direito de resistência - Universidade São Judas Tadeu

Propaganda
O “DIREITO DE RESISTÊNCIA” ENQUANTO
MECANISMO DE AFIRMAÇÃO DA LIBERDADE
INDIVIDUAL NO ÂMBITO DO ESTADO DE DIREITO
Carlos Henrique Pereira De Medeiros*
Sumário
1. Pontos introdutórios; 2. Por que Hobbes como ponto e sua filosofia política? 3. Por que é necessária a constituição
do Estado? 4. Hobbes e a constituição de um Estado total e irresistível: Schmitt; 5. A resistência como algo possível
na leitura de Hobbes: Nádia Souki; 6. Os desdobramentos do “direito de resistência”: Renato Janine Ribeiro; 7. A
resistência em uma leitura teológica: ThamyPogrebinschi; 8. Considerações Finais; 9. Bibliografia utilizada.
Resumo
Trata-se o presente escrito de uma análise do “direito de resistência” hobbesiano, lido na perspectiva de um par-contrário ao poder soberano, apreendido como objeto de limitação ao poder soberano de atentar conta a vida, em
todos os seus pormenores, do súdito supostamente excluído do pacto de constituição do Estado. Análise utilizada
como pano de fundo para uma refutação dos fundamentos filosóficos da tese de Günter Jakobs, conhecida como
“Direito Penal do Inimigo.
Palavras-chave: Filosofia política moderna. Poder e resistência. Estado e indivíduo.
*Mestre em Filosofia, área de concentração Ética e Filosofia Política, pela Faculdade de São Bento do Mosteiro de São
Bento de São Paulo – FSB; Professor de
Filosofia Geral e Jurídica na Universidade
São Judas Tadeu - SP.
Abstract
This is the gift of writing an analysis of “right of resistance” Hobbesian, read from the perspective of a par-contrary to the sovereign power, perceived as an object of limitation to the sovereign power of damaging account
of the life in all its details , the subject allegedly excluded from the covenant of the state constitution. Analysis
used as a backdrop for a refutation of the philosophical foundations of the thesis of Gunter Jakobs, known as
“Enemy Criminal Law.”
Keyword: Moderne political philosophy. Power and resistance. State and individual.
// Revista da Faculdade de Direito // número 3 // primeiro semestre de 2015
110
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
1. Pontos introdutórios
U
ma questão levantada por Günter Jakobs, Catedrático de Filosofia do Direito e de Direito Penal da
Universidade de Bonn, Alemanha, conduz a uma
pergunta: pode um indivíduo ser excluído do direito por um
ato do poder constituído, ser considerado um inimigo e não
um cidadão pelo Estado e, via de conseqüência sofrer a pura
violência estatal? Jakobs assinala como possível tal hipótese.
É que para ele, aos “inimigos”, os excluídos do direito, ao Estado é dado fazer a guerra, porque o inimigo é um perigo que
precisa ser combatido, excluído do direito, eliminado, porque
sua presença representa um perigo para a paz e a segurança
estabelecida pelo pacto social, para a sociedade juridicamente constituída. Para fundamentar sua tese, Jakobs pretende
demonstrar que Hobbes permitiu a possibilidade de se excluir
o status de cidadão de todos aqueles que não oferecessem
uma segurança cognitiva mínima para a manutenção da configuração de uma sociedade juridicamente organizada. Jakobs vai buscar arrimo em passagens de Hobbes, nas quais o
filósofo confronta dois “inimigos”: aquele que nunca aderiu
ao pacto e o súdito rebelado que do pacto foi excluído. Veja,
Jakobs lê em Hobbes que o súdito que por sua manifestação
deliberada se nega à sujeição ao soberano, o súdito rebelado, deve ser declarado “inimigo”, e, por isso mesmo, deve ser
conduzido de volta ao estado de natureza, local em que se
encontra aquele outro “inimigo”, o que nunca se sujeitou à lei;
e, contra ambos, um e outro, se julgados capazes de causar
danos, é dado ao Estado-ator, ao soberano-ator, em virtude
de seu direito de natureza originário, fazer-lhes legitimamente
uma guerra. Seria, pois, na leitura de Jakobs, dado ao Estado,
o poder de aniquilar um cidadão. Mas, e aos “inimigos”, estes indivíduos que serão aniquilados pelo poder estatal, não
lhes seria dado algum poder capaz de fazer frente ao poder
do Estado que lhe quer tirar a vida? Teria Hobbes pensado
esta segunda dimensão do poder, a qual tradicionalmente se
convencionou chamar “resistência”?
Para responder a tal questionamento, por um lado, e para fazer frente à leitura hobbesiana de Jakobs, por outro, parece
ser preciso, desdobrar uma leitura de Hobbes que se calque
na hipótese de resistência, pois, se isso for possível, podem
tornar-se visíveis os limites do poder soberano. Em palavras
outras, através da resistência, pode-se limitar o poder soberano e através da ideia mesma de soberania, alcançar os limites
do poder individual, da liberdade individual no interior do Estado constituído; somente no jogo de reconhecimento dos contrários podemos limitar um e outro, através do seu respectivo
oposto. Portanto, o que está em jogo é, no fundo, uma tentativa de uma leitura possível das relações que se desdobram
entre indivíduo e indivíduos, indivíduos e indivíduos, indivíduo
e Estado, indivíduos e Estado: entre gado e rebanho, gado e
pastorado, rebanho e pastorado. Neste diapasão, parece ser
necessário, primeiro, afirmar o direito de resistência e desdobrá-lo, ainda que tendenciosamente, expandi-lo e conduzi-lo
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
111
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
a um grau que possa sufocar a pretensão de Jakobs. Se estiver correto em meu intento, a tese de Jakobs perde seu pilar
fundamental e, com isto, torna-se vazia, carente de fundamentação. O caminho, primeiro, uma introdução geral aos temas
enfrentados. Segundo, uma abordagem arbitrária das teses de
Carl Schmitt, Nádia Souki e Renato Janine Ribeiro: arbitrária
porque se mostra desde o início uma tendência a afastar uma
tese e afirmar outra. Terceiro, uma análise da tese de Thamy
Pogrebisnchi, a mais radical das abordadas. O procedimento:
1) Introdução a Hobbes a partir de sua doutrina; 2) Afastamento da tese que nega a resistência (Schmitt) e a abertura para
a doutrina que a concebe; 3) Desdobramento da resistência
em seus fundamentos. A intenção, pois, do presente escrito:
demonstrar simplesmente que a resistência pode ser lida na
filosofia política de Hobbes em seus pormenores, mesmo que
apenas em termos de soberania (autopreservação, inalienabilidade de direitos e obediência divina), e assim, de forma implícita, evidenciar que pode ser utilizada para fazer frente à tese
de Jakobs, negando-a internamente a partir de seus próprios
fundamentos; o princípio: o “direito de resistência”.
2. Por que Hobbes como ponto e sua filosofia política?
Hobbes há muito é considerado o filósofo inglês de destaque
maior. Muito mais que Hume, para Leo Strauss, reconhecidamente um dos maiores estudiosos de Thomas Hobbes,
conclui que o filósofo inglês é de fato o fundador da Filosofia
Política moderna porque foi ele quem expressou a convicção
de que efetuara – em sua qualidade de filósofo – uma ruptura
radical com o pensamento político precedente de um modo
muito mais claro que Zenon de Cítio, Marsílio de Pádua, Maquiavel, Bodin e inclusive Bacon; tal afirmação, inclusive, se
confirma pelos juízos de homens competentes, como Rous-
seau e Bayle. Também C.B. Macpherson, outro grande estudioso da doutrina hobbesiana, reconhece a Hobbes lugar de
destaque no pensamento político moderno. Fernando Magalhães, estudioso brasileiro de Hobbes, afirma que se reconhece a Hobbes não somente o lugar de maior filósofo inglês, mas
também o de primeiro grande teórico do Estado moderno. Os
motivos, Hobbes rompe com a tradição do direito divino dos
reis e estabelece uma nova base política, fundada no consentimento, nos princípios da legitimidade do governo. Muito
embora Maquiavel “antecipe, de certo modo, a autonomia da
categoria do político, ele não chega a formular uma filosofia
unitária do Estado nem desenvolve detidamente o conceito
de soberania. Nem mesmo Bodin ousa insurgir-se contra os
preceitos familiares” (Magalhães, 2006:37). “Hobbes foi o primeiro pensador político a ver a possibilidade de deduzir os
deveres diretamente dos fatos mundanos das relações reais
dos indivíduos entre si, inclusive a igualdade inerente a essas
relações; tendo em vista essa possibilidade, foi o primeiro a
poder dispensar suposições de desígnios ou vontade externa.
As tradições das leis naturais estóicas e cristãs, claro, afirmavam a igualdade entre todos os homens, mas essa era menos
uma afirmação de fatos do que uma aspiração a que todos os
homens se considerassem como iguais por reflexão sobre a
racionalidade comum, ou sua criação comum. A racionalidade
comum é uma qualidade tênue e imprecisa em comparação
com a insegurança e subserviência ao mercado que Hobbes
encontrou logo abaixo da superfície da vida diária. Talvez por
ser a racionalidade tão tênue, o desígnio divino e a vontade divina haviam sido desde os primórdios trazidos para a tradição
da lei natural, para dar apoio aos postulados da racionalidade
comum, e com sua introdução, o problema de obter os deveres a partir dos fatos mundanos não mais se apresentava”
(Macpherson, 1979:97-98).
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
112
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
Hobbes também inova quando procura fundamentar sua filosofia política na ciência natural moderna (Strauss, 2006:11).
Hobbes tomou seu método de Galileu. Acreditava que por
meio deste método poderia conseguir em Filosofia Política o
que Galileu obtivera na Física. Mas, por óbvio, a adequação
do método de Galileu para a Física não garantia sua adequação para a Política, pois, enquanto a física se debruça
sobre o corpo natural, a política deita análise sobre o corpo artificial. Se a Filosofia Política se incumbe tanto do conhecimento do corpo artificial quanto na produção deste
corpo, cumpre a ela decompor o Estado em existente em
seus elementos para produzir, por intermédio de uma maior
síntese destes elementos, um Estado justo. Por isso, o procedimento da Filosofia Política deve se assemelhar muito
mais aos dos técnicos que armam e desarmam uma máquina em suas partes, fazendo-a funcionar, que aos dos físicos, pois assim, e somente assim, a Filosofia Política pode
se converter em uma técnica para a regulação do Estado.
Sua tarefa deve ser modificar o equilíbrio instável do Estado existente para fazê-lo funcionar da forma equilibrada que
deve ter um Estado justo. Somente, segundo Strauss, quando a Filosofia Política se converte em uma técnica como a
que ora se descreve, é que se pode fazer uso do método
resolutivo-compositivo(Strauss, 2006:206) Ainda há algo
que torna Hobbes precursor da Filosofia Política moderna: a
abordagem da lei de natureza. Há uma diferença de princípio,
aponta Strauss, entre as concepções moderna e tradicional
da lei natural: a lei natural tradicional é primeira e fundamentalmente “regra e medida” objetiva, uma ordem vinculante
anterior à vontade humana e independente dela; já a lei natural moderna é, ou tende a ser, uma série de “direitos” ou
demandas subjetivas que se originam na vontade humana.
Aí reside uma das diferenças fundamentais entre a doutrina
política de Hobbes, o fundador da Filosofia Política moderna,
com a doutrina política de Platão e Aristóteles. Mas, mais do
que esta diferença, Hobbes tem como ponto de partida não
a lei, senão que o “direito de natureza”; e é por essa concepção de “direito” como princípio da moral e da política que a
originalidade da filosofia política de Hobbes se manifesta de
forma menos ambígua, pois, ao partir do direito – e negar, em
efeito, a supremacia da lei – o filósofo inglês adota uma posição contrária à tradição idealista. Por outro lado, ao fundar
a moral política no “direito”, e não em inclinações ou apetites
puramente naturais, Hobbes adota uma postura contrária à
tradição naturalista (Strauss, 2006:10-11). A base da moral e
da política em Hobbes não é a “lei de natureza”, a obrigação
natural, mas o “direito de natureza”, pois a “lei de natureza”
deve referência ao “direito natural”, na estreita medida que
dele é conseqüência necessária. É desta perspectiva que se
pode notar com maior clareza a oposição entre Hobbes e
toda a tradição fundada em Platão e Aristóteles, ao passo
que se pode ver a importância transcendental da filosofia política de Hobbes (Straus, 2006:210). Hobbes, portanto, foi o
primeiro a distinguir com incomparável clareza “direito” de
“lei”; e isto, de modo tal que conseguiu provar que o Estado
se encontra fundado basicamente no direito, do qual a lei é
uma mera conseqüência; também foi o primeiro a captar a
idéia cabal da soberania.
3. Por que é necessária a constituição do Estado?
113
Hobbes fundamenta jus-filosoficamente as razões para a
criação do Estado; legitima por meio do contrato e do consentimento dos súditos, o poder do soberano. Hobbes empenha-se em estabelecer um certo tipo de unidade de Estado, para garantir aos indivíduos segurança e paz no interior
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
da sociedade. Os objetivos de Hobbes com a constituição
do Estado mostram-se claros: o desejo de paz, a busca da
felicidade, a segurança interna e externa dos indivíduos através da proteção de um poder soberano comum. Mas o corpo
central do pensamento de Hobbes, principalmente o estabelecido no seu Leviatã, parece ser não só a perseguição da
paz, a busca desta com a fuga da morte violenta. “Na teoria
hobbesiana, a construção do Estado não se deve a um mero
capricho dos homens ou a qualquer fato natural, ou seja, decorrente de uma natureza social. Antes, o Estado é fruto da
natureza egoísta do homem, eterna e imutável, que o filósofo
toma conhecimento pela leitura que faz do gênero humano,
no passado, e das atitudes de seus contemporâneos. O Estado hobbesiano nasce com a função precípua de garantir
a paz e assegurar a felicidade dos cidadãos. É o resultado
de uma convenção estabelecida após a conclusão de que a
condição natural em que vivem os homens não deixa lugar
para uma vida confortável, pois todos são inimigos de todos”
(Magalhães, 2006:95) Ora, os homens em sua condição natural vivem em uma situação de total instabilidade, já que não
há um poder comum capaz de subjugá-los a todos1. Sem
este grandioso poder, o que há é o medo da morte violenta,
a ausência de paz, uma guerra constante e violente de todos
os homens contra todos os homens. Tudo porque os homens
são egoístas, vaidosos e lutam por ninharias; passam todo o
seu tempo em busca de lucro e acumulação ilimitada de riquezas e de poder. Por isso mesmo, enquanto vivem sem um
poder para subjugá-los, os homens, os indivíduos hobbesianos, vivem em condição de guerra constante. É necessário,
pois, cessar esta condição, pois, do contrário, não é possível
haver sociedade e o perigo da morte violente se torna uma
constante, “e a vida do homem é solitária, pobre, sórdida,
embrutecida e curta” (Hobbes, 1997:80).
O medo da morte violenta forja, pois, o contrato que conduz
os indivíduos à paz, à segurança e à felicidade. O Estado, uma
vez constituído, assegura aos indivíduos da morte. Mas este
medo da morte violenta, que move os indivíduos singulares
a uma reunião fundadora de um poder comum, que a todos
subjuga, também se mostra como medo de dissolução desta reunião, porque ainda aqui há uma certa igualdade entre
os homens. O meio necessário para se alcançar a paz, então,
além da reunião de vontades, é o controle das paixões individuais. Logo, com a subjugação das paixões e dos outros
desejos individuais pela inclinação do homem pela paz, há o
nascimento do pacto hobbesiano. As paixões egoístas, que
levam os homens à guerra de todos os homens contra todos
os homens, devem ser subjugadas pelas paixões que fazem o
homem tender para a paz (Hobbes, 1997:81). Como a Razão
sugere adequadas as normas que busquem a paz, e as leis de
natureza sugerem que os homens estabeleçam – e cumpram
– contratos de paz, os indivíduos hobbesianos renunciam a
seus direitos sobre todas as coisas, contendo-se todos em
relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos
outros homens permitem em relação a si mesmos, em favor
de um poder comum que lhes garanta a segurança, a felicidade e que lhes preserve a vida. É, pois, por meio do pacto,
que os indivíduos hobbesianos abandonam sua condição natural para ingressar em uma sociedade civil política. É como se
cada homem dissesse a cada homem “cedo e transfiro meu
direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta
assembléia de homens, com a condição de transferires a ele
teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas
ações” (Hobbes, 1997:109). Cedem e transferem, pois, um e
todos os indivíduos hobbesianos sua liberdade ao Estado, ao
poder soberano, seja ele um indivíduo ou uma assembléia,
que governa o Estado.
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
114
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
Sob o jugo de um poder comum, soberano, irresistível e ilimitado, a paz, a segurança e a boa vida, para Hobbes, podem
tornar-se possíveis. Mas a natureza humana e suas paixões,
contudo, permanecem, não obstante o seu controle, e tendem
a reconduzir o homem ao seu estado primitivo. O Estado é,
pois, constituído para que aos homens, a reunião de todos
os homens, se assegure a paz, a segurança e a boa vida. O
medo da morte violenta reuniu os indivíduos e os conduziu ao
pacto de paz, do qual nasceu o Estado soberano. O medo,
portanto, o ponto de partida para a construção do Estado.
Com isto concorda Schmitt, para quem o ponto de partida
para a construção do Estado hobbesiano deve ser o medo do
estado de natureza; sua meta e seu objetivo, a segurança do
estado civil político. É que, para Schmitt, no estado de natureza todos podem tudo ao mesmo tempo, inclusive matarem-se
uns aos outros; todos podem chegar a este extremo. Frente a
uma tamanha ameaça, todos se mostrariam iguais e deveria
reinar, por conseguinte, a democracia. Logo, na leitura de Schmitt, o estado de natureza é o reino da democracia. Mas nem
tudo está perdido para o professor alemão. Há, pois, o estado
civil-político, onde, ao contrário do estado de natureza, todos
estão seguros em sua existência física, pois este é o reino não
é o medo, mas da tranqüilidade e da ordem. Assim, o estado
civil político deve ser reduzido ao estado de segurança.
4. Hobbes e a constituição de um Estado total e irresistível: Schmitt
Para Schmitt, não é propriamente o medo da morte violenta,
mas o terror do estado de natureza que empurra os indivíduos
cheios de medo para o estado de segurança. Reúnem-se e eis
que surge um feixe de luz emanado da razão e ante todos surge subitamente um novo Deus: o Leviatã, o Deus mortal abso-
luto, que transforma os lobos em cidadãos e traz aos homens
angustiados a tão sonhada paz e a tão buscada segurança2.
Mas em que funda este Deus mortal seu poder? Para Schmitt,
não é na vontade dos súditos, mas no próprio caráter divino
do poder do Estado. É que para Schmitt, como para Hobbes,
Deus é antes de tudo poder (potestas), o caráter divino do poder político soberano e onipotente não é uma fundamentação
no sentido de uma pura demonstração lógica, mas é a pura
demonstração do caráter divino próprio deste poder. Mas sua
onipotência mostra-se de origem muito distinta: não é de origem divina, mas uma obra humana; nasce pela virtude de um
contrato que celebram os homens. Pra Schmitt, esta imagem
de Deus mortal serve para significar a concepção do Estado.
Mas a totalidade somente pode ser alcançada, quando a isto
se aliar a figuração da concepção cartesiana de homem, isto
é, como um mecanismo dotado de alma, ao homem magno.
Logo, o Estado deve ser compreendido como uma máquina
animada pela pessoa representativa soberana, explicada pela
construção jurídica do contrato (Schmitt, 2006:25-27).
Dois elementos produzem, pois, o Estado na concepção schmittiana. O primeiro, os indivíduos, movidos pela angústia,
juntam-se uns aos outros e, iluminados pela razão, produzem
um consentimento que traz em si mesmo a submissão geral e absoluta ao poder mais forte; mas, como esta primeira
construção não pode ser vista única e exclusivamente desde
a perspectiva de seus resultados, pois se assim se proceder,
isto é, se se observar o primeiro elemento de constituição do
Estado desde seus resultados e deixar aparte a motivação inicial, a angústia, o resultado único que se pode alcançar é um
pacto muito distinto do pacto hobessiano: um contrato social
de tipo anarquista. Por isso, a angústia deve ser observada
como o elemento essencial do pacto. Essencial, porém não
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
115
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
único. Com efeito – e eis o segundo elemento constituidor do
Estado –, há que se direcionar o olhar para a pessoa soberana representativa, quem, segundo Schmitt, é o único garantidor da paz. Este soberano não se produz como obra do puro
consentimento, mas do específico consentimento calcado na
angústia dos indivíduos. Ele deve ser infinitamente mais do
que o que as forças somadas de todas as vontades individuais
participantes do pacto puderem dar de si mesmas: a angústia
acumulada dos indivíduos que temem por suas vidas produz
o Leviatã, um poder novo. Mas, mais do que um novo poder,
o pacto de angústia cria um novo Deus, um Deus mortal que
transcende a um só e mesmo tempo todos os indivíduos que
participam do pacto: transcende a um e a todos. Porém, esta
transcendência ocorre somente no plano jurídico; nunca no
plano metafísico. É que, segundo Schmitt, a lógica interna do
produto artificial “Estado” não conduz à pessoa soberana, que
exerce a soberania, mas à máquina, pois o que deve importar
não é a representação por meio de uma pessoa, mas a proteção efetivamente presente do Estado; a representação nada é
sem a tutela praesens. E somente se pode assegurar a tutela
por meio de um mecanismo de comando que efetivamente
possa funcionar. O Hobbes schmittiano não apresenta uma
pessoa como sendo o Estado em sua totalidade: a pessoa representativa da soberania somente é a alma do homem magno, do Estado. O Estado como totalidade é, pois, nesta leitura,
com seu corpo e alma, um homo artificialis, e como tal, uma
máquina. É uma obra fabricada por homens na qual o material e os artífices, a máquina e seus construtores são os mesmos: os próprios homens. Por isso, a alma deve converter-se
também ela em simples parte de uma máquina artificialmente
fabricada por homens. O leviatã converte-se, assim, em uma
grande máquina, em um gigantesco mecanismo a serviço
da segurança da vida física terrena dos homens dominados
e protegidos por ele (Schmitt, 2002:27-29). Logo, contra ele,
nada nem ninguém pode resistir.
Ora, para Schmitt, há uma distância infinita que separa o
Estado técnico de Hobbes da comunidade medieval; e isto,
não somente no que diz respeito ao soberano, construído de
maneira racionalista, mas também, e principalmente, no que
diz respeito aos conceitos jurídicos fundamentais: se antes
a soberania se calcava na teoria do “direito divino dos reis”,
na idéia de “pessoas sagradas”, agora, com Hobbes, o que
há é o mecanismo de mando do Estado, construído de forma
racionalista; e, se nas comunidades medievais o “direito de
resistência” feudal ou estamental contra um governo injusto
é plenamente aceitável, no Hobbes schmittiano isto é coisa
impossível. Com efeito, para Schmitt, o indivíduo hobbesiano
não pode invocar, assim como o vassalo ou o estamento o
faziam, um direito divino, o mesmo invocado por seu senhor
feudal ou territorial. No Estado absoluto de Hobbes, é uma
idéia absurda colocar a hipótese de “resistência” como um
“direito”, e elevá-lo ao mesmo plano que o direito estatal; isto
se mostra para Schmitt absurdo não apenas do ponto de vista dos fatos, senão que, e principalmente, do ponto de vista
do direito. Para Schmitt, frente ao grande Leviatã, mecanismo
de mando tecnicamente perfeito, todo poderoso e capaz de
aniquilar qualquer resistência, resulta praticamente inútil toda
e qualquer tentativa de resistir. Mais do que isso, para Schmitt, a construção jurídica do direito de resistência se mostra
como algo impossível, inclusive mesmo como um problema.
Ora, Schmitt apreende que não se pode construir o “direito de
resistência” nem como direito objetivo nem como direito subjetivo, pois, não encontra espaço dentro do âmbito de domínio
da grande máquina irresistível: não pode encontrar lugar no
interior do Estado.
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
116
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
Não pode, porque, segundo Schmitt, carece de ponto de
inserção, não encontra seu lugar: o direito de resistência
mostra-se para Schmitt como algo “utópico”. Para ele,
frente ao incontrastável Leviatã, que a todos submete igualmente sua lei, não pode existir estamento nem caber resistência de qualquer estamento contrário. O Estado deve
existir realmente como Estado e funcionar como instrumento incontrastável da paz, da segurança e da ordem; deve
ter o direito objetivo e o direito subjetivo a seu favor, já que,
como único e supremo legislador, somente ele é que pode
criar todo o direito; se assim não ocorre, se há algo exterior,
superior, que concede ao estamento um direito de resistir
ao Estado, está este mesmo Estado fadado a não cumprir
sua função essencial, que é assegurar a paz, já que pode
sucumbir frente ao estamento. O Estado schmittiano deve
ser um Estado forte, total; do contrário, não há Estado, mas
estado de natureza. Para Schmitt, pode o Estado parar de
funcionar e a grande máquina quedar vencida pela rebelião
e pela guerra civil. Mas, ainda que tal ocorra, nada há que
ver com o “direito de resistência”. A guerra civil e a rebelião
corroem o Estado. Não podem ser admitidas. Para Schmitt, admitir o direito de resistência no âmago do Estado é
o mesmo que admitir um direito à guerra civil, e à rebelião,
reconhecidos pelo Estado: é o mesmo que o Estado reconhecer e permitir passivamente as causas que lhe conduzirão à morte; é o mesmo que reconhecer aos revoltosos um
direito de destruir o Estado. Mas isto é algo impossível para
Schmitt, pois um exclui o outro: O Estado exclui a guerra
civil. “O Leviatã de Hobbes, composto de Deus e homem,
animal e máquina, é o deus mortal que aos homens traz
paz e segurança, e que por esta razão – não por virtude do
‘direito divino dos reis’ – exige obediência absoluta. Frente a ele não cabe direito algum de resistência fundado em
um direito superior e distinto, ou por motivos e argumentos de religião. Só ele castiga e premia. Ele só, em virtude
de seu poder soberano, determina, por meio da lei, o que
será direito e propriedade nas questões de justiça e o que
será verdade e confissão nas coisas que afetam a fé religiosa. ‘mensura boni et maliomnicivitati est lex’” (Schmitt,
2002:41-47).
Na concepção de Schmitt, o que Hobbes quer é por fim à anarquia e ao direito de resistência feudal, canônico ou estamental,
e a guerra civil permanentemente viva em seu tempo; pretende opor ao pluralismo medieval, às pretensões das Igrejas e
de outros poderes “indiretos”, a unidade racional de um poder
inequívoco, capaz de proteger eficazmente a todos os súditos,
e de um sistema legal cujo funcionamento possa ser reduzido
ao cálculo. Como a este poder estatal racional incumbe fazer
frente a todo e qualquer perigo político, assumindo assim a
proteção e a segurança dos súditos, quando cessa esta proteção, deve também cessar a obediência e o Estado, por isso,
deve deixar de existir. Esta, a única hipótese de o indivíduo hobbesiano recobrar sua liberdade natural. Somente pode haver
liberdade natural fora dos limites do Estado. Em seu interior, o
que existe é a vontade do soberano, são as leis do soberano.
Quando a proteção cessa, não há mais Estado. Logo, a relação “proteção e obediência”, na concepção de Schmitt, é
a pedra de toque da construção política de Thomas Hobbes
(Schmitt, 2020:67-68). Schmitt, portanto, nega veementemente a possibilidade de um direito de resistência no interior do
Estado hobbesiano. Para ele, para o Estado hobbesiano ser
um Estado, faz-se necessário que todos os direitos, absolutamente todos, sejam transferidos e que o único legislador seja
o soberano. Nenhum resquício de liberdade pode haver. Por
isso, não pode haver lugar para o direito de resistência. Encon-
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
117
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
trar lugar para um tal direito na leitura de Schmitt, mais do que
enfraquecê-la, conduz ao enfraquecimento de toda a doutrina
da soberania schmittiana (Pogrebinschi, 2003:203).
5. A resistência como algo possível na leitura de Hobbes: Nádia Souki
Mas não se deve ter esta concepção como a única aceitável.
Com efeito, há leitura que admitem o direito de resistência em
oposição às teorias que o negam por completo no interior do
Estado hobbesiano, como o faz Schmitt. Como o direito de
resistência no interior do Estado hobbesiano pressupõe a relação específica de poder entre súdito e soberano, a pergunta
parece dever ser neste específico sentido: existe espaço para
a liberdade individual nesta relação? Nádia Souki,ao contrário
de Schmitt, é uma das leitoras de Hobbes que responderá que
sim. Para ela, diferentemente da rebeldia, que é tida como a
recusa radical e deliberada à autoridade civil estabelecida, e
que por isso mesmo é tida como um ato de hostilidade, que
transforma o rebelde em inimigo do Estado, é a resistência
do súdito ao soberano. A resistência deve ser tida como um
direito conferido expressamente ao súdito hobbesiano. Com
efeito, Hobbes nega expressamente a renúncia ao direito de
autopreservação no estado civil político. Para o filósofo, o primeiro direito de natureza é a autopreservação, a autodefesa,
que embora seja o primeiro direito, cumpre observar, não é o
único; como se depreende da leitura do Capítulo XIV do Leviatã: “há alguns direitos que é impossível admitir que algum
homem, por quaisquer palavras ou outros sinais, possa abandonar ou transferir... ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida, dado que
é impossível admitir que através disso vise a algum benefício
próprio”. E, ainda, “ninguém pode transferir ou renunciar o seu
direito de evitar a morte, os ferimentos e o cárcere”; e complementa no Capítulo XXI: “se o soberano ordenar a alguém
(mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira ou se
mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou
que se abstenha de usar os elementos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse
alguém tem a liberdade de desobedecer”. Para Nádia Souki,
portanto, o direito natural do homem à liberdade no estado civil político limita-se àquelas ações que tendem à preservação
e não a qualquer coisa (Souki, 2008:51-54).
Nádia Souki concebe a hipótese de resistência de forma limitada. Para ela, Hobbes é explícito em conceder ao soberano
um poder ilimitado; todavia reconhece ao súdito um direito irrestrito aos meios de autopreservação. No direito de resistência, direito irrestrito à preservação da vida, surge uma brecha
para identificar a fragilidade do soberano e a individualidade
fulgurante do indivíduo. Com efeito, o governante hobbesiano
mostra-se fraco, mas, mesmo assim, deve-se obediência leis
por eleemanadas. O soberano é incapaz de conter a rebeldia
que se apóia no direito de defesa do súdito. É, pois, nesta
brecha que se situa a liberdade. O soberano hobbesiano é
tão humano quanto seu súdito, mas a falha humana marca
apenas um dos dois corpos do rei. Por isso, a brecha aponta
para o caráter humanístico do poder e ao mesmo tempo para
a sua precariedade: por ser passível de falha, o soberano é
também semelhante ao súdito, apesar do poder absoluto a
ele, soberano, concedido. Eis, aí, segundo Nádia Souki, a coerência do pensamento hobbesiano; o conceito de soberania
é constituído artificialmente. Sua leitura, embora em sentido
contrário à de Schmitt, mostra-se limitada em relação à de
Renato Janine Ribeiro. Com efeito, o professor de São Paulo,
quando aborda o tema da resistência em Hobbes, evidencia
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
118
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
que a relação jurídica do poder define-se principalmente pela
troca de obediência por proteção. O consentimento tem por
consideração preservar a vida, pois somente se renuncia ao
direito de natureza o necessário para se viver, como consubstanciado expressamente no Capítulo XXI do Leviatã de Hobbes. “Articulam-se vontade e razão: reconhecer o poder, conhecer como defini-lo; renunciar, entender por quê. O princípio
volitivo exclui o direito divino e funda a representação; o racional dá a esta sua forma eficaz, adequando o meio (cessão de
direito) ao fim (preservação da vida)” (Ribeiro: 1999:169). Para
Janine Ribeiro, o individualismo hobbesiano exige que o poder provenha da vontade de cada súdito, e que este somente
o obedeça quando e enquanto for racionalmente necessário
para a conservação e manutenção de sua vida no estado político. “A obrigação dura apenas se o soberano me protege a
vida; cessa, não somente se ele me ameaça, mas também
quando ele deixa, embora mau grado seu, de garanti-la. Por
isso, ainda que Hobbes condene quem conspirou contra o rei
(Consideration, p. 421), admite que o realista leal se submeta
a Cromwell, quando este assegura a ordem (Leviathan, Rev. e
conclusão, p. 719 et. Seq.). Também o servo, a ferro, é desobrigado cessando a confiança, cessa o vínculo. Em troca da
obediência, quer-se a proteção” (Ribeiro, 1999:170)
6. Os desdobramentos do “direito de resistência”: Renato Janine Ribeiro
Parca hipótese, parco direito, cujo sentido se deve manifestar como legitimador da vitória de uma sublevação. Ninguém
pode estar obrigado a um pacto de não resistir à prisão ou à
morte; e réus de crimes passíveis de morte podem, inclusive,
unirem-se para lutar contra o soberano, sem que com isso haja
qualquer gravame aos respectivos delitos, porque somente
se pode estar obrigado a obedecer a um soberano quando e
enquanto este puder exercer algum poder sobre os demais.
Para este autor, estes três dispositivos hobbesianos se complementam para dar à resistência inicial do inimigo, face a face
com as forças policiais, uma certa legalidade; o que autoriza também sua aliança com outros fora-da-lei e, ademais, o
apoio ativo ou passivo a outras camadas da população. Aqui
se exprime toda uma história da rebelião, na estrita medida
em que sua origem pode estar no indivíduo, conclui Renato
Janine Ribeiro (Ribeiro, 2003:106). Mas o direito de resistência
não pode existir em sua dimensão coletiva. Com efeito, Renato Janine Ribeiro chama a atenção para o fato de ser o direito
de resistência comum a todos os homens na sua condição
irrenunciável (Ribeiro, 1999:90). Comum a cada um que não
transferiu sua liberdade plena com a submissão ao pacto de
paz, pois se a liberdade que remanescente de cada súdito diz
respeito ao espaço de vida privada, a verdadeira liberdade do
súdito não é resto: decorre da obrigação mesma; visa o mesmo fim que constitui o Estado: a preservação da vida de cada
um; compõe-se dos direitos que o homem conserva ao fazer-se social, “porque abandonar o direito de natureza foi apenas
largar meios insatisfatórios para melhor atingir o mesmo fim”
(Ribeiro, 1999:93). O que funda, pois, o direito de resistir do
indivíduo é o mesmo fim do Estado: a preservação da vida.
A preservação da vida é comum ao direito e à lei de natureza;
está, pois, a diferença relacionada ao meio. A liberdade para
cada um seguir sua própria razão. Mas o fim deve suscitar
o meio adequado, por isso, o direito de natureza mantém-se
no próprio cerne da lei como reserva “caso o indivíduo não
alcance a paz almejada: não se suprime o direito de cada homem à vida” (Ribeiro, 1999:93).Assim, muito embora tenha o
soberano o direito de matar o súdito, invocando simplesmente
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
119
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
o direito de natureza que possui, neste caso, o súdito recupera
sua liberdade e pode, portanto, ao soberano resistir. A razão
radica no fato de ter o indivíduo se socializado para garantir
sua vida, precária na condição natural de guerra; mas se o
próprio soberano, que recebe a incumbência de garantir-lhe a
vida, é quem o ameaça, deve haver a retomada da liberdade
para ser utilizada na defesa da vida. É a vida, pois, um supremo e incondicionado valor; por ela pode por lutar o inocente e
o criminoso. E é tão valiosa a vida para Hobbes que o filósofo, segundo Janine Ribeiro, a defende até o ponto de ampliar
tal defesa de modo a permitir a resistência em face de quem
intente mutilar-lhe o corpo, jogar-lhe nas prisões, privá-los
das condições mínimas de sobrevivência e, inclusive contra a
propriedade privada.Com efeito, é no Leviathan que Hobbes
parece estabelecer o sentido mais amplo para o tema morte;
mais amplo que a morte propriamente dita. É aqui que inclui
a mutilação ao corpo (Ribeiro, 1999:94). Corolário do irrenunciável direito à vida, o direito à integridade física assegura ao
súdito hobbesiano a plenitude de seu corpo, pois qualquer privação ou amputação já está a constituir uma pequena morte;
algo inaceitável para o filósofo. E se a própria vida não passa
de movimento (Leviatã, Capítulo V), outro corolário irrenunciável à vida é o direito de não ser preso ou ameaçado de prisão,
pois a prisão abole a liberdade de movimento em que consiste a vida: “aprisionar alguém, ou ameaçá-lo de cadeias, é
já tentar matá-lo” (Ribeiro: 1999:97). É que a vida no estado
social, civil-político, por basear-se sempre na confiança, deve
fornecer aos homens satisfatória mobilidade, pois do contrário, isto é, se não existir confiança, não há como existir reciprocidade; logo, não pode haver submissão; por isso, desfeito
está o pacto, pois, quando ameaçado de prisão, reposto está
o cidadão em sua condição natural, se assemelha ao cativo,
a quem palavras não o prendem, somente grilhões. Se não
tenho proteção, não ofereço minha submissão: só a proteção
repõe a submissão. E isto é válido na estreita medida que a
prisão na Inglaterra do século XVII não constitui uma pena,
mas apenas uma condição precária: o suspeito ou o réu somente pode ser nela mantido à disposição da autoridade, que
lhe escolhe a punição; geralmente a morte ou alguma mutilação (Ribeiro, 1999:98).
Mas além do movimento e da integridade, o irrenunciável direito à vida inclui em si o direito de não ser obrigado a matar:
“nenhum homem está obrigado, pelas palavras [do pacto],
quer a matar-se, quer matar qualquer outro homem (Leviatã,
Capítulo XXI)” (Ribeiro, 1999:95). Porque ingressam no corpo
político por medo da morte violenta, os indivíduos não estão
obrigados a matar, tampouco estão obrigados a guerrear pelo
Estado, pois este não pode valer-se da simples obrigação
contratual para obrigar os indivíduos aos combates interno e
externo: o duplo gládio, a justiça e a guerra, incumbem ao soberano e seus funcionários. “Foi o medo da morte violenta que
nos conduziu à socialização, tenha-se dado ela por instituição
ou por conquista; como, então, negar ao obediente o direito
de ser medroso? Há muitos ‘homens de coragem feminina’,
afirma Hobbes, de quem não se pode exigir – como tampouco
das mulheres – o serviço militar” (Ribeiro, 1999:95). Se não há
contrato específico, não há obrigação de matar um concidadão ou um inimigo. Esta obrigação específica de ser carrasco
ou soldado, não integra a natureza da cidadania: tomar em armas é um compromisso suplementar. A guerra, portanto, não
obriga, via de regra, o súdito hobbesiano ao combate, pois de
seu direito irrestrito à vida, deriva o direito de não ser obrigado
a matar. Não obriga ordinariamente, pois há uma exceção: se
da mobilização dos cidadãos depender a defesa do Estado
(Leviatã, XXI). A explicação está no fato de Hobbes aparen-
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
120
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
temente distinguir a ofensiva em territórios estrangeiros das
ações de defesa no próprio país. Para Renato Janine Ribeiro,
esta é uma distinção relativamente fácil para a Inglaterra de
Hobbes, na medida em que as ameaças somente poderiam
chegar pelo mar, já que o reino encontrava-se unido. Mas esta
distinção, alerta o professor paulista, não se mostra teoricamente clara. Com efeito, como o Estado é um corpo, embora
político, portanto artificial, que se mantém com seus pares em
relação de natureza, isto é, em constante estado de guerra;
por isso, a ele se aplicam também as disposições do Capítulo
XIII do Leviatã, principalmente aquele preceito que determina
ser razoável, na guerra, uma atitude antecipatória ao ataque
do inimigo: agredir quem ainda está pacato. Mas se a prevenção é a melhor proteção, “como distinguir a defesa do Estado,
que legitima a mobilização universal, da invasão predatória
do território inimigo – que poupa o povo das calamidades da
guerra e, sobretudo, é a única a capacitar o ‘homem artificial’
à expansão que é sua vida?” (Ribeiro, 1999:96). Na liberdade
reside o fundamento do silêncio das leis, das coisas que o
soberano ignora. Aqui deve residir, pois, o resquício da liberdade natural do indivíduo hobbesiano, a liberdade natural de
movimento que vai além dos limites do direito a não ser jogado
na prisão. É no silêncio do governante que reside o movimento
ainda livre.
Mas para a conservação da vida, para a plenitude do direito
à vida, o indivíduo hobbesiano carece de condições materiais
mínimas; tudo para conservar a vida: viver inclui o sobreviver.
Por isso mesmo, comer, beber, como o respirar, são irrenunciáveis. O direito à vida permite, inclusive, o furto por necessidade; e aqui está, segundo Renato Janine Ribeiro, o principal
ponto de oposição entre Hobbes e os teóricos da burguesia,
que consideram melhor um pobre morrer que se aceitar que
furte um pão, pois, neste caso, a manutenção da vida proporcionaria um bem inferior ao dano suportado pelo furto (Ribeiro,
1999:99-100). Hobbes assegurará sempre a vida. Por isso, no
Capítulo XXVII do Leviatã diz que “quando alguém se encontra
privado de alimento e de outras coisas necessárias à sua vida,
e só é capaz de preservar-se através de um pacto contrário à
lei, como quando durante uma grande fome obtém pela força
ou pelo roubo o alimento que não consegue com dinheiro ou
pela caridade, ou quando em defesa da própria vida arranca
a espada das mãos de outrem, nesse caso o crime é totalmente desculpado” (Hobbes, 1997:185). Neste princípio está
a garantia da vida contra a liberdade individual. Com efeito,
segundo Janine Ribeiro, para Hobbes, não pode ser considerado um criminoso quem, coagido pela necessidade, furta
para sobreviver, porque age sem culpa, uma vez que a natureza é quem lhe exige a prática do ato. E se a propriedade, por
outro lado, é o meio pelo e para o qual o soberano exerce seu
ofício – garantir a vida dos súditos –, nem o proprietário pode
acionar por danos, nem o soberano pode punir, o esfomeado
por infringir as leis civis. E o soberano, enquanto responsável
pela vida dos súditos, deve manter-lhes longe da fome e da
miséria, pois, do contrário, mostra-se incapaz em seu ofício e,
com isto, torna possível restituir a cada um dos esfomeados
e miseráveis o direito de natureza suficiente para contra este
soberano fazerem a guerra.
Se de um lado se pode apreender uma leitura que excomunga até a quinta geração o direito de resistência no Leviatã de
Hobbes, de outro, encontram-se leituras que o admitem, seja
pautando-se no direito irrestrito à vida, seja na idéia de inalienabilidade de direitos, isto é, na idéia de autopreservação e
da preservação da vida, assim como nos fins do pacto. Há,
pois, em uma perspectiva em forma de mosaico, de um lado,
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
121
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
partindo-se do centro, uma leitura que não admite de forma
alguma o direito de resistência, de outro, leituras que já o permitem, contudo, de forma muito restrita e específica. Mas há,
ainda, talvez ao lado, talvez mais ao extremo do mosaico, talvez em um ponto mais apartado, porém ainda em seu interior, uma leitura que conduz o direito de resistência aos seus
extremos. Trata-se, pois, da leitura pautada não somente na
idéia de preservação da vida, ou da inalienabilidade de direitos
ou das finalidades do pacto (preservação da vida, garantia de
segurança, manutenção da paz, exercício de uma boa vida),
mas na idéia de obediência divina: a idéia que existe algo superior, um Deus imortal, que tanto aos súditos quanto ao Deus
mortal, o grande Leviatã, dirige o destino e a eles determina
regras, as leis de natureza. Nesta leitura, todos, súdito e soberano, estão a ele, Deus, vinculados ainda em estado de natureza, assim como no interior do Estado, em plena vigência
do pacto. Se se têm por objeto a pretensão de desdobrar os
limites do direito de resistência na filosofia política de Thomas
Hobbes, em especial em seu Leviatã, cumpre, pois, não deixar
de olvidar a esta leitura.
7. A resistência em uma leitura teológica:
Thamy Pogrebinschi.
Para situar sua tese, Thamy Progrebinschi insere a resistência no âmbito da obrigação hobbesiana e a funda na idéia de
autoridade divina. Com efeito, para esta autora, a obrigação
política a que estão sujeitos os indivíduos hobbesianos, seja
em estado de natureza, seja no estado civil político, deriva da
razão divina, expressada nas leis de natureza; as leis promulgadas pelo soberano estão nelas, leis naturais, contidas, e o
soberano, em suas capacidades de julgar, legislar e executar,
também a elas, leis de natureza, está subordinado. Interes-
sante tese, na medida em que se coloca súdito e soberano
em pé de igualdade frente ao poder divino. Estão eles, para a
autora, igualmente vinculados às leis naturais; mas somente
às leis naturais, porque às leis civis, somente o súdito está vinculado; deve, pois, também, obediência ao soberano. Mas o
soberano, somente a Deus. Hobbes, segundo a autora, sabia
muito bem disto, tanto que expressava que quando houvesse
um conflito entre ordens contraditórias, entre as dos homens
e as de Deus, dever-se-ia obedecer a Deus, muito embora a
ordem desrespeitada fosse de seu legítimo soberano, porque
as ordens de Deus são sempre superiores às de qualquer soberano. A essência disso reside na autorização divina da “desobediência civil”, possível no momento em que uma ordem
do soberano contrariar um preceito divino, pois o indivíduo
hobbesiano deve antes de o ser do soberano, súdito de Deus.
“A ordem divina deve ser obedecida sem restrições, mesmo
quando o soberano ordene em sentido contrário; (...) ele pode
desobedecer ao soberano justamente para poder prestar sua
obediência a Deus” (Pogrebinschi, 2003:206). Por isso, não
deve haver dificuldades ao indivíduo em obedecer, ao mesmo
tempo, a Deus e ao soberano civil, pois o fim maior que deve
buscar o homem, antes de tudo, é a salvação divina, a eterna
salvação. Logo, somente se deve obediência ao soberano, na
medida em que esta obediência não implique obstáculo para
a sua salvação individual: as ordens do soberano que arrisquem a vida eterna devem ser desobedecidas.
A pergunta então que surge é: o que é e o que não é necessário ao indivíduo hobbesiano para alcançar a vida eterna? Fé
em Cristo e obediência às leis; basta reconhecer Jesus como
o Cristo que a fé está assegurada, basta obediência às leis
de natureza, as leis divinas, que a salvação será alcançada.
Eis, pois, segundo ThamyPogrebinschi a regra estabelecida
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
122
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
por Hobbes para conciliar a obediência a Deus com a obediência ao soberano: não deve haver contradição entre as leis
de Deus e as leis de um Estado cristão, porque uma vez sujeitado às leis de Deus, ao obedecer ao soberano, o súdito
hobbesiano obedece duas vezes a Deus, até porque as mesmas recompensas oferecidas por Deus ao súdito obediente,
são também oferecidas pelo soberano: a salvação e a vida
[eterna]. Mas, então, o que pode impedir e limitar o soberano?
O medo do Purgatório e da morte eterna; as mesmas penas
aplicadas aos súditos que desobedecem as palavras divinas.
“Assim, o soberano tem o mesmo incentivo que seus súditos
para obedecer às palavras de Deus em primeiro lugar. Ambos
desejam a recompensa, ou temem a punição divina” (Pogrebinschi, 2003:211). A solução indica, pois, que o conflito entre duas ordens conflitantes, uma emanada de Deus e outra
do soberano, deve ser resolvido através da demonstração de
que as ordens do soberano estão em simetria com as ordens
de Deus, e isto de modo tal que ao se obedecer o soberano,
obedece-se também a Deus. É que para esta autora, o pacto é realizado não para garantir a preservação da vida, mas
para garantir a obediência às leis de natureza; e a soberania,
instituída para assegurar tal obediência. Aqui, o soberano é o
responsável exclusivo pela interpretação e pelo cumprimento
das leis de natureza, isto é, segundo a autora, das leis divinas.
A amplitude da abrangência que a autora atribui ao direito de
resistência pode ser muito claramente vista quando se observa
sua abordagem: atribui duas modalidades ao direito de resistência, uma, individual, e, coletiva, a outra. Ainda, subdivide a
autora o direito de resistência individual em duas categorias:
resistência com vistas à preservação física e a resistência destinada à preservação moral. Mas não para por aí a autora. No
que diz respeito ao direito de resistência individual, com vistas
à preservação física, novamente subdivide em três formas de
manifestação: a) direito de resistir á morte; b) direito de resistir a ferimentos e aprisionamentos; e, c) direito de se abster ao
serviço militar. Já no que diz respeito ao direito de resistência
individual, segunda modalidade, subdivide em três hipóteses:
a) direito de não se auto-incriminar; b) direito de não incriminar a
outrem; e, c) direito de não se obrigar pelas suas próprias palavras. Já o direito de resistência coletivo, subdivide também em
duas categorias: o direito de rebelião e o direito de revolução.
No que diz respeito ao direito de resistência individual, a autora,
portanto, não o limita ao direito à vida, mas o estende muito
mais além. É que, para ela, Hobbes não quer apenas garantir
a vida, mas assegurar também aos indivíduos a paz. E para
que a noção de resistência individual seja ilimitada e inviolável,
deve ser concedida não apenas em face dos demais indivíduos, mas também, e principalmente, contra o poder soberano;
a ação do soberano, pois, deve encontrar limite no direito de
resistência dos indivíduos. A obediência ao soberano somente
pode ser exigida enquanto estiver garantida a proteção que
exige o direito de natureza de autopreservação; se o indivíduo se encontrar ameaçado em sua existência, seja por outro
indivíduo, por outros indivíduos ou mesmo pelo próprio soberano, o indivíduo hobbesiano fica livre para desobedecer.
Mas Hobbes não se limitava apenas com a vida, senão que
também com sua manutenção. Assim, viver aprisionado, com
ferimentos incuráveis ou com lesões corporais, viver fisicamente debilitado ou enfraquecido significa não viver com o
mínimo de dignidade exigida pelo direito natural. Logo, se o
soberano não garantir a vida digna, segundo a autora, está o
indivíduo hobbesiano autorizado a desobedecer-lhe. O mesmo se dá se o soberano exigir que o indivíduo tome em armas.
Ora, segundo a autora, ao súdito hobbesiano é dado o direito
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
123
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
de ter medo da guerra e de se fazer substituir por outro guerreiro. Ainda podem resistir os indivíduos hobbesianos quando
obrigados a se auto-incriminar, porque a punição pela não-auto-incriminação representa, por um lado, ameaça à integridade física, e violação, por outro, à integridade moral. Pelos
mesmos fundamentos, os indivíduos hobbesianos também
podem se recusar a matar outrem ou executar tarefas perigosas ou desonrosas ou a se obrigar por suas próprias palavras
(Pogrebinschi, 2003:182-191).
O direito de resistência em sua modalidade coletiva divide-se
em duas formas: o direito de rebelião e o direito de revolução. Para Thamy Pogrebisnchi, o fundamento do direito de
resistência em sua amplitude coletiva está no capítulo XXI do
Leviatã3.Entende esta autora que se um grande número de
homens for ameaçado conjuntamente em sua integridade, por
terem cometido crimes punidos pela pena capital ou por terem
já resistido ao poder soberano, ainda que de forma injusta,
Hobbes os autoriza a se unirem para, juntos, resistir. E este
direito, segundo a autora, deve ser estendido incondicionalmente a todos os homens. Para esta autora, portanto, pode o
súdito que já desobedeceu, de forma injusta e não autorizada
pelo direito natural inclusive, unir-se a outros na mesma condição e juntos resistirem ao poder soberano, agora de forma
justa. O fundamento deita no direito de autopreservação da
vida: ora, se não podia o soberano antes atentar contra a vida
do indivíduo, por que o poderá agora? O direito natural existe
antes da constituição da soberania. Parece fazer, nestes termos, muito sentido a posição da autora. Mas esta posição é
questionável, por um lado, e inaceitável, por outro, por muitos
autores; Renato Janine Ribeiro – cumpre elucidar – chega a
afirmar em seu Ao leitor sem medo a impossibilidade de um
direito de resistência coletivo. Seja como for, Thamy Pogre-
binschi a assume abertamente. Tanto que afirma que o direito
à rebelião, quando a discórdia interna chega a tal ponto que
pode inclusive pôr fim à soberania, transmuda-se para direito
de revolução: “se os súditos se sentem ameaçados em sua
integridade pelas ordens e castigos que lhes impõe o soberano, vale dizer, se consideram que a sua preservação não é
satisfatoriamente garantida por ele, podem rebelar-se conjuntamente instaurando uma revolução que ponha fim à soberania” (Pogrebinschi, 2003:194). Para que isso seja possível, é
preciso firmar a leitura que os súditos hobbesianos, ao pactuarem, não abrem mão de todos os seus direitos e que o poder
e o direito que transferem ao soberano quando do pacto não
são irrecuperáveis; pelo contrário, os indivíduos hobbesianos
podem exigi-los de volta quando julgarem que o soberano não
cumpre suas atribuições últimas: preservar e manter de forma
digna a vida dos indivíduos e assegurar-lhes a paz.
8. Considerações finais
Para concluir, gostaria apenas de reafirmar alguns pontos fundamentais que podem ser encontrados no desdobramento do
presente escrito. Pois bem, a tese de Günter Jakobs, muito
embora assim não se apresente expressamente, parece pautar-se na leitura schmittiana do Leviatã de Thomas Hobbes.
Ora, para Schmitt, o grande homem máquina somente pode
exercer seu poder de forma irrestrita e ilimitada frente aos seus
súditos; e isto, de modo tal a lhe ser garantido o poder de
transformar um súdito em inimigo, quando este se mostrar capaz de colocar em xeque a manutenção da paz e a garantia
de segurança do próprio Estado. Schmitt, como se sabe, tem
razões para empreender uma tal leitura do Leviatã de Hobbes; não é por menos que é considerado um dos grandes fundamentadores do Estado nazista. Por óbvio, em face de seu
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
124
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
grande Leviatã não poder restar qualquer parcela de liberdade
individual; conta ele, não pode o indivíduo fazer frente, seja
invocando um direito subjetivo qualquer, seja invocando um
direito divino qualquer.
No Hobbes de Scmitt/Jakobs não há espaço para um poder
qualquer que possa fazer frente ao poder irresistível de seu
Estado, politicamente ou normativamente constituído. Mas,
uma tal leitura de Hobbes, muito embora admitida, apresenta
sérias complicações, desde uma perspectiva de cunho sistemática. Ora, está dado pelo filósofo inglês que ninguém pode
ceder ou transferir a seja quem for o direito de resistir a quem
lhe atente contra a vida. Também por Hobbes está garantida a
liberdade individual para se fazer frente contra quem lhe atente contra a vida – e vida aqui deve ser compreendida em sua
totalidade. Mais, se a finalidade do pacto é a garantia da vida
contra a morte violenta, como estabelece Hobbes, como se
poder falar em existência do pacto quando aquele que deve
mantê-lo atenta contra seu objeto? Ora, se o soberano é constituído para garantir a paz e a segurança, em última análise,
garantir a vida contra a morte violente – não é por outro motivo
senão o medo da morte violente que conduz os homens do
estado de natureza para o estado civil-político –, como pode
se manter o pacto quando é o próprio soberano quem atenta
contra a vida de seu súdito? A liberdade plena, neste caso,
deve ser retomada; este é um fato que, inclusive, não pode
ser negado por Schmitt, que, no limite, não consegue se desprender da hipótese de resistência. Jakobs, ao que parece,
não o percebe, mas o direito de resistir tira de sua tese todo
o seu vigor. Frise-se que não pode o Estado, em razão do direito de resistência, usar seu poder contra o indivíduo, porque
neste caso, ainda em sua leitura de base schmittiana, nenhum
pacto poderia resistir: o indivíduo retomaria sua liberdade e
poderia fazer frente contra o Estado, já que estariam ambos
em estado de natureza. No fundo, o corpo moral, constituído
pelos indivíduos, sucumbiria e somente restariam indivíduos
e indivíduos. A grande ficção de Hobbes, pois, não pode ser
na vida real legitimamente utilizada como pretende Jakobs,
ainda que tenhamos fatos típicos de tratamento diferencial de
indivíduos supostamente excluídos do direito. A história está
aí para comprovar; que o digam os campos de concentração
das ditaduras de direita e esquerda; que o diga Guantanamo.
Em todos estes casos, do ponto de vista político-jurídico, o
que temos é o grande estado de exceção, como bem trabalha
GeorgioAgamben, no seu monumental Homo Sacer, o poder
soberano e a vida nua.
Mas por outro lado, a hipótese de resistência pode ainda
mais refutar a tese de Jakobs no sentido filosófico mesmo.
Com efeito, ainda que se admitisse que o pacto pode resistir em relação aos demais indivíduos e o soberano; neste
caso, ainda poderíamos falar de Soberano e Indivíduo [excluído] e em Soberano e Indivíduos, ou grupo, e que aquele
que exerce o poder soberano poderia, em virtude dos outros indivíduos que o sustentam, fazer frente em relação ao
indivíduo excluído. Mas, ainda assim, aquele que exerce o
poder soberano não poderia atentar contra a vida do indivíduo, porque esbarraria na resistência. É, pois, a resistência,
o limite do poder soberano; é no poder individual de resistir
que encontra o poder soberano seu limite. E mais, se observarmos a relação de soberania em termos teatrais, nada
mais veremos que um ator que tira sua força e sua razão de
ser de seu único fundamento: o autor. Pois bem, se o ator
representa o autor, e neste caso o ator se apresenta como
sendo nada mais que um desdobramento do autor, então,
se o ator se volta contra o autor, está quebrada a relação e,
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
125
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
portanto, não há mais força que arrime o jogo da soberania,
pois não há mais representação, mas somente relação entre
seres iguais. As máscaras não encontram lugar fora da arena. E fora da arena, o que existe são as leis divinas, que determinam que a paz seja buscada a todo custo. Logo, ainda
aqui, isto é, analisada a questão em tais termos, não haveria
espaço para a tese de Jakobs. Novamente: é, pois, a resistência que vai fazer frente e esvaziar a tese do professor
Alemão. É, pois, a resistência que vai limitar o poder soberano no Estado moderno; esta, pois, a previsão de Hobbes.
Em síntese, desde uma perspectiva político-filosófica, não
pode encontrar a tese de Jakobs seu fundamento na leitura
de Hobbes, pois em Hobbes, o soberano não pode atentar
contra a vida de seu súdito, seja ele excluído ou não, ainda
que, desde a perspectiva da vida, do real, a história demonstrará bem o contrário; que o digam as guilhotinas, os
cadafalsos, que o digam os emparedados.
________. Os elementos da lei natural e política: tratado da
natureza humana; tratado do corpo político. Tradução e notas
de Fernando Dias Andrade. São Paulo: Ícone, 2002 (Coleção
fundamentos do direito).
9. Bibliografia utilizada
RIBEIRO, Renato Janine. A marca do Leviatã: linguagem
e poder em Hobbes. 2ª. ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2003.
HOBBES, T. Do cidadão. Tradução, apresentação e notas
de Renato Janine Ribeiro. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2002 (Clássicos).
________. Behemoth ou o Longo Parlamento. Tradução de
Eunice Ostrensky; prefácio e revisão técnica de Renato Janine
Ribeiro. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
________. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e
Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Editora Nova Cultural,
1997 (Coleção Pensadores).
MACPHERSON, C. B. A. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes até Locke. Tradução de Nelson
Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 (Coleção pensamento crítico; v. 22).
MAGALHÃES, Fernando. Á sombra do Estado universal:
os EUA, Hobbes e a nova ordem mundial. São Leopoldo, RS:
Editora da Universidade do Vale dos Sinos (Editora UNISINOS), 2006 (Coleção FOCUS).
POGREBINSCHI, Thamy. O problema da obediência em
Thomas Hobbes. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
________. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. 2ª ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999
(Humanitas).
SCHIMITT, Carl. Le Léviathandansladoctrine de l’État de
Thomas Hobbes. Sens es échec d’um symbole politique.
Trad. ÉtienneBalibar. Paris, Seuil, 2002.
________. El leviathanenlateoríadel Estado de Thomas
Hobbes. Traducción de Francisco Javier Conde. Granada,
España. Editorial Comares, 2004.
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
126
Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu
http://www.usjt.br/revistadireito/
// O “direito de resistência” enquanto mecanismo de afirmação da liberdade individual dentro do estado
de direito // Carlos Henrique Pereira De Medeiros
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político
moderno. Tradução de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta; revisão técnica Renato Janine Ribeiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
________. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Fundação Editora da UNESP
(FEU), 1999 (UNESP/Cambridge).
SOUKI, N. Behemoth contra Leviatã: guerra civil na filosofia
de Thomas Hobbes. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
STRAUSS, Leo. La filosofía política de Hobes: Su fundamento y su génesis. 1ª Ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 2006.
________. La critique de lareligion chez Hobbes: Une
contribution à lacompréhensiondesLunières (1933-1934).
Traduit de l’allemandetprésenté par CorinePelluchon. Paris,
France: PUF, 2005.
TUCK, Richard. Hobbes. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
D
Notas
1. Cumpre observar que a hipótese descrita por Hobbes no Capítulo XIII de seu Leviatã, nada mais é que um argumento lógico, uma “construção lógica”,
uma “hipótese da razão”. O próprio Hobbes chega a afirmar expressamente que crê que uma condição de guerra, aquela por ele descrita, jamais tenha
se dado em qualquer lugar do mundo. Existe uma séria discussão acerca da existência de um estado de natureza histórico. Aliás, esta é uma objeção
à Filosofia Política de Hobbes, pois no mesmo Capítulo XIII do seu Leviatã, o filósofo afirma que havia no século XVII muitos lugares em que se vivia em
estado de natureza, e cita, para arrimar seu argumento, os povos selvagens de muitos lugares da América. Acerca desta discussão, recomenda-se a
leitura de obra Ao leitor sem medo do Professor Renato Janine Ribeiro.
2. Mas para Schmitt, no estado de natureza, a angústia – elemento central que fundamenta a criação do Estado - chega ao extremo. A este elemento,
a angústia humana, Schmitt fará uso constante em sua leitura do Leviatã de Hobbes. Sem a angústia, para este intérprete, não há criação do Estado.
3. “Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente. Porque essa liberdade priva a soberania
dos meios de proteger-nos, sendo portanto destrutiva da própria essência do Estado. Mas caso um grande número de homens em conjunto já tenha
resistido injustamente ao poder soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo qual cada um deles pode esperar a morte, terão ou não eles a
liberdade de se unirem e se ajudarem a defender uns aos outros? Certamente que a têm: porque se limitam a defender suas vidas, o que tanto o culpado
como o inocente podem fazer. Sem dúvida, havia injustiça na primeira falta a seu dever; mas o ato de pegar em armas subseqüente a essa primeira falta,
embora seja para manter o que fizeram, não constitui um novo ato injusto. E se for apenas para defender suas pessoas de modo algum será injusto.
Mas a oferta de perdão tira àqueles a quem é feita o pretexto da defesa própria, e torna ilegível sua insistência em ajudar ou defender os restantes.” In.
Thomas HOBBES, Leviatã, p. 138.
// A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS // número 3 // primeiro semestre de 2015
127
Download