a ser semanal. Porém, o panorama muda radicalmente pouco tempo depois. Em 25 de maio de 1918, estala a guerra civil contra os inimigos da revolução de outubro que se sublevaram militarmente, guerra que permanecerá por cerca de dois anos e meio. Em junho, a ala esquerda do partido Socialistas Revolucionários, os SR, que fazia parte do governo soviético, “decide empreender uma campanha terrorista com o objetivo de que se recomece as hostilidades contra a Alemanha. Por ordem do seu Comitê Central, um grupo de SR de esquerda, do qual faz parte o jovem Blumkin, membro da Checa, comete um atentado com êxito contra a vida do embaixador da Alemanha, o conde Von Mirbach. Outros SR de esquerda, que também pertencem à Checa, prendem alguns responsáveis comunistas e tentam provocar um levantamento em Moscou.”[10]. Os comunistas de esquerda, com Bukarin à frente, vão participar da repressão aos SR de esquerda e se integram por completo nas frentes de batalha da guerra civil. Um ano mais tarde, em 13 de março de 1919, Segundo Broué, Lenin assim se referirá aos episódios das divergências sobre o tratado de paz com a Alemanha imperialista e sobre os “comunistas de esquerda” dos bolcheviques A luta que se originou em nosso partido no ano passado foi extraordinariamente proveitosa: suscitou inumeráveis choques sérios, porém não há luta que não tenha choques.[11] Assim Lenin compreendia as divergências internas, como algo fecundo, positivo para o partido. A democracia era o prérequisito para a unidade na ação e o mais eficaz antídoto contra toda e qualquer divisão do partido. Assim era o partido bolchevique! Bibliografia BROUÉ, Pierre. El partido bolchevique, Editorial Ayuso, 1973, Madrid LENIN, Vladimir. Oeuvres Complétes, Tomo XXVI, [1] Broué, 139 [2] Lenin, 293 [3] Broué, 139 [4] Broué, 107 [5] Broué, 155 [6] Broué, 156 [7] Broué, 157 [8] Broué, 158 [9] Broué, 158 [10] Broué, 162 [11] Broué, 162 Centralismo versus democracia? Reflexões sobre o regime leninista de partido Henrique Canary O artigo de Enio Bucchioni “A propósito do regime interno dos bolcheviques antes de fevereiro de 1917”, publicado recentemente no Blog Convergência, retoma um apaixonante e decisivo debate acerca das características mais profundas do regime leninista de partido. Trata-se de uma excelente contribuição, que deve ser conhecida por todos os ativistas, jovens e trabalhadores que ora ingressam na luta social. Sem a superação dos mitos stalinista e liberal sobre o Partido Bolchevique, não é possível construir uma organização socialista e revolucionária à altura dos desafios colocados por este início de século. A publicação de “A própósito…” coincidiu para mim com a finalização de um texto sobre o qual já vinha trabalhando há algum tempo e que acreditei conveniente publicar agora, de forma que se pudesse estabelecer um certo “diálogo” entre todos que assim o desejarem. A ideia que desenvolvo abaixo não é nem original, nem inédita. Em certa medida, ela esteve presente nas discussões do Seminário Internacional de Organização e Estrutura Partidária, promovido pelo PSTU e pela LIT-QI (Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional) em janeiro de 2014. Os debates desse seminário já se encontram publicados na revista Marxismo Vivo Nº 5 (em espanhol), que aguarda publicação em português. A única coisa que fiz foi, portanto, misturar algumas ideias minhas com ideias de muitos outros camaradas. Nada mais. Centralismo e disciplina na concepção bolchevique de partido Em 1973, o trotskista argentino Nahuel Moreno, fundador da LIT-QI, travou uma longa e complexa polêmica com outro dirigente da Quarta Internacional, o belga Ernest Mandel. Intitulado originalmente “Um documento escandaloso”, o extenso trabalho de Moreno acabou se tornando mais conhecido como O partido e a revolução, e foi editado na forma de livro inúmeras vezes e em diversos idiomas. Nele, Moreno travava uma série de debates teóricos, políticos e estratégicos contra as concepções então predominantes na IV Internacional, em cuja direção central se encontrava Mandel. Entre os vários temas tratados por Moreno, estava o problema do centralismo democrático, mais especificamente, a relação entre centralismo e disciplina. A certa altura do livro, Moreno diz: “Mas a fórmula ‘centralismo democrático’ compõe-se de dois pólos que, no limite, são antagônicos: o mais absoluto centralismo significa que a direção resolve todos os problemas – desde teoria e caracterizações até os mais ínfimos detalhes táticos, passando pela linha política geral. Quando isso é levado à prática, a democracia desaparece. Simultaneamente, a mais absoluta democracia leva a que todos esses mesmos problemas resolvam-se através de discussões que só podem acontecer num permanente estado coletivo de deliberação. E, com isso, desaparece o centralismo. A proporção com que cada elemento contribui para essa combinação, a cada momento, não pode ser fixada de antemão. Isto não é uma receita nem uma fórmula aritmética. Não é possível estabelecer, por exemplo, que o partido seja constantemente 50% centralista e 50% democrático, ou algo parecido. Nossos partidos são organismos vivos, em processo permanente de construção, razão pela qual o centralismo democrático é uma fórmula algébrica. A combinação específica entre os elementos centralista e democrático varia de acordo com o momento da construção partidária e, em cada momento, deve ser cuidadosamente redefinida.”[1] O fragmento acima citado possui uma ideia extremamente correta e útil: a de que o centralismo e a democracia não são constantes imutáveis, mas sim variáveis dentro do regime do partido. Ou seja, às vezes o partido é mais democrático, e às vezes menos. Às vezes é mais centralizado, e às vezes menos. Com isso todos concordarão porque é uma verdade evidente comprovada pela prática de todo e qualquer partido revolucionário. Mas junto com essa ideia correta está embutida uma outra, em nossa opinião errada: a de que a democracia e a disciplina variam uma em relação à outra, ou seja, de que são, em última instância, antagônicas, “dois polos”, de que quanto mais centralismo, menos democracia e vice-versa. Acreditamos que tal oposição entre centralismo e democracia é imprecisa e pode alimentar inúmeras confusões. Vejamos. Em que consiste a disciplina partidária? Ora, em primeiro lugar, no cumprimento estrito das resoluções votadas. Mas se essas resoluções são a expressão da vontade da maioria, então o seu cumprimento é também uma garantia da democracia interna, pois não há democracia se não há respeito às decisões da maioria. Assim, Moreno acerta quando diz que a democracia e a disciplina variam dentro do partido. Mas erra ao afirmar que quando uma aumenta, a outra diminuiu. Na verdade, quanto mais disciplinado é um partido de tipo bolchevique, mais democrático ele é, pois as resoluções votadas são aplicadas por todos. E o contrário: quanto mais democracia interna, mais disciplinado tende a ser o partido, pois todos os militantes participam ativamente do processo de elaboração e consideram, portanto, a política adotada como fruto também de sua atividade, de suas opiniões, de suas críticas etc. Então, os militantes se jogam com mais garra para a atividade partidária e isso fortalece a disciplina, que será a garantia de mais democracia posteriormente etc. Trata-se de um verdadeiro “círculo virtuoso”, e não de uma contradição ou luta permamente entre polos opostos. Se não há democracia interna, a centralização tende a desaparecer e o partido se desagrega em lutas fratricidas. Se não há disciplina, a liberdade de discussão torna-se uma farsa, pois nenhuma decisão tomada precisa ser realmente aplicada. É isso que nos permite afirmar que o Partido Bolchevique de Lenin, que foi o partido mais disciplinado da história, era também extremamente democrático. Trotski diz: “O regime interno do partido bolchevique é caracterizado pelos métodos do centralismo democrático. A união dessas duas noções não implica qualquer contradição. O partido velava para que as suas fronteiras se mantivessem estritamente delimitadas, mas entendia que todos os que penetrassem no interior dessas fronteiras deviam usufruir realmente o direito de determinar a orientação da sua política. A livre crítica e a luta de idéias formavam o conteúdo intangível da democracia do partido. (…) A clarividência da direção do partido conseguiu, muitas vezes, atenuar e abreviar as lutas de fração, mas não podia fazer mais. O Comitê Central apoiava-se sobre essa base efervescente e dela recebia a audácia para decidir e ordenar. A manifesta justeza das idéias da direção, em todas as etapas críticas, conferia-lhe uma elevada autoridade, precioso capital moral da centralização.”[2] (grifos meus, HC) Veja-se que o CC bolchevique recebia sua autoridade “para decidir e comandar” (centralismo) da “base efervescente” (democracia). Ou seja, no Partido Bolchevique, democracia e centralismo não eram polos opostos de uma contradição dialética, como sugere Moreno. Ao contrário, a democracia era a fonte da autoridade, do centralismo. Assim, segundo Trotski, democracia e centralismo são opostos apenas enquanto subsistem separadamente (“a união destas duas noções não implica qualquer contradição”). Uma vez unidos, estes dois fatores deixam de ser contraditórios e formam uma síntese superior: o centralismo democrático. Isso não quer dizer que, em determinados momentos, democracia e disciplina não possam variar em sentido inverso, dando, aparentemente, razão a Moreno. Mas se trata justamente disso: momentos especiais. Essas inflexões momentâneas do regime interno (durante ditaduras, combates de rua etc) não devem se refletir em todo o processo de construção do partido. São episódios. A ação prática como mediação entre disciplina e liberdade A liberdade existente dentro de um partido revolucionário não é uma concessão ao indivíduo ou às correntes internas de pensamento e suas distintas sensibilidades. Estas existem e devem seguir existindo. Mas não se trata delas. A liberdade de discussão e crítica é, antes de tudo, uma necessidade da elaboração política. O partido revolucionário impulsiona a luta e o debate político e teórico interno porque quer acertar. Assim, o próprio debate só tem sentido se conectado com as necessidades da luta real, da intervenção partidária. Ou seja, o partido leninista é a materialização da concepção altamente marxista de que o conhecimento é social e de que a verdade é um processo. Em um partido leninista, a verdade não provém da discussão. Ou não provém apenas da discussão. A discussão é um momento da busca pela verdade. Um momento decisivo, mas ainda assim, um momento. O partido leninista elabora políticas, que são sempre verdades parciais, e as leva ao movimento de massas, onde serão testadas. Da aplicação da política, surge um balanço, que deverá subir pela estrutura do partido até a direção, que por sua vez aperfeiçoará a política em base a esse balanço, chegando a um patamar superior de verdade (uma nova política, uma política ajustada), sem atingir jamais uma verdade ou política absoluta, definitiva. Por isso, o partido bolchevique rejeita o horizontalismo. Porque o horizontalismo corresponde a uma concepção falsa de que a verdade seria obtida diretamente da discussão, do simples choque de opiniões, quando ela provém de fato da combinação entre discussão e ação. E a ação mais eficaz é a ação centralizada. Por isso, a combinação entre a livre discussão e a ação centralizada é a melhor forma de se chegar à verdade. Daí se conclui que o centralismo democrático, tal como o concebe Lenin, é o melhor regime interno para um partido revolucionário. Como dizia Marx nas “Teses sobre Feuerbach”: “A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza interior [Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica.”[3] Assim, a verdade do partido bolchevique provém dos milhares de trabalhadores que recebem a sua política e respondem a ela positiva ou negativamente, acolhem ou rejeitam seus slogans, atendem ou ignoram seus chamados. A ação das massas é o critério da verdade da política bolchevique. Como era o Partido Bolchevique de Lenin? A correta compreensão da relação entre centralismo e democracia nos permite determinar a verdadeira característica do Partido Bolchevique de Lenin (não a caricatura pintada pelo stalinismo): a de que se tratava de um partido extremamente centralizado, mas com enorme iniciativa na base e grande democracia em todos os seus organismos. Como explica Broué: “De fato, nenhum argumento é mais eficaz na hora de desmentir abertamente a lenda do partido bolchevique monolítico e burocratizado do que o relato destas lutas políticas, destes conflitos ideológicos, destas indisciplinas públicas que, definitivamente, nunca são punidas. (…) Lenin, que no calor da discussão foi o primeiro a chamar Kamenev e Zinoviev de ‘covardes’ e ‘desertores’, uma vez superada esta etapa, é igualmente o primeiro a manifestar veementemente seu desejo de conservá-los no partido, onde são necessários e onde cumprem um papel difícil de substituir. No fim de 1917, o partido tolera mais que nunca os desacordos e inclusive a indisciplina, na medida em que a paixão e a tensão das jornadas revolucionárias os justificam. Enquanto há um acordo sobre o mais fundamental, ou seja, sobre o objetivo, a realização da revolução socialista, um acordo sobre os meios para realizá-la não pode surgir a não ser da discussão e do convencimento.”[4] O clima de polêmica e debate existente dentro da fração bolchevique pode ser comprovado por inúmeras e diversas fontes. Ainda em 1894, em sua polêmica com o populista Mikhailovski, Lenin afirmava: “É rigorosamente correto que não existe entre os marxistas completa unanimidade. Esta falta de unanimidade não demonstra a debilidade, mas sim a força dos sociais-democratas russos. O consenso daqueles que se satisfazem com a unânime aceitação de ‘verdades reconfortantes’, essa tenra e comovente unidade, foi substituída pelas divergências entre pessoas que precisam de uma explicação sobre a organização econômica real, sobre a organização econômica atual da Rússia, uma análise de sua verdadeira evolução econômica, de sua evolução política e do restante de suas superestruturas.”[5] Mesmo na etapa inicial de construção do partido, quando enfrentava a autocracia czarista, Lenin sempre se esforçou por garantir ao partido o máximo possível de democracia interna e iniciativa de ação na base. Pierre Broué, mais uma vez, nos conta: “Desde a época de Stalin, a maioria dos historiadores e comentaristas insiste sobre o regime autoritário e fortemente centralizado do partido bolchevique, e encontram nisto a chave da evolução da Rússia durante mais de trinta anos. No que se refere à forte centralização do partido, certamente não faltam fatos que podem dar base às suas teses. No entanto, as referências no sentido oposto são igualmente abundantes.”[6] Não faltariam citações de Lenin, Trotski ou Broué para apoiar esse ponto de vista e aprofundá-lo. Mas não parece necessário. Por último, diremos apenas que esta visão é amplamente confirmada pelo próprio Moreno, que a precisa ainda mais, distinguindo a relação entre disciplina e democracia para cada nível da estrutura partidária: “Na medida em que ascendemos no partido e vamos até os organismos de direção, o centralismo democrático se aplica de forma diferente. O centralismo e a disciplina são cada vez maiores. (…) Porém, na medida em que vamos descendo, a democracia é cada vez maior; quando chega à base é total, quase dá a impressão de que é um partido anarquista. O stalinismo desfigurou completamente a concepção de Lenin sobre o centralismo democrático, montando partidos monolíticos, em que, de cima até abaixo, todos pensam igual, todos fazem a mesma coisa. (…) A disciplina, quanto mais acima, mais severa; quanto mais abaixo, menos severa.”[7] Poderia parecer que a expressão “quase dá a impressão de que é um partido anarquista” é um um mero exagero de Moreno. Opinamos que isso não é assim, que a frase é consciente e resume corretamente um dos centros da concepção bolchevique de partido. Em primeiro lugar, porque é uma afirmação cuidadosa. Moreno não diz que “é” um partido anarquista. Diz que “quase dá a impressão”. Em segundo, porque é uma afirmação correta em seu conteúdo. O problema é como entender esse “partido anarquista”. Obviamente, não se pode entendê-lo como um partido indisciplinado, inorgânico, horizontal, sem direção etc. Moreno quer dizer simplesmente que, nos organismos de base de um partido de tipo bolchevique, deve primar um clima de ampla liberdade de discussão. Todo militante revolucionário deve saber que sua opinião é muito importante para o partido, que aquilo que ele reflete de seu local de trabalho, estudo ou moradia é a matéria-prima de toda a elaboração partidária. Todo proletário que sente na pele a opressão e a exploração deve encontrar no partido leninista um ambiente oposto ao do seu local de trabalho: um ambiente onde ele é escutado, onde suas ideias podem mudar o rumo dos debates. E tudo isso com um único objetivo: encontrar a melhor política. A verdadeira liberdade Os marxistas rejeitam o conceito de liberdade entendida como o “livre arbítrio” cristão. Para o marxismo, a liberdade nada mais é do que a satisfação consciente das necessidades. Assim, quando adotam o regime centralista democrático, os revolucionários não estão fazendo nada além de reconhecer a necessidade deste regime para a sua luta. Até certo ponto, pode-se dizer que quem “decide” realmente o regime do partido leninista é a burguesia e seu Estado, ou seja, os inimigos do proletariado. Os revolucionários apenas aceitam o terreno e as armas do duelo. É claro que qualquer partido revolucionário tem a “liberdade” de realizar um congresso e mudar o regime centralista democrático para um regime horizontalista, mas isso seria um ato de ilusão, e não um ato de liberdade. Nas belas palavras de Gramsci: “Associar-se a um movimento significa assumir uma parte das responsabilidades dos acontecimentos que se preparam, tornarse destes acontecimentos os artífices diretos. Um jovem que se inscreve no movimento juvenil socialista cumpre um ato de independência e de libertação. Disciplinar-se é torna-se independente e livre. A água é pura e livre quando corre entre as duas margens de um riacho ou de um rio, não quando se espalha caoticamente no solo ou, rarefeita, paira na atmosfera. Quem não segue uma disciplina política é por isso matéria em estado gasoso ou matéria contaminada por elementos estranhos: portanto inútil e danosa. A disciplina política faz precipitar estas sujidades e dá ao espírito o seu melhor metal, à vida uma finalidade, sem a qual não valeria a pena ser vivida. Cada jovem proletário que sinta quanto é pesado o fardo da sua escravidão de classe, deve cumprir o ato inicial da sua liberdade, inscrevendo-se no Centro Juvenil Socialista mais próximo de sua casa.”[8] Assim sendo, a oposição “disciplina x liberdade”, “centralismo x democracia”, “discussão x ação” etc só pode ser fruto de erros práticos de conduta (erros bonapartistas, anarquistas etc) ou erros teóricos na compreensão da própria natureza do centralismo democrático e do conceito marxista de liberdade. Em Lenin, no entanto, tal oposição nunca existiu. Notas: [1] MORENO, Nahuel, O partido e a revolução. São Paulo: Desafio, 1996, pp. 268-269. [2] TROTSKY, Leon, A revolução traída. São Paulo: Editora Sundermann, 2005, pp. 111-112. [3] MARX, Karl, “Ad Feurbach” [Sobre Feuerbach], in: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014, p. 533. [4] BROUÉ, Pierre, O partido bolchevique. São Paulo: Editora Sundermann, 2014, pp. 101-102. [5] LENIN, Vladimir, Selected works. Moscou: Progress Publishers, 1948, vol. IX, p. 92. (Apud BROUÉ, 2014) [6] BROUÉ, Pierre, Op. cit., p. 53. [7] MORENO, Nahuel, “Como se aplica o centralismo democrático” in: FELIPPE, Wiliam (org.), Teoria e organização do partido. Coletânea de textos de Lênin, Trotsky e Moreno, São Paulo: Editora Sundermann, 2006, p. 152. [8] Futura. GRAMSCI, A. “Disciplina e libertá”. La Cittá (https://www.marxists.org/italiano/gramsci/17/cittafutura.htm# d – Consulta em 15 de abril de 2015) A propósito do regime interno dos bolcheviques entre fevereiro e outubro de 1917 Enio Bucchioni A revolução de fevereiro de 1917 que derrubou a ditadura tzarista, segundo Broué, foi chamada de “insurreição anônima”. Levantamento espontâneo das massas, surpreendeu a todos os socialistas, inclusive os bolcheviques, cujo papel, como organização, foi nulo durante o processo insurrecional. Apesar de tal fato, seus militantes desempenharam individualmente um importante papel no trabalho político no interior das fábricas e nas ruas, como agitadores e organizadores. O pano de fundo do levante de fevereiro de 17 era a miséria das massas e a guerra. A fome, que reinava nas cidades, foi consequência da participação do governo russo na sinistra I Guerra Mundial. Nela, cerca de quatro milhões de soldados russos morreram. O tzar, ao lado da França e Inglaterra e contra a vizinha Alemanha, integrava a guerra imperialista pela dominação e hegemonia do planeta. Imediatamente após fevereiro, produz-se uma imensa fissura política na fração bolchevique, provocando uma polêmica que perdurará, na Rússia, até Outubro. Seu conteúdo e concepção, porem, perdurará até nossos dias. As teses de Abril Stalin e Kamenev, recém-libertos da prisão, assumem a direção do jornal Pravda e sustentam a posição de que a Rússia deveria continuar na guerra. Segundo Broué, para ambos, “a função dos sovietes era manter o governo provisório na medida em que siga o caminho de satisfação das reivindicações da classe operária”[1], ou seja, dão um “apoio condicional” ao governo burguês de colaboração de classes. Em essência, Kamenev e Stalin tinham a mesma posição dos mencheviques. Na conferência dos bolcheviques efetuada no dia 1 de abril fica acertado se considerar a reunificação com os mencheviques. Alguns membros da direção dos bolcheviques que estavam na Rússia, como Alexandra Kolontay e Alexander Shliapknov, são contrários a essas posições. Ao mesmo templo, Lenin, então exilado, escreve as famosas teses de abril, iniciando a explosão de discussões no interior da fração bolchevique. Todos os militantes são chamados a decidir o futuro do partido e da revolução. Dois aspectos deste caso são importantes de realçar. Primeiro, haverá, além de dois Congressos e inúmeras reuniões do seu Comitê Central, várias conferências da fração bolchevique durante os oito meses de intervalo entre fevereiro e outubro. Nelas, como sempre, os militantes participarão das discussões de todas as questões candentes pertinentes à revolução. Nenhuma discussão ficou bloqueada no interior da direção central. Houve total democracia interna para resolver as questões de estratégia e tática, bem como de concepções da revolução, sem que as diversas alas ou agrupamentos formados fossem expulsos por divergirem da linha oficial da maioria ocasional dentro do Comitê Central. A bem da verdade, nenhuma das alas em pugna quis expulsar a outra, nem tampouco qualquer uma delas ameaçou cindir o partido. Segundo, quando Lenin retornou à Rússia depois de muitos anos de exílio, já ao descer do vagão blindado que o trouxe de volta, defendeu publicamente uma linha política oposta ao da Conferência de 1 de abril. Mais tarde, no dia 7, ela foi publicada no jornal Pravda, o órgão de propaganda dos Bolcheviques. Sob o título “Das Tarefas do Proletariado na Presente Revolução”, suas famosas teses de Abril saíram do espaço do debate interno, podendo ser lida pelo publico como um todo. Assim era a fração bolchevique e o seu regime interno, bem como a materialização versátil do centralismo-democrático em plena revolução em marcha. Será que Lenin não teria de esperar o próximo Congresso ou Conferência dos bolcheviques, baixar suas teses de abril após a abertura oficial do pré-Congresso, e só depois disso, os militantes teriam acesso às divergências dentro da direção? Se assim o fizesse, se assim fosse o regime interno dos bolcheviques, não teria havido, com certeza, a revolução de Outubro. Uma vez mais, as questões políticas centrais antecedem qualquer regime interno e suas normas organizativas. Diante de tais polêmicas de vulto, o centralismo tem de ceder diante da necessária democracia interna. Dezessete dias depois da publicação das Teses no Pravda, foi realizada uma conferência nacional. Ela contou com a participação de 149 delegados eleitos por cerca de 80 mil militantes, isto em um país cuja população era de cerca de 160 milhões de pessoas. Do ponto de vista das proporções, em abril havia 1 bolchevique para cada 2 mil habitantes. Em outubro o número de militantes bolcheviques passou para perto de 240 mil, o que significaria 1 bolchevique para cada 667 habitantes, cifras absurdamente altas se as comparássemos com o Brasil atual. Lenin jamais foi advertido por sua conduta no começo de abril. O máximo que a direção fez foi uma publicação de Kamenev no Pravda alegando que “tais teses representam apenas a opinião pessoal de Lenin”[2]. Também se engana quem crê que Lenin ganhou de cabo a rabo a totalidade das discussões propostas em suas Teses nessa Conferência. Ele ganhou – junto com Zinoviev e Bukarin , por ampla maioria – sobre a questão da guerra, ou seja, propondo a retirada da Rússia da guerra inter-imperialista. Venceu sobre a transferência do poder do Estado para os sovietes após um trabalho paciente e prolongado de conquistar as massas para tal fim. No entanto, obteve tão somente 60% dos votos na resolução que afirmava a necessidade de empreender a via da revolução socialista. E, finalmente, é derrotado no que se refere à resolução de mudança de nome do partido, já que o tradicional nome social-democrata significava, desde 1914, o conceito de traidores e defensores das burguesias nacionais em relação à I Guerra mundial dentro do movimento operário russo e internacional.[3] O regime interno às vésperas da insurreição Nas Teses de Abril, Lenin afirmava: enquanto estivermos em minoria, desenvolveremos um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros, defendendo ao mesmo tempo a necessidade de que todo o poder de Estado passe para os Sovietes de deputados operários, a fim de que, sobre a base da experiência, as massas se libertem dos seus erros.[4] Ou seja, não estava na ordem do dia a tomada do poder. Cerca de quinze anos depois, Trotsky recordaria desse mês de abril no livro “Revolução e Contra-Revolução” na Alemanha com as seguintes palavras Entretanto, o Partido chegou à insurreição de outubro, passando por uma série de degraus. Durante a demonstração de abril de 1917, uma parte dos bolcheviques lançou a palavra de ordem: “Abaixo o governo provisório”. O Comitê Central logo chamou à ordem os ultra-esquerdistas. Devemos, bem entendido, propagar a necessidade de derrubar o governo provisório; mas, não podemos ainda chamar as massas à rua por essa palavra de ordem, pois estamos ainda em minoria na classe operária. Se, nessas condições, conseguirmos derrubar o governo provisório, não o poderemos substituir e, por conseguinte, auxiliaremos a contra-revolução. É preciso explicar pacientemente às massas o caráter antipopular desse governo antes que soe a hora de sua derrubada. Tal foi a posição do Partido.[5] Porém, cinco meses depois, refugiado na Finlândia devido às perseguições das jornadas de julho, Lenin escreve em 13 de setembro para o Comitê Central bolchevique, que se reuniria no dia 15 sem a sua presença Depois de haver conseguido a maioria no interior dos sovietes das duas capitais (Petrogrado e Moscou), os bolcheviques podem e devem tomar o poder (…) A história jamais nos perdoará se não tomarmos o poder agora.[6] Novamente a fração bolchevique se vê engalfinhada numa brutal luta interna. Segundo Broué “Lenin está separado da maioria dos dirigentes bolcheviques por uma distância igual a que estava no mês de abril”. Mais adiante, as cartas de Lenin com esse conteúdo “não conseguem convencer o Comitê Central. Kamenev se pronuncia contrário às propostas de Lenin e exige que o partido tome medidas contra qualquer tentativa de insurreição. Trotsky é partidário da insurreição, porém pensa que esta deve ser decidida pelo congresso pan-russo dos sovietes. Por fim, a maioria dos membros do Comitê Central se inclina pela posição de Kamenev, que propõe que sejam queimadas as cartas de Lenin, deixando-as sem resposta.” Assim era a receptividade que a maioria do CC dava às posições da “direção histórica” do partido, a mais alta “autoridade”, ao mais “prestigiado” dos bolcheviques. [7] Esse relato expõe, uma vez mais, a fratura aberta na fração bolchevique em torno da discussão sobre ir ou não à insurreição e, se sim, de que maneira. Aí se misturam questões de estratégia e tática sem precedentes. A luta interna extravasa por completo os limites do regime interno, do centralismo-democrático. Novamente a política ultrapassa a esfera organizativa. De modo fracional, fora dos marcos do regime interno, uma vez mais, Lenin começa a batalha política. A história mostraria se tinha ou não razão em sua ação. Afirma Broué Lenin convence plenamente o jovem Smilga, presidente do soviet regional do exército, marinha e dos operários da Finlândia e começa a conspirar com ele contra a maioria do comitê central e o utiliza para ‘fazer propaganda dentro do partido’ em Petrogrado e em Moscou, examina com ele os mais diversos planos para por em marcha a insurreição e bombardeia o comitê central com uma série de cartas veementes que denunciam os “titubeios” e “vacilações” dos dirigentes.[8] Em 29 de setembro, menos de um mês antes da revolução, Lenin “afirma que considera inadmissível que não se tenha respondida às suas cartas e, mais ainda, que o Pravda censure os seus artigos, pois isso tem toda uma aparência de ‘uma delicada alusão ao amordaçamento e um convite a se calar”[9]. Assim, ao insistir que suas posições sejam veiculadas no Pravda, Lenin se propõe organizar uma fração política pública e ameaça se demitir do Comitê Central de modo a poder, legalmente no sentido do regime interno, ter o direito de fazer propaganda nas fileiras do partido. Afinal, em 10 de outubro, consegue, por 10 votos a 2, que o comitê central aceite sua proposta sobre a insurreição. Os dois votos contrários são de Zinoviev – braço direito de Lenin durante os anos anteriores – e Kamenev. Segundo Broué, estes dois ”desde o dia seguinte apelam contra a decisão do Comitê Central em sua ‘Carta sobre o momento atual’, dirigida às principais organizações do partido”.[10] Uma vez mais esse episódio revela o funcionamento do regime interno da fração bolchevique, que extrapola o senso comum de todos os que viveram uma militância em partidos que se reivindicam leninistas. Naquele momento, todos os militantes da fração bolchevique são imediatamente convocados a participar da discussão e decidir os rumos do partido. Os bolcheviques não aprisionam as divergências na redoma do seu Comitê Central e, via o centralismo-democrático ou por fora dele, as posições divergentes chegam aos quadros partidários e, daí, às bases. Tanto é assim que alguns poucos dias depois, Zinoviev e Kamenev lançam suas posições contra a insurreição publicamente no jornal de Maximo Gorki. Lenin, em cartas enviadas ao partido, chama Zinoviev e Kamenev de “fura-greves” e exige a expulsão deles, o que não é aceito pelo comitê central após duras discussões. Vitoriosa a insurreição, na tarde de 25 de outubro é inaugurado o Congresso dos Sovietes que tomaria o poder em suas mãos. Kamenev é proposto para ocupar a presidência do órgão representando o partido bolchevique. Em 1919, Zinoviev é eleito presidente do Comitê Executivo da Internacional Comunista, a recém-criada III Internacional. Assim se forjava a unidade e a coesão do partido. Assim eram tratados os militantes que divergiam, nas ocasiões mais tensas e fundamentais, sobre as questões políticas mais transcendentais nos dias que abalaram o mundo. Assim era a fração bolchevique. Referencias Bibliográficas: BROUÈ, Pierre. El partido bolchevique, Editorial Ayuso, 1973, Madrid LENIN, Vladimir. Obras Escolhidas em três tomos, Edições Avante!, 1977, Lisboa https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm (consultado dia 16 de Abril de 2015) TROTSKY, Leon. Revolução e Contra-Revolução na Alemanha, Editora Lammert, 1968, Rio de Janeiro BUCCHIONI, Enio. A propósito do regime interno dos bolcheviques antes de fevereiro de 1917, Blog Convergência, http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p= 4096 (consultado dia 16 de Abril de 2015) Notas: [1] Broué, 116 [2] Broué, 119 [3] Broué, 121 [4] Lenin – https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm [5] Trotsky, 71 [6] Broué, 130 [7] Broué, 133 [8] Broué, 131 [9] Broué, 132 [10] Broué, 132 A propósito do regime interno dos bolcheviques antes de fevereiro de 1917 Enio Bucchioni Recentemente foi traduzido e impresso para a língua portuguesa pela editora Sundermann o precioso livro O Partido Bolchevique, do renomado historiador francês Pierre Broué. Eu havia lido em espanhol e, por mero acaso e curiosidade, voltei a folheá-lo por inteiro. Inúmeras são as informações que nos fazem saborear avidamente o texto de Broué do princípio ao fim, conforme a brilhante resenha recentemente feita pelo companheiro Ramsés Eduardo Pinheiro no Blog Convergência. Nas primeiras dezenas de páginas de um montante de oitocentas e cinquenta e nove há um assunto extremamente interessante e apaixonante que talvez passe despercebido pelos leitores que tenham pouca militância política ou que nunca foram adeptos de algum partido. Trata-se da concepção do regime interno baseado no centralismo-democrático criado por Lênin na fração bolchevique do Partido Operário Social-Democrata Russo, POSDR, cujas linhas mestras estão delineadas no livro “Que Fazer”, de 1902. A bem da verdade, porque poucos sabem ou se recordam, antes de 1918, todas as correntes marxistas existentes na antiga Rússia se encontravam no POSD-R. No seu interior havia as mais variadas frações, tendências e grupos ao redor das duas principais correntes: os mencheviques e os bolcheviques. Havia, no entanto, um só Partido. A rigor não havia o Partido Bolchevique até alguns meses após a revolução de 1917, mas sim a fração bolchevique do POSD-R. Somente em março de 1918 é que foi fundado o Partido Comunista Russo (bolchevique). Nas páginas de Broué está a descrição trágica da passagem do regime interno baseado no centralismo e na democracia da época de Lênin, para o centralismo burocrático ou de caserna, em vigor desde a crescente dominação do stalinismo. A partir de meados da década de 20, este centralismo burocrático implantado no Partido Comunista da União Soviética, logo se espalhou para todos os partidos da III Internacional, incluindo aí o Partido Comunista do Brasil e o seu sucedâneo, o Partido Comunista Brasileiro. Tal processo levou à morte da democracia interna e o surgimento do poder absoluto e da infalibilidade dos seus secretários-gerais tipo Stalin, Prestes e demais burocratas. Lênin vota contra a sua própria fração Após a primeira revolução de 1905, derrotada, seguiu-se um período de muitos anos de extrema reação por parte da ditadura tzarista. O movimento operário entrou em profundo refluxo, foram inúmeras as prisões de militantes do POSD-R e até mesmo muitos deles abandonaram suas atividades partidárias. Segundo Broué “Apesar da desilusão de muitos militantes, bem como das numerosas deserções, os bolcheviques voltam a empreender as tarefas que haviam iniciado clandestinamente antes de 1905. No entanto, eles também não se veem livres de divergências internas. A maioria queria boicotar as eleições, desta vez porque a lei eleitoral de Stolypin faz com que seja impossível para a classe operária estar representada equitativamente. Sobre essa questão, Lênin opinava que tal palavra de ordem, lançada num momento de apatia e de indiferença na classe operária, corre o risco de isolar os revolucionários, que, em vez de disso, deveriam se apegar a todas as ocasiões que lhes fossem oferecidas para desenvolver publicamente o seu programa. Tanto as eleições como a III Duma devem ser utilizadas como tribuna para os socialistas que, apesar de não terem nenhuma ilusão sobre a sua verdadeira natureza, não podem desperdiçar essa forma de propaganda. Apesar do isolamento em que se encontrava dentro de sua própria fração, Lênin não vacila em votar sozinho, junto com os mencheviques, contra o boicote das eleições , isso na conferência de Kotka no mês de julho de 1907. Contudo, os partidários do boicote voltam a tomar a iniciativa depois das eleições, pedindo a demissão dos socialistas que tinham sido eleitos. Esses partidários da “retirada”, conhecidos como “otzovistas”, encabeçados por Krasin e Bogdanov – ambos até então braço direito de Lênin e membros do Comitê Central do POSD-R ,segundo Broué – seguem aumentando seus contingentes através do apoio do grupo “ultimatista” do comitê de Petrogrado, que se manifestam contrários a toda participação nas atividades legais, inclusive nos sindicatos, intensamente vigiados pela polícia”.[1] Lênin não foi expulso pela quebra do centralismo-democrático, nem sequer censurado por ter votado com os mencheviques contra todos os bolcheviques de sua própria fração. Nessa ocasião Lênin julgava importantíssima a participação da socialdemocracia nas eleições parlamentares, tanto assim é que foi o responsável direto na orientação dos bolcheviques nesse processo e entendia como nenhum outro toda a complicada e insólita legislação eleitoral da Russia tzarista. Lênin escreveu muitas centenas de páginas sobre as eleições para a Duma, polemizando contra os mencheviques – que propunham aliança com a burguesia liberal – em detrimento da conformação de um bloco de esquerda entre a social-democracia, os socialistas revolucionários e os trudoviques. Posteriormente, Lênin convence a maioria dos bolcheviques para suas posições. O que se pode depreender dos fatos relacionados acima é que não é o modelo organizativo que deve reger a política, mas sim é a política prática é que deve modelar o regime interno de um partido. A política rege a organização e não o seu inverso. A concepção de Lênin sobre as divergências internas Conforme registra Broué “Desde 1894 Lênin afirmava em sua polêmica com o populista Mikailovsky: ‘É rigorosamente certo que não existe entre os marxistas a completa unanimidade. Esta falta de unanimidade não revela a fraqueza mas sim a força dos social-democratas russos. O consenso daqueles que se satisfazem com a aceitação de “verdades reconfortantes”, esta terna e comovedora unanimidade, foi substituída pelas divergências entre pessoas que necessitam uma explicação da organização econômica real, da organização econômica atual da Rússia. Uma análise de sua verdadeira evolução econômica, de sua evolução política e do resto de suas superestruturas”.[2] Mais adiante Broué dá a visão cabal de como Lênin encarava as discussões internas dentro de sua fração bolchevique: “As divergências de opinião no interior dos partidos políticos ou entre eles” escreve Lênin em julho de 1905, “se solucionam geralmente não somente com as polêmicas, senão também com o desenvolvimento da própria vida política. Em particular, as divergências a propósito da tática de um partido terminam por se liquidar, de fato, pela adesão à linha correta pelos mantenedores das teses errôneas, já que o próprio curso dos acontecimentos elimina dessas teses o seu conteúdo e o seu interesse”.[3] Assim era a compreensão leninista acerca do regime interno do seu partido. As diferenças são necessárias, benvindas e fortalecem o partido. A unanimidade é burra, diria alguém anos mais tarde. No partido stalinista, a unanimidade sempre foi um fator constante. No entanto, as divergências internas, em consequência da visão de Lênin, devem ter um desfecho no transcorrer da luta de classes real e não apenas nas discussões intestinas, pois as visões corretas ou equivocadas são testadas e verificadas na realidade. A prática seria o critério da verdade. A justeza da linha política – defendidas pela maioria ou pelas minorias – seria posta à prova pelo partido em suas ações e/ou em seus balanços de atividades. Aqui também há em Lênin o critério da provisoriedade de tempo em relação às divergências internas, ou seja, o surgimento de blocos, grupos, tendências e frações devem ser fenômenos conjunturais em função de qual seria a melhor política para a intervenção do partido na luta de classes no momento dado. Não há espaço, na visão Leninista, para agrupamentos vitalícios. Os agrupamentos eternos são da era stalinista, em função dos interesses em comum da casta burocrática e dos seus privilégios materiais e de prestígio derivados da manutenção do poder. O regime interno: meio e não fim Um partido tem sua unidade baseada em pressupostos programáticos e históricos reivindicados em comum por seus militantes. Na época de Lênin, era a reivindicação das heranças teóricas de Marx e Engels que forjavam essa unidade. Tanto assim é que havia um único partido, o Partido Operário Social-Democrata Russo, POSD-R, e todos os seus membros se reivindicavam marxistas. No entanto, havia várias interpretações distintas acerca do marxismo e de sua aplicação na prática política. Isso configurava tendências teóricas, políticas, estratégicas e táticas, muitas vezes distintas tanto no seio da II Internacional bem como em suas secções nacionais. No entanto, o centralismo-democrático garantia o fundamental, ou seja, a unidade do partido para a ação baseada nas proposições políticas da maioria. Segundo Broué “Em realidade, o propósito fundamental de Lênin foi construir um partido para a ação e, desde esse ponto de vista, nem a sua organização, nem a sua natureza, nem o seu desenvolvimento, nem seu próprio regime interno podiam ser concebidos com independência das condições políticas gerais, do grau de liberdades públicas existentes e da relação de forças entre a classe operária, o Estado e as classes possuidoras”.[4] Ou seja, a política é que determina o regime interno e a organização, e não o inverso. Como veremos adiante, muitas vezes o próprio Lênin “quebrará” o centralismo-democrático, o regime interno, em função de momentos importantes da luta de classes onde um erro político de estratégia ou de tática poderia trazer prejuízos incalculáveis para o proletariado e suas lutas. O obrerismo stalinista sepultou a democracia interna Um dos aspectos mais relevantes da fração bolchevique era a formação teórica dos seus quadros mais antigos que iriam formar a coluna vertebral revolucionária de Outubro. Essa verdadeira obsessão de Lênin vem desde muito cedo, desde , pelo menos, 1902, conforme se pode ler no “Que Fazer”: “Este fato testemunha que a primeira e mais imperiosa das nossas obrigações é contribuir para a formação de operários revolucionários que, do ponto de vista da sua atividade no partido, estejam ao mesmo nível que os revolucionários intelectuais (sublinhamos: do ponto de vista de sua atividade no partido, porque sob outros aspectos não é, antes pelo contrário,, tão fácil nem tão urgente, embora necessário, que os operários atinjam o mesmo nível). Por isso, devemo-nos dedicar principalmente a elevar os operários ao nível dos revolucionários e não a descer, nós próprios, ao nível da “massa operária”, e infalivelmente ao nível do ‘operário médio’”.[5] Broué em seu livro reforça a visão leninista sobre a questão da formação “Em suas fileiras se acostuma a aprender a ler e cada militante se converte em responsável pelos estudos de um grupo onde se educa e se discute. Os adversários do bolchevismo costumam se burlar desse gosto deles pelos livros que, em determinados momentos, converte o partido numa espécie de “clube de sociologia”; no entanto, a preparação da conferência de Praga contribuiu com toda espécie de garantias para a efetividade da escola de quadros de Longjumeau, integrada por várias dezenas de militantes que escutam e discutem quarenta e cinco lições de Lênin, trinta das quais versam sobre economia política e dez sobre a questão agrária, e além disso, são vistas aulas de história do partido russo, de história sobre o movimento operário ocidental, de direito, de literatura e técnica jornalística”.[6] Toda essa formação de quadros nos anos anteriores à revolução foi extremamente importante. Entre outros motivos, porque só pode haver democracia interna num ambiente entre militantes em certa igualdade de condições culturais, intelectuais e de formação marxista, de modo que cada um tenha opinião própria, não ficando a reboque dos mais “politizados”, dos “mais velhos” ou dos “dirigentes” tradicionais. O estímulo à formação coletiva e individual deve ser sempre uma diretriz de todo partido que se reivindica do socialismo. Muitas vezes o que se vê é o estímulo ao “tarefismo” desenfreado, ou seja, há uma divisão de funções num partido despolitizado: aos dirigentes cumpre pensar e “dirigir”, para os demais cumpre executar, cumprir as tarefas. Outras ocasiões o que se nota é o “estudo dirigido”, ou seja, o estudo “selecionado” apenas para aprovar a linha política estabelecida pelo partido. Em ambos os casos não se formam militantes comunistas, marxistas, capazes de raciocinar, debater e opinar conforme o que pensa. O que se tem é um militante médio que tenda a seguir, de forma acrítica, o raciocínio de outro “mais capaz” ou “mais “velho”, gerando a desigualdade e o emblocamento de posições de forma automática. Há quem ignore a história da fração bolchevique ou apenas a conheça de modo superficial. O próprio Lênin esteve várias e várias vezes em minoria dentro do partido, perdendo discussões para os seus próprios discípulos. Mas, há quem creia que Lênin foi Deus e sempre esteve certo. Como se fosse possível um eterno vencedor das polêmicas internas, um dirigente infalível. O único infalível, segundo os stalinistas, foi o próprio Stalin, ainda que os cristãos acham que o Papa assim o é. O começo do fim da democracia interna no partido bolchevique acontece com sinistra “Promoção Lênin”, em 1924, logo após sua morte. Em essência, tal política consistiu no recrutamento massivo para o partido, sem estágio probatório, de duzentos mil novos membros operários, que foram incorporados nessa “promoção”. Quase todos eram inexperientes, mas já elegíveis para cargos de responsabilidade. Desse total, 30% apenas sabiam ler, e não mais do que 10% eram capazes de manter um debate político sério. Em cima e no controle deles existia um aparelho enorme e piramidal, em cujo vértice encontrava-se Stalin, secretário-geral do Politburo e membro do Burô de Organização. Em mãos do aparato, esse contingente de operários despolitizados se converte numa dócil massa de manobra que sempre seguia e votava nos dirigentes oficiais. Evidentemente, já não temos mais a igualdade entre os membros do partido e, portanto, morre a democracia interna e o regime leninista. Inteligentes e imbecis, rebeldes e disciplinados Broué narra um episódio extremamente interessante no livro citado, onde, durante a I Guerra Mundial, ele e Bukarin não chegavam a um acordo em relação ao problema do Estado. Note-se que Bukarin, bem mais jovem que Lênin, havia sido educado politicamente pelo maestro. Nessa controvérsia entre os dois, Lênin pede a Bukarin que não publique nenhum trabalho sobre essa questão de modo a não acentuar os desacordos entre eles, já que, segundo Lênin, nenhum dos dois tinha estudado suficientemente o tema. No decorrer dos anos, Lênin e seu discípulo Bukarin iriam ter outras divergências, entre as quais a mais famosa ficou por conta da assinatura ou não do tratado de paz de Brest-Litovsky com a Alemanha imperialista meses após a revolução de Outubro. Broué expõem da seguinte forma a visão de Lênin sobre o regime interno do partido: “Que os sentimentais se lamentem e deem os seus gemidos: mais conflitos!Mais diferenças internas! Ainda mais polêmicas! Nós responderemos: jamais se formou uma social-democracia revolucionária sem o contínuo surgimento de novas lutas”.[7] Mais adiante, Lênin sentencia que o primeiro dos deveres de um revolucionário é criticar os seus próprios dirigentes. A opinião dele quando escreve a Bukarin, segundo Broué, é “que se o partido excluísse os militantes inteligentes, porém pouco disciplinadas, e ficasse apenas com os imbecis disciplinados, afundaria.”[8] A esse respeito, completa Broué, a história do partido bolchevique, como a de sua fração, são de uma larga sucessão de conflitos ideológicos que Lênin vai superando sucessivamente através de uma prolongada dose de paciência. Da unidade de critérios surge da discussão, quase permanente, que se opera, tanto sobre as questões fundamentais como a propósito da tática a seguir a cada momento. Notas: [1] Broué, p. 60 [2] Broué, p. 72 [3] Broué, p. 73 [4] Broué, p. 73 [5] Lenine, p. 132 [6] Broué, p. 91 [7] Broué, p. 94 [8] Broué, p. 94 – 95 Bibliografia BROUÉ, Pierre. El partido bolchevique, Editorial Ayuso, 1973, Madrid LENINE, Vladinir Ilich Uianov. Que Fazer, Editorial Estampa, 1973, Lisboa História e engajamento: uma resenha de O Partido Bolchevique de Pierre Broué Ramsés Eduardo Pinheiro Recentemente publicado pela Editora Sundermann, o livro O Partido Bolchevique[1], escrito pelo historiador trotskista Pierre Broué, cujo falecimento completa 10 anos em 2015, é uma obra de fôlego sobre a trajetória da organização revolucionária que transformou a história da Rússia e influenciou profundamente os acontecimentos políticos do século XX. O leitor que pretende ler esta obra esperando encontrar alguma glorificação do Partido Bolchevique[2] certamente se decepcionará. Tão pouco encontrará os bolcheviques como “homens com a faca nos dentes” ou “assassinos de crianças” como pontua o próprio autor[3]. Ao contrário, durante os vinte capítulos que constituem o livro, Broué nos apresenta este partido vivo, cujo principal mérito foi ter “conquistado o poder político e colocado o problema prático da realização do socialismo”. O ponto de partida de Broué para a elaboração desta obra, publicada originalmente em 1963, pode ser localizado no seu prefácio à edição de 1972, escolhida para iniciar a edição brasileira. Neste prefácio, o historiador pontua que “A história do Partido Comunista (Bolchevique) constitui, sem dúvida, um dos fenômenos decisivos para a compreensão do mundo contemporâneo”. Acrescentando em seguida que “o passado deve nos servir para compreender e interpretar o presente”[4]. Ao adotar tal perspectiva, Broué assume um lugar preciso na produção do conhecimento que está longe de se pretender neutro. Este historiador escreveu a história do Partido Bolchevique visando compreender o seu próprio presente, tempo no qual àquele partido havia se convertido em obstáculo à mobilização dos trabalhadores e à revolução socialista. Todavia, na esteira da sólida tradição do materialismo histórico, Broué não pretende apenas interpretar seu tempo, também quer transformá-lo, motivo este que o levou anos antes a combater na resistência francesa contra a ocupação nazista na 2º Guerra e se integrar nas fileiras da IV Internacional. Ainda no prefácio, Broué apresenta a perspectiva que atravessa todo seu trabalho, mas deixemos que ele mesmo a exponha: “Considerar o fato, tão óbvio e tão esquecido, de que nada estava realmente “escrito” de antemão. Sem dúvida, tal movimento era historicamente necessário e o nascimento do partido bolchevique não foi um acidente, nem fruto do mero azar, mas sua vitória ou sua derrota em 1917, seu pleno desenvolvimento ou sua posterior degeneração estavam em ambos os casos profundamente enraizados nas realidades da época. Em outras palavras, trabalhamos guiados pela certeza de que, tanto antes como depois de 1917, na União Soviética se enfrentaram uma série de forças sociais, econômicas e políticas, antagônicas e contraditórias, num cenário comum e muitas vezes sob a mesma bandeira, gerando uma série de conflitos cuja resolução não estava determinada de antemão”[5]. Ao se guiar por esta orientação geral, Broué rejeita qualquer concepção determinista de história, filiando-se a uma tradição “antideterminista e antidogmática da história” da qual o próprio Trotsky foi um dos principais representantes com a obra História da Revolução Russa como ressaltou Álvaro Bianchi em texto sobre o tema[6]. Broué não poupa esforços em ressaltar, durante todo seu trabalho, que a degeneração do partido bolchevique não era algo que estava previamente determinado pelas condições e sociais da Rússia do início do século XX. Embora Broué ressalte em diversas ocasiões o atraso econômico, a guerra civil e o isolamento da Rússia como elementos que explicam a burocratização do partido, ele também pontua que esse processo não era inexorável. O enfoque do historiador recai, sobretudo, sobre as incessantes lutas internas que marcaram a trajetória do partido bolchevique. Reconstitui, assim, as diversas batalhas da oposição que enfrentou o aparato burocrático no interior desta organização e que, em circunstancias históricas diferentes, poderiam ter reconduzido o partido e o Estado Soviético a posição de vanguarda da revolução socialista mundial. Nesta abordagem reside toda a magnitude do livro de Broué, os 06 primeiros capítulos desta obra reconstituem o percurso destes homens de carne e osso, aqueles jovens que escolheram se tornar militantes do partido bolchevique e dedicar suas vidas à causa da revolução. Destaco o terceiro capítulo, “O bolchevismo: o partido e os homens”, onde Broué se debruça sobre a concepção de partido defendido pelos bolcheviques, o funcionamento desta organização, o perigo e as incertezas da militância cotidiana e também o papel de Lênin na construção do partido, não o ser infalível criado pelo stalinismo, mas “o velho”, como era chamado por seus camaradas, o “professor” e, ao mesmo tempo, “veterano”[7]. Nos cinco capítulos seguintes (7º ao 11º), Broué aborda o processo de burocratização do partido bolchevique e a luta da oposição contra este fenômeno. Sobre as origens da burocratização do partido, o historiador argumenta que “desde a tomada do poder e, principalmente, desde o começo da guerra civil, os antigos revolucionários profissionais deixam de ser militantes cujo campo de ação é o partido e a classe”, transformando-se, como disse Bukharin, em “chefes do exercito, soldados, administradores e governantes operários”[8]. Enfatizando o caráter objetivo deste processo, no qual os militantes do partido foram sugados pelas atividades de administração do Estado, Broué recorre a Trotsky para explicar de forma pedagógica como este processo gerou uma casta privilegiada no interior da União Soviética. Como acentuado por Broué, este processo tem conseqüências diretas sobre o partido bolchevique. A multiplicação de funções administrativas no Estado foi acompanhada por transformações na estrutura do partido, seja através da criação do birô de organização no seu VIII Congresso (1919), cuja principal atribuição era a distribuição dos dirigentes bolcheviques em diferentes postos, ou da criação do cargo de Secretário do Comitê Central, auxiliado por inúmeros outros secretários[9]. O crescimento do número de funcionários do partido que formam este aparato, ou “apparatchiks” na expressão do bolchevique Sosnovsky, passa por uma escalada vertiginosa a partir de então. De forma silenciosa um grupo de apparatchiks se fortalece no interior do partido, constituindo-se aos poucos como seu núcleo dirigente, cuja principal expressão será Stálin que se torna secretario geral em 1922[10]. É nesta perspectiva que Pierre Broué reconstitui as primeiras manifestações contra a burocratização do partido bolchevique, acentuando que ainda era possível uma reorientação do seu caráter, o que foi defendida até as últimas conseqüências pelos velhos bolcheviques. Nesta perspectiva o historiador revisita a formação da oposição de esquerda em 1923, formada por combatentes bolcheviques da velha guarda como Preobrazhensky, Serebriakov, Sosnovsky e Trotsky que denunciaram sem cessar a “hierarquia do secretariado”. Um dos pontos altos do livro é a narrativa de Broué sobre a última batalha da oposição na URSS, tratava-se de garantir a participação dos seus delegados no XV Congresso do partido que ocorreria no final de 1927. A despeito da repressão do aparato burocrático, os oposicionistas conseguem imprimir 30 mil exemplares de sua plataforma. Sobre este derradeiro combate, Broué pontua que militantes oposicionistas como Trotsky e Zinoviev foram aos bairros operários de Moscou e Leningrado, distribuíram sua plataforma, ocuparam um dos anfiteatros da Escola Técnica Superior de Moscou e discursam a luz de vela por duas horas expondo suas críticas ao aparato. Apesar dos esforços imensuráveis da oposição, o restante da história já é bem conhecido, poucos dias depois os mesmos Trotsky e Zinoviev serão expulsos do Comitê Central e, posteriormente, do próprio partido, o que desencadeia uma profunda repressão contra todo e qualquer dissidente. A consolidação definitiva do aparato que formava o núcleo dirigente do partido desde o inicio dos anos 1920 se efetiva no início da década seguinte. Broué dedica os 07 capítulos seguintes (12º ao 18º) à análise da trajetória do partido durante o apogeu do processo de burocratização, período no qual o grupo representado por Stálin exerceu um domínio quase absoluto sobre o partido e o Estado. O ponto alto desta análise recai sobre o processo de depuração promovido pelo aparato contra seus inimigos, do qual os processos de Moscou e o assassinato de Trotsky foram apenas os casos mais expressivos de um extermínio físico de milhões de dissidentes. Os dois últimos capítulos do livro de Broué (19º e 20º) abordam o processo de desestalinização, iniciado com o informe secreto de Krushev no XX Congresso do PCUS em 1956 que expôs os “Crimes de Stálin”. O historiador francês enfatizou que a desestalinização não questionou em nenhum momento o processo de burocratização subjacente às atrocidades cometidas por Stálin, tampouco a repressão às diferentes oposições que combateram a burocratização do partido nos anos 1920, evidenciando os limites intrínsecos a este processo. Nestes capítulos finais, Broué expõe com toda sua habilidade o que a meu ver constitui seu principal argumento: o renascimento do pensamento socialista e revolucionário que ocorreu em meio ao processo de desestalinização e se expressou através de uma retomada da tradição bolchevique de 1917. Broué argumenta que: Depois da reação provocada pelo isolamento da URSS e alimentada entre as duas guerras pela repressão exercida pelo aparato burocrático, uma série de novas gerações retomam em 1956 e 1957 os vínculos com a tradição, o pensamento e a prática revolucionários de 1917, ocultadas até então por obra de comentaristas parciais[11]. Este movimento revolucionário é sobejamente analisado por Broué através da insurreição dos operários de Berlin Oriental e da greve dos prisioneiros do Campo de Concentração de Vorkuta na URSS, ambas ocorridas em 1953, bem como da “primavera de outubro” na Hungria e Polônia em 1956. Para Broué, os jovens comunistas poloneses e húngaros que se insurgiram contra o caráter burocrático dos partidos que dominavam seus países e também a URSS, representavam “uma nova geração de comunistas” que redescobria o “pensamento da oposição e o genuíno espírito do bolchevismo”[12]. O historiador ainda estabelece conexões entre o pensamento dos comunistas húngaros e poloneses e as idéias defendidas por Trotsky em relação à burocratização do partido bolchevique, inclusive no tocante ao programa deste movimento: a derrubada da burocracia através da tomada do poder por conselhos operários e a formação de um poder “soviético”. Esta consigna de uma “segunda revolução” foi associada por Broué à “revolução política” defendida por Trotsky para derrotar a burocracia stalinista e reorientar as forças do partido e do Estado na URSS para a revolução socialista internacional, reforçando sua tese do movimento revolucionário de 1956-1957 como renascimento do bolchevismo. No epílogo à edição de 1963, Broué relembra a seus leitores que a “história está cheia de encruzilhadas contraditórias” e por isso mesmo “na revolução estavam implícitos, os processos de Moscou, mas também o Outubro polonês e húngaro”[13], reiterando, assim, a concepção exposta no prefácio segundo: a história não está aprisionada em uma lógica pré-concebida, mas se faz a partir das lutas travadas por homens que representam interesses antagônicos e cujas ações conferem singularidade à cada período histórico. São estas lutas que Pierre Broué busca enfatizar em todo seu trabalho e, principalmente, no posfàcio à edição de 1971, sugestivamente intitulado “Renascimento do Bolchevismo”. Transcorridos quase dez anos da 1º edição de sua obra, Broué aduz que este decênio apenas reafirmou a “continuidade histórica entre a oposição no interior da sociedade russa pósstalinista e a tradição revolucionária de outubro de 1917”[14]. Esta afirmação é reforçada por dois acontecimentos históricos de grande importância para este historiador: a “Primavera de Praga” em 1968 e a luta dos jovens comunistas tchecoslovacos contra o aparato stalinista em seu país; e o surgimento de uma nova oposição comunista na URSS nos anos sessenta que realizou em 25 de agosto de 1968 a primeira manifestação pública contra o governo após 40 anos, quando sete jovens abriram suas faixas na Praça Vermelha protestando contra a ocupação da Tchecoslováquia por tropas soviéticas. Ao defender neste posfácio o reatamento do “fio da história”, rompido pela ascensão do aparato burocrático na URSS, mas restabelecido através da relação de continuidade entre a tradição bolchevique de 1917 e a oposição comunista que se forma na Rússia após 1968, Broué chama a atenção dos leitores para a possibilidade de uma grande transformação naquele momento por meio da derrubada da burocracia nos Estados Operários e da retomada da luta pela revolução socialista mundial. Em ambos os casos, o renascimento do bolchevismo nestes países e em todos aqueles onde o stalinismo havia asfixiado a luta revolucionária, era imprescindível para o êxito desta empreitada. Pierre Broué jamais escreveria esta obra da forma que escreveu se não possuísse, como ele próprio afirmou no prefácio à edição de 1972, “uma grande dose de simpatia para com o seu tema, compreensão, e às vezes até mesmo amor para com todos aqueles que tentam fazer ou reescrever a história e mudar o mundo e a vida”[15], Sua paixão por aqueles velhos bolcheviques que dedicaram suas vidas à revolução e quando preciso discursaram por horas a luz de velas diante de centenas de operários para defender esta mesma revolução em face do aparato que a ameaçava, reconduz à história do partido bolchevique seus verdadeiros protagonistas, os homens que “são donos de sua própria história” e, exatamente por isso, podem “construir uma história diferente”[16]. Este é certamente o principal mérito da obra de Broué. Enfim, uma leitura imprescindível não apenas para os que reivindicam a tradição marxista ou bolchevique, mas para todos àqueles que, como Broué, se interessam em estudar o passado para compreender o mundo contemporâneo e, como diria Marx, transformá-lo. [1] BROUÉ, Pierre. Sundermann, 2014. O Partido Bolchevique. São Paulo: [2] O partido bolchevique abordado por Broué se constitui a partir da fração bolchevique que se forma em 1903 durante o II Congresso do POSDR, e que a partir de 1912 passa a atuar como um partido autônomo. [3] BROUÉ, op. cit., p. 16. [4] Ibidem, p. 09. [5] BROUÉ, op. cit., p. 16. [6]BIANCHI, Álvaro. História da Revolução Russa: Trotsky como historiador. Disponível em: <http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1089>. Acesso em 20 de fevereiro de 2015. [7] BROUÉ, op. cit., p. 68. [8] Ibidem, p. 126-127. [9] Ibidem, p. 128-129. [10] Ibidem, p. 163. [11] Ibidem, p. 480. [12] Ibidem, p. 465. [13] Ibidem, p. 512. [14] Ibidem, p. 517. [15] Ibidem, p. 16-17. [16] Ibidem, p. 17. Comunistas contra Stalin Frederico Costa Pierre Broué (1926-2005), historiador mundialmente conhecido, nasceu em Privas no sul da França. Jovem entrou na resistência contra a ocupação nazista e aderiu ao Partido Comunista. Porém, divergiu do partido ao tentar organizar propaganda internacionalista entre os soldados alemães, sendo expulso por “trotskismo”. No final da II Guerra mundial integrou-se ao movimento trotskista francês, tornando-se membro ativo durante várias décadas. Simultaneamente, consolidou uma carreira acadêmica como professor do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble, como historiador destacado das revoluções do século XX. Suas obras mais conhecidas foram traduzidas para vários idiomas: Revolução e Guerra Civil na Espanha, (em co-autoria com Émile Térmime), O Partido Bolchevique, Revolução na Alemanha (1917–1923), História da Internacional Comunista, Os processos de Moscou, as biografias de Trotsky e Rakovsky, Stalin e a revolução: o caso espanhol e A revolução e a guerra da Espanha. Dedicou-se intensamente à criação e organização do Instituto Leon Trotsky e à publicação dos Cahiers Leon Trotsky, que publicaram inúmeros trabalhos sobre o movimento trotskista em diversos lugares do mundo. Broué foi o primeiro historiador autorizado a entrar nos arquivos fechados de Trotsky em Havard, quando de sua abertura em 1980 – antes Isaac Deutscher (1907-1967) os tinha consultado com autorização especial. A partir de 1989 dedicouse à direção da revista Le marxisme aujourd’hui. Com o colapso da União Soviética, Pierre Broué foi à busca dos arquivos recém-abertos, incluindo os da polícia secreta stalinista. Ele também se reuniu com membros das famílias de velhos bolcheviques assassinados, e alguns dos poucos e últimos que não foram exterminados. Além disso, colaborou com a organização russa Memorial, dedicada a defender a memória das vítimas de Stalin. O livro Comunistas contra Stalin: masacre de una geracion (Málaga: Sepha, 2008), é produto das pesquisas de Broué nos arquivos abertos da ex-URSS. O resultado é a revelação de uma história zelosamente ocultada durante mais de meio século. Nos anos vinte numerosos militantes comunistas se uniram à Oposição de Esquerda e a outras correntes anti-stalinistas na URSS. Foram chamados de oposicionistas ou trotskistas. Milhares deles seriam fuzilados em 1937 e 1938 nas prisões ou nos campos de Vorkuta e Kolyma. O seu extermínio foi o capítulo final de uma luta que duraria algo mais que quinze anos. Começando com a expulsão de militantes do Partido Comunista, seguindo com o exílio, as deportações, ao suicídio, as prisões, os isolamentos e os campos de trabalho. Assim, os defensores da democracia proletária tornaram-se as vítimas prioritárias da contrarrevolução burocrática. De maneira objetiva e fundamentada, Broué relata a história da luta, da perseguição e do assassinato de milhares de revolucionários. Demonstrando não só que Stalin consolidou seu poder mediante o massacre de uma geração de militantes comunistas, que rebelou-se contra sua tirania, mas que existia uma alternativa ao domínio da burocracia. Noutras palavras, que a revolução russa e o bolchevismo não estavam predestinados a desaguar no “socialismo real” e suas mazelas. A batalha não estava decidida de antemão. Mais do que um resgate de um processo histórico, que trouxe consequências trágicas para o movimento comunista internacional até os dias atuais. Broué vai além do simples relato dos fatos ocorridos, o que já seria um grande feito. Ele nos fala de indivíduos concretos, mulheres e homens, revolucionários acima de tudo, que lutaram até o fim pela emancipação social. O autor, assim, revela suas intenções: “há anos que quero falar de milhares de mulheres e homens, de velhos e crianças, que morreram metralhados a dezenas. Quero mostrá-los vivos, pensando, amando, sofrendo. Dizer quem eram antes, durante e depois de seu calvário. Fazê-los reviver, na medida do possível” (p. 24). Nessa perspectiva, entramos em contato com militantes de diversas gerações, nacionalidades e trajetórias individuais. Adolf Abramovich Joffe, um dos criadores da organização interbairros que se integrou ao Partido Bolchevique em 1917; Christian Georgievich Rakovsky, antigo chefe do governo vermelho da Ucrânia durante a guerra civil e primeiro chefe da administração política do exército vermelho; Vladimir A. Antonov Ovseenko, jovem oficial que se amotinou em 1905 com seus soldados e substituiu Rakovsky como chefe dos comissários políticos do exército vermelho; o doutor Iván Zalkind comissário do povo adjunto aos Assuntos Exteriores; Igor Poznansky, jovem estudante de matemática, que em 1917 apresentou-se voluntariamente para ser guarda-costas de Trotsky; Varsenika Djavadovna Kasparova, uma das formadoras de mulheres comissárias políticas; Olga Afanasievna Varentsovna, que trabalhava no escritório do comissário do povo; Iván Nikitich Smirnov, apelidado “o Lênin da Sibéria”; Karl Ivanovich Grüstein, que dirigiu a Escola do Ar; Larissa Reisner, comissária política que participou da Batalha de Kanzan contra os brancos e escreveu uma brilhante reportagem sobre ela; Yakov G. Blumkin, que após tentar matar o embaixador alemão e ser condenado à morte, foi convencido por Trostky do bolchevismo em sua cela e tornou-se posteriormente membro do serviço de informação do exército vermelho; Sergei Vitaliévich Mrachkovsky, nascido na prisão de pais prisioneiros políticos; o gigante Nikolai Ivanovich Muralov, que comandou em 1919 a guarnição de Moscou. A geração de 1923-1925 constituída por um grupo de jovens do Instituto de Professores Vermelhos, a elite do ensino superior do país: Grigori Yakovin, Man Nevelson, Eleazar Solntsev, Galina Byk. Também há ao redor de Rakovsky um grupo de jovens ucranianos: Lipa A. Volfson, G. M. Vulfovich, o dirigente operário Vasili Golubenko, a economista Tania Semenovna Miagkova. Há georgianos como David (Datiko) Efremovich Lordkipanidze, herói da lutas pela organização operária e contra a polícia do Czar, Budu Mdvani, militante operário, Vaso Donadze, que presidiu o soviete de Tíflis no princípio da revolução. Essa é uma mostra mínima e aleatória dos milhares que ousaram enfrentar o processo de burocratização representado pela ascensão de Stalin. Nas páginas de Comunistas contra Stalin: masacre de una geración, é exposto a luta desigual entre as forças da revolução e os mecanismos da contrarrevolução que se apoderaram do Estado operário, do Partido e dos sindicatos. Vislumbramos a ação dos que resistiram à destruição dos ideais da Revolução de Outubro. Acompanhamos suas contradições, seus avanços, suas ilusões, seus retrocessos, suas vitórias parciais e seu destino final, que enfrentaram como revolucionários. Como frisa Broué: “Seus inimigos lhes batizaram de trotskistas, mas eles se chamavam de bolcheviques-leninistas, sentindo-se e querendo ser os verdadeiros continuadores do Partido Bolchevique de Lênin e de Trotsky. Eram sua geração de Outubro, enquadrada e as vezes freada pelos velhos de um partido sangrado, fatigado, desgastado e muitas vezes desmoralizado. A um jovem cabo que haviam mandado disparar sobre dezenas de prisioneiros, lhe impressionou que morreram cantando e disse que eram uns fanáticos. Erro grosseiro, mas útil para os chefes dos verdugos. Em realidade tratavam-se de militantes convencidos. Tinham uma moral, mas também uma moral rigorosa que lhes granjeou o respeito de seus companheiros de calvário. Como outros grupos perseguidos por suas convicções, como os protestantes em tempos de Rei Sol, não cessaram em sua luta, apesar de terríveis sofrimentos, por uma maior tolerância, pela democracia e a livre discussão. Assim, os trotskistas, que não haviam encontrado palavras suficientemente duras para condenar a capitulação de Zinoviev e de Kamenev, levantaram-se em sinal de respeito e dor ao conhecer sua execução quando foi anunciada em Vorkuta.” (p. 31) Pela pesquisa realizada é possível compreender porque a luta não estava perdida antecipadamente. Um fato demonstra tal perspectiva. Num momento de tensão do aparato burocrático – quando o bloco de centro-direita (Stalin-Bukharin), como se dizia então, entrou em crise pela exclusão de Trotsky e Zinoviev do Comitê Central do Partido – Stalin, escrevendo a Molotov expressa a lógica da luta em curso: “Entre duas coisas, uma. Ou bem restabelecemos aos chefes da oposição os direitos como membros do Partido Bolchevique e criamos um partido de coalizão, ou bem lhe vencemos imediatamente e conservamos o monolitismo do partido. Ou bem para trás, ou bem para diante.” (p. 272) O importante desse fato é que não há uma linha de continuidade entre Lênin e Stalin, mas sim uma ruptura colossal. Por isso, afirma o autor, comentado a citada mensagem: “É esta a chave que a maior parte dos historiadores não querem ver, porque desmente o que eles creem ou pelo menos afirmam: a continuidade entre Lênin e Stalin, entre bolchevismo e stalinismo, a equivalência entre Trotsky e Stalin. Para trás: é o partido de Lênin, com suas tendências e frações, suas discussões abertas e públicas – em definitivo, a democracia do partido e dos sovietes. Para diante: é o partido stalinista monolítico, mantido no terror pela GPU.” (p. 272) Stalin do ponto de vista da contrarrevolução burocrática tinha razão. Não poderia existir acordo entre as duas perspectivas. Por isso, os métodos para derrotar foram tão escusos e a repressão tão brutal. Os oposicionistas, anos antes, em 1923, tinham tido a maioria da conferência do partido de Moscou, mas foram derrotados pela fraude: “Em Moscou, a Oposição conseguiu a maioria em 40 células (6.954 membros) contra 32 (2.790), a maioria das células do Exército Vermelho, 30% das células operárias, a maioria em 22.000, e… três delegados no total. Vítima de um assalto, foi caluniada na funcionários conferência, na qual os delegados eram mal eleitos, arrogantes e grosseiros, condenando-a por desvio menchevique” (p. 48). Velhos quadros do partido do partido simpatizavam com a Oposição de Esquerda – mais tarde Stalin viria a dissolver a Associação dos Velhos Bolcheviques. Os jovens a ouviam e não poucos a apoiavam. Operários percebiam que ela expressava suas necessidades. Em Moscou, na Geórgia e na Ucrânia os oposicionistas tinham bases sólidas. Até em Leningrado, área de influência de Zinoviev, a oposição de esquerda, os bolchevique-leninistas estavam presentes. Com o surgimento da Oposição Unificada de 1927 – oposição de esquerda, zinovievistas, decistas (grupo centralismo-democrático) e outros setores defensores da democracia socialista -, ficou evidente a disjuntiva indicada por Stalin. A polícia passou a ser utilizada nas discussões políticas. Transferências e expulsões arbitrárias de militantes, intervenções em células e exílio forçado passaram a ser comuns. Eis a lógica das forças da contrarrevolução, expressa na tese de Stalin “entre duas coisas, uma”, da mentira, da intimidação, da fraude, da exclusão às prisões, torturas, deportações, repressão brutal e, finalmente ao massacre dos revolucionários. Mesmo assim, muitos não se intimidaram, como o exemplo singular do jovem operário Boris Vajnshtok: “que ficou isolado depois da prisão de dezenas de seus camaradas em 1927. Esperou o Congresso do ano seguinte e tomou a palavra para exigir sua liberação. Não duvidava de que esse era seu dever. Encontrou-se com alguns quando foram fuzilados, dez anos mais tarde, em Kolyma” (p. 373). De acordo com a lista oficial, os membros da Oposição de Esquerda, isto é, pessoas acusadas de “trotskismo” pela polícia e pelo aparato do partido, e por isso detidas ou excluídas, apresentavam a seguinte composição social e profissional: “44% dos excluídos por pertencer à Oposição eram operários de fábrica, e 25% antigos operários colocados em postos de responsabilidade [o números destes últimos aumentariam muito se fosse possível conhecer a profissão anterior dos comissários políticos do Exército Vermelho e dos estudantes da Rabfaki]. Em que concerne à idade, as pessoas da Oposição são jovens e inclusive muito jovens; 85% tem menos de 35 anos […]. Em Kharkov dos 259 membros excluídos de 1927, entre os quais haviam 196 operários, 70% tem menos de 30 anos, 38% menos de 25 anos” (p. 369). Isso significa que: “Estamos diante de um movimento da juventude operária. Os jovens que combatem nas fileiras da Oposição são os que eram adolescentes, inclusive crianças, na época da revolução, e cuja maré ainda os impulsionava: a parte mais dinâmica da sociedade, seu futuro;o resultado profundo, a pegada mais duradoura da revolução” (p. 369). E que teve também forte presença feminina: “Outro elemento é o papel das mulheres. Em nenhum outro país do mundo podemos encontrar nessa época mulheres jogando um papel como o jogam na URSS as da Oposição. Não só é uma onda feminina a que reforçar des 1928 o centro de B. M. Eltsin, senão também as encontramos nos grupos clandestinos, nas impressoras, como operárias. São mulheres como Mussia, depois Nadejna Ioffe, as que conseguem ganhar o respeito de temíveis bandidos, dos demais detidos e, frequentemente, o de verdugos e torturadores. Talvez não devemos recordar que a participação das mulheres é, e sempre foi, o signo infalível da profundidade de uma revolução, da ancoragem de uma revolução?” (p. 369). No entanto, a Oposição de Esquerda provou sua superioridade de maneira ainda mais marcante nos campos de prisioneiros. Pois, mesmo nas piores condições, as relações entre os revolucionários oposicionistas não deixaram de espelhar elementos de uma sociabilidade emancipada: “a tolerância (…) não parou de crescer entre as vítimas (…) lhes abriu aos debates políticos e aos grandes horizontes. Desse modo puderam, no Gulag, homenagear todas as vítimas do inumano sistema estalinista (p. 373). Além disso, “havia ali não só um progresso, mas também uma conquista. A superioridade moral dos opositsioneri deve conhecer e reconhecer-se para poder um dia alcançar seus frutos. É por isso que os inimigos do gênero humano se encarniçam em desfigurar as revoluções e os revolucionários, com a esperança de lançar o resto da humanidade ao culto do bezerro de ouro.” Por isso, nas palavras do historiador francês, um livro como Comunistas contra Stalin, masacre de una generación é tão necessário: Esta é a razão de ser deste livro. Deveria ser uma arma contra o horror do passado e contra tudo o que se parece com ele hoje; uma lição de valor e de dignidade, jamais inútil; um balanço de uma experiência coletiva sem a qual estaríamos condenados a repetir indefinidamente os mesmos erros e a sofrer as mesmas derrotas. E que depois de havê-lo lido, cada leitor, venha de onde vier, se alinhe no campo dos oprimidos e dos combatentes de Vorkuta e de Magadan (p. 373-374). Daí que a palavra final seja dada, por direito, a Tatiana, filha de um oposicionista, Ivar Smilga fuzilado por Stalin: “A memoria se conservou. Os homens, os livros foram conservados, inclusive o ambiente mesmo que eles criaram em Outubro com seus estandartes. A verdade nunca abandona a vida. Pertence ao futuro” (p. 374). (Publicado originalmente Crítica, a. 3, n. 3, 2011.) em Revista Eletrônica Arma da