Patentes, Genes e Bioética Juliana Frozel de Camargo Alcoforado Mestre em Direito - UNIMEP Professora da Faculdade Comunitária de Campinas - Unidade 1 e-mail: [email protected] Resumo Produto do intelecto humano, a biotecnologia, principalmente através da engenharia genética, possibilitou diversos progressos científicos, trazendo à tona os organismos geneticamente modificados, a clonagem e toda uma especulação sobre patentes sobre seres vivos e material genético. A necessidade de interação e proteção mundial nesta área se faz necessário tendo em vista a repercussão e as conseqüências desses avanços na vida de toda a humanidade. Será que estamos realmente sendo beneficiados? O presente estudo é uma pesquisa bibliográfica que, por meio da lei e da doutrina, tem por objetivos levantar o debate sobre a propriedade intelectual, seu amparo legal e as conseqüências ético-jurídicas da manipulação genética em geral. Verifica-se que o avanço da biotecnologia precisa ser revisto sob o ponto de vista ético. A Bioética, atualmente, é considerada como sendo a Ética Aplicada às questões da saúde e da pesquisa em seres humanos, ou seja, é ética da vida. A Bioética aborda estes novos problemas de forma original, secular, interdisciplinar, contemporânea, global e sistemática. Desta forma, estimula novos patamares de discussão que podem possibilitar soluções adequadas. É a busca da ciência com consciência. Palavras-chave: propriedade intelectual, biotecnologia, patentes, genes, bioética. Introdução Com as inovações, a biotecnologia, resultado da produção intelectual do homem, tornou-se essencial para a modernização das mais variadas técnicas, sendo necessária, a seu tempo, uma legislação que amparasse as novas descobertas e processos desenvolvidos. Os efeitos da globalização, das rápidas mudanças urbanas, das transformações nas comunicações impostas pelos avanços biotecnológicos têm influenciado de modo decisivo nas relações patrimoniais, no papel da boa-fé, nas relações contratuais, familiares, no direito sucessório e, principalmente, no significado do sujeito como objeto dos Direitos Humanos Fundamentais. Verifica-se que essas transformações são produtos da Modernidade, que considera a natureza imperfeita, inacabável, hostil, e que foi dado ao homem o poder de torná-la perfeita, amável através do progresso científico. Com essa nova visão de mundo, a ciência, mais do que nunca, é reverenciada e vista com absoluta confiança, a única força capaz de dominar a natureza e colocá-la a serviço do homem. Será? A partir das técnicas biotecnológicas, muitos avanços foram conquistados principalmente na seara da engenharia genética, o que exigiu uma maior preocupação em matéria de proteção da propriedade intelectual e, ao mesmo tempo, com os questionamentos éticos sobre a possibilidade de se patentear o patrimônio genético de plantas, animais e até mesmo de seres humanos. A vida pode ser patenteada? O presente artigo está organizado da seguinte maneira: a seção 2 trata da propriedade intelectual e as principais leis que disciplinam a matéria. A conceituação e idéias centrais sobre engenharia genética e biotecnologia estão inseridas na seção 3, sendo que, o Projeto Genoma Humano propriamente dito, localiza-se na seção 4. A preocupação e o debate da possibilidade de patenteamento sobre seres vivos e material genético estão indicados na seção 5. Já a seção 6 trata das conseqüências éticas decorrentes dos avanços biotecnológicos. Por fim, as conclusões estão orientadas na seção 7. Propriedade intelectual O sentimento de propriedade, no sentido de demarcar os espaços de sobrevivência e reprodução da espécie sempre esteve presente nas sociedades humanas, 259 desde os tempos mais primitivos desenvolvendo-se na medida em que as comunidades foram avançando para as formações sociais mais complexas, ou seja, com o próprio processo civilizatório. Em sua concepção filosófica, a propriedade é plena, ilimitada, porém, para o seu efetivo exercício, sofre limitações, já que prescinde de formas de regulamentação por parte do Estado.1 A capacidade criadora do homem faz parte de sua própria existência. Assim, a propriedade intelectual compreende: a propriedade industrial e a artística ou literária. A primeira, cuja criação está no mundo da indústria, objetiva produzir efeitos no mundo material, visando a obtenção de um resultado utilitário, que o torne mais rápido, mais forte e mais perfeito, enquanto que a segunda visa a objetivo semelhante, mas no mundo interior do homem, no mundo da percepção. A invenção industrial atua no mundo físico, enquanto que a obra artística no mundo da comunicação ou da expressão. Em ambos os casos não é a idéia que é protegida, mas sim, a sua realização numa forma definida.2 Sobre esta matéria foram assinadas duas grandes convenções: a Convenção de Paris (1883), que tratou da proteção à propriedade industrial, e a Convenção de Berna (1886), que tratou da propriedade intelectual de obras literárias e artísticas. A própria Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXII, garante o direito de propriedade e, imediatamente no inciso XXIII, condiciona esse direito à sua função social. Designa-se como propriedade intelectual não só a quem a tem sobre a obra literária, científica, filosófica ou artística, mas toda concepção produzida pelo cérebro humano, da qual possa resultar uma exploração comercial ou uma vantagem econômica, como as invenções. A “propriedade intelectual” abrange tanto os direitos autorais quanto a concessão de privilégios de patentes aos seus inventores. Assim, o regime jurídico da propriedade intelectual envolve tanto os direitos referentes ao autor e sua obra (direitos autorais) quanto os direitos e as obrigações referentes ao inventor e à sua criação (concessão de privilégios por intermédio de patentes às invenções) e, recentemente, a propriedade intelectual referente a cultivares.3 O Projeto Lei n. 824/91 que tratou desse assunto, só conseguiu ser aprovado em 15 de abril de 1996, e a lei de propriedade industrial (Lei n. 9.279) somente foi sancionada em 14 de maio de 1996. 260 Engenharia genética e biotecnologia As técnicas e os processos que possibilitaram a manipulação do código genético, constituem um importante ramo da biotecnologia chamada engenharia genética. Uma outra expressão sinônima que também passou a ser utilizada a partir da década de 90 é “bioengenharia”.4 A engenharia genética consiste no emprego de técnicas científicas dirigidas à modificação da constituição genética de células e organismos, mediante manipulação de genes. Constitui um ramo da ciência genética que utiliza procedimentos técnicos idôneos para a transferência de certas informações genéticas para as células de um organismo. Tais informações advêm de fonte diversa da carga genética da célula onde introduzidas e são responsáveis pelas novas características nesta ou no indivíduo receptor. Esse conjunto de informações contidas nos cromossomos de uma célula denomina-se genoma (...).5 Assim, através do mapeamento do genoma, que permite o fornecimento de informações sobre o funcionamento do corpo humano, a engenharia genética possibilita uma interferência precoce tanto na terapia de alterações patológicas detectadas tecnicamente, quanto em caracteres da personalidade e no comportamento do ser humano. Na engenharia estão incluídas as noções de manipulação genética, reprodução assistida, diagnose genética, terapia gênica e clonagem, pois tende à modificação do patrimônio hereditário do ser humano. A biotecnologia é a ciência da engenharia genética que visa o uso de sistemas e organismos biológicos para aplicações medicinais, científicas, industriais, agrícolas e ambientais. Através dela os organismos vivos passaram a ser manipulados geneticamente, possibilitando-se a criação de organismos transgênicos ou geneticamente modificados (Lei n. 8.974/95, art. 3º, IV e V). Apesar desses avanços e perspectivas para o futuro, muitas questões são levantadas: Haveria nessas técnicas verdadeira melhoria na qualidade de vida no momento presente? Com o emprego dessas técnicas, não estar-se-ia assumindo um risco à saúde humana, animal e vegetal? Estar-se-ia respeitando a dignidade humana ao fazer experimentações com material genético humano? Não violariam elas o direito de todo homem de ser único e irrepetível se a clonagem de seres humanos tornar-se uma realidade? Tais avanços biotecnológicos não levariam a um perigoso e arriscado caminho sem retorno? Talvez, mais do que nunca, seja necessário tomar algumas medidas e precauções, inclusive legislativas, para que cientistas e população sejam orientados no âmbito da biotecnologia. Já é preocupação de muitos salvaguardar a sobrevivência da espécie humana e o respeito da dignidade do ser humano, evitando sua coisificação. A temática é tão séria que a Constituição Federal, no art. 225, parágrafo 1º, incumbiu o Poder Público de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético. As implicações éticas dos avanços biotecnológicos de certa forma se contrapõem à idéia de dignidade humana contida no art. 1º, III, da Carta Magna. Pensando justamente em controlar as atividades voltadas à engenharia genética, existem os Comitês de Bioética que estão sempre em busca da criação de instituições que supervisionem o emprego de tais técnicas e de normas que protejam juridicamente gametas, embriões humanos, enfim, que protejam o material genético e a dignidade das pessoas. Projeto Genoma Humano Espetacular projeto do século XX, o Projeto Genoma Humano (PGH), teve início em 1990 e no dia 26 de junho de 2000 foi consagrado com o mapeamento ou seqüenciamento do código genético humano. Referido Projeto foi um passo importantíssimo para a ciência, constitui um dos mais fascinantes estudos da biotecnologia por ser uma revolucionária tecnologia de seqüenciamento genético baseada em marcadores de ADN (Ácido Desoxirribonucléico), que permitem a localização fácil e rápida dos genes. Com isso, o genoma humano, que é propriedade inalienável da pessoa e patrimônio comum da humanidade (art. 1º da Declaração Universal sobre o Genoma e Direito Humanos), passará a ser a base de toda pesquisa genética humana dos próximos anos. Esse projeto, ao descobrir e catalogar o código genético da espécie humana, possibilitará grandes avanços em termos de cura e diagnósticos.6 Com o Projeto Genoma Humano, entra-se na era da medicina preditiva, ou seja, tem-se a possibilidade de prever para prevenir doenças, ampliar propostas de tratamentos, garantir a dignidade humana etc. Por sua própria natureza, o PGH cerca-se de algumas incertezas éticas, legais e sociais (ELSI). Reconhecendo isso, o projeto dedicou 10% de seu orçamento total à discussão desses temas. (...) Três itens se destacam na agenda ELSI: 1) privacidade da informação genética; 2) segurança e eficácia da medicina genética e 3) justiça no uso da informação genética.7 Seguindo este mesmo raciocínio, DINIZ8 também acredita que o Projeto Genoma Humano, em razão de ser a herança da humanidade, envolve muitas questões ético-jurídicas, como: o respeito aos direitos e à dignidade humana; a preservação da privacidade da informação genética, já que os resultados de exames genéticos não poderão ser expostos sem a autorização dos pacientes; trata-se, pois, do sigilo das informações genéticas da pessoa, estabelecido no art. 7º da Declaração Universal do Genoma e dos Direitos Humanos; a questão da justiça e igualdade no uso da informação genética para garantir e proteger os direitos de todos; a garantia do princípio da qualidade; a idéia de que a informação adquirida sobre o genoma humano é de propriedade comum, não podendo ser usada com fins comerciais (art. 4º Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos) e como faz parte do corpo humano, está fora da propriedade intelectual ou industrial não podendo haver o seu patenteamento (art. 10, I e IX, da Lei n. 9.279/96) etc. Patentes sobre seres vivos e material genético O grande avanço da biotecnologia trouxe a questão da concessão de patentes, com o escopo de incentivar as investigações e suas aplicações à indústria. A patente é um título outorgado pelo Poder Público a um inventor para que este tenha exclusividade na exploração de sua invenção (art. 8º da Lei 9.279/ 96), impedindo que outrem a explore sem sua anuência. Três são os requisitos essenciais para a patenteabilidade: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Ressalte-se que há a possibilidade de um único patenteamento sobre o mesmo produto. Com o perigo da patente por outrem, a idéia é primeiro patentear e só depois fazer qualquer tipo de publicação ou divulgação do invento. Assim, nos últimos anos, tornou-se freqüente ouvir as seguintes expressões: “o caminho da pesquisa é a patente”; “patentear primeiro e publicar depois deveria ser a lógica vigente entre os pesquisadores brasileiros”. Isso mostra o quanto o Brasil mudou sua mentalidade na maneira de lidar com suas inovações e tecnologias. Essa preocupação pode ser atribuída, em 261 grande parte, ao reconhecimento, cada vez maior, de que as patentes e suas conseqüências fazem parte do nosso dia a dia, seja no controle de preços, seja na redução de postos de trabalho pela não produção local ou ainda, pela dificuldade de acesso a tecnologias monopolizadas. Tudo isso é resultado de vários acordos internacionais que favorecem alguns países em detrimento de outros, cabendo a estes últimos submeterem-se às regras impostas pela necessidade de manter relações comerciais. O Brasil vem se adequando à realidade das patentes, que é recente para nós, sobretudo em algumas áreas, como a biotecnologia, porém já há muito estabelecida em outros países.9 É importante lembrar que, a justificativa que se tem para proteger uma invenção biotecnológica é a mesma usada para proteger qualquer outro tipo de inovação: a patente ainda é a melhor forma de incentivar a pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e processos e também de garantir a disponibilização das inovações no mercado, principalmente quando se leva em consideração os custos e riscos envolvidos em áreas como a biotecnologia. Estamos justamente no século da biotecnologia, especialmente do ramo da manipulação genética, em que tanto se especula sobre a possibilidade de patenteamento sobre o material genético, ou seja, sobre o gene, que é a unidade hereditária ou genética, situada no cromossomo, e que determina as características de um ser. A demarcação e a privatização do domínio genético do planeta iniciaram-se em 1971, quando um microbiologista, Ananda Chakrabarty, solicitou a concessão de patente para um microorganismo geneticamente construído (bactéria do gênero Pseudomonas), projetado para devorar derramamentos de óleos nos oceanos. Houve muita discussão até que nos anos 80 a Suprema Corte dos Estados Unidos, após recusas anteriores, considerou o pedido relevante argumentando que uma simples bactéria está mais perto de ser um composto orgânico inanimado do que um ser vivo propriamente dito.10 A partir deste caso, surgiram diversas discussões sobre patente de seres vivos e de outros materiais genéticos. Os países desenvolvidos vêm investindo na nova era tecnológica e o patrimônio genético do planeta tornou-se uma grande fonte de valor monetário. Empresas multinacionais e governos exploram continentes em busca do chamado “ouro verde”, ou seja, à procura de plantas, animais, micróbios e mesmo seres humanos com traços genéticos desejados... criando bibliotecas gênicas. 262 Como exemplo da busca do “ouro verde” em seres humanos, é que já passaram pelos escritórios de patentes tentativas de se patentear traços geneticamente particulares como o caso dos índios Guaymi, portadores de um vírus exclusivo que estimula a produção de anticorpos para o tratamento da leucemia e AIDS. O dinheiro passa a ser o árbitro do futuro desenvolvimento científico e a magnitude de seu poder é incontestável! No Brasil, a Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9279/96), proíbe (Art. 18, alínea III) a concessão de patentes para “o todo ou parte de seres vivos, exceto os microrganismos transgênicos que atendam aos requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta”. Esse dispositivo deve ser analisado em articulação com os termos do art. 10, inciso IX, que não considera invenção “...o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais”. Essa proibição se baseia na possibilidade aberta no artigo 27 do acordo TRIPS (Agreement on TradeRelated Aspects of Intelectual Property Rigths), da OMC (Organização Mundial do Comércio), do qual o Brasil é Membro, que versa sobre matéria patenteável e estabelece que podem ser excluídos de patenteabilidade “plantas e animais, exceto microorganismos...”. Portanto, segundo a fórmula adotada pela legislação projetada, só podem ser patenteados os microorganismos “engenheirados”, ou seja, aqueles que são geneticamente modificados pelo homem. Possuir o controle e o monopólio de certo organismo vivo e de toda a sua descendência seria inaceitável (...) A engenharia genética, ao permitir a interferência nos processos biológicos e a alteração da composição genética dos seres vivos, não converte o geneticista em inventor, mas num simples descobridor e manipulador da natureza. (...) Patentear genes humanos seria o mesmo que patentear a vida humana. O gene é um instrumento para a obtenção de medicamento e não um fim comercial em si mesmo. O incentivo à invenção biotecnológica reclama um categórico “não” às patentes sobre matéria viva.11 Desta forma, o simples seqüenciamento de genes não pode ser protegido por patente, pois representa uma descoberta de algo que já existe. Patenteáveis são, portanto, os processos criados pela biotecnologia utilizando genes desde que sejam essenciais à sadia qualidade de vida. Os seres vivos não se encaixam nos rígidos esquemas das patentes, criadas fundamentalmente para produtos industriais inanimados. Por esta razão, não só no Brasil, mas em diversos países, está proibido o patenteamento de variedades vegetais e animais, assim como os processos biológicos.12 O material genético é patrimônio da coletividade! Ressalte-se que a referida Lei de Propriedade Industrial estabelece no seu art. 40 que a patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo de 15 (quinze) anos contados da data de depósito. O parágrafo único completa que, ressalvada a hipótese de o INPI estar impedido de proceder ao exame de mérito do pedido, por pendência judicial comprovada ou por motivo de força maior, o prazo de vigência não será inferior a 10 (dez) anos para a patente de invenção e a 7 (sete) anos para a patente de modelo de utilidade, a contar da data de concessão. No Brasil, as primeiras patentes de biotecnologia registradas pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual começaram a ser solicitadas a partir de 1996 e crescem bastante, mas nada que chegue perto das patentes ocorridas nos Estados Unidos.13 Há um completo desequilíbrio entre os países desenvolvidos, que detém os recursos financeiros e tecnológicos, e os países em desenvolvimento, que possuem a maior parte dos recursos genéticos. Nessa linha, seria interessante lançar mão de licença cruzada de patentes biotecnológicas, ou seja, intercambiar esses recursos já que para os países detentores da patente em determinada tecnologia seria interessante fazer essas manipulações em variedades brasileiras, e, por outro lado, o Brasil teria chance de acesso à essa biotecnologia patenteada, bem como ao recurso financeiro. Mas não apenas intercambiar recursos, senão verticalizar a pesquisa de tal modo que no intercâmbio haja transferência de tecnologia, assistência técnica, preparação de quadros de pesquisadores, políticas de sistematização e classificação da biodiversidade brasileira etc. Convém salientar que mesmo o Brasil não sendo no momento um país com número expressivo de patentes internacionais na área de biotecnologia, ele foi pioneiro em legalizar a biodiversidade e vem se destacando na área genômica, gozando hoje de reconhecida contribuição na análise de genoma ou seqüenciamento de gêneros importantes como arroz, cana de açúcar, eucalipto entre outros, podendo tirar bom proveito do sistema patentário desde que se capacite no entendimento das regras que regem a propriedade intelectual, capacite seus recursos humanos e utilize os direitos previstos por lei, para tirar proveito dos seus recursos genéticos e da tecnologia gerada no país. Avanços biotecnológicos e a Bioética Nunca se falou tanto sobre ética no comportamento humano com o objetivo de buscar um modelo de vida inspirado no respeito ao homem, como nos últimos anos. Essa preocupação saiu do âmbito filosófico-acadêmico e está fazendo com que as pessoas comuns reflitam: O que é certo ou errado? Como pensar e agir? Até onde a ciência pode avançar? Patentes de genes? Dignidade humana? A chave para responder a estas perguntas está na utilização do conhecimento para a melhoria da qualidade de vida humana, já que o saber e a ciência devem ser vistos como patrimônio da humanidade. O avanço da biotecnologia e as patentes nesta área têm trazido muitas conquistas à humanidade mas também, muitos riscos, assim, a aplicabilidade dos procedimentos na investigação científica precisa ser revista e repensada, pois embora possa ser científico nem sempre é ético. Afinal de contas, até que ponto a Ciência e o Direito “agem” em benefício da humanidade? Daí a necessidade de se compreender a bioética. Bioética: “bíos” (vida) “éthos” (costume, comportamento, ética) - de vida e ética – é um neologismo que, significa ética da vida, adequação da realidade da vida com a da ética.14 Por tratar de vida, percebe-se a enorme abrangência da matéria e, embora tenha-se tentado delimitar seu conteúdo, a bioética não tem fronteiras, não se definindo como as demais disciplinas. O termo “bioética” foi criado em 1971 pelo oncologista e biólogo americano Van Rensselaer Potter, em seu livro “Bioética: Ponte para o Futuro”, estabelecendo uma ligação entre os valores éticos e os fatos biológicos.15 Assim, a bioética impôs-se como uma reação à realidade que a pesquisa científica no campo da vida apresentou, desde a barbárie nazista até os recentes experimentos em manipulação genética. Ela surgiu da indignação com relação aos novos acontecimentos, ou seja, quando foi possível imaginar conseqüências desastrosas advindas dos avanços da biotecnologia.16 Portanto, surgindo a partir da ética nas ciências biológicas, a bioética é hoje, também, uma disciplina 263 voltada para o biodireito e para a legislação com a finalidade de garantir mais humanismo nas ações e relações médico-científicas. A bioética apresenta-se, ao mesmo tempo, como reflexão e ação. Reflexão porque tem o diferencial de realmente parar para refletir sobre as conseqüências psicossociais, econômicas, políticas e éticas advindas dos avanços da ciência e Ação, porque, após a reflexão, é capaz de posicionar-se de forma a assegurar o sucesso desse tipo de relação, impondo limites e ditando regras que estabeleçam um novo contrato social entre povo, médicos, governos etc.17 O desenvolvimento da biotecnologia é, sem dúvida, um fenômeno cultural que representa não só um grande acúmulo de conhecimento pelo homem, mas também e, principalmente, um novo entendimento sobre a situação do ser humano no mundo. A bioética é uma ciência da qual o homem é sujeito e não somente objeto. Baseia-se a bioética em três princípios: o da beneficência, o da autonomia e o da justiça - é a chamada “trindade bioética”, cujos protagonistas são: médico, paciente e sociedade.18 Assim, através destes princípios, será possível nas relações internacionais, especialmente nas relações nortesul, o desenvolvimento de uma teoria da justiça de tal modo que possa ser entendida como igualdade proporcional, geométrica, analógica no sentido de ser um dos problemas centrais da justiça e do direito permitindo um intercâmbio justo de recursos, resultado da pesquisa e da nova riqueza procedente da propriedade intelectual entre países altamente desenvolvidos e os em desenvolvimento. 19 A relação da bioética com o Direito (Biodireito) surge da necessidade do jurista obter instrumentos eficientes para propor soluções para os problemas que a sociedade tecnológica cria, em especial no atual estágio de desenvolvimento, no qual a biotecnologia desponta como a atividade empresarial que vem atraindo mais investimentos, inclusive no campo patentário. Conclusões As invenções na área da biotecnologia fizeram com que a propriedade intelectual nesta matéria se tornasse a nova riqueza das nações. Mas, nesta mesma época moderna, em que tanto se fala de avanços, progressos científicos, patentes biotecnológicas, verifica-se índices absurdos de mortes, torturas, fome, exclusão social. Através da realidade, chega-se à conclusão de que o progresso científico e tecnológico favoreceu, mais uma vez, uma pequena minoria. A grande preocupação, portanto, é com o futuro! 264 O homem precisa amadurecer e saber utilizar todas estas potencialidades da ciência em benefício de toda humanidade e, para essa nova visão a bioética pode ser uma grande fonte de ensinamentos. A globalização tem contribuído para consolidar o poder dos Estados fortes de capitanear a institucionalização do cenário internacional, situação reforçada pela desigualdade tecnológica e, mais do que nunca, biotecnológica. Internacionalmente, portanto, o que se observa é o profundo abismo biotecnológico entre os que acumularam ainda mais riquezas e os excluídos. Vislumbra-se, claramente, limites normativos para o emprego do instituto da patente com relação ao patrimônio genético e à vida propriamente dita. O direito, então, deve ser convocado a intervir, com o objetivo de oferecer uma legislação mais rígida nesta área, para a proteção dos seres humanos, dos outros animais e de todo o meio ambiente. Chegaremos a um ponto em que tudo poderá ser patenteado, e com isso, o conhecimento morrerá nas mãos de quem o desenvolveu. E o conhecimento sim, é que deve ser a grande riqueza do mundo. Surge um “tempo novo” e nova mentalidade deve acompanhá-lo. Deve-se buscar a função social da ciência e das patentes biotecnológicas. O desafio é a construção de uma ética nova, baseada na solidariedade para a socialização do conhecimento, em que o pensamento do “eu” passe a ser o pensamento do “nós”! 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Disponível em: <http://www.hcpa.ufrgs.br/bioeticaf.htm>. Acesso em: 24 mar. 2001. p. 3 17 OLIVEIRA, Fátima. Bioética: uma face da cidadania. São Paulo: Moderna, 1997. p. .47-48. 18 SANTOS, Maria Celeste C. Leite, op. cit. p. 42-45. 19 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. El Pensamiento Jurídico Contemporáneo. Madrid: Debate, 1992, p. 57s. Recebido em 08 de maio de 2007 e aprovado em 31 de outubro de 2007. Notas 1 DEL NERO, Patrícia Áurea. Propriedade intelectual: a tutela jurídica da biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 32. 2 BARBOSA, Denis Borges. Biotecnologia e propriedade intelectual. Disponível em: <http:// www.nbb.com.br/pucblic/vol2.dot> Acesso em: 02 out. 2001. 3 DEL NERO, Patrícia Áurea, op. cit., p. 43. 4 BARCHIFONTAINE, C. P.; PESSINI, L. (Orgs.). Problemas atuais de Bioética. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 220. 5 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 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