- Sociedade Brasileira de Sociologia

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XIV Congresso Brasileiro de Sociologia
28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ)
Grupo de Trabalho 18: Reforma Agrária e Movimentos Sociais Rurais
O MST À LUZ DE TEORIAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Heribert Schmitz1
"Como numa galáxia espacial, são estrelas que se
acendem, enquanto outras estão se apagando, depois de
brilhar por muito tempo" (Gohn, 1997:20, sobre
movimentos sociais).
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é discutir as características do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) à luz de diferentes teorias dos movimentos
sociais. Para isso, analisará a bibliografia nacional e internacional sobre os movimentos
sociais e o MST. Busca-se responder: O MST é um movimento social ou uma
organização?
Uma
entidade
sozinha
pode
ser
um
movimento?
O
grau
de
institucionalização é um critério para caracterizar um movimento como tal? Como o MST
mobiliza e alinha os seus participantes? Quais as oportunidades políticas que o MST
aproveitou e quais os impactos da sua atuação identificáveis? Qual a importância desse
elemento para explicar os resultados da sua ação? Não pretendo apresentar a história
dessas teorias, nem do MST, senão destacar os elementos atualmente considerados
importantes para a análise dos movimentos sociais através do exemplo do MST e explicar
o engajamento dos participantes nas suas ações.
ESTADO DA ARTE
Os movimentos sociais são objeto de estudo desde o século XIX. Quatro grandes
abordagens resultam dessa preocupação: 1) As teorias clássicas sobre os movimentos
sociais; 2) A teoria da mobilização de recursos (MR); 3) A teoria dos novos movimentos
sociais (NMS); e 4) A teoria da mobilização política.2
1
Doutor em Ciências Agrárias, Professor de Sociologia, Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém-PA; Bolsista de
Produtividade do CNPq; [email protected]
2
Nos anos 80, teóricos do paradigma predominante norte-americano, a MR, desenvolveram um intenso debate com a
correntes européia dos NMS, o que levou a alterações e uma tendência de síntese das duas abordagens. Não há uma
denominação amplamente aceita para o conjunto de idéias que emergiu a partir da crítica às abordagens de
Mobilização de Recursos (MR) e dos Novos Movimentos Sociais (NMS), motivo pelo qual usamos o termo proposto por
Gohn (1997): a Mobilização Política (MP), mesmo que Gohn tenha se antecipado em atribuir essa denominação à nova
abordagem. Entretanto, esta nova abordagem apresenta já várias vertentes, mas pode ser considerada ainda mais
homogênea que, por exemplo, a abordagem dos NMS, o que justifica atribuir uma denominação comum.
2
Além da influência das preferências teóricas de cada época, as abordagens acerca
dos movimentos sociais foram cunhadas sempre pela natureza dos movimentos em
análise que apresentam uma extrema diversidade empírica.
As teorias clássicas
No início dos estudos sobre o tema, os fenômenos mais marcantes eram os
movimentos em favor da revolução, a exemplo da Revolução Francesa, em 1789, da
Revolução de 1848 e da Comuna de Paris. Um dos teóricos dessa fase foi o alemão
Lorenz von Stein (1842, 1850/1946, citado por Chazel, 1995:293) que analisou "o
movimento social" sob uma perspectiva histórica. Stein e os estudiosos influenciados
por ele foram inspirados pelo movimento operário.
No
fim
do
século
XIX,
surgiu
uma
vertente
oposta,
denominada
de
comportamento coletivo, que foi influenciada pela obra do francês Gustave Le Bon
sobre a psicologia das multidões, interpretando os movimentos como "uma patologia
grave do corpo social" e o poder das multidões como "unicamente destrutivo" (Le Bon,
1895, citado por Chazel, 1996:296). A visão da irracionalidade das multidões foi acolhida,
principalmente, por estudiosos norte-americanos para analisar os movimentos sociais. A
abordagem do comportamento coletivo teve sua auge no período de 1940 até o final dos
anos 1960 entre estudiosos norte-americanos, sendo a principal referência a Escola de
Chicago, com Robert E. Park e Herbert Blumer. Blumer identificou três categorias de
movimentos: genéricos, específicos e expressivos. O primeiro tipo é indicador de direção,
por exemplo, a emancipação da mulher, sendo os seus líderes mais portadores de novas
vozes e pioneiros, muitas vezes até sem seguidores ou objetivos muito claros. O segundo
tipo caracteriza-se por ter metas e objetivos bem definidos, organização e estrutura
desenvolvidas, constituindo-se uma sociedade, com um corpo de tradições, valores,
filosofias e regras, assim como, lideranças bem reconhecidas excercendo controle sobre
os membros que têm consciência do "nós". Os terceiro tipo inclui os movimentos
religiosos e da moda, sem objetivo de mudança (Gohn, 1997:31). Blumer, segundo
Chazel (1995:299), "teve o mérito de ser o primeiro a dar uma verdadeira consistência a
esse vasto programa", através de trabalhos empíricos e conceituais e suas observações
microssociais são reconhecidas pelos estudiosos.
Outros autores que se basearam na abordagem do comportamento coletivo são:
Ralph H. Turner e Lewis M. Kilian que trabalharam, entre outros, sobre movimentos
separatistas e desenvolveram idéias sobre o papel dos líderes, as regras e os valores que
estão na base da formação de uma identidade grupal; Neil Smelser, um discípulo de
3
Talcott Parsons, que se baseia num enfoque sistêmico, e William Kornhauser, que
trabalhou sobre a sociedade de massas. O último foi marcado pela ascensão do nazismo
e do fascismo na Europa e mostrou-se preocupado com o totalitarismo e a alienação das
massas. Em todas estas correntes é comum a subestimação do papel da racionalidade.
Mobilização de Recursos (MR)
As vertentes ligadas à abordagem do comportamento coletivo perderam aceitação
entre os estudiosos frente a críticas referente (Chazel, 1995:310-311): 1) aos níveis da
análise, predominantemente, microssociológica; 2) a suposta história natural dos
movimentos; 3) a suposta irracionalidade; 4) a emergência como manifestações de crise e
5) a quase ausência do elemento político. Uma parte dos críticos norte-americanos, como
Doug McAdam, John D. McCarthy, Mayer N. Zald elaboram a base de uma nova
abordagem, a MR, termo proposto por McCarthy & Zald (1973, citado por Chazel,
1995:311), da Escola de Michigan. Por outro lado, a crítica européia, por exemplo de Alain
Touraine, levou à abordagem dos Novos Movimentos Sociais (NMS), que será descrito
posteriormente neste artigo.
A abordagem da MR baseia-se na teoria da escolha racional que usa categorias
econômicas para analisar problemas sociais. Entre os principais teóricos encontra-se
Mancur Olson que estudou grupos de pressão, visão que estendeu também aos
movimentos sociais. Assim, os movimentos são considerados como organizações. Olson
(1965) questionou a idéia de que membros de um grupo com interesses comuns
atuassem voluntariamente, a fim de tentar promover estes interesses, mesmo se eles
pudessem viver numa situação melhor quando esses objetivos fossem alcançados. A
argumentação de Olson se baseia na premissa de que alguém que não pode ser excluído
dos benefícios de um bem coletivo, uma vez que o bem está produzido, tem pouca
motivação para contribuir voluntariamente no fornecimento desse bem. Somente a partir
desse questionamento, a ação coletiva e, especialmente, a mobilização deixaram de ser
consideradas como naturais e facilmente alcançadas e tornaram-se um objeto central de
estudo.
Anthony Oberschall pode ser considerado um dos mais importantes estudiosos da
MR. Distingue entre movimentos sociais e comportamentos coletivos. Ele entende os
movimentos como esforços coletivos que alteram a vida das pessoas, enquanto os
comportamentos coletivos são ações episódicos e espontâneas de uma multidão (Gohn,
1997:62-63). O autor dá importância não somente à organização moderna, do tipo
associativo, mas também ao modo comunitário, mais tradicional (Chazel, 1995:317).
4
Outro teórico da abordagem da MR, Charles Tilly desenvolve uma corrente que coloca o
conflito político no centro das análises, confrontando as partes com acesso
institucionalizado ao poder e os contestadores, excluídos dessa vantagem. Entretanto,
nessa abordagem, os movimentos sociais são parte do "funcionamento normal" de uma
sociedade e a existência de conflitos é aceita (Chazel, 1995:312). Tilly converte "a
organização na base primordial de mobilização" (Chazel, 1995:320), reforçando a
tendência dos autores da MR que procuram explicar "a capacidade de agir coletivamente"
dos movimentos a partir dos recursos próprios, colocando a questão da organização entre
as principais explicações. McAdam (1982, citado por Chazel, 1997:323) mostrou que a
luta pelos direitos civis começou por mobilizar a comunidade negra do Sul dos Estados
Unidos, sob o impulso de organizações que lhe era própria, como as igrejas, sendo
característica dos principais movimentos desse período a forte mobilização no seio da
coletividade. Os movimentos analisados nos anos 1960 nos Estados Unidos (movimento
negro, direitos cívis, contra a guerra de Vietnam, feminismo) contavam com a participação
decisíva da classe média, compartilhando os "valores liberais americanos" com a
sociedade em geral. Esse fato contribuiu para a predominância do aspecto organizacional
na análise desprezando questões como ideologia, valores e identidade. A MR rejeita "a
ênfase dada pela teoria clássica aos sentimentos, descontentamentos e quebras de
normas, todos de origem pessoal" (Gohn, 1997:50). Uma visão utilitarista, de interesses
de indivíduos racionais, predomina.
Os autores do paradigma da MR conseguiram desenvolver, "em seu conjunto, uma
concepção sólida" (Chazel, 1995:324) que predominou nos Estados Unidos durante duas
décadas. No entanto, teve uma percepção restrita dos movimentos sociais devido a sua
base teórica, a escolha racional, alvo das principais críticas dirigidas à abordagem. A
identificação dos movimentos como grupos de interesses, também, não corresponde aos
principais movimentos sociais da época.
Novos Movimentos Sociais (NMS)
Trata-se de uma abordagem genuína da Europa, sendo seus principais autores
Alain Touraine, Jürgen Habermas, Claus Offe, Alessandro Pizzorno e Alberto Melucci.
Nesta abordagem é retomada a dimensão cultural e o interesse dirige-se novamente aos
valores compartilhados pelos participantes do movimento e à questão das suas
identidades. Para Touraine (1994:254) "um movimento social é ao mesmo tempo um
conflito social e um projeto cultural. (...) ele visa sempre a realização de valores culturais,
ao mesmo tempo que a vitória sobre um adversário social." Entende um movimento social
5
"como a combinação de um princípio de identidade (lutamos em nome de quem?) de um
princípio de oposição (contra quem?) e de um princípio de totalidade (que designa a
dinâmica societária)" (Touraine, 1978, citado por Chazel, 1995:329). A abordagem confere
atenção à macrossociologia para a melhor compreensão do lugar dos movimentos sociais
na sociedade global no capitalismo avançado (Chazel, 1995:328).
A abordagem dos NMS emergiu a partir da análise dos movimentos que emergiram
na Europa a partir dos anos 1960 e designa um conjunto de correntes bastante
heterogêneas. A base comum é o reconhecimento que o movimento operário perdeu seu
lugar eminente como modelo dos movimentos sociais. Mesmo assim, a despedida dessa
visão parece não ter sido fácil como mostra o exemplo de Alain Touraine (1994:254):
"Uma luta reivindicadora não é por si mesma um movimento social; (...) é preciso que fale
em nome dos valores da sociedade industrial e se faça sua defensora contra seus
próprios adversários." Assim, como assume seu discípulo François Dubet (1996:220),
"nenhuma das novas lutas que nós estudámos podia ser considerada um 'verdadeiro'
movimento social", nem a luta estudantil dos anos 1960, nem a luta antinuclear dos anos
1970.3
Por causa da sua heterogeneidade e da percepção da sua característica como
normativa demais e pouco "operacional" (Cefaï & Trom, 2001:11), a maioria dos
estudiosos abandona esta "abordagem" que não consegue formar uma escola de
pensamento. Roth & Rucht (2008:662) enfatizam que "a dominância dos NMS vale
apenas para uma fase curta e próspera da história da pós-guerra" da Alemanha. "Há
muito, temas de 'pão e manteiga'", quer dizer, questões materiais, "entraram mais
fortemente na agenda e a ressurreição de idéias e mundos simbólicos da extrema direita
coloca-se, particularmente, na Alemanha como um desafio especial".
Mobilização Política (MP)
A partir de um diálogo crítico entre estudiosos da MR e dos NMS, emergiu uma
nova abordagem que herdou elementos das teorias anteriores.4 As suas principais
características para a análise e a explicação das ações de movimentos sociais são: os
conceitos de ciclos de protesto e de oportunidades políticas, ambos fundamentados por
Sydney Tarrow, o conceito dos marcos referenciais (frames), resultado da releitura de
Erving Goffman, principalmente por David Snow, e a atenção dada à idéia da constituição
3
Segundo Chazel (1995:285), Touraine tem "uma concepção extremamente exigente dos movimentos sociais".
Klanderman & Tarrow, 1988, citado por Chazel, 1995:327) manifestam o desejo de integrar abordagens norteamericanos e européias. Posteriormente houve um debate entre estudiosos americanos e franceses acerca do tema
"analyse des cadres" ( frames;marcos referenciais), documentado no livro organizado por Cefaï & Trom (2001).
4
6
dos movimentos sociais em estrutura de redes. Enquanto durante a sua integração na
MR, explicações acerca dos recursos próprios do grupo predominaram, como a
organização, as lideranças e outros (poder ou dinheiro) (Gohn, 1997:100), Tarrow procura
agora explicações externas aos movimentos para sua própria existência.
Assim, foi criado uma nova abordagem com a ênfase na dimensão cultural e nos
processos políticos da mobilização.
A aceitação atual acerca da teoria de movimentos sociais pode ser resumida da
seguinte forma. Os estudiosos reconhecem várias contribuições da Escola de Chicago,
especialmente de Blumer. As correntes da MP, articuladas entre si5, têm em comum as
seguintes dimensões, apenas diferenciadas pela ênfase dada: oportunidades políticas,
redes, marcos referenciais, cultura e identidade (Gohn, 1997:98; Cefaï 2007:704). Mesmo
com o perigo de injustiçar estudiosos envolvidos no tema, podem ser considerados como
representantes do mainstream atual da análise dos movimentos sociais6 os seguintes
autores: Doug McAdam, Sidney Tarrow, Dieter Roth, Roland Rucht, Daniel Snow, Charles
Tilly, John D. McCarthy, Hanspeter Kriesi, Bert Klanderman e Alberto Melucci. Daniel
Cefaï (2007) apresenta uma boa visão na sua obra mais nova em relação a este tema.
Embora seja cedo para fazer um balanço dessa abordagem, podem ser vistas
algumas divergências no seu seio, por exemplo, sobre a importância das oportunidades
políticas e dos marcos referenciais. No entanto, parecem mais como diferenças na ênfase
dada a estes elementos e não como contestações em relação a sua relevância para o
estudo dos movimentos sociais.
MOVIMENTO SOCIAL OU ORGANIZAÇÃO
Para definir o que é um movimento social apresento duas propostas. Turner &
Killian (1957:308; citado por Gohn, 1997:43) "definem um movimento como uma ação de
uma coletividade com alguma continuidade para promover a mudança ou resistir a ela na
sociedade ou no grupo do qual faz parte". Chazel (1995:291) considera, a partir de
Blumer, "movimento social um empreendimento coletivo de protesto e contestação que
visa impor mudanças ... na estrutura social e/ou política ... .” Frequentemente, mas não
necessariamente, recorre a meios não institucionalizados, o que se refere, por um lado,
ao uso de violência, por outro, a novas formas criativas como Teach-In, etc. Isso, porque,
frequentemente, os movimentos sociais são excluídos do acesso institucionalizado ao
5
Os trabalhos em conjunto desses autores mostram o debate entre eles e a superação de atitudes de
"desconhecimento mútuo" entre sociólogos famosos, a exemplo do livro publicado por McAdam, McCarthy e Zald que
trata alguns dos temas mais avançados: political opportunities, mobilizing structures, and cultural framing.
6
Ou dynamics of contention, segundo um termo usado atualmente.
7
poder e necessitam fornecer "matéria prima" espectacular para o cotidiano das mídias
através de ações não convencionais. Movimentos sociais, segundo Roth & Rucht
(2008:13), não são episódios de protesto, modas ou constelações eventuais. É
unanimidade entre os autores analisados que o movimento social é ligada à noção de
mudança que, no entanto, não necessariamente é voltada para a inovação, ao contrário,
pode ter por fim o restabelecimento de uma ordem anterior. Para Oberschall (1989, citado
por Chazel, 1995:291), um movimento social tem que ter "a capacidade de agir
coletivamente". Isso provavelmente exclui dois dos três tipos de movimento, analisado por
Blumer, os movimentos genéricos e os movimentos expressivos. Nesse sentido, classes
sociais7 ou o movimento operário teriam também dificuldade para ser considerado como
movimento, o que Marx já reconheceu quando distinguia entre "classe em si" e "classe
por si". Roth & Rucht (2008:656) incluem ainda a capacidade de definir a agenda política
(agenda setting) e a problematização de temas anteriormente considerados um tabu (non
issues). Com certeza, esta capacidade de agir coletivamente e definir a agenda podem
ser associados ao MST.
Perante uma multiplicidade de ações coletivas, pergunta-se, o que pode ser
considerado um movimento social? O que não é movimento social talvez possa ser
respondido mais facilmente.
Aplicando este conjunto de características, não pode-se identificar formas de ação
coletiva mais espontâneas e com curta duração como movimentos sociais, a exemplo de
quebra-quebra, revolta, motim ou linchamento, prováveis temas de uma abordagem de
comportamento coletivo de multidões. O movimento pode ser considerado algo
temporário, no entanto, com uma certa duração, uma ação coletiva organizada. Para
Blumer (1951, citado por Gohn, 1997:30), no início o movimento social é amorfo e
organizado pobremente. Apenas com o tempo se desenvolve e adquire "... as
características de uma sociedade: organização, forma, corpo de costumes e tradições,
lideranças, divisão de trabalho duradoura, valores e regras sociais – em resumo, cultura,
organização e um novo esquema de vida".
Mesmo com estas características de uma organização, o movimento social "... não
pode ser igualado com iniciativa cívica, grupos de mutirão,8 ONGs ou partido político.
Estes quatro formas de ação coletiva podem ser parte de um movimento social, mas
podem também existir independente do mesmo" (Roth & Rucht, 2008:17-18). Por
7
Ritzer (1996:527) observa que Touraine focaliza as classes sociais como atores.
Não traduzi diretamente a palavra "auto-ajuda" do alemão, pois significa: "Método de aprimoramento pessoal em que o
indivíduo pretende buscar, sem ajuda de outrem, soluções para problemas emocionais, superação de dificuldades, etc."
(Ferreira, 2004:231).
8
8
exemplo, para ser reconhecido como ONG, não é necessário que protesto ou a pretensão
de mudanças duradouras da sociedade façam parte dos objetivos da entidade. No
entanto, Roth & Rucht (2008:26) deixam ainda claro, que "sem protesto visível, não há
movimento social". Os autores excluem categoricamente entidades com práticas
terroristas do domínio dos movimentos sociais.9
De forma resumida, pode-se considerar um movimento social como uma forma de
ação organizada temporária, no entanto, com uma certa duração, caracterizada pela
capacidade de mobilização, por ser portador de um protesto, pela existência de um
adversário e pela apresentação de um projeto. Estas características distinguem o
movimento social, por um lado, de organizações que administram uma rotina e, por outro,
de ações espontâneas e únicas. Enquanto Gohn (1997:105) compreende os movimentos
como "parte da luta mais geral pelo controle do poder na sociedade civil e política", a
questão da "tomada do poder" não está mais no cerne das pretensões de muitos
movimentos, a exemplo dos Zapatistas no Mexico e do MST.
Enquanto para Rucht (1988, citado por Sztompka, 1998:501), "os movimentos
sociais não formam entidades sociais estáveis e claramente definidas", outros autores
destacam o caráter de uma organização. A MR destaca a importância das organizações
no surgimento e desenvolvimento dos movimentos sociais, superando a ideia antes
divulgada do desencadeamento espontâneo. Só uma organização forte permite uma
mobilização rápida, consistindo muitas vezes no "recrutamento de blocos de indivíduos já
organizados, ainda que com outros objetivos" (Chazel, 1995: 318).
Todas estas contribuições para uma teoria dos movimentos sociais apresentados
até agora, partem da idéia de um movimento como uma coletividade, um empreendimento
ou uma unidade organizacional dirigida por seus próprios líderes. Uma outra visão
significa a compreensão de um movimento como um conjunto de organizações ou uma
rede.
Um ponto central parece ser o conceito das "organizações do movimento social"
(OMS), inicialmente proposto por McCarthy & Zald (1987, citado por Cefaï, 2007:332)
para explicar a influencia de uma "elite de empreendedores", a exemplo da organização
do defensor dos direitos dos consumidores nos Estados Unidos, Ralph Nader, que atuou
sem uma base de militantes. Foi pensado, pelos estudiosos da MR, a partir do modelo de
uma empresa. Segundo Cefaï & Trom (2001:10), as OMS se tornaram os atores cruciais
nesse processo de mobilizar recursos para excercer pressão às instâncias da decisão
9
Roth & Rucht (2008:20) caracterizam terrorismo, seguindo Neidhardt (2006), como a violência utilizada contro a
população civil para extorquir estados ou intimidar a população.
9
política. A idéia das OMS é posteriormente retomada pela NMS e a MP, assumindo mais
a característica de uma unidade dentro de uma rede que, por sua vez, na sua totalidade é
considerada um movimento social. Snow (2001:27) compreende as organizações do
movimento social como "o conjunto dos integrantes organizacionais engajados num
movimento social".
Roth & Rucht (2008:12) tentam explicar a importância das redes usando o exemplo
do conjunto das manifestações mundiais contra a guerra do Iraque antes do início das
violências que reuniu mais de 16 milhões de pessoas no mundo inteiro, segundo Tarrow
(2005, citado pelos autores), "... provavelmente, o maior evento de protesto transnacional
da história". Esta manifestação por si mesmo pode ser caracterizado como um evento de
protesto. Perguntam: "Quando podemos dizer de que são expressão de um movimento
social?" Em seguida, fornecem a resposta: "Podemos falar de movimento apenas, quando
uma rede de grupos e organizações, baseado numa identidade coletiva, garanta uma
certa continuidade dos acontecimentos de protesto sendo ligado a uma pretensão de
conceber a mudança social, ou seja, mais do que uma mera negação" (dizer que não).
(Roth & Rucht, 2008:13)
Podemos identificar, então, duas maneiras de compreender um movimento social:
1.) Como o conjunto de organizações ou ações coletivas des segmentos organizacionais
de um movimento social, ou seja, uma rede de grupos e organizações (OMS); 2.) Como
uma
organização
ou
uma
ação
organizada.
Neste
momento,
não
se
trata
necessariamente da distinção, proposta por Friedberg (1992), entre organização e ação
organizada segundo quatro dimensões dentro de um contínuo, porque cada uma das
duas maneiras de ver os movimentos pode incluir todo o espectro de ações descrito por
esses critérios. No entanto, a distinção entre movimento-entidade e movimento-rede tem
consequências para a compreensão do que é um movimento social, como se mostrou em
discussões e seminários entre estudiosos brasileiros e franceses, impossibilitando chegar
a um acordo se, por exemplo, o MST é um movimento ou não. O conceito de movimento
aceito no Brasil é diferente do utilizado pelos estudiosos franceses.
A principal diferença da visão da corrente defendida pelos estudiosos franceses
está na idéia de que um movimento não luta pelas reivindicações de uma categoria só,
seja ela composta por homosexuais, sem-terra ou estudantes. A noção de movimento
social está ligada à ação de um conjunto de atores diferentes que se engajam por razões
diferentes. Apenas quando vários interesses se juntam, há uma legitimação social
10
(Blattrix, 2006).10 Como considerar, no caso do MST, não reconhecido pela corrente como
movimento social, a razão (principal) da sua ação: defesa da categoria (trabalhadores
sem-terra e assentados), promoção de uma reforma agrária ampla e, recentemente, da
agroecologia ou transformação da sociedade brasileira rumo ao socialismo?
Na raíz dessa divergência parece estar a distinção entre diferentes formas de ação
coletiva, especialmente a diferença entre movimentos sociais, por um lado, e ação cívica
e sindicato, por outro. Especialmente, a ação cívica, às vezes, defende apenas a causa
de um pequeno grupo, até em detrimento de outras partes da população, quando quer por
exemplo, garantir uma rua sem trânsito de ônibus só para essa minoria. Além disso, a
divergência entre as duas visões poderia ser alimentada pela distinção entre OMS e
movimentos sociais e, talvez, as exigências de Touraine (2005:115-116).
Compreendo o movimento social, tanto "à maneira brasileira", sem recorrer ao
conceito de OMS (por exemplo, o MAB ou o Movimento pela Sobrevivência na
Transamazônica - MPST, com quem trabalhei nos anos 1990), quanto como uma rede de
organizações considerado conjuntamente um movimento (por exemplo, o movimento
social amazônico11 em Porto de Moz - PA, analisado por Moreira, 2008). Aliás o MPST
enquadra-se também na noção defendida por Blattrix, pois representava não só uma
categoria, mas lutou por um conjunto de reivindicações da população da Transamazônica
que se sentia abandonado pelo estado depois da primeira fase da colonização.
Não compartilho as exigências da concepção apresentada por Blattrix. Como não
tem critérios inequívocos sobre o enquadramento das diferentes formas de ação coletiva,
recomenda-se fazer um balanço entre a estrutura da ação organizada, o conteúdo da
reivindicação (o que está em jogo), a forma de ação e a relação dos membros com o
empreendimento para decidir sobre a natureza do mesmo.
Em relação a questão das OMS, pode-se afirmar que o MST não se enquadra
nesse conceito. Como salientado anteriormente, pela aceitação brasileira trata-se de um
movimento social. No entanto, a noção de OMS aplica-se ao conjunto dos
empreendimentos, entidades ou ações organizadas que compõem a rede que luta pela
causa dos sem terra e que, em determinado momento, alcançou um número elevado de
até mais de 30 movimentos de sem-terra, a exemplo do Movimento pela Libertação dos
Sem-Terra (MLST).
10
Conferência apresentada por Cécile Blattrix (CERAL, UFR LSHS, Université 13, Paris) no Seminário do Projeto
Capes-Cofecub 461/04, Belém, UFPA, no 20.04.2006.
11
Segundo Moreira (2008:133) composto, pelo menos, pelas "... três organizações profissionais do meio rural: o STR
[Sindicato dos Trabalhadores Rurais], a Associação de Produtores Rurais de Porto de Moz (APRUPM) e a Associação
dos Pescadores Artesanais (ASPAR); além delas, o Partido dos Trabalhadores (PT).
11
Independentemente, para muitos estudiosos e participantes de movimentos sociais,
parece importante saber o grau de formalização do empreendimento, questão que será
discutido junto ao tema a institucionalização no próximo capítulo.
INSTITUCIONALIZAÇÃO
Frequentemente, o processo que leva os movimentos a desenvolver e adquirir "...
as características de uma sociedade", descrito por Blumer e, em geral, compreendido por
"institucionalização", é visto como o fim do movimento e sua transformação em uma forma
de ação coletiva mais duradoura que assume tarefas rotineiras como, em geral, realizado
por associações, cooperativas, ONGs e empresas. Esta transformação é relacionada,
também, à perda de capacidade de mobilização e à substituição da ação através do
protesto por outros meios, por exemplo, a negociação.
A idéia da institucionalização é defendida, muitas vezes, no âmbito político, mas
encontra-se, também, nas publicações de teóricos, como José de Sousa Martins
(1997:62), que afirma que o MST não é mais um movimento social. "É uma organização.
Ele tem uma estrutura, um corpo de funcionários. A tendência dos movimentos sociais é
de desaparecerem, uma vez atingidos ou esgotados seus objetivos ou sua capacidade de
pressionar, ou de se transformarem em organizações, partidárias ou de outro tipo. Isso é
próprio da dinâmica dos movimentos sociais. Os movimentos sociais existem enquanto
existe uma causa não resolvida. Se o problema se resolve, acaba o movimento." No
entanto, de forma surpreendente desenvolve uma visão evolucionista dos movimentos
que contraria as palavras anteriores: "Se ela não se resolve, a tendência é a de que o
movimento se institucionalize, se transforma numa organização, como é o caso do MST"
(Martins, 1997:62). Como fica a capacidade de mobilizar e pressionar? Parece um estágio
de resignação tentando apenas "... garantir a sua sobrevivência como conjuntos
organizados" (Friedberg, 1995:376) para tirar proveito dos benefícios que a organização
conseguiu canalizar, a exemplo de organizações de refugiados que conseguem se manter
por várias gerações. No entanto, em geral, uma outra saída, que Roth & Rucht (2008:28)
chamam de "fracasso feliz", deve ser mais provável, o que significa que conquistou muitos
benefícios, mas não a solução da raíz do problema, levando os líderes e participantes do
antigo movimento a, no máximo, administrar infra-estruturas, etc.
Talvez, o caso da luta pela criação de uma Reserva Extrativista (Resex "Verde para
Sempre") em Porto de Moz - PA (Moreira, 2008) possa ser caracterizado como "fracasso
feliz". Uma vez que a Resex se tornou realidade, as atividades do movimento mudaram
da reivindicação para a administração da unidade de preservação. Agora, a cogestão
12
junto ao Ibama e a resolução de problemas de dia-a-dia substituiram o protesto.12 No
entanto, as políticas públicas têm pouco a oferecer para o extrativismo e as comunidades
inseridas na reserva ficam sob a ameaça de exploração dos recursos naturais.
Este processo de institucionalização acontece independente da forma de
organização, formal ou não, como mostra o exemplo do Movimento pela Sobrevivência na
Transamazônica (MPST) no Pará. Transformado em Movimento pelo Desenvolvimento da
Transamazônica e Xingu (MDTX) abandonou o protesto e as reivindicações como
principal forma de ação, tornando-se uma organização de desenvolvimento com um
quadro técnico contratado elaborando propostas para a região. O movimento foi
suficientemente ouvido e considerado pelas políticas públicas, especialmente, quando
conseguiu ter representação a nível estadual e federal (deputados, prefeitos, etc.). No
entanto, tanto o MPST, como o MDTX eram apenas nomes de fantasia, enquanto a razão
social desde a criação do movimento no final dos anos 1980 é a Fundação Viver, Produzir
e Preservar (FVPP). Além disso, nem todo movimento passa por esta transformação.
Hoje, muitos teóricos questionam a idéia da evolução natural dos movimentos.
Melucci, por exemplo, se distanciou dos modelos cíclicos e de estágios que descreveriam
o "desenvolvimento típico dos movimentos" rumo à institucionalização, mais ou menos
eficaz (Roth & Rucht, 2008:22). Segundo Chazel (1995:288-289), "o curso de um
movimento social não é predeterminado, mas depende das interações que estabelece
com seu contexto, em especial com o contexto político".
Para muitos estudiosos e participantes de movimentos sociais, a formalização do
empreendimento, entendido como termo genérico para as quatro dimensões utilizadas por
Friedberg, é o indicador principal para o grau de institucionalização do movimento. Neste
sentido, autores como Martins (1997:62), Navarro (2002:204)13 e o membro da
coordenação nacional do MST, Stédile (Stédile & Fernandes, 1999:88) caracterizam o
MST como uma organização, em vez de um movimento. Não pretendo discutir os
detalhes da estrutura do MST, as regras internas para determinar as suas lideranças e a
relação dos mesmos com os militantes e a base dos participantes, os assentados. Vale
lembrar ainda que formalmente o MST não existe, não tem estatuto ou legalização.
12
"... agora, alcançados seus objetivos, o movimento se metamorfoseia, nos termos da teoria por mim adotada, numa
organização ou, melhor falando, num conjunto de organizações encarregadas, daqui em diante, de administrar suas
conquistas. Um novo desafio!" (Moreira, 2008:231).
13
"Neste ponto residiriam amplas possibilidades de uma interminável controvérsia, não apenas acerca do conceito de
'movimento social' mas, igualmente, das diferenças entre um coletivo social que se organiza como movimento e um
outro que estrutura-se como uma organização inspirada nos manuais leninistas. Não sendo o caso, neste artigo, de
dissecar diferenças teóricas e conceituais, apenas enfatiza-se que o autor deste artigo, em relação ao primeiro aspecto,
adere a uma noção de movimento social que não prescinde de um alto grau de participação de seus membros e uma
estrutura decisória flexível e democrática. Se assim não for, a referência já será a uma organização, tal como o MST
optou por aderir, a partir de 1986, e os riscos maiores, entre tantos outros, são exatamente aqueles de todas as
organizações formais não democráticas ..." (Navarro, 2002:204).
13
Também, não pode ser responsabilizado jurídicamente por seus atos, que deve ser um
dos principais motivos para evitar uma estrutura formal. Por outro, não pode proibir o uso
do seu nome por outros movimentos, como a corrente liderada por José Rainha no Oeste
do Estado de São Paulo que continua, mesmo depois a racha com o MST nacional,
utilizando o nome MST.
Independentemente disso, o MST é dirigido por uma diretoria nacional, tem sua
sede nacional em São Paulo e sedes regionais, domina organizações formais como a
Confederação Nacional das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (CONCRAB) e
muitas cooperativos de serviço e de produção, que são formalmente reconhecidas e
recebem verbas do governo, e ainda é membro de Via Campesina, uma organização
mundial de camponeses.
Analisando o conjunto de características para identificar um movimento e distinguir
de outras formas de ação coletiva, percebe-se que a questão da forma de organização
não é um critério relevante. Não pode-se relacionar o movimento social a uma
determinada forma de organização. Assim, a análise deve se basear nas principais
indicadores, ou seja, a capacidade de mobilização, a existência de um adversário, a
atuação através do meio de protesto e a existência de uma causa para a luta. Importante
é, se o movimento continua nessa luta ou se acomodou administrando problemas
cotidianos para manter a sua existência (importante para líderes e funcionários) e
defender suas conquistas.
Como resultado dessa análise concluo que o MST continua ser um movimento,
tese também apoiado por outros autores, a exemplo de Lazzaretti (2007:124-126) que
afirma: "Discordamos da posição de Zander Navarro ... entendemos que o MST configurase como movimento nos termos das quatro categorias sociológicas explicados no
conceito de Scherer-Warren (1984)".14 Discordo, também, de autores como Martins
(1997:62), Navarro (2002:204) e Stédile (Stédile & Fernandes, 1999:88), que não
consideram (mais) o MST como um movimento.
MECANISMOS DE ALINHAMENTO
Uma das principais críticas à abordagem de MR, apresentadas por David Snow
(Cefaï & Trom, 2001:11), salienta a incapacidade desse modelo para explicar "as razões
14
Lazzaretti (2007:122-123) cita a definição de Scherer-Warren (1984:20) de movimento social como “uma ação grupal
transformadora (a práxis) voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos
consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a
organização e sua direção)”.
14
para militar e resistir, os motivos para criticar e de contestar, assim como, o conjunto das
atividades que essa produção de razões e motivos requer".
No entanto, anteriormente, Blumer (195115, citado por Gohn, 1997:33) já "...
identifica cinco mecanismos no processo de desenvolvimento de um movimento: a
agitação; o desenvolvimento de um esprit de corps; o desenvolvimento de uma moral; a
formação de uma ideologia e, finalmente; o desenvolvimento de operações táticas."
Blumer (1951, citado por Gohn, 1997:33) deixa claro a importância do alinhamento: "O
desenvolvimento do esprit de corps é importante para criar uma atmosfera de cooperação
entre os indivíduos de um movimento social e para reforçar as novas concepções de autoleitura de si-próprios, concepções geradas pelo processo de aprendizagem adquirido por
meio da participação dos movimentos. Trata-se do sentimento da pertença, de
identificação com o outro e consigo próprio, criando uma idéia do coletivo ... Blumer
destaca, já nos anos 30, a importância para os movimentos do desenvolvimento de
símbolos, como canções, slogans, poemas, hinos, gestos, indumentárias, etc." ... assim
como, "reuniões, manifestações, ceremoniais comemorativos, desfiles", mais tarde
integrados na mística do MST (Stédile & Fernandes, 1999:129-137; Almeida, 2005).
Turner & Kilian (1957, citado por Chazel, 1995:304) distinguem entre "estratégias de
controle, adotados de preferência pelos movimentos 'orientados para o poder', e as
estratégias de transformação pessoal, que os movimentos 'orientados para os valores'
tenderiam a privilegiar.
Também Roth & Rucht (2008:21) destacam a identidade cultural e o sentimento de
pertença como pressupostos centrais para a capacidade de mobilização de um
movimento. Um processo, na pesquisa sobre movimentos sociais denominado "framing",
ajuda a desafiar as visões habituais, 'normais' ou convencionais de temáticas conhecidas
e contribui para a criação de objetivos comuns, convicções e interpretações da situação
predominante na sociedade possibilitando, assim, a ação coletiva. Esses "quadros de
interpretação" referem-se a símbolos, valores, identidade e ideologia e podem ser
considerados "a orientação mental que organiza a percepção e a interpretação da
realidade social" (Gohn, 1997:87).16 Snow (2001:27) explica: "O verbo enquadrar [no
sentido de alinhar] é utilizado aqui para conceituar este trabalho de significação que é um
trabalho de atividades que os aderentes e os dirigentes dos movimentos sociais fazem de
maneira contínua". Os participantes do movimento "... atribuem sentido, interpretam os
15
Blumer, Herbert. Social Movements. In: Lee, Alfred. Principles of sociology. New York: Barnes & Noble, 1951.
Esses "frames" podem ser traduzidos, também, como "marcos refereciais" (Gohn, 1997:87) ou "quadros da ação
coletiva". Eles "são o conjunto das crenças e significados orientados à ação e que inspiram e legitimam as atividades e
campanhas" (Snow, 2001:27).
16
15
eventos e as condições pertinentes, de maneira a mobilizar os aderentes e potenciais
participantes para obter o apoio de auditório e favorecer a desmobilização dos
adversários" (Snow & Benford, 1988:198, citado por Snow, 2001:27).17
Laville & Sainsaulieu (1997, p.288) destacam a importância da identidade18 junto
com a mobilização necessária, tanto nos movimentos sociais, quanto em organizações
associativas com atribuições mais rotineiras: "Um dos maiores recursos do poder na
verdade não se apóia na capacidade (expertise), na comunicação, na alocação de
recursos ou na redefinição das regras, mas nos problemas de reconhecimento social dos
indivíduos que, em troca de um engajamento autônomo, polivalente, até amplamente
voluntário, demandam na realidade uma atenção associativa a seus esforços".
Este processo de alinhamento está na base da formação dos participantes do MST.
Pode-se mencionar as músicas, a bandeira, os bonés, as marchas, os acampamentos, a
educação rural, a formação superior, a constituição de núcleos, setores e outras
estruturas nos assentamentos garantindo o alinhamento dos sem-terra. O acampamento
é um lugar privilegiado de alinhamento, pois os sem terra passam por um processo de
desencaixe e, posteriormente, de reencaixe no assentamento (ver Giddens, 1991). Stédile
frisa a importância da "... mística para obter unidade entre nós. Nem a esquerda - porque
tinha vergonha - nem a direita desenvolviam isso". Fernandes afirma que "é uma prática
que o movimento desenvolve ... é seu alimento ideológico, de esperança, de
solidariedade ... para o MST, é um ritual" (Stédile & Fernandes, 1999:129-130). A marcha
tem, entre outros, o objetivo de conscientização política, de diálogo com a população em
geral. "A identidade social dos trabalhadores rurais sem terra é sempre realimentada "...
pela prática dos valores e da mística vivenciados pelo MST em todos os seus atos. ...
Sete valores são enfatizados: a solidariedade, a beleza, a valorização da vida, o gosto
pelos símbolos, o gosto de ser povo, a defesa do trabalho e do estudo e a capacidade
indignar-se" (Carvalho, 2002:253).
OPORTUNIDADES POLÍTICAS
Sidney Tarrow (1998) contribuiu significativamente para superar a Abordagem da
Mobilização de Recursos (MR) e criar uma nova corrente teórica, a Mobilização Política
17
Este processo de reorganização do campo de percepção é necessário, também, em outros contextos, por exemplo,
no aconselhamento ao agricultor no âmbito da extensão rural.
18
Segundo Castells (2002, p.22), identidade de atores sociais pode ser entendido como "o processo de construção de
significado com base em atributo cultural". Erikson, quem, segundo Outhwaite & Bottomore (1996, p.369), mais
desenvolveu a idéia da identidade, se refere a James que tem descrito o sentimento de identidade "da melhor maneira
possível" (James, 1920, citado por Erikson, 1972, p.17-18): "O caráter de um homem é discernível na atitude mental ou
moral em que, quando chegou o momento de revelar-se-lhe, ele se sentiu mais profunda e intensamente ativo e vivo.
Em tais momentos, existe uma voz íntima que nos fala e diz: 'Isto é o que realmente eu sou!'"
16
(MP). Um dos eixos dessa teoria é a noção de oportunidades políticas descrita por Tarrow
(1996:54) da seguinte maneira: "Meu conceito de oportunidades políticas enfatiza não
somente estruturas formais como instituições estatais, mas estruturas de conflito e de
aliança que provêm recursos e opõem constrangimentos externos aos grupos ... Os mais
evidentes sinais são quatro: a abertura de acesso ao poder, mudanças de alinhamentos,
viabilidade de aliados influentes e clivagens dentro e entre elites." Assim, o resultado da
ação dos movimentos depende menos "... do nível de mobilização e mais da
vulnerabilidade política dos opositores, ou da receptividade das demandas no sistema
político e econômico como um todo", segundo Gohn (1997:99), que considera os
movimentos como produto dessas oportunidades políticas e "reféns do ambiente externo"
afirmando que "...nunca podem ser ator principal de uma mudança social" (Gohn,
1997:105).
José de Souza Martins (1997:47) afirma indiretamente esta teoria: "A escravidão
negra não terminou em 1888 porque os negros escravizados tenham feito uma grande
revolução social que pusesse fim à sua servidão. Ela terminou porque entrara na agenda
política do Estado desde 1850", pressionado por alguns setores de elites e, sobretudo, as
grandes potências da época (Inglaterra, etc.) que queriam expandir os mercados. No
entanto, outros autores adotam uma posição diferente atribuindo possíveis mudanças
sociais resultantes da ação de movimentos sociais tanto à força dos mesmos, quanto às
aberturas nas "janelas de oportunidades". Por isso, Roth & Rucht (2008:35) evitam
"conscientemente o conceito de oportunidades políticas, porque, primeiro, estreita a mais
ampla faixa de fatores de influência a estruturas e constelações políticas e, segundo,
considera apenas uma lista de três a quatro dimensões estruturais", não compreendendo
os movimentos como reflexo da situação predominante numa perspectiva histórica
estrutural.
Nesse sentido, pergunta-se: O MST é produto das oportunidades políticas e
depende do impulso de outros? Ou, ao contrário, é dotado de força própria e ator principal
da mudança social em questão? Quais os fatores que podem apoiar uma destas
hipóteses?
O MST é produto da abertura no final da ditadura militar e "... foi constituído em
uma conjuntura política em que eram toleradas as ações populares de massa ..."
(Carvalho, 2002:241). Os adversários nesta fase inicial eram os latifundiários,
proprietários de estabelecimentos agrícolas com baixa produtividade (produção
extensiva). O movimento visava a ocupação dos "latifúndios improdutivos" que não
cumprem a função social da propriedade, o que, em princípio, era plenamente coberta
17
pela legislação brasileira. Não fazia parte da sua estratégia a ocupação de áreas estatais
ou terras devolutas, mesmo se fosse mais fácil e mais proveitoso para os aderentes.
Assim, podiam contar com o apoio de uma parte das elites e com a tolerância de partes
dos empresários rurais e até dos militares, porque a "sociedade" e governo tinham uma
"dívida" com a questão da reforma agrária e a reforma agrária estava na agenda do
Estado (Martins, 1997; Medeiros, 1989) , aproveitando essa clivagem nas elites (Tarrow,
1998:79). Vale lembrar que até o governo militar pretendia realizar uma reforma agrária,
apenas não concordou com a atuação dos movimentos sociais do campo, a exemplo das
Ligas Camponesas (Azevedo, 1982).
A fase de redemocratização via também o fortalecimento dos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais e, em geral, as organizações dos agricultores familiares,19 como a
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), que, a partir dos
anos 1990, conquistaram um maior espaço político.
É difícil responder a pergunta, se os resultados criados pelo MST devem ser
atribuídos a própria força do movimento ou são produto de condições externas ao MST.
Não pretendo nesse artigo analisar os efeitos da atuação do movimento, no entanto,
existem indices que permitem algumas conclusões.
Sem dúvida nenhuma, o MST utilizou muito bem uma situação de oportunidades
políticas ("janela de oportunidades"). Mas mais que as outras organizações, conseguiu
cunhar a agenda, sempre reconsiderando o contexto político em que agiu. Mesmo Zander
Navarro (2002:195)20, hoje um árduo crítico do MST e da idéia da reforma agrária no
Brasil do século XXI, reconhece que "... nos últimos vinte anos, o MST tem conseguido
manter-se suficientemente ativo para influenciar a agenda pública sobre o mundo rural e
empreender ações coletivas de grande repercussão, tornando-se um ator de referência
obrigatória em todos os assuntos ligados à questão agrária brasileira. Extremamente ágil,
o Movimento igualmente desenvolveu processos de organização e dinâmicas internas de
estruturação que são justificadores de sua força política ..." Atribui ao MST uma extrema
habilidade política, especialmente, depois que “conquistou” o Estado de São Paulo. "Por
atuar com tal desenvoltura no estado mais influente, com forte repercussão nos meios de
comunicação, o Movimento passou a ter presença ainda mais marcante nos assuntos
relativos à reforma agrária e tornou-se interlocutor obrigatório para este tema e os
assentamentos".
19
20
Sobre o uso do conceito, veja Schmitz, 2008.
Zander Navarro foi inicialmente um defensor do MST.
18
Para sua força contribuiu certamente a sua base constituída pelo "lumpesinato",21
termo usado pelas lideranças do MST que se refere a palavra usada por Marx para
caracterizar a camada mais pauperizada da população, da qual não se esperava nenhum
apoio para a luta da classe trabalhadora. Ao contrário da "elite" dos operários envolvida
nas lutas sindicais e pelas transformações da sociedade capitalista, estes sem-terra não
têm nada a perder com exceção literalmente das suas "correntes". Este fato explica talvez
a coragem com que os sem-terra enfrentam a polícia militar (a exemplo dos
acontecimentos em El Dourado do Carajás - PA, em Abril 1996) e passam pelas
experiências dos acampamentos.
Outro fato que relativiza a tese das oportunidades políticas é o fato de ter surgido
um forte adversário na figura da UDR (União Democrática Ruralista), uma organização de
proprietários de grandes extensões de terra que optava por métodos confrontacionais e
violentos.
Desde sua criação recebeu o apoio dos seus aliados (Tarrow, 1998:79), entre eles,
parte da igreja católica, dos intelectuais e consegue organizar cursos universitários (a
exemplo do Curso de Agronomia oferecido pela UFPA) e técnicos (Curso Técnico em
Administração de Cooperativas, em Veranópolis - RS). Mesmo perdendo uma parte desse
apoio devido a divergências sobre a sua organização interna (a exemplo do título do
artigo de Navarro "mobilização sem emancipação") e sua atuação (ocupação de prédios
públicos, recrutamento de desempregados urbanos, etc.) não enfrentou nenhuma derrota
relevante. Conseguiu se emancipar de uma parte dos seus aliados, principalmente, da
Igreja Católica. Apesar da sua ligação histórica com o Partido dos Trabalhadores (PT),
sempre manteve uma certa distância, maior hoje com a mudança de partido do
coordenador nacional, João Pedro Stédile, e o PT se viu motivado a criar uma expressão
própria no campo, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF)22.
REFLEXÕES FINAIS
Estas idéias constituem um primeiro ensaio de uma reflexão mais ampla que
continuo a fazer para contribuir com o debate. As próximas reflexões versarão sobre: o
papel das lideranças e sua releção com os participantes do movimento, os assentados; o
grau da necessidade de ter objetivos comuns; a influência de organizações na
emergência de movimentos sociais; a rede de apoio ao movimento; o que está em jogo; e
os efeitos da atuação do movimento e as propostas de critérios e indicadores para sua
21
Do alemão "Lumpen", ou seja, pano de chão.
Mesmo que seja apenas o braço de uma corrente do PT, a Democracia Socialista, presente no Ministério de
Desenvolvimento Agrário (MDA) e no Governo do Pará (no momento da elaboração do artigo, em junho de 2009).
22
19
avaliação.
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