A metáfora da criança como espírito trágico por excelência

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A METÁFORA DA CRIANÇA COMO ESPÍRITO TRÁGICO POR
EXECELÊNCIA
Maria dos Remédios de Brito1
RESUMO: O presente texto visa uma análise introdutória, uma nota sobre o
pensamento de Heráclito2, tomando como estudo alguns fragmentos desse pensador:
8,10,30,31,47,51,52,56,67,78 e 88. A hipótese que se levanta é que Heráclito3 pontua a
“metáfora da criança” em uns dos seus fragmentos4 com intenção filosófica, no sentido
de que somente uma natureza capaz de saber compreender o “jogo da criança”, no seu
aspecto mais profundo, pode sentir com maior vigor o seu pensar, não no sentido
fatalista ou pessimista, mas no jogo criador da vida. A filosofia desse autor tem uma
profundidade abissal e que somente um espírito capaz de lidar com a “tragicidade da
vida” pode sentir sua magnitude, por isso ele sugere o uso da “metáfora da criança”
como sendo uma espécie de “espírito trágico” por excelência, capaz de sentir o teor de
sua filosofia sem lamentos.
Palavras-chave: Heráclito; Criança; Espírito Trágico.
I
Prelúdio à Heráclito5
1
Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Pará; Professora da Universidade Federal do Pará- Instituto de
Educação em Ciências e Matemática. Trabalha nas conexões da Educação e da Filosofia; Coordenadora do Grupo
“Transitar”. E-mail: [email protected]
2
“Nascido em Éfeso, colônia Grega da Ásia Menor, atingiu sua maturidade produtiva por ocasião da 69 Olímpia da
(504-501 a.C) (...) De sua vida, pouco se conhece, supõe-se que tenha pertencido à aristocracia de Éfeso e que seus
antepassados foram os fundadores da cidade. (...) Chamavam-no de orgulhoso, pois desprezava seus concidadãos e
levava uma vida à parte. Cognominado de “obscuro”, relata-se que teria depositado o seu livro no templo de Ártemis,
mas esta e as muitas lendas que se contam sobre a sua vida não têm fundamento histórico”. ( BORNHEIIM, s/d, p.
35).
3
Para esclarecimentos. “os antigos biógrafos e historiadores da Filosofia supuseram que todos os pré-socráticos
escreveram um ou mais livros embora houvesse dúvidas acerca de Tales (...). Admitiram, evidentemente, que
Heráclito escreveu uma obra e, Diógenes, diz-nos que seu título era Sobre a natureza. Este título foi regularmente
atribuído às obras dos pensadores que Aristóteles e os Peripatéticos designaram por “filósofos da Natureza” e não
pode ser considerado como necessariamente autêntico em todos os casos (...) Diels sustentou que Heráclito não
escreveu um livro propriamente dito, mas apenas deu expressão reiterada a uma série de opiniões cuidadosamente
reformuladas (...). Esta opinião tem encontrado poucos adeptos, mas é possível que contenha algo de verdade. Os
fragmentos que chegaram até nós têm todo o aspecto de afirmações orais, expostas de forma concisa e atraente e, por
esse motivo, facilmente memoráveis; e não parecem com excertos de uma obra redigida deforma contínua (...). É
possível que quando Heráclito alcançou fama de sábio tenha-se feito uma coleção das suas sentenças mais famosas
para as quais foi composto um prólogo especial. Seja como for, os fragmentos que possuímos (...) foram, na maior
parte, obviamente estruturados como apotegmas orais e não como partes de um tratado discursivo (...)” ( KIRK,G.S;
RAVEN. J. E; SCHOFIELD, 1994, p. 190).
4
Os fragmentos citados e utilizados no interior do texto foram retirados da obra “Os pré-socráticos”, organizada por
Gerd Bornhein, segue até o final.
5
Diz Daniel Lins que a filosofia de Heráclito é de combate e de harmonia, “Filosofia de combate e da harmonia, do
devir e do eterno retorno, filosofia da vida e da catástrofe, do logos que fala e do número selado, o pensamento de
Heráclito, ao mesmo tempo antigo e contemporâneo (...). Tudo aquilo é, é no devir, e este, embora harmonioso, não é
em absoluto pacífico, mas guerreiro. O combate é o animador do ritmo do devir (...). O ser em devir da totalidade do
mundo é, pois, também, e fundamentalmente, jogo (...). O pensamento heraclitiano manifesta uma busca do ser,
daquilo que é, foi e será; o ser como puro movimento” (2009, p. 01, 07).
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2
Quando se pensa fazer um trabalho sobre os pré-socráticos logo vem em mente o
que se pode pensar ou dizer sobre esses pensadores grandiosos, que até hoje estão
presentes entre nós. Como explicar o que já vem sendo interpretado por tantos nomes
importantes e influentes da história das ideias? Tantos fios, tantas tramas, que já foram
tecidas, o que resta para um pensamento que agora está sendo alinhavado? Que luzes
podem refletir certa imagem para um pensar incerto e imaturo?
Foi solicitado para se falar de alguns temas grandiosos da História da Filosofia e,
assim, proponho carregar este pensar frágil para ser conduzido a um experimento, que é
somente um experimento do pensar. Para fazer essa viagem, foi escolhido um autor
grandioso que já foi estudado por Hegel, Nietzsche6, Heidegger, ele se chama Heráclito
de Éfeso.
O pensamento de Heráclito, sem dúvida, promove uma espécie de
desconstrução. Seus efeitos são profundos quando toca, precisamente, o pensamento
moderno, pois o mesmo se pauta, de algum modo, na necessidade de estabelecer
certezas e regularidades.
Não é possível fazer a leitura de seus aforismos sem ser tocado, pois os mesmos
provocam o pensar para além do que é firme e perene, ou seja, tudo muda, tudo flui e
nada persiste fora do eterno devir. Isso, para nós modernos, mexe com todo um
arcabouço de regularidade e não é fácil compreender essa questão em toda sua plenitude
argumentativa, imagine o homem grego. Pode-se conjecturar que esse pensador tenha
causado um abalo tremendo na estrutura do pensar e do viver dessa cultura. Não é de se
espantar as críticas feitas por Aristóteles e Platão a sua filosofia. Talvez tenha sido a
própria dificuldade de entendimento que ela promove que levou a isso, ou mesmo
porque tal pensamento salta a diferença.
6
Para Nietzsche há uma desconfiança que Heráclito poderia ser uma inspiração para uma sabedoria trágica, pois O
seu livro Ecce Homo, O Nascimento da Tragédia, 3, Nietzsche faz um comentário importante sobre questão. Cito,
“Até que ponto eu havia encontrado a concepção de “trágico”, o conhecimento sobre o que é a psicologia da tragédia,
eu o expressei ainda no Crepúsculo dos Ídolos. “O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e
estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos – a
isto chamei dionisíaco, isto entendi como a ponte para a psicologia do poeta trágico. (...) Antes de mim não há essa
transposição do dionisíaco em um pathos filosófico: falta a sabedoria trágica – procurei em vão por indícios dela
inclusive nos grandes gregos da filosofia, aqueles dos dois séculos antes de Sócrates. Permanece-me uma dúvida com
relação a Heráclito, em cuja vizinhança sinto-me mais cálido e bem-disposto do que em qualquer outro lugar. A
afirmação do fluir e do destruir, o decisivo numa filosofia dionisíaca, o dizer Sim à oposição e à guerra, o vir-a-ser,
com radical, com radical rejeição até mesmo da noção de “Ser”. (NIETZSCHE, F. 1995, p. 63-4). Diz Nietzsche,
ainda, “ninguém enxergou tão atentamente esse eterno bater de ondas e ritmo das coisas. E o que foi que vi?
Regularidades, certezas indefectíveis, caminhos sempre iguais do que é justo, Eríneas judicantes por detrás de todas
as transgressões das leis, o inteiro mundo como o espetáculo de uma justiça dominante e de forças naturais, presentes
demoniacamente em todas as partes, submetidas a seu serviço. O que vi não foi a punição daquilo que veio a ser, mas
a justificação do vir-a-ser. (NIETZSCHE, F. 2008, p. 55).
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3
Heráclito observou o mundo em uma eterna desconstrução. Esse é o seu
percurso natural, no qual os contrários servem como o motor gerador dessa roda que
não cessa de girar. Esse é o logos que constitui precisamente a unidade que demonstra
as oposições, como: luz e escuro, amargo e doce, frio e calor, que se afirmam e se
negam, porém convivem harmoniosamente, pois isso faz parte da própria essência da
vida e do cosmo. O logos seria a unidade dessa multiplicidade que confere a mudança
diante das tensões. É por isso que a tensão e o conflito são as significações pertinentes
da natureza. No frag. 8, ele coloca: “Tudo se faz por contrários, da luta dos contrários
nasce a mais bela harmonia”. Essa filosofia não exclui, mas adere à luta eterna da vida e
sua beleza está em afirmá-la. É possível pensar que ela carrega no seu interior
argumentativo a reflexão de que a vida e o mundo fazem-se diante dessa tragicidade
criadora, assim como a guerra, as forças que impulsionam a aceitação do conflito e da
harmonia, sem que sejam necessários promover desassossego e horror diante do mundo,
pois...
Heráclito é o pensador trágico (...) Heráclito é aquele para quem
a vida é radicalmente inocente e justa. Compreende a existência
a partir de um instinto de jogo, faz da existência um fenômeno
estético, não um fenômeno moral ou religioso (...) Heráclito
negou a dualidade dos mundos, ‘negou o próprio ser’. Mas
ainda fez do devir uma afirmação (...) o que significa fazer do
devir uma afirmação. Sem dúvida significa, em primeiro lugar,
que só há devir. Sem dúvida é afirmar o devir. Mas afirma-se
também o ser do devir, diz-se que o devir afirma o ser ou que o
ser se afirma no devir. Heráclito tem dois pensamentos que são
como marcos: de acordo com um deles o ser não é, tudo está em
devir, de acordo com o outro o ser é o ser do devir enquanto tal
(...) não há ser além do devir, não há um além do múltiplo; nem
o múltiplo, nem o devir são aparências ou ilusões. (DELEUZE,
1976, p. 19)
A natureza para Heráclito é conflituosa, no seu interior abriga o divergente que
converge e se conjuga. No frag. 10, diz: “Conjunções: completo e incompleto,
convergente e divergente, concórdia e discórdia, e de todas as coisas, um e de um, todas
as coisas”. Com isso, ele nos leva a pensar: como acalmar aquilo que em natureza é, por
si mesmo, eterna ebulição? Como apaziguar aquilo que deseja a guerra? Como querer
cessar o que diverge e se conjuga? Como querer o controle quando tudo parece fora
dele? Não será essa necessidade do apaziguamento, da regularidade, do equilíbrio da
natureza, da sua fixidade, que tem gerado uma razão cativa no interior da civilização?
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Essa falta de entendimento daquilo que pertence ao mais íntimo da natureza tem gerado
tantos problemas ao homem durante toda a história da cultura, como para a própria vida.
Se a natureza é um conflito eterno e se tudo se transforma no seu contrário, a
verdade é a sua mudança contínua. As determinações dos opostos estão intimamente
ligadas a sua unidade, pois nelas estão contidas o ser e também o não ser. Assim, tudo
surge e também desaparece. Então, a única verdade do logos é que tudo muda, tudo se
desfaz, para ser refeito novamente.
O primeiro elemento do que seja verdade é o eterno devir e a razão reconhece a
unidade na multiplicidade geradora. A atividade é que o todo se torna parte para
também se tornar um todo, tudo se une e se opõe, há a concordância e a discordância.
Para Heráclito esse é o grande processo da vida. Como ele diz no frag. 51, “a harmonia
de forças contrárias, como o arco e a lira”. Dessa harmonia, articulam-se as tensões, as
guerras, para oferecer mobilidade do sempre diferente, na eternidade do devir.
Este mundo para Heráclito se apresenta igual para todos, como afirma no frag.
30, “Este mundo, igual para todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez;
sempre foi, é e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a
medida”. Essa é a totalidade do mundo, esse fogo que estará sempre em advento que se
configura sempre no limite daquilo que se conjuga e se trata, ou seja, diante da sua
medida7. Ele vigora a partir de si o surgimento aberto da vida e do cosmo.
Não existe nenhum ponto, um começo, vigora em si o próprio ser, ou seja, o
fogo. Por isso, não é uma força constituída por um Deus ou por um homem. O fogo que
sempre surge na sua plenitude, apagando-se e movendo-se, diante da luz e do escuro,
vigorando o tempo todo. Nesse sentido, Heráclito nos permite pensar que o modo de
temporalidade, como: passado, presente e futuro, não pode ser aceito nessa condição.
Há uma espécie de quebra, o que pode vigorar é a eternidade da amplitude em que o
fogo acende-se e apaga-se na sua medida, diante do agora, do instante. Então, o tempo é
o primeiro que se apresenta como devir constante, ele transforma-se, apresentando-se
como é, naquilo que se sente e vive.
O princípio é o fogo e ele metamorfosear-se, como diz Heráclito no frag. 31:
77
Diz Heidegger a respeito dessa questão: “À natureza pertencem, no entanto, as leis da natureza, as medidas
segundo as quais transcorrem as ocorrências da natureza. “Naturalmente”, não se pode exigir que as pessoas no sexto
século antes de cristo fossem capazes de construir com exatidão matemática “a natureza”, com auxílio do cálculo
infinitesimal. Mas elas já exprimem, embora de forma inexata e imprecisa, o pensamento de que o cosmo se
movimenta e comporta “segundo medidas”. Esse seria apenas um primeiro ingresso no grande progresso do
conhecimento da natureza” (MARTIN, Heidegger, 1998, p. 180). Nessa mesma obra, em sequência, desenvolve-se
uma crítica a respeito das traduções a respeito da palavra medida e tenta argumentar de uma outra forma. Os
interessados em uma compreensão mais ampliada conferir a obra.
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“As transformações do fogo: primeiro o mar; e a metade do mar é terra, a outra metade
um vento quente. A terra dilui-se em mar, e este recebe a sua medida segundo a mesma
lei, tal como era antes de se tornar terra”. O fogo se torna primeiro o mar, então a
metade se torna terra, a outra metade um vento, um raio. O fogo depois se condensa em
unidade, depois torna-se água, água endurecida torna-se terra, a terra novamente se
torna fluida e depois sua unidade. O que Heráclito mostra nesse fragmento é que a
natureza gira, assim, em círculo, portanto, pode-se inferir que o ser é o ser do devir. O
mundo é esse fogo que se acende e se apaga. Diz Heráclito no frag. 67, “Deus é dia e
noite, inverno e verão, guerra e paz, abundância e fome. Ele toma formas variadas,
assim como o fogo, quando misturado com essências, toma o nome segundo o perfume
de cada uma delas”. Ou ainda no frag. 76, “O fogo vive a morte da terra e o ar vive a
morte do fogo; a água vive a morte do ar e a terra a da água”. Se levarmos para o
sentido da vida, pode-se dizer que a vida se constitui nesse surgimento de vida e morte.
Essa se tornaria a sua grande combustão. Por isso, Heráclito afirma que tanto o viver e o
morrer fazem parte da natureza, ele diz no frag. 88, “Em nós, manifesta-se sempre uma
e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. Pois a mudança de
um dá o outro reciprocamente”.
A profundidade que caracteriza o pensamento de Heráclito é de uma valiosidade
extrema, mas, também, é provocativo e inspira certo temor, principalmente quando esse
pensar chega até nossa época, cujo desejo é de obter a tranquilidade, a calma, a certeza e
a logicidade linearizada pela condução da razão. Quando o pensar não consegue
entender a profundidade do devir, falta entendimento de pensar em uma vida que cessa
todos os dias.
Costuma-se ter a necessidade, em nome da economia psíquica, de compreender a
vida razoavelmente tranquila, sem tensões, sem guerra e sem luta. O psiquismo tende a
não suportar ser percebido no interior de um turbilhão de mudanças constantes. Quem
suportaria o pensar de Heráclito na sua profundidade? Quem seria capaz até mesmo de
entendê-lo com rigor? O que se segue será uma tentativa de resposta para as questões
levantadas, ou seja, será uma hipótese ainda não tão clara.
II
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A metáfora da criança: um espírito capaz de suportar a tragicidade do pensar de
Heráclito
No frag. 52, diz Heráclito: “O tempo é uma criança que brinca, movendo as
pedras do jogo para lá e ara cá; governo de criança”. O que faz Heráclito pensar
exatamente na metáfora de uma criança, que brinca sem governo, que se move para lá e
para cá? O que leva a pensar em uma criança jogando ou comparar o tempo com uma
criança? Essa metáfora tem um sentido profundo em sua filosofia e serão apresentadas
algumas reflexões sobre ela, afirmando que será apenas uma hipótese em perspectiva,
uma possibilidade de interpretação, sem que se queira demandar nenhuma certeza ou
verdade, mas dar ao pensamento a possibilidade de pensar diante do abismo que é o
pensamento de Heráclito.
Heráclito sem dúvida deveria saber que seu pensamento poderia causar impacto
para o homem grego ao oferecer ao logos outra mobilidade de intervenção e
compreensão do cosmo e da natureza. Por isso, no frag. 47, ele diz: “Não devemos
julgar apressadamente as grandes coisas”. O seu pensamento chega até nós causando
grandes modificações na história das ideias, não é possível ler com tranquilidade uma
filosofia que afirma que tudo flui, tudo é eterno devir. Entende-se que Heráclito sabia
que não seria qualquer homem, qualquer pessoa, que poderia entendê-lo. Alerta para
não se julgar apressadamente, porque talvez não quisesse isso para si mesmo.
No interior do seu pensar está emaranhada uma ebulição vital que conduz o
homem para compreender o mundo sem solo firme, ou seja, sem um fundamento,
porque o próprio fundamento transforma-se, dissipa-se e reelabora-se.
Quando afirma que o tempo é uma criança que brinca, não há culpa, não há
justiça ou injustiça, não há amoral ou moral, no que ele argumenta. Também não há
uma natureza que salva ou que pune. O tempo corre, faz-se, desfaz-se, somente isso. Ele
é uma criança que brinca sem rancor, sem dor, ou medo. Nesse jogo do brincar não há
passado, presente ou futuro que possa aprisionar ou datar. A vida, então, conduz-se
nesse jogo de criança. Ela vai, ela desce, ela sobe, sem culpa ou desassossego, esse é o
seu labor. Nesse jogo só o agora pode existir e ser sentido em sua profundidade.
A criança joga, retira-se do jogo e ela volta. Ora, é o ser do devir que
joga o jogo do devir consigo mesmo: o Aiôn, diz Heráclito, é uma
criança que joga, que joga malha. O ser do devir, o eterno retorno, é o
segundo tempo do jogo, mas também o terceiro termo idêntico aos dois
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tempos e que vale para o conjunto. Isto porque o eterno retorno é o
retorno distinto do ir, a contemplação distinta da ação, mas também o
retorno do próprio ir e o retorno da ação, simultaneamente momento e
ciclo do tempo. Devemos compreender o segredo da interpretação de
Heráclito: à Hybris ele opõe o instinto do jogo. Não é o orgulho
culpado, é o instinto do jogo sempre despertado que cria novos mundos.
(DELEUZE, 1976, p. 20)
Isso não é tão fácil de ser entendido, porque essa vida faz-se diante da própria
tragicidade geradora, na luta, na guerra, e nas tensões constantes, mas ela se quer assim,
esse é o seu motor. Então, a vida, a natureza, geram a si mesmas constantemente.
Oferecer a estabilidade do ser é afirmar a própria morte da natureza. Diz Heráclito no
frag. 52, “os homens se enganam no conhecimento das coisas sensíveis”. Na natureza
tudo se completa, sem precisar de culpa e medo, ou mesmo terror.
Essa perspectiva conduz a pensar que o mundo, a vida, são levados para um
movimento sem diretrizes, onde o tempo brinca sem controle, apenas brinca e brinca.
Quem pode conviver com a doença, com a morte, ou seja, com tal perecimento eterno?
Quem compreende com finura que no interior da doença há a saúde? A natureza gera
esse movimento trágico. A dor, a alegria, a morte, a vida, a doença e a saúde estão
convivendo mutuamente.
Todo o grande exercício do pensamento foi constituído para promover a ordem
do mundo, isso vem sendo perseguido durante toda a história das civilizações. Heráclito
afirma que o ser é exatamente o vir-a-ser.
A natureza de alguma forma brinca como uma criança e não há como escapar da
morte e da vida. Não há como resolver a tragicidade da vida que tende a persistir a
tornar e a retornar incessantemente. A tranquilidade é só um desejo racional, a harmonia
só se faz na eternidade do instante, porque a natureza teimosamente retorna a sua luta e
as suas tensões constantemente.
III
Para concluir
A figura da criança caracterizada por Heráclito seria uma forma de conjecturar
uma espécie de “modelo exemplar” capaz de suportar esse mundo que sempre labuta
por um retorno do diferente.
Só uma natureza transvertida com essa potencialidade da criança, ou seja, a
capacidade de saber brincar, sem os grandes pesos da razão poderia suportar a
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tragicidade da sua filosofia, pois o pensar de Heráclito convida o pensamento e a vida
para fora das amarras. Ele carrega outra mobilidade de aceitação, ou seja, a vida é um
eterno devir.
Não há fixidade que não se desmontem a si mesma não há natureza que não se
transforme, não há vida que não morra, não há ordem que não reencontre o caos, tudo
flui. Seu pensamento mobiliza festejos e guerras vitais. No fundo, esse pensar é uma
subversão e os próprios gregos não o suportaram em sua espessura. Daí a ideia da
criança, pois ela tem uma natureza lúdica e criadora, capaz de sentir a vida como um
jogo, um jogo eterno, sem culpa, medo ou ressentimento. A criança é a imagem
transfigurada do sim à vida, sim à tragicidade do mundo.
Para Heráclito, tudo retorna ao seu círculo eterno. Mas, o que realmente retorna?
Retorna ao igual ou ao diferente? Ou o que pode ser igual no diferente? Esse
pensamento não poderia levar a vida para certa paralisia quando pensado em profundez?
Quem poderia conviver com isso? Quem poderia viver com o eterno devir? Só a
criança, pois ela vive sem passado, futuro. Ela apenas vive o jogo desse eterno instante,
desse eterno fluir do mundo. O jogo da criança é criação constante, sem receio e horror
da própria vida.
Somente o espírito que seja capaz de lidar com a tragicidade da vida pode sentir
sua profundidade. Heráclito sugere o uso da “metáfora da criança” como sendo o
espírito trágico por excelência, capaz de sentir o teor de sua filosofia sem lamentações e
horror.
Bibliografia
DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro,
Editora Rio, 1976.
BORNHEIN, G. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, s/d.
KIRK, G. S. RAVEN, J. E; SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos: História
crítica com seleção de textos. Trad. Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1994.
HEIDDEGER, M. Heráclito: A origem do pensamento Ocidental: Lógica: a doutrina
Heraclitiana do logos. Trad. Márcia Sá Cavalcante Shuback. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1998.
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LINS, D. Heráclito ou a inocência do devir. In: LINS, D (org). O devir-criança do
pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
NIETZSCHE, F. A filosofia na era trágica dos gregos. Trad. Fernando R, de Moraes
Barros. São Paulo: Hedra, 2008.
_____________. Ecce Homo: Como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de
Sousa. São Paulo: Companhia das letras, 1995.
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