X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música Música Híbrida – Matrizes Culturais e a Interpretação da Música Brasileira Martha Tupinambá de Ulhôa, Paulo Aragão e Felipe Trotta UNIRIO / Programa de Pós-Graduação em Música E-mail: [email protected] Sumário: Comunicação propõe a noção de MATRIZES CULTURAIS como ferramenta para interpretar o significado da música brasileira popular. O trabalho se inspira no conceito de "heterogeneidade multitemporal" de Néstor Garcia Canclini e no processo de "correspondência hermenêutica entre objetos", proposto por Philip Tagg como metodologia de análise da música popular. Em vez de identificar exemplos musicais específicos para essa comparação, consideramos mais útil, para o caso brasileiro, trabalhar com sonoridades mais gerais: as matrizes musicais artesanais, cultas e industriais, que apontam para uma Música Híbrida. Palavras-Chave: música brasileira popular, música híbrida, matrizes culturais, musicologia.. Esta comunicação se inspira nos estudos da cultura latino-americana desenvolvidos por Néstor Garcia Canclini (em especial no seu livro intitulado Culturas Híbridas) para adequar a metodologia de análise da música popular proposta por Philip Tagg ao material brasileiro 1. De Canclini tomamos a noção de "heterogeneidade multitemporal" (1997:19), onde o culto e o popular podem sintetizar-se no massivo e de Tagg adaptamos alguns aspectos de sua proposta de correspondência hermenêutica por meio de comparação entreobjetos 2. 1 A metodologia e discussão teórica desenvolvidas pela Profª Drª Martha Ulhôa vêm sendo utilizadas por Paulo Aragão e Felipe Trotta em suas dissertações de mestrado sobre “Pixinguinha e a gênese do arranjo musical brasileiro” e “A Dicção de Paulinho da Viola”, respectivamente. 2 Manuscritos de Tagg podem ser encontrados no sítio http://www.theblackbook.net/acad/tagg/texts.html. Ulhôa (1998) introduz alguns dos conceitos desenvolvidos pelo musicólogo inglês para o público brasileiro. Partindo das premissas de que música é (1) relacionada com práticas sociais historicamente definidas e, (2) tem um alto grau de autoreferencialidade, ou seja, remete ou a sua própria estrutura ou a estruturas semelhantes em outras músicas, Tagg sugere que para entender seu significado é necessário um processo de correspondência hermenêutica por meio de comparação entre objetos. "O caráter inerentemente não-verbal [alogogenic] do discurso musical é a razão principal para usar a comparação entre objetos. O eterno dilema do musicólogo é a necessidade de usar palavras em cima de uma arte não verbal e não denotativa. Esta dificuldade aparente pode ser transformada em vantagem se neste estágio da análise se descarta o uso de palavras como uma metaliguagem para música e se substitui o uso de palavras por referências a outra(s) música(s)." (Tagg 1982: 48). Depois disso é relacionar, tanto o objeto de análise quanto o material comparável encontrado em músicas do Comunicações 348 X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música Segundo Philip Tagg, o ouvinte de determinada música faz associações entre essa e outras músicas que pertençam à sua memória musical e afetiva. Essas associações não são musicais, mas também "paramusicais", ou seja, os elementos encontrados na música (e relacionados aos encontrados em outras músicas) estão ligados também a sensações, cenas, imagens e sentimentos. Baseando-se nessa idéia, o autor desenvolve uma proposta de análise musical que busca, principalmente, entender “porque e como alguém comunica o que a quem e com que efeito” (Tagg 1982:39). Em sua metodologia, Tagg propõe que a análise de uma música se inicie por uma listagem de aspectos que devam ser investigados, identificando na música analisada os "musemas", unidades mínimas de significação musical. Essa “lista de parâmentos musicais a serem checados” envolve aspectos temporais, melódicos, de orquestração, tonalidade, textura, dinâmica, acústicos, mecânicos e “eletro-musicais” (técnicas de gravação) (Tagg 1982:48). Uma vez identificados os musemas, passa-se à "comparação entre objetos", ou seja, à busca, em outras músicas, dos musemas encontrados na obra analisada, estabelecendo os significados paramusicais possivelmente relacionados a eles. Estas hipóteses podem ser confirmadas a partir da técnica que ele chamou de "substituição hipotética", ou seja, uma espécie de “prova dos nove” na qual os musemas são alterados para confirmar a relação entre determinado evento sonoro e suas implicações paramusicais. É importante ressaltar que Tagg se mostra interessado mais em significado que em estabelecimento de uma gramática. Mais do que se referir a segmentações, ele fala de "itens" do código musical (musemas), que podem ser desde acordes, timbres, "riffs", texturas ou efeitos técnicos, isto é, tanto elementos segmentais (musemas particulares) quanto não-segmentais (sonoridades gerais). A identificação do significado geral na música popular massiva é sugerido pelo uso de fragmentos sonoros muitas vezes estereotipados -- os chamados "feixes de elementos" ou "bundle of features" no original (Middleton 1990:179) e "blocos de significação" (Stefani 1987:24) --, que funcionam por contiguidade metonímica, ou seja, por detalhes que deflagram a ligação com estilos musicais, práticas sociais e até mesmo repertórios musicais específicos. Podemos constatar este fenômeno quando ligamos o rádio aleatoriamente e em dois segundos podemos identificar o tipo de música e a estação que estamos sintonizando. O mesmo acontece quando ouvimos o som da televisão ao longe e, pela sonoridade geral, podemos ter idéia do tipo de mesmo estilo e cultura que usam modelos sonoros semelhantes ao objeto de estudo, aos seus contextos paramusicais, para se chegar a uma compreensão melhor de "como a vasta quantidade de música à nossa volta funciona e nos influencia" (Tagg 1987: 283). Comunicações 349 X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música filme que está sendo exibido, se épico, romântico ou cômico. Para não falar das introduções de algumas canções ou até mesmo de fragmentos musicais que nos transportam imediatamente para um ambiente distante no tempo e no espaço. Um exemplo antológico do poder de evocação que têm determinados clichês musicais pode ser ouvido na gravação do show Seis e Meia, quando Sivuca apresentou o frevo "Vassourinhas" como se fora tocado por um chinês, russo, árabe ou argentino. O grande acordionista chegou ao requinte de demonstrar a diferença entre o mesmo frevo tocado na Quarta-feira de cinzas, quando os músicos já estão exaustos, e no auge do Carnaval. As modificações consistiam em alteração de alguns elementos: uma "levada" rítmica de tango, uma escala pentatônica, a citação de "Olhos negros", uma modificação de andamento. É do senso comum a afirmação de que a música popular (comercial) é heterogênea e híbrida, uma bricolagem de elementos tradicionais retirados do seu contexto. No entanto, essa hibridação esteve sempre presente na música brasileira popular, desde os encontros étnicos que geraram as manifestações artesanais que Mário de Andrade chamou de danças dramáticas. Essas práticas aparecem embrionárias nos autos jesuíticos e depois nas festas e ocasiões de folga escrava colonial. Posteriormente, com a declaração de independência do império luso, aparece a necessidade da construção de representações que sintetizassem uma noção de nação. Não obstante todo o esforço integrado de intelectuais e políticos no projeto de modernização técnico-estética nacionalpopular não se consegue uma unidade hegemônica homogênea. Estudiosos como Alfredo Bosi (1992) e Renato Ortiz (1988) têm sido unânimes em ressaltar a pluralidade de elementos presentes na cultura brasileira. É lugar comum dizer que somos Brasis e não um único Brasil. E essa é uma trajetória que compartilhamos com a América Latina como um todo, como menciona Canclini. Peter Burke, no seu livro sobre a Cultura popular na Idade Moderna (1989) comenta essa falsa impressão de homogeneidade do conceito de popular. Sugere que se deva pesquisar mais a interação do que a divisão das culturas. Às matrizes culta (grande tradição) e artesanal (pequena tradição) estudadas por Burke, que interagiam nos séculos XVIII e XIX se soma, na nossa concepção, a matriz industrial no século XX. Benjamin (1994) nos adverte que os meios técnicos transformam a relação com a obra de arte. A aura da singularidade da obra de arte (ou da rusticidade do artesanato) é simulada no processo de produção industrial que fabrica o mito da individualidade. Alem disso, diríamos, a mediação tecnológica transforma e quebra as fronteiras espaciais e temporais. O acesso quase que ilimitado à música de outros tempos e de outros lugares permite uma Comunicações 350 X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música convivência e comunicação "pós-moderna", em que se misturam várias matrizes culturais. Na sua relação com a modernidade "sem modernização" as oposições entre o tradicional e o moderno não funcionam mais. Como diz Garcia Canclini: "A modernização diminui o papel do culto e do popular tradicionais no conjunto do mercado simbólico, mas não os suprime" (1997:22), desterritorializando os processos simbólicos (idem: 29), antes restritos, acrescentamos, aos círculos artesanais ou cultos. Por outro lado, manifestações tradicionais agregam símbolos e motivos provenientes da industria cultural atestando sua inserção atuante na modernidade. Um exemplo revelador acontece com a Festa do Divino de Planaltina, cidade próxima à Brasília. A pesquisadora Mércia Pinto descreve a música da ocasião, que inclui uma banda tocando no início do dia hinos e marchas lentas; um grupo de "música jovem" (estilo Jovem Guarda) se apresentando na missa; novamente a banda tocando marchas, valsas, dobrados e maxixes; posteriormente um trio elétrico carregando o padre e as moças que faziam o vocal na missa cantando a chamada "música gospel", incluindo o uso de coreografias e exortações; e, finalmente, as duplas sertanejas profissionais a animar o churrasco que entra noite a dentro 1. Recentemente, outro exemplo, em Bocaiuva, norte de Minas, local onde manifestações artesanais tais como folias, moçambiques, marujadas e catopês são muito atuantes, as pastorinhas, no Natal de 2000 se apresentaram cantando as músicas do Pe. Marcelo, campeão de vendas de música pop religiosa 2. Qual não foi a surpresa, ao assistir, no intervalo do show anual de Roberto Carlos, uma propaganda de uma indústria de perfumes com uma canção tradicional das pastorinhas ("Borboleta bonitinha/ Saia fora do arrozal/ Vem cantar um doce hino / Que hoje é noite de Natal"). Quer dizer, a manifestação artesanal usa o que vem pela via industrial e a propaganda comercial apela para o repertório coletivo da tradição oral. Este conviver simultâneo de vários tempos e espaços é interpretado por Canclini como um processo de desterritorialização. Como diz ele: "O lugar a partir do qual vários milhares de artistas latino-americanos escrevem, pintam ou compõem músicas já não é a cidade na qual passaram sua infância, nem tampouco é essa na qual vivem há alguns anos, mas um lugar híbrido, no qual se cruzam os lugares realmente vividos" (Canclini 1997:327). Canclini comenta a transnacionalização atual da arte culta e popular, exemplificando na última as semelhanças estruturais da música de Roberto Carlos e do mexicano José José e as parcerias de Caetano Veloso com cancionistas latino 1 Comunicação III Congreso Latinoamericano de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular, Bogotá, D.C.. Colombia, 23-27 de agosto de 2000. 2 Rachel Ulhôa, comunicação pessoal, 20/12/2000. Comunicações 351 X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música americanos. O que ocorre, nestes casos, é a utilização de musemas de diferentes matrizes, desterritorializados e reincorporados em uma nova criação musical híbrida, que por sua vez será elaborada pelos ouvintes a partir de experiências sonoras heterogêneas e interpretada sob o prisma desse “estoque de símbolos musicais” (Tagg 1997:7) também híbridos. Mas, como sugerimos acima, essas experimentações, esse laboratório de comunicação, não são um fenômeno recente, mas um processo que sempre existiu na música brasileira popular. Nossa música tem se apropriado, reproduzido, recombinado blocos de significação de várias matrizes, sejam elas cultas, artesanais ou industriais. Tomaremos como exemplo emblemático, representativo de um primeiro momento de expansão em âmbito nacional da indústria fonográfica, a partir dos anos 30, as orquestrações de Pixinguinha. Essas orquestrações, elaboradas para o acompanhamento dos mais famosos cantores da época, estão cheias de elementos oriundos das diversas matrizes culturais, numa articulação híbrida de musemas que contribui para a fundação de um “estilo brasileiro” de orquestração, como atestam vários estudiosos (Cabral 1997, Cazes 1998) 1. É freqüente a utilização, por exemplo, de células e motivos militares, como fanfarras nos trompetes e rufos na caixa clara, especialmente nas marchas carnavalescas. A associação à sonoridade das bandas de música, tão importantes na vida musical brasileira do início do século, é imediata. Como exemplo sonoro a introdução de "Linda morena" de Lamartine Babo, interpretado pelo Grupo da Guarda Velha 2 acompanhando Mário Reis 3. Outro elemento característico de Pixinguinha é a complexa estrutura tonal elaborada para os arranjos, com as famosas modulações que fazem soar introduções e solos instrumentais em outras tonalidades. Esse sofisticado recurso remete-nos diretamente à linguagem do choro e, em última instância, à música européia e sua tradição harmônica — muito presente no próprio choro, inclusive. A sofisticação está presente também no estabelecimento de uma 1 Para uma discussão do projeto de identidade nacional envolvendo música popular ver Hermano Vianna (1995). 2 O Grupo da Guarda Velha, dirigido por Pixinguinha de janeiro a dezembro de 1932 era constituido por músicos integrantes do núcleo da Orquestra Victor (para a qual Pixinguinha fez arranjos de novembro de 1929 a dezembro de 1931): Bonfiglio de Oliveira e Vanderlei (trompetes), Vantuil de Carvalho (trombone), Luís Americano, João Braga e Jonas Aragão (saxofones ou clarinetas), Donga (violão ou banjo), Nelson dos Santos Alves (cavaquinho), João Martins (bandolim ou contrabaixo), Tute (violão), Elísio (piano), Benedito ou Valfrido Silva (bateria), Osvaldo Viana (afoxé), Vidraça (chocalho), Tio Faustino (omelê), João da Baiana (pandeiro) e Adolfo Teixeira (prato e faca). 3 Marcha gravada em dezembro de 1932 e lançada em fevereiro de 1933 pela Victor (33614/A); relançada no CD 009 da Revivendo, Carnaval, sua história, sua gloria. Comunicações 352 X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música relação entre letra e arranjo, com a ilustração musical do significado do texto. Isso ocorre, por exemplo, em “Chegou a hora da fogueira”, de Lamartine Babo, onde há uma passagem em que a música “sobe” cromaticamente tal qual os balões na letra, em um efeito surpreendente (Escuta de trecho de “Chegou a hora da fogueira”, interpretado por Carmem Miranda e Mário Reis, acompanhados pelos Diabos do Céu 1, onde se pode ouvir tanto a subida do balão quanto a modulação anunciando uma nova parte da canção) 2. Os arranjos de Pixinguinha trazem também elementos que demonstram sua atenção aos movimentos e ao conteúdo trazido pela indústria cultural. Nesse sentido, é significativa a utilização de recursos encontrados especialmente na música popular norte-americana, como frases tipicamente "jazzísticas", utilização de acordes de I° grau com sétima para terminar músicas, entre outros. São diversos os exemplos de músicas em que todos esses elementos, e muitos outros, aparecem lado a lado ou mesmo sobrepostos, em um exemplo prático de um hibridismo que se consolidou “brasileiro”, no senso comum. Encerramos a comunicação com fragmentos de "Na virada da montanha", de Ari Barroso e Lamartine Babo, interpretado por Francisco Alves, acompanhado pelos Diabos do Céu 3. A introdução rítmica prenuncia o motivo que se tornaria emblemático, empregado por Radamés, 4 anos mais tarde, na introdução de "Aquarela do Brasil" de Ari Barroso; e o final, sugere uma leve ressonância de elementos absorvidos pela via industrial. Concluímos sugerindo que a noção de matrizes culturais pode ser útil como ferramenta para interpretar o significado da música brasileira popular. Como concordamos com a premissa de Tagg de que "música se explica com música" adaptamos seu processo de "correspondência hermenêutica entre objetos" ao caso brasileiro. Na nossa proposta, mais que identificar exemplos musicais específicos para essa comparação, consideramos mais útil, trabalhar com sonoridades mais gerais: as matrizes artesanais, cultas e industriais, que apontam para uma Música Híbrida. Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter (1994). A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, pp. 165-196. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 7 ed. 1 Mesma formação do Grupo da Guarda Velha, atuando de novembro de 1929 a dezembro de 1931. O original em 78 rpm (Victor 33671), gravado em 06/1933 e lançado em 07/1933, foi relançado recentemente pela gravadora BMG numa "caixa" com 3 CDs dedicada a Carmem Miranda. 3 Gravado em 08/1935, lançado em 12/1935 pela Victor (33995/B); Cd Os grandes sambas da história vol.2 — Editora Globo. 2 Comunicações 353 X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música BOSI, Alfredo (1992). Dialética da Colonização. São Paulo: Cia. das Letras. BURKE, Peter (1989). Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras. Trad. Denise Bottman. CABRAL, Sérgio (1997). Pixinguinha – vida e obra. Rio de Janeiro: Lumiar. CAZES, Henrique (1998). Choro: do quintal ao Municipal. São Paulo: Ed. 34. GARCÍA CANCLINI, Néstor (1997). Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. São Paulo: EDUSP. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana R. Lessa. MIDDLETON, Richard (1990). Studying Popular Music. Buckingham: Open University Press. ORTIZ, Renato (1988). 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