o uso do prefixo des no romance vinte e zinco, de mia couto

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O USO DO PREFIXO DES NO ROMANCE VINTE E ZINCO, DE MIA COUTO
LACOURT, Gisela
Universidade de Passo Fundo – Mestrado em Letras
[email protected]
RESUMO
Este artigo compreende uma análise da construção lexical do escritor Moçambicano Mia Couto, na
obra Vinte e zinco, embasada na teoria dos gêneros discursivos e do enunciado, de Mikhail Bakhtin
(1997). Servem, também, de aporte teórico para este estudo, algumas concepções da ensaísta Beth
Brait sobre a teoria bakhtiniana e sobre a interface das investigações linguístico-literária. Esta
investigação tem por objetivo verificar a intenção impressa no texto com o uso do prefixo des, a fim
de comprovar que o gênero romanesco, constituído como um enunciado, reflete as condições de
produção e as intenções do escritor. Esta verificação se justifica pelo fato de ser ilusória a
segregação, muitas vezes pretendida pelos estudiosos, entre estudos literários e estudos linguísticos,
pois a literatura representa a língua trabalhada em todas as suas possibilidades.
Palavras-chave: Gêneros discursivos. Enunciado. Interface linguístico-literária. Prefixo des.
INTRODUÇÃO
Este estudo busca analisar a composição estilística do escritor moçambicano Mia
Couto na obra Vinte e zinco, a fim de apurar a inferência de sentidos a partir da estruturação
lexical. Além disso, pretende-se demonstrar a congruência existente entre os estudos
literários e os estudos linguísticos, evidenciando que não há justificativa coerente para a
sabida dicotomia entre essas duas áreas do conhecimento. O propósito desta investigação
surgiu a partir da observação da construção lexical na obra em questão, uma vez que o
autor faz usos sucessivos de palavras construídas com o prefixo des. Logo, este trabalho
pretende elucidar a seguinte questão: qual a intenção impressa no texto a partir da
estruturação lexical, usando o prefixo des?
A investigação, de cunho exploratório, tem como base teórica os estudos
bakhitinianos acerca dos gêneros discursivos e do enunciado, apresentados na obra
Estética da criação verbal (Bakhtin, 1997). De acordo com as concepções de Bakhtin, a
comunicação humana acontece sempre por meio de gêneros discursivos, seja ela oral, seja
ela escrita. Do mesmo modo que um ato comunicativo representa sempre um enunciado, o
qual revela as suas condições de produção e as intenções expressas pelo locutor. Os
estudos da ensaísta Beth Brait sobre as teorias bakhtinianas, também vêm corroborar com
esta investigação. Brait afirma que a interface entre estudos linguísticos e estudos literários
pode contribuir com o aprofundamento das investigações científicas dessas duas áreas do
conhecimento. Com base nisso, este estudo pretende demonstrar essa relação entre áreas,
uma vez que se trata da análise de uma obra literária sob o ponto de vista da linguística.
As seções que compõem este artigo estão assim organizadas: a primeira apresenta
a teoria dos gêneros discursivos e do enunciado (Bakhtin, 1997), juntamente com a
percepção de Brait acerca de interface linguístico-literária. Posteriormente, apresentam-se
os procedimentos metodológicos, tendo como principais destaques a natureza exploratória
da pesquisa e a descrição do corpus. A sequência é dada com a análise do corpus e por
fim, as considerações finais.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
.
1.1 OS GÊNEROS DISCURSIVOS
COMUNICAÇÃO VERBAL
E
O
ENUNCIADO
COMO
UNIDADE
DA
Quanto se fala em literatura não é possível ignorar que se trata de um fato da língua.
É a língua trabalhada em suas possibilidades de expressão. Assim, a análise literária não
pode ser considerada desvinculada dos mecanismos linguísticos e dos processos do ato
comunicativo. Mikhail Bakhtin (1997), em sua obra Estética da Criação Verbal, esclarece
vários pontos a esse respeito ao definir a teoria dos gêneros do discurso. De acordo com o
teórico, a utilização da língua se concretiza, em qualquer esfera da atividade humana, por
meio de enunciados, orais ou escritos. Esses enunciados sempre refletem as condições
específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas em que estes três elementos,
conteúdo temático, estilo e construção composicional fundem-se no todo do enunciado. Um
enunciado considerado isoladamente é individual, “mas cada esfera de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos
gêneros do discurso” (Bakhtin, 1997, p.280).
A ensaísta Beth Brait, estudiosa das teorias bakhtiniana, reforça a ideia de que a
interface entre os estudos linguísticos e os estudos literários pode vir a elucidar muitos
aspectos, ainda obscuros, dessas duas áreas do conhecimento. Brait dedicou boa parte de
sua carreira acadêmica para explicar as confluências entre as duas áreas de estudo e
afirma que teve a oportunidade “de observar a ausência da propagada dicotomia existente
entre língua e literatura, entre linguagem e vida, entre uso e criatividade, entre gramática e
estilística, a partir de textos literários, poéticos, que pudessem surpreender pela temática e/
ou pela organização, a confluência entre as duas instâncias de expressão e conhecimento”
(Brait, 2004). Essa confluência da qual trata a estudiosa é bem explicada na teoria dos
gêneros do discurso, pois, segundo Bakhtin, a comunicação acontece sempre por meio de
um gênero mesmo que o falante não tenha consciência desse fato. Assim sendo, este
trabalho ao analisar o gênero romanesco do ponto de vista do enunciado irá mostrar que
não se justificam as divergências entre língua e literatura, pois uma complementa a outra.
Para definir o caráter genérico do enunciado, Bakhtin divide o discurso em dois
gêneros: discurso primário e discurso secundário. Este último compreende o teatro, o
romance, o discurso científico, o discurso ideológico, sendo, portanto, complexo. Já o
discurso primário tem um caráter mais simples, constituído em uma comunicação verbal
espontânea. Essas divisões do discurso não podem ser consideradas isoladamente, uma
vez que durante o processo de elaboração dos gêneros do discurso secundário os
elementos do discurso primário são absorvidos e perdem a relação imediata com a
realidade e com a realidade dos enunciados alheios. Desse modo, o romance pode ser
considerado um enunciado em seu todo, pois ao absorver elementos de gênero discursivo
primário ele passa a ser concebido como um fenômeno artístico-literário e não como uma
réplica da vida cotidiana.
Bakhtin afirma que o estudo da natureza do enunciado e da diversidade de gêneros
em todas as esferas da atividade humana é fundamental para todas as áreas da linguística.
Acerca disso ele ressalta a importância do conhecimento das particularidades de cada
gênero para se analisar um enunciado. Consequentemente, a literatura se mostra como
representante de fatos da língua dignos de análise, pois todo e qualquer ato de
comunicação humana pode servir de corpus para a análise linguística, conforme explicita o
excerto que segue:
[...] crônicas, contratos, textos legislativo, documentos oficiais e
outros, escritos literários, científicos e ideológicos, cartas oficiais ou
pessoais, réplicas do diálogo cotidiano em toda a diversidade formal,
etc. É deles que os pesquisadores extraem os fatos linguísticos de
que necessitam. Uma concepção clara da natureza do enunciado em
geral e dos vários tipos de enunciados em particular (Bakhtin, 1997,
p. 283).
As concepções bakhtinianas acerca do enunciado demonstram que a língua escrita
sofre influências externas. As mudanças históricas dos estilos da língua estão diretamente
ligadas às mudanças que ocorrem nos gêneros do discurso, pois “a língua escrita
corresponde ao conjunto dinâmico e complexo constituído pelos estilos da língua, cujo peso
respectivo e a correlação, dentro de um sistema da língua escrita, se encontram num estado
de contínua mudança” (Bakhtin, 1997, p.289). Desse modo, é possível afirmar que o uso
que o escritor faz da língua na construção do texto, dentro de um determinado gênero, vai
influenciar a estrutura dessa língua. Inevitavelmente, fatos como criação de novos termos, a
disposição sintática, a combinação morfológica adotados por um romancista, por exemplo,
influenciam no processo de transformação de uma determinada língua, uma vez que todo o
enunciado constitui-se como um teste para possíveis modificações linguísticas. São os
gêneros discursivos que determinarão a mudança, conforme demonstra o teórico russo:
Os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do
discurso são as correias de transmissão que levam da história da
sociedade à história da língua. Nenhum fenômeno novo (fonético,
lexical, gramatical) pode entrar no sistema da língua sem ter sido
longamente testado e passado pelo acabamento do estilo-gênero
(Bakhtin, 1997, p.286).
Pensando nessa afirmação do teórico, seria possível assegurar que obras
compostas por muitas marcas de oralidade de uma comunidade linguística, ou seja, por
muitos elementos do discurso primário fundidos no discurso secundário, certamente podem
exercer uma grande influência no processo de modificação dessa língua. Isso acontece
porque os elementos linguísticos já estão num estágio de teste em outros gêneros do
discurso. A forma como cada autor organiza o texto está diretamente ligada à questão da
estilística apresentada por Bakhtin.
Brait mostra que estilo, na teoria bakhtiniana, é “uma dimensão textual e discursiva
que vai sendo trabalhada, refinada, em função dos objetos específicos tratados em cada um
dos estudos” (2008, p.80). Desse modo, esse conceito precisa ser avaliado sob várias
perspectivas dentro de toda a obra de Bakhtin, para se chegar a uma definição clara acerca
da questão. Contudo, a ensaísta afirma que o estilo relaciona-se de maneira intrínseca e
coerente com a perspectiva dialógica da linguagem.
Cabe, ainda, ressaltar que, sob o ponto de vista de Bakhtin – diferentemente do
modo como muitos linguístas pensam – não existe uma oposição entre estilística e
gramática, uma vez que até mesmo ao se fazer uma seleção de uma forma gramatical
realiza-se uma operação de estilo, pois “a gramática e a estilística se juntam e se separam
em qualquer fato linguístico concreto que, encarado do ponto de vista da língua, é um fato
gramatical, encarando do ponto de vista do enunciado individual, é um fato estilístico”
(Bakhtin, 1997, p.287). Dessa forma, o ato de conceber um romance como um enunciado
vai desvendar a criação estilística do escritor.
Entretanto, para complementar essa compreensão é fundamental ter a clareza
acerca da definição bakhtiniana de enunciado. Para Bakhtin, a comunicação verbal é um
processo complexo e não pode ser apresentada de forma distorcida, elegendo-se o
interlocutor como mero receptor do enunciado. De acordo com essa classificação linguística,
o locutor seria responsável pelo processo ativo da comunicação e o interlocutor pelo
processo passivo de percepção. Mesmo que não seja incorreta em relação ao ato
comunicativo, essa definição não dá conta da representação do todo real na comunicação
verbal, pois “o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso
adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda
ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc.”
(Bakhtin, 1997, p.291). De fato, a compreensão de um enunciado em uma situação real de
comunicação sempre será acompanhada por uma atitude responsiva ativa. Embora, a
apresentação desse posicionamento tenha muitas variações de grau, toda a compreensão é
plena de resposta.
No que se refere ao discurso secundário, pode-se afirmar que este suscita aquilo que
Bakhtin chama de compreensão responsiva de ação retardada: “cedo ou tarde, o que foi
ouvido e compreendido de modo ativo encontra um eco no discurso ou no comportamento
subseqüente do ouvinte” (Bakhtin, 1997, p. 292). Entende-se aqui, como compreensão
responsiva de ação retardada, a fase inicial e preparatória para uma resposta ativa, ou seja,
uma concordância, uma objeção, uma execução. Um enunciado sempre pressupõe o outro,
pois o locutor formula seu enunciado na expectativa da resposta do outro e o interlocutor ao
receber esse enunciado, vai estruturar outro enunciado como resposta ao anterior e vai
assumir a função de locutor. Vale lembrar que um enunciado pode ser a fala cotidiana de
um individuo, um poema, um discurso retórico, um romance ou qualquer situação concreta
de comunicação. Desse modo, é possível afirmar que um romancista, por exemplo, visa,
com seu texto, à réplica do leitor; “busca exercer uma influência didática, sobre o leitor,
convencê-lo, suscitar uma compreensão crítica, influir sobre êmulos e continuadores etc.”
(Bakhtin, 1997, p.299).
2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Este estudo de caráter exploratório tem como corpus o romance Vinte e zinco, do
escritor moçambicano Mia Couto, obra esta produzida sob encomenda da Editora Caminho
em comemoração aos vinte e cinco anos da Revolução dos Cravos, a qual teve como
consequência o fim da ditadura em Portugal. O elemento que recebe destaque nesta análise
é a escolha lexical feita por Mia Couto na construção do romance, uma vez que o uso de
palavras formadas com o prefixo des é uma constante ao longo da obra.
A análise está pautada na influência do contexto histórico representado no romance
e na intenção do autor e ao idealizar uma obra comemorativa, tendo como tema uma
situação real da história moçambicana. De acordo com as concepções de Bakhtin acerca
dos gêneros do discurso e da construção do enunciado, é possível afirmar que os fatores
mencionados anteriormente exercem influência direta na construção lexical realizada pelo
autor.
3. ANÁLISE DO CORPUS
Uma das características da obra de Mia Couto é a presença de elementos
tipicamente orais da fala moçambicana. Além disso, o autor gosta de “brincar” com a língua
portuguesa ao fundir termos distintos a fim de criar um novo termo, ou ainda, ao criar novas
palavras com prefixos de outras. O leitor de Vinte e zinco, já nas primeiras páginas, se
depara com essa particularidade do romancista. A presença constante de palavras formadas
com prefixo des, pertencentes ou não ao vocabulário da língua, inevitavelmente, leva o leitor
a questionar-se a respeito desse fato. Na primeira página têm-se as seguintes ocorrências:
Lourenço de Castro entra em casa, à mesma hora de sempre, essa hora em
que a luz adoece, cansada de tanto dia. Roda o manipulo da porta com
cuidado como se o mundo se pudesse desconjuntar a partir daquele gesto
[...] . Mas as mulheres não contam. Assim se dizia em casa dos Castros.
Maior parte das vezes até descontam, acrescentavam (Couto, 1999, p. 7).
O uso da comparação associado ao emprego da palavra desconjuntar pode revelar
muito se o leitor considerar o contexto histórico e a situação vivida pela personagem que
entra em cena no início da obra. Lourenço de Castro representa o poder de Portugal entre
os moçambicanos num momento em que o domínio lusitano está prestes a ruir. Em outras
palavras, todas as certezas da personagem, naquele momento, estão prestes a se
“desconjuntar”. De acordo com Bakhtin, a escolha lexical do locutor, no caso em questão o
escritor, vem carregada de uma intenção, a fim de suscitar uma resposta de um interlocutor,
posição marcada pelo leitor. O interlocutor vai receber essa informação e vai elaborar aquilo
que o teórico chama de compreensão responsiva de ação retardada. Ao longo do texto ele
vai percebendo essa construção e de algum modo vai se posicionado a respeito do sentido
que esse fato pode representar.
Logo em seguida, na mesma página, aparece a palavra descontam referindo-se às
mulheres portuguesas que vivem em África. Sem dúvida, a carga semântica do vocábulo
revela a posição da mulher branca, que é minoria, em meio ao um sistema de dominação
política e cultural vigente na colônia. Essa mulher não tem voz ativa nem entre seus
compatriotas e nem em meio aos negros. Ela simplesmente guarda sua opinião, sua
percepção dos acontecimentos para si. Ela é testemunha dos horrores infligidos aos negros,
e, de certa forma, compactua com o agressor, pelo fato de calar-se. A partir dessa primeira
informação acerca da mulher branca na narrativa, a aparição de uma personagem que
contraria essa concepção ganha um destaque ainda maior.
Depois da revelação da posição da mulher naquele sistema social, surge Irene, uma
branca, uma portuguesa, que se identifica com a causa dos negros, com a cultura africana,
posicionamento esse inconcebível, pois o lugar da mulher já estava marcado ao se dizer
que as mulheres “maior parte das vezes até descontam”. Logo, a dimensão do
comportamento de Irene é ampliada tendo em vista a concepção acerca da mulher que
vigora na colônia. Assim diz o narrador: “que vergonha, uma branca proceder daquela
maneira, desapossuída de juízo (Couto, 1999, p.9).” Percebe-se, já na apresentação da
personagem, a construção lexical com o uso do prefixo des, que vem mais uma vez
carregado de sentido. A mulher só pode estar desprovida do juízo para apresentar tal
conduta. Essa construção não remete apenas à perda do discernimento, mas também à
influência negativa que o convívio com os negros pode exercer sobre os demais. Entendese, assim, que Irene perdeu a sensatez, própria das mulheres portuguesas, após certo
período vivendo em meio ao povo moçambicano.
Com isso é possível verificar que a construção linguística, tal como afirma Bakhtin,
elaborada pelo escritor, não segrega estilo e gramática, pois é justamente o uso de certas
estruturas gramaticais que permite ao romancista produzir sentido a partir de sua marca
estilística. Ao explorar a prefixação das palavras em seu texto, o escritor lida com
mecanismos linguísticos, trata-se, portanto, de um fato gramatical. Já do ponto de vista do
enunciado individual, esse fato remete à estilística do autor. A construção do sentido do
enunciado depende da estilística e da intencionalidade. Entretanto, é a estrutura gramatical
que dará suporte para a estruturação desse enunciado. Essa perspectiva analítica
demonstra a confluência existente entre os estudos linguísticos e os estudos literários, da
qual trata Beth Brait.
Ainda na mesma página da expressão desapossuída usada para referir-se a Irene,
surge a seguinte afirmação: “o inspetor examina os braços, como se procurasse um
desarrumado detalhe” (Couto, 1999, p.9). A observação mostra que mais uma vez que o
protagonista encontra-se em uma situação de instabilidade. O medo e a insegurança tomam
conta de Lourenço de Castro. O desarrumado detalhe, na verdade são possíveis evidências
do sangue dos negros que depois de presos eram submetidos a sessões de tortura.
Lourenço sabe que, se Portugal perder o domínio sob a colônia, sua integridade física ficará
ameaçada. A aparente despretensão do termo desarrumado não é capaz de esconder a
contundente significação do fato por ele representado.
Na parte inicial da narrativa, o caráter das duas personagens em questão vai sendo
apresentado alternadamente. Em cada retomada das figuras de Lourenço e de Irene, surge
um novo termo construído com a prefixação des. São justamente esses termos que revelam
as particularidades das personagens e do momento vivido por elas. Assim, ao longo da
leitura, o leitor vai juntando as informações contidas nesses vocábulos e constrói o sentido
da totalidade da obra, ou seja, da obra como um enunciado. De acordo com as teorias
bakhtinianas, é no enunciado produzido a partir de um gênero discursivo que a utilização da
língua se concretiza de fato e que a comunicação acontece.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito deste artigo constituiu uma análise do uso do prefixo des na construção
lexical do romance Vinte e zinco, de Mia Couto (1999). Primeiramente, buscou-se
apresentar as concepções bakhtinianas de gêneros discursivos com a intenção de
demonstrar que a construção romanesca, enquanto gênero discursivo, opera com
elementos linguísticos de diversas naturezas, tanto da gramática, quanto da oralidade. Logo
em seguida, conceituou-se o enunciado, em um ato comunicativo, do ponto de vista
bakhtiniano. Essa definição de enunciado é fundamental para esta investigação, já que a
ideia principal, aqui, foi a de analisar o romance como um enunciado em seu todo.
Esta análise possibilitou a verificação de que o gênero romanesco abarca muitos
elementos do contexto histórico em que é produzido. Além disso, é dotado de intenções
comunicativas, como todo enunciado. Ficou evidente, neste estudo, que a escolha lexical do
escritor não é aleatória, e sim intencional e carregada de sentido. O romance Vinte e zinco
fornece elementos suficiente que comprovam que a habilidade linguística, ou o
conhecimento pleno dos mecanismos de uma língua, permitem ao escritor a desconstrução
desta, a fim de produzir sentido.
Cabe, também, destacar que o estilo de cada romancista revela muito acerca de
suas intenções e de sua própria experiência com a língua e com a sociedade na qual está
inserido. No romance em questão, Mia Couto deixa transparecer, por meio da linguagem
que utiliza, marcas de um posicionamento ideológico acerca da luta pela independência em
seu país. Essa verificação é possível ao se levar em conta o período histórico tratado na
obra e a relação direta que o escritor teve com os acontecimentos relacionados à data de 25
de abril, temática central do romance. Outro fator relevante a respeito desta obra é sua
condição de produção, ou seja, um romance encomendado. Esse dado, também, reflete nas
intenções impressas no texto. Enfim, as reações causadas no leitor, objetivando algum tipo
de resposta, é que caracteriza o romance como um enunciado em seu todo.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira.
2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
BRAIT, Beth. Estudos lingüísticos e estudos literários: fronteiras na teoria e na vida.
Disponível em:
<http://www.fflch.usp.br/dl/noticias/downloads/Curso_Bakhtin2008_Profa.%20MaCristina_Sa
mpaio/ARTIGO_BRAIT_EST_LING_LITER.pdf> acesso em: Maio, 2012.
COUTO, Mia. Vinte e Zinco. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1999.
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