1 SOCIEDADE BRASILEIRA DE TERAPIA INTENSIVA MESTRADO

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SOCIEDADE BRASILEIRA DE TERAPIA INTENSIVA
MESTRADO EM TERAPIA INTENSIVA
SANDRA REGINA BOIM MAGGIONI
A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO NO SERVIÇO
PÚBLICO DE SAÚDE: UMA REFLEXÃO SOBRE A DIMENSÃO
DO CUIDADO
SORRISO-MT
2013
SOCIEDADE BRASILEIRA DE TERAPIA INTENSIVA
MESTRADO EM TERAPIA INTENSIVA
SANDRA REGINA BOIM MAGGIONI
A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO NO SERVIÇO
PÚBLICO DE SAÚDE: UMA REFLEXÃO SOBRE A DIMENSÃO
DO CUIDADO
Artigo apresentado à Sociedade Brasileira
de Terapia Intensiva-SOBRATI, como
requisito para a obtenção do título de
Mestre em Terapia Intensiva.
Orientação Professora: Ms. Maristela Cuchi.
SORRISO-MT
JUNHO DE 2013
A HUMANIZAÇÃO NO ATENDIMENTO NO SERVIÇO PÚBLICO DE
SAÚDE: UMA REFLEXÃO SOBRE A DIMENSÃO DO CUIDADO
Sandra ReginaBoimMaggioni1
INTRODUÇÃO:
Este texto tem como foco a discussão sobre o atendimento a pacientes na rede
conveniada do Sistema Único de Saúde (SUS). Dentre os aspectos que daremos
destaque evidenciamos o “cuidado” como um dosmais significativos nos processos de
humanização, uma vez que a dimensão do cuidado deve ser consideradacomo um dos
elementos fundantesnos processos de atendimentoà pessoa humana. Como elemento de
reflexão propõe-se repensar as nossas ações cotidianas nos centros hospitalares e refletir
sobre o cuidado ao paciente numaperspectiva relacional, o que implica uma ação de
tratamento da pessoa e não apenas da doença.
Partimos do pressuposto que cuidar é se importar com o outro e que cuidar é
da dimensão do humano. Por sermos seres sociais,constituímo-nos nos processos de
interação. Sendo assim, o cuidado que envolve a manutenção da vida do outro, ações
humanizam, unem e nos preservam enquanto espécie. A sociedade espera queo setor de
saúde trate e cuide das pessoas, tanto mediante ações individuais como nas coletivas e
nesta responsabilização esperam de nós profissionais,que atuamos nos espaços públicos,
um tratamento de qualidade que respeite as suas necessidades individuais, que possam
ser olhados e percebidos na sua inteireza.
A preocupação com os processos de humanização está presente nas políticas
públicas do Ministério da Saúde de saúde desde 2003. Oprograma HUMANIZA
SUStem no seu bojo um novo olhar para o atendimento em saúde, dando legitimidade a
1Médica,
graduada pela Universidade Federal do Paraná (1982), especialista em Ginecologia e Obstetrícia, atua no
Pronto Atendimento do Hospital Regional de Sorriso desde 1993. Mestranda na SOBRATI- Sociedade Brasileira de
Terapia Intensiva.
uma série de ações que têm como desafio ver o indivíduo como um ser único,
entendendo que suas necessidades vão muito além da doença.
Paim (2009), ao contextualizar as diretrizes do SUS, evidencia aimportância do
atendimento integral,direito este garantido pela Constituição Federal a todo cidadão
brasileiro. Este direito envolve a promoção, a proteção e a recuperação da saúde.
Acrescenta o autor que além de ser integral, o atendimento do SUS deve priorizar as
atividades preventivas, ou seja, que as ações deveriam ser realizadas primeiramentepara
evitar que as pessoas adoeçam. Todavia, esta prioridade não deveria prejudicar os
chamados serviços assistenciais, ou seja, os que tratem das pessoas doentes.
Esta diretriz do SUS, que busca compatibilizar ações preventivas e curativas,
individuais e coletivas, é conhecido como integralidade da
atenção.Representa uma inovação nos modos de cuidar das pessoas e buscar
soluções adequadas para os problemas e necessidades de saúde de um bairro
ou de uma cidade (PAIM, 2009,50).
Porém, é importante destacar que na maioria das vezes as políticas públicas de
Estado não têm investido os recursos, tanto humanos como materiais,necessários para
que esta política se viabilizasse, uma vez que estes recursos são determinantes para que
haja atendimento de qualidade.
Como prevê o Art. 2º da Lei 8.080 de 1990, “a saúde é um direito fundamental
do ser humano devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício”. Neste sentido, reafirmamos que sem investimento social não se pode falar
em qualidade no serviço médico-hospitalar, nem mesmo em excelência ou serviço
humanizado.
Porém, a realidade que enfrentamos cotidianamente indica que nos
sistemas de saúde, o papel do Estado está muito distante do que prevê a
constituição.Esta realidade se repete na maioria dos centros de atendimento à saúde no
país, e no Estado do Mato Grosso a realidade não é diferente. Os profissionais da saúde
não encontram condições adequadas para exercício das suas atividades nos centros de
atendimento à saúde na abrangência do sistema do SUS.
No entanto, não negando esta realidade exposta anteriormente, este texto
propõe aos gestores juntamente com os profissionais da saúde repensar a lógica que está
contida nos processos desenvolvidos cotidianamente. Os tempos “ligeiros”, a
burocratização, a massificação, a racionalização tão característica da vida moderna estão
engendrados
tanto
nos
processos
de
formação
profissional,
como
nos
processosimplementados na maioria das instituições de saúde. Com o intuito de agilizar
os procedimentos, ou seja, a busca pela eficácia no atendimento com rapidez e baixo
custo, perde-se a dimensão do humano, da pessoa que está sendo tratada. O atendimento
é dividido,muitas vezes procura-se agilidade simplificando-seas complexidades que
envolvem a vida humana.
O CUIDADO COMO UM DIREITO DA PESSOA HUMANA
Ao buscarmos no dicionário o sentido da palavra cuidado,ela nos remete a
vários significados interessantes de ser pensados e contextualizados no atendimento aos
pacientes nos espaços públicos. Segundo o dicionário Michaelis (2012),a palavra
cuidado remete a: “algo pensado, meditado, bem trabalhado, com atenção, diligência,
solicitude, precaução, tratar ou manejar com precaução, ter cautela.” Estes sentidos nem
sempre foram incorporados aos processos de formação dos profissionais da saúde, uma
vez que fomos formados a partir de uma lógica científica, herança da ciência moderna
que teve seus reflexos não somente na formação dos profissionais da saúde, mas
também orientam todos os procedimentos adotados, uma vez que o requisito máximo
desta lógica está na relação eficiência/eficácia e custo. Perguntamos, é possível atender
de outra maneira? O cuidado pode ser um aspecto importante nos procedimentos de
tratamento dos pacientes nos hospitais públicos? Os profissionais da saúde poderiam,
mesmo nas condições objetivas em que trabalham hoje, pensar o cuidado de seus
pacientes?
Evidenciamos no nosso cotidiano que embora a expressão cuidadoesteja no
rótulo de inúmeros programas, pouco se evidencia na prática, no lidar com as pessoas
que necessitam de atendimento. A partir da análise de muitos estudos similares2 a
2
Dentre os trabalhos visitados citamos: Aantropologia integral e holística, cuidar do ser e a busca de sentido, de Alexandre Andrade
Martins; AYRES. José Ricardo de Carvalho Mesquita. O cuidado, Os modos de ser (do) humano e as Práticas de saúde,Saúde e
Sociedade. Vol. 13. Nº 3 São Paulo Sept/dec, 2004. Estes trabalhos procuram evidenciar a mesma concepção de cuidado que
estamos tratando neste texto. Apesar de termos feito um estudo e levantamento de como a temática vem sendo abordada atualmente.
O fundamento básico de nossa reflexão é a nossa prática cotidiana e neste sentido trazemos algumas situações do cotidiano que
evidenciam isso.
estes,podemos afirmar que as situações vivenciadas no município de Sorriso se repetem
em diversas instituições espalhadas em todo território nacional. O descaso do poder
público em cuidar das pessoas repete-se nos vários municípios do Brasil, bem como
podemos identificar um padrão de comportamento que organizam e sistematizam estes
atendimentos.
O que queremos evidenciar é que há nos procedimentos uma lógica, uma
caracterização, o que Couri (et al, 2007, 993) descreve como o modelo biomédico.Para
autora, nesta perspectiva:
A doença é percebida como uma entidade separada do doente com foco no
tratamento da doença e não do doente;
O tratamento é prescrito prioritariamente a supressão dos sintomas e não o
restabelecimento da saúde ou equilíbrio interno;
A medicina é vista como uma ciência objetiva, o que leva a evitar as questões
filosóficas e existenciais, como as noções de cura, morte, doença, saúde e
sofrimento, por não se enquadrarem no conceito objetivo de saúde;
Ocorre uma supervalorização do conhecimento científico e da tecnologia;
Concentra-se mais no diagnóstico do que na terapia;
Ocorre uma perda gradativa do vínculo pessoal entre o profissional de saúde
e o paciente, em nome da objetividade;
Concentra-se mais no diagnóstico do que na terapia;
A especialização do conhecimento no setor, criando um grande número de
especialidades e de profissionais e uma disputa acirrada pelo espaço no
mercado de trabalho.
Acrescenta as autoras, o que se vê na atualidade, é que, apesar de toda
tecnologia e conhecimento acumulado, ainda existem grandes problemas de saúde nas
populações de todo mundo, com sistemas de saúde que não dão conta de solucioná-los
satisfatoriamente. Obviamente, a crise da saúde faz parte de uma crise paradigmática
mais ampla, em que é importante perceber a amplitude das implicações que envolvem o
adoecer, para podermos entender o quadro atual, incluindo aspectos sócio-ambientais,
hábitos de vida, padrões genéticos e erros alimentares, entre outros. O paradigma
biomédico está, portanto, se mostrando incapaz de responder sozinho às novas
exigências de saúde dos indivíduos e das populações. É preciso considerar uma forma
mais complexa de discutir doença e saúde, conclui as autoras.
A radicalização desta lógica leva a um entendimento do corpo como uma
máquina, sendo seu funcionamento biológico esquadrinhado e fracionado. A pergunta
imediata que se faz é: o que não está funcionando bem? Como agir objetivamente para
se chegar o mais rápido possível a um diagnóstico?
Esta lógica produz um atendimento em série no qual cada profissional realiza
uma parte do processo, esta metodologia acelera os procedimentos na busca da cura,
onde apenas o cuidado do corpo físico é percebido. Está com febre? Como está a
pressão? Os batimentos cardíacos? Dentre outros.
No entanto, é possível pensar numa outra dimensão o atendimento, numa
perspectiva em que as relações sejam mais humanizadas. Esta discussão do cuidado à
vida, à existência humana, ao desenvolvimento da integralidade do ser é uma discussão
que sempre esteve presente na filosofia.
Na obraO ser e o tempo, o filósofo alemão Heidegger apresenta a dimensão do
cuidado como uma questão central do ser, do humano. Para o autor, os gestos que
expressam zelo, assistência, tutela ou responsabilidade por alguém teriam uma
dimensão relacional, tendo em vista uma relação “de ser com o outro”.
O ser por outro, contra outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o
não sentir-se tocado pelos outros são modos passíveis de preocupação. E
precisamente esses modos, que mencionamos por último, de deficiência e
indiferença caracterizam a convivência cotidiana de um com o outro
(Heidegger, 1996, p.116).
Martins (2009), a partir do conceito de cuidado de Heidegger,traz uma reflexão
antropológica de cunho filosófico na qual busca evidenciar as contradições do mundo
moderno em relação ao seu paradigma antropológico e o cuidado com o outro.Traz
elementos de uma antropologia integral capaz de fundamentar a importância do cuidado
com o outro dentro de um contexto de crise de sentido e ética. O autor faz uma reflexão
ontológica sobre a questão do ser e a sua importância quando falamos do cuidado. A
supremacia do logos analítico moderno encobriu a ternura e o vigor do eros, fazendo
com que o cuidado fosse relegado a segundo plano. O autor evidencia a partir de
análises muito profundas, como isso ocorre na sociedade contemporânea e apresenta
algumas “pistas” de como resgatar o modo-de-ser-cuidado e abrir o ser humano para a
busca de sentido e sua realização existencial.
Estas compreensões à cerca do cuidado nos permitem pensar os procedimentos
de saúde cotidianos a partir de uma relação existencial, relacional, ou seja, da presença
constante do outro, atendo-se às condições existenciais como a autoconsciência, a
alteridade, a responsabilidade, a finitude e a busca de uma significação para a vida
humana.
Ou seja, uma ação humana mediada pela dimensão do cuidado implica num
entendimento de que como humanos somos seres de relação. Só cuida quem se importa
com o outro, percebe o outro na sua inteireza, na sua individualidade, na sua “condição
de ser”. Neste sentido, poderíamos dizer que cuidar do outro, a partir do que nos sinaliza
a filosofia, não é pouca coisa, ao contrário, significa se importar com o ser na sua
totalidade, nas suas necessidades e não apenas no cuidado da doença.
Esta é uma discussão presente em muitas pesquisas que procuram implementar
os princípios de humanização. No trabalho de Gomes; Ferrari e Barreto Furtado (2011),
os autores ao tratar da questão do cuidado humanizado do idoso também apontam para
um repensar as formas rotineiras. Os autores apresentam uma experiência na qual foi
realizado um atendimento mais individualizado, voltado para as necessidades de cada
paciente. A experiência evidencia que é possível construir ações humanizadas em
nossas unidades de atendimento.
Mas, para tanto, temos que construir ações mais coletivas, mais colaborativas
que visem o bem-estar dos cidadãos. Este é um aprendizado que precisa ser
rememorado todos os dias que adentramosas nossas unidades de saúde, que apesar da
precarização dos serviços de saúde que é oferecido no Brasil, é possível tratar com
carinho e atenção estas pessoas que recebemos todos os dias nas nossas unidades.
Como sinalizamos no início deste texto, o nosso diálogo com profissionais da
saúdeseria no sentido de repensar suas possibilidades de atuação nos espaços de saúde
pública. A partir do relato de algumas de nossas vivências, propomos uma reflexão que
procure trazerevidências de atitudes que são naturalizadas pela repetição do cotidiano.
Sendo assim, este estudo reflexivo apoia-se no que sinaliza Yin (2005),
Um estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenômeno
contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os
limites entre o fenômeno e contexto não são claramente definidos [...].
A investigação de estudo de caso enfrenta uma situação tecnicamente única
em que haverá muito mais variáveis de interesse que os pontos de dados e,
como resultado.
Baseia-se em várias fontes e evidências como os dados precisando convergir
em um formato de triângulo, e, como outro resultado.
Beneficia-se do desenvolvimento prévio de proposições teóricas para
conduzir a coleta e a análise dos dados (p.33).
Os relatos apresentados neste texto têm como referência o cotidiano de uma
unidade de Pronto Atendimento do Hospital Regional de Sorriso, na região Norte do
Mato Grosso, um hospital público com atendimento exclusivo do Sistema Único de
Saúde (SUS), administrado pela Secretaria de Saúde do Estado do Mato Grosso (SES).
Possui 120 leitos, dentre eles os destinados aos atendimentos de emergência, média
complexidade, leitos de cirurgia geral, obstetrícia, ortopedia, Unidade de Terapia
Intensiva (UTI) Adulta e UTI neonatal. Esta unidade hospitalar é referência para uma
população de aproximadamente 250 mil habitantes, uma região que engloba 17
municípios, num raio de 200 km.
As cenas descritas a seguirfazem parte da rotina cotidiana de uma profissional
que atua nesta unidade há mais de 10 anos, médica plantonista que atua no pronto
atendimento. As experiências vividas suscitam uma preocupação, bem como uma
reflexãosobre o atendimento, bem como o modo em que este atendimento é concebido.
O CUIDADO NA VIVÊNCIA COTIDIANA
Este relato evidencia como procedimentos são parciais no qual cada
profissional emite seu parecer técnico, realiza seu atendimento e análise, e que na
maioria das vezes o único instrumento de comunicação entre eles é o prontuário,
preenchido por códigos e da maneira mais simplificada e objetiva possível.
O paciente dá entrada pela recepção onde são tomados os dados pessoais. É
exigida a apresentação de documentos pessoais, ou seja, a apresentação das
credenciais próprias de um cidadão para ter o direito ao atendimento, exceto
em casos de urgência e emergência.
Após o preenchimento da ficha de consultaele aguarda para ser chamado pelo
médico; enquanto isso o técnico de enfermagem afere seus sinais vitais como
pulso, pressão arterial, etc. Na maioria das vezes háuma grande demora até
ser consultado pelo médico plantonista. Finalmente é recebido pelo médico
que faz uma avaliação rápida, geralmente o encaminha para realização de
exames, que podem ser laboratoriais e/ou de imagem nova demora ocorre.
Nestes casos, o paciente é conduzido para o procedimento e dependendo de
sua condição pode ser em uma maca,uma cadeira, ou aguarda o técnico que
virá coletar material ou conduzi-lo ao centro de imagem.
Essa sequência de acontecimentos pode durar horas e até dias. Muitas vezes
estes vários profissionais que atendem o paciente não se comunicam entre si,
não conhecem o indivíduo em questão, uma vez que o canal de comunicação
destes profissionais entre si é o prontuário que acompanha o paciente em
todos os momentos.Algumas dessas intervenções podem ser invasivas, sem
que haja o acompanhamento de uma pessoa próxima ou familiar. Em muitos
casos, o paciente pode ser dispensado, ou seja, “receber alta” sem saber o que
ele teve ou tinha ou poderá vir a ter.
Esta situação, não é uma particularidade do Hospital Regional de Sorriso, mas
podeocorrer em muitas das unidades de saúde pública do Brasil devido à falta de
recurso humano e material, falta de fiscalização, gestão incompetente e fraudulenta,
baixa remuneração, burocracia, etc.Porém a solução é complexa e envolve vários
segmentos dentre eles a necessidade de reformular osprocessos que envolvem o
atendimento de saúde desde a formação, o comprometimento dos profissionais e dos
gestores.
Vejamos uma situação cotidiana que merece reflexão:
Após o atendimento preliminar do paciente,seu quadro clínico definido ou a
ser investigado e, havendo necessidade de internação é encaminhado à
enfermaria de acordo com a demanda de especialistas no tratamento. De
acordo com as características e complexidades de sua patologia um médico
sempre será responsável pelo acompanhamento clínico do paciente. Em cada
enfermaria há uma equipe de profissionais de enfermagem que o cuidamda
higiene pessoal, administração de medicação, aferição dos sinais vitais,
alimentação e outros cuidados assistenciais que se fizerem necessários,
baseada em protocolos realizados sistematicamente. Conforme a evolução
clinica do paciente ele pode ser atendido por diferentes médicos especialistas.
Neste contexto, sãoos profissionais da enfermagem que tem mais contato
com o paciente, que participam mais diretamente no cuidado, não são
considerados devidamente nas decisões e na condução da evolução do
paciente, uma vez que na lógica em os procedimentos estão estruturados a
sua atuação é percebida como de “rotina”. Assim, a definição da condução do
tratamento é de exclusividade do médico responsável, nesta decisão nem
sempre esta equipe que atendeu o pacientecuidando efetivamente dele não é
suficientemente valorizada, em algumas situações, nem mesmo ouvida.
Numaoutra situação como a narrada a seguir temos procedimentos muito
parecidos nos quais a rotina é seguida e a dimensão do cuidado, como uma “préocupação” com o ser, suas necessidades, seu nome, sua história, suas vontades, não são
percebidas; a dimensão do cuidado que está representada é mais uma vez com os
aspectos orgânicos e funcionais do paciente.Seus medos, suas angústias não são
considerados, como na situação desta gestante.
Uma gestante que vai ter seu primeiro filho, onde assim que chega e é
encaminhada ao médico plantonista, que não é o médico que acompanhou o
seu pré-natal, é conduzida a locais nada familiares e passa sozinha em meio
apessoas estranhas o momento mais exaustivo e intenso de sua vida. Durante
o trabalho de parto não faz parte de a rotina ter o apoio de uma pessoa em
quem confia e lhe dá segurança como seu médico, seu esposo, sua mãe ou
amiga, assimela vai depender de cuidados de pessoas que nem sabem o seu
nome e quem ela é. Se gritar ou gemer de dor ou de medo, ela pode ser
motivo de chacotas e piadinhas, seu quadro pode até complicar pela “falta de
colaboração”, sendo que ela pode desconhecer a dimensão do que está
acontecendo com seu corpo e seu filho que ela tanto espera.
No exemplo abaixo temos um relato que evidencia situações de cuidado que
também fazem parte do nosso cotidiano e nos permitem enxergar que é possível
“quebrar a rigidez das normativas”, dos procedimentos padrões.
Um senhor de mais de 60 anos, muito simples, que trabalhava no caminhão
de lixo, teve um acidente de trabalho onde foi arrastado pelo caminhão e teve
escoriações profundas nas pernas e nádegas, levando a feridas contaminadas
de difícil tratamento e muita dor. Ele tinha dificuldade em se alimentar, pelo
fato dos alimentos ofertados não fazerem parte de seus hábitos alimentares,
tanto na sua composição bem como no horário de distribuição. Com isso, ele
deixava de fazer algumas refeições e sua ingesta diária não satisfazia suas
necessidades nutricionais. Quando na visita diária, no cuidado com sua
alimentação, ele foi dizendo como fazia as refeições em casa, fomos
adaptando seu cardápio, e no dia que fizemos a “fortaia” do jeito que ele fazia
todas manhãs, ele retomou seu ânimo, começou a se alimentar com mais
disposição, seu valor energético total passou a ser atingido e sua recuperação
a partir daí foi muito mais rápida e efetiva. E foi o cuidado carinhoso de sua
esposa ao seu lado o tempo todo que nos passava os detalhes, “do jeito que
ele gosta”.
A alimentação é a mais primária forma de cuidado, desde a infância vem na
forma do cuidado das pessoas mais próximas que o preparam e servem com carinho e
atenção individualizada, especial. No lidar com os pacientes temos rotinas e normas que
visam o atendimento das suas necessidades nutricionais, mas nem sempre isso é
concretizado sem se levar em conta as particularidades de alguns pacientes.
Estas reflexões deveriam nos impulsionar a refletir sobre nossas ações no
cotidiano de uma instituição pública, pois é possível enxergar o paciente e não apenas o
doente. É possível olhar/ver/perceber o humano que sofre a doença e, após a rapidez que
a emergência nos impele, devemos cuidar do doente como um todo. Precisamos resistir
à mecanização que a rotina de um pronto atendimento nos impõe.
Considerações finais:
Ao puxar os fios que traçaram as características do pensamento moderno pode
ser percebido em que medida estes alicerces serviram ou ainda servem de modelo para a
organização, o comportamento e os procedimentos rotineiros no atendimento do
paciente nas unidades de saúde. Percebemos que o pensamento racionalizado, científico,
e os processos de disciplinarizaçãoque tiveram como fundamento a divisão dos saberes
para melhor compreendê-los, e a racionalização dos recursos, ainda continuam a reger
nossos procedimentos nos espaços hospitalares.
No entanto, igualmente podemos evidenciar que os pacientes esperam muito
mais além de ter atendidos os seus aspectos de ordem orgânica.O bem-estar do paciente
vai além dos aspectos orgânicos e funcionais, estes pacientes esperam ser atendidos na
sua complexidade, na sua humanidade.
Na sociedade em que vivemos, a dimensão do cuidado se perdeu, e até mesmo
os profissionais que se dedicam ao cuidado direto ao paciente são percebidos como
menores. Talvez nestes espaços se precise pensar sobre a importância do cuidado.
“Cuidar do outro”e estar com o outro deveria ser uma atividade das mais nobres. O
cuidado direto com a vida, a manutenção da vida na sua complexidade deveria ter um
valor maior para além da manutenção dos sinais vitais, do corpo sem doença.
É evidente que ao considerarmos ou problematizarmos estas situações nas
unidadesde saúdenão desconsideramos a importância das questões de ordem técnica que
envolvem o atendimento dos profissionais de saúde,dos quais a vida humana depende.
Os procedimentos técnicos são fundamentais para perpetuação e manutenção da vida
humana. Porém sugerimos um tempo, “uma pausa,” para refletirmos em que medida
estes processos técnicos e racionais repercutem na vida do paciente. Sugerimos aos
colegas dos serviços de saúde a olhar para o paciente, para o humano atrás do doente.
Um tempo para pensarmos sobre o cuidado de humanos. Um cuidar e tratar para além
do cuidado físico e das questões da manutenção da vida biológica.
Paim (2009) reforça que a importância da confiança e do vínculo entre os que
prestam serviços de saúde e as pessoas que precisam do cuidado são fundamentais para
a garantia da qualidade e do sucesso desse encontro entre seres humanos, que não se
reduz somente à técnica e à ciência.
O direito à saúde é amplamente discutido na Constituição Federal. No Art. 196
explicita que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação”.
Porém, para que este direito seja garantido é fundamental que o Estado assuma
com mais responsabilidade a implementação das políticas e que a garantia de recursos
humanos e materiais para o atendimento se efetive. Porém, salientamos que igualmente
os profissionais da saúde deveriam repensar outras possibilidades de atendimento. Olhar
e perceber seus pacientes, além da doença que elas manifestam. Ou seja, que os
profissionais da saúde possam estar nos seus momentos de qualificação ressignificando
seus modos de proceder e que os processos de formação não sejam somente voltados
aos aspectos técnicos.
Para finalizar, reiteramos que as dinâmicas cotidianas vividas pelos
profissionais que atendem nos centros de atendimentos do Sistema SUS são um
conhecimentoconstruído a partir da experiência e da prática, e que estes
saberesdeveriam ser mais valorizados pela produção acadêmica no Brasil e os próprios
profissionais da saúde deveriam ser mais estimulados a relatar, escrever e sistematizar
seus procedimentos. Neste sentido, este artigo tem como perspectiva reforçar e valorizar
o olhar de profissionais da saúde que atendem cotidianamente nos centros de saúde.
REFERÊNCIAS
AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita. O cuidado, os modos de ser (do)
humano e as práticas de saúde.Saúde e Sociedade. Vol. 13. Nº 3 São Paulo Sept/dec.
2004.
COURI, Soraya Terra (et al) In. SILVA, Sandra Chemim; MURA, Joana D’arc Pereira.
Tratado de Alimentação, nutrição &dietoterapia. Editora Rocca: São Paulo, 2007.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1996.
MARTINS, Alexandre Andrade. Antropologia integral e holística: cuidar do ser e
abusca de sentido. BioethikosCentro Universitário São Camilo - 2009;3(1):87-99.
MINISTÉRIO DA SAÚDE – Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de
Humanização da Atenção e gestão do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.
YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamentos e métodos.Bookman. 3ed. Porto
Alegre: Bookman, 2005.
PAIM, Jairnilson Silva. O que é o SUS. Editora Fiocruz: Rio de Janeiro, 2009.
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