O ESPELHO, O OUTRO, A EXCLUSÃO

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Encontro
Revista de Psicologia
Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007
O ESPELHO, O OUTRO, A EXCLUSÃO
THE MIRROR, THE OTHER ONE, THE EXCLUSION
RESUMO
Mériti de Souza
Universidade Federal de Santa
Catarina - UFSC
[email protected]
Neste artigo problematiza-se a constituição subjetiva contemporânea que se organiza sob a égide da subjetividade privatizada nas
suas relações com a figura do outro. O recorte incide no trabalho
psicológico realizado em uma instituição de ensino formal. A estratégia de intervenção orientou-se a partir da relação estabelecida
entre sujeito e conhecimento e problematizou a constituição subjetiva calcada na lógica identitária que exclui o outro. O foco da análise privilegia a escuta com ênfase no referencial psicossocial e psicanalítico, conforme estabelecida nos atendimentos realizados aos
membros dessa instituição.
Palavras-Chave: Subjetividade, outro, exclusão, conhecimento.
ABSTRACT
This article seeks to query the subjective constitution of contemporarty which is established upon the protection of the private subjectivity in its relationships with the other one. Herein the focus
comes from a psychological work done in a formal education institution. The intervention strategy was guided by the relationship
established between the subject and the knowledge. Therefore, the
intervention strategy was guided by the subjective constitution
based on the logic of identity that excludes the other one. The aim
of this analysis befriends the psycho-social and the psychoanalytical listening established during the sessions among the
members from this institution.
Keywords: Subjectivity, the other one, exclusion, knowledge.
Anhanguera Educacional S.A.
Correspondência/Contato
Alameda Maria Tereza, 2000
Valinhos, São Paulo
CEP. 13.278-181
[email protected]
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 18/03/2007
Avaliado em: 27/03/2007
Publicação: 27 de outubro de 2008
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O espelho, o outro, a exclusão
1.
INTRODUÇÃO
A condição do homem contemporâneo frente às transformações na cultura e na natureza exige que ele esteja constantemente repensando sua prática e sua inserção no social. A crise de modelos de sociabilidade, de parâmetros no conhecimento e a crescente
ameaça de colapso no eco sistema, estimulam essa exigência e cobram das pessoas a
constante reflexão e posicionamento frente às atividades cotidianas e profissionais. Especificamente, essa crise é vivenciada com mais agrura pelos profissionais envolvidos
de forma direta no trabalho com o ser humano como, por exemplo, psicólogos, advogados, psicanalistas, educadores, médicos. Tal acontece, já que além de sofrerem os efeitos da crise contemporânea, esses profissionais se encontram na posição de emitir
discursos e exercer práticas que podem estimular a continuidade dessa situação ou
possibilitar sua alteração.
Em outras palavras, à prática psicológica, educacional, psicanalítica, jurídica,
médica, dentre outras áreas, cabe um papel significativo na manutenção ou na transformação sociais, à medida que produzem discursos que procuram explicar e organizar a vida social e psíquica das pessoas. Assim, essas práticas podem se revelar mantenedoras do status quo, ao compreenderem a organização social e a subjetividade como
universais e estabelecidas a priori. Nesse contexto, as áreas do conhecimento configuradas em teorias e estratégias de intervenção, podem assumir uma versão asséptica e
fragmentada. Nesse cenário, o direito assume a faceta positiva e legalista, corporificando leis e normas consideradas neutras e universais e, definidas como legítimas e
verdadeiras já que desconectadas das relações hierárquicas e de poder que permeiam a
rede social. A psicanálise e a psicologia adotam uma concepção de sujeito na qual a
subjetividade é entendida como única, desconectada do social, bem como, definem
uma proposta de terapêutica centrada na cura eficaz e rápida. Por seu turno, a educação se converte em técnica apoiada exclusivamente na produção de estratégias de ensino centradas nos conteúdos e, apresentadas como panacéia para a construção da cidadania. Da mesma forma, a medicina pode destituir o discurso e a humanidade do
sujeito que padece o sofrimento ao centrar sua leitura sobre a doença apenas a partir
dos exames e dos pedaços do corpo, destituindo a relação médico-paciente do seu lugar de produtora de conhecimento. Por um lado, esse cenário tem em comum o fato de
que as áreas de conhecimento se dividem em campos de saberes e de atuação, bem
como, se espraiam de acordo com o mercado de trabalho em especialidades. Por outro
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lado, as especialidades transmutam a relação saber e fazer em teorias e estratégias de
intervenção dissociadas e referenciadas apenas na técnica.
Entretanto, existem outras possibilidades para a intervenção profissional baseadas em parâmetros críticos e transformadores, a medida que exigem a compreensão
do humano na sua totalidade e nas suas relações com o social e o político. Para realizar
a crítica a prática profissional como mantenedora do status quo é necessário ressaltar
como dado fundamental o fato de que os agentes dessas disciplinas do conhecimento
são constituídos por uma organização subjetiva inscrita na ordem social. Dessa forma,
tanto a técnica quanto o técnico não pairam no espaço e tempo, acima do bem e do
mal, por mais que essa idéia tenha se difundido e se constituído como desejo e projeto
de vida para muitos profissionais. Ainda, a neutralidade, seja da teoria seja da estratégia de intervenção, não se sustenta a considerar os trabalhos que demonstram a relação
entre sujeito e objeto como interveniente na construção do real e do fenômeno. Localizamos leituras que questionam a concepção do tempo linear, da relação causa e efeito,
da identidade, do universal, e dos paradigmas sobre o conhecer caucionados pela lógica clássica (Canguilhen, 1977; Maturana & Varella, 1997, 2001; Morin, 2003, 2005a,
2005b; Prigogine, 1996).
Analisar a concepção sobre o conhecer e sobre a prática demanda problematizar a relação entre aquele que conhece e o fenômeno a ser conhecido, e entre aquele
que exerce a ação a ser efetivada e o que sofre os efeitos dessa mesma ação. Esse trabalho implica, ainda, na análise acerca das teorias sobre o conhecimento e sobre a constituição subjetiva. A crítica à unidimensionalidade do subjetivo e da ação demanda repensar a relação construída por um sujeito que se representa e se acredita constituído
por um eu plenamente diferenciado e apartado de um outro. Assim, o re-encontro com
o outro serve de mote para visualizarmos o modo de funcionar das redes sociais, das
instituições contemporâneas e do sujeito que acredita ter expurgado o outro da sua
constituição psíquica e da produção do conhecimento.
É importante acompanhar o trajeto percorrido pela instalação dos ideais modernos no tocante a construção do sujeito reflexivo que se configura a partir da concepção do humano como indivíduo, bem como, no tocante as instituições modernas
que emergem com o objetivo de oferecer igualdade, liberdade e fraternidade, para todos. O objetivo de transformar o súdito em cidadão implica em reconhecer o sujeito e o
outro no trabalho de propiciar cidadania e inclusão social e jurídica. A ordem civilizatória moderna demanda uma ordem social e uma conformação subjetiva que viabilize
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a produção de um sujeito que se reconheça e também reconheça o outro. Entretanto,
um projeto idealmente associado à formação do cidadão e à construção de uma sociedade baseada na democracia, tem suas promessas esvaziadas (Bauman, 2001; Berman,
1986; Bobbio, 1986; Sousa Santos, 1996). Assim, ele deságua no modo de produção capitalista, na exploração do homem pelo homem e, no plano psíquico, produz uma forma de configuração subjetiva calcada na representação identitária individualizada.
A partir desse cenário uma pergunta se impõe: reconhecer o novo e ressignificar a si próprio e ao mundo opera sob quais parâmetros na atualidade? O exótico e o
diferente conforme configurados no e pelo olhar do colonizador continua a operar sob
os mesmos parâmetros ou esse olhar se modificou a partir da assunção do sujeito da
razão? E o olhar do colonizado? De forma particular, em decorrência do nosso trabalho
nos últimos anos ter-se realizado em comunidades e instituições formais e não formais
de ensino e aprendizagem, nosso olhar se dirige ao processo de produzir conhecimento e as relações construídas nas instituições escolares sob a égide do contato com o outro. A considerar o sujeito da razão e o processo de escolarização como parâmetros para a proposta de assunção do outro e do seu reconhecimento, no decorrer desse trabalho a pergunta se dirige para o contato com o outro no processo do conhecer conforme
postulado pela instituição escolar.
2.
NO PÁTIO DA ESCOLA A CENA DA VIDA COTIDIANA
O pátio da escola compunha o cenário, com um grande grupo de alunos, alguns dos
seus familiares e poucos professores a observarem a peça teatral a ser encenada pelos
alunos que participavam das atividades do projeto. O tema iria ser decidido pelo grupo em cena aberta, o que já se constituía como parte da encenação. No galpão do pátio
que funcionava como palco, José Carlos, Solange, António, Beatriz, Carmem e Silvia
(nomes fictícios) conversavam em torno de um caixote coberto com uma toalha. Eles
jogavam cartas e comentavam sobre a atuação de cada um no jogo. Antônio dizia à sua
parceira Beatriz, que perdia o jogo: “você nem sabe jogar direito” e, complementava afirmando: “a professora fala mesmo que você não consegue aprender”. Sílvia comenta
que não precisava aprender nada mesmo, já que precisava era de um emprego. Beatriz
comenta que eles esqueceram completamente do que fora combinado e que precisavam decidir sobre um roteiro para a peça. Por alguns minutos o silêncio se instala e
por fim Antônio, diz que não consegue se decidir. Beatriz comenta que poderiam fazer
a peça a partir do que aconteceu com eles na semana. Todos se entusiasmam e concor-
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dam com a idéia apresentada. Carmem sugere que poderiam fazer a história sobre a
viagem à cidade feita na semana anterior, em que foram ao shopping e poderiam inclusive apresentar a história do Marquinho e do Adauto com os guardas na avenida. O
silêncio após essa sugestão é grande e a irrequieta platéia silencia, como que a refletir
sobre a viagem à cidade.
A escola em que essas cenas se desenrolam se situa em um bairro de periferia
de uma cidade paulistana de porte médio, que concentra uma maioria de população de
baixa renda que trabalha no corte da cana ou vive de pequenos expedientes e serviços
informais. No decorrer da semana a maioria da população que trabalha se desloca para
o campo ou para o denominado centro da cidade para exercer suas funções.
Como parte do estágio realizado por alunos do curso de formação do psicólogo, do qual éramos professora, supervisionamos durante vários anos um projeto de intervenção na escola J.A.R., descrita acima. Dentre essas atividades, havíamos decido
que em um sábado a cada mês a ser definido pelo grupo de alunos da escola, a prefeitura municipal nos cederia um ônibus e aqueles que desejassem embarcariam em uma
viagem até o “centro da cidade”. Além de assistir a um filme no shopping, o objetivo
era o de passear pela principal avenida comercial que cortava a cidade, local altamente
investido pelos habitantes do bairro que representavam esse local como destinado apenas à elite financeira e cultural da cidade. No dia e horário combinados um grupo
animado se dirigiu ao shopping e após muitas subidas e descidas nas escadas rolantes,
corridas pelos corredores, refrigerantes e freqüência às lojas, o grupo saiu a passear na
avenida que ficava ao lado do estabelecimento comercial. Novamente, após muitas subidas e descidas pela avenida, retornamos ao ônibus para a viagem de volta. Na escola,
na hora da despedida algumas alunas foram conversar conosco e comentaram que durante o passeio, dois colegas se distanciaram do grupo e perguntaram para dois passantes a localização de uma loja que eles queriam visitar. A informação recebida foi
que eles deveriam voltar para o seu próprio bairro, pois lá existiam muitas lojas para
eles freqüentarem. Bem, era esse o episódio que Carmem queria encenar e que o grupo
preferiu escamotear da sua memória e da sua vida.
De forma ampla, a prática da escolarização é associada a mudanças na rede
social já que se trata de um processo que possibilitaria as pessoas o acesso ao conhecimento e ato contínuo repercutiria na sua organização cognoscente e na sua ação sobre
o mundo, modificando-o. A escola assumiu o lugar da instituição que deveria oferecer
ensino e cidadania atender a maioria da população e propiciar-lhe melhores condições
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de vida. De forma específica, no Brasil o trabalho de transmitir conhecimento e de socializar não tem sido realizado a contento pela escola. Conforme sabemos os problemas vivenciados por essa instituição são analisados como decorrentes do desinteresse
por parte dos governos, como relacionados a extrema pobreza da maioria da população, a inadequação dos métodos de ensino, dentre outros.
Entretanto, acreditamos que se trata de um processo que se retro-alimenta de
diversas maneiras e, assim, não podemos localizar na instituição ou nos participantes
desse processo, os responsáveis por essa situação. Faz-se necessário problematizar a
inserção dessa instituição e das pessoas em uma rede societária, de valores e de produção subjetiva. Este posicionamento implica em trabalhar com o singular e com o coletivo e, perguntar pela produção da subjetividade constituída como identidade individualizada calcada no mesmo e na exclusão do outro (Souza, 2002, 2006). Essa perspectiva
também demanda problematizar a elaboração de representações identitárias que se acreditam como configuradas pela razão plena que oferece a certeza do autoconhecimento e do conhecimento sobre o outro. Ainda, ela demanda analisar a crença
constitutiva dessas representações identitárias que acreditam como constituídas por
um eu integrado que mantém sua estabilidade no espaço tempo e expurgou o outro.
3.
DO OUTRO E DO MESMO
Para Todorov (1999), no contato com a diversidade é possível encontrar o similar. Ele
exemplifica com a idéia do exótico, que equivale na cultura ocidental e moderna a “estranho”, “diferente”, “estrangeiro”, sendo que essa palavra se refere as situações ou
pessoas percebidas como não participantes de um grupo. Na cultura ocidental em séculos passados, exótico se referia ao bárbaro, aquele que não pertencia aos grupos sociais que se concebiam como civilizados. O autor analisa esse processo a partir das práticas realizadas pelos colonizadores espanhóis frente aos povos nativos da América.
Importante ressaltar como Todorov (1999) analisa a ambigüidade da relação
estabelecida com o exótico: ao mesmo tempo em que amedronta, ele também fascina,
expondo a relação do exótico com o diverso; ou seja, o exótico-outro é desqualificado e
admirado pelo sujeito à medida que o processo de sua construção remete a aspectos do
civilizado-mesmo. Nesse processo, é possível localizar e descobrir o outro.
Pois o outro deve ser descoberto. Coisa digna de espanto, já que o homem nunca
está só, então seria o que é sem sua dimensão social. E, no entanto, é assim: para
a criança que acaba de nascer, seu mundo é o mundo, e o crescimento é uma aprendizagem da exterioridade e da sociabilidade; pode-se dizer, um pouco gros-
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seiramente, que a vida humana está contida entre dois extremos, aquele onde o
eu invade o mundo e aquele onde o mundo acaba absorvendo o eu, na forma de
cadáver ou de cinzas. E, como a descoberta do outro tem vários graus, desde o
outro como objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente dele, com infinitas nuanças intermediárias, pode-se
muito bem passar a vida toda sem a descoberta plena do outro (supondo-se que
ela possa ser plena). Cada um de nós deve recomeçá-la, por sua vez; as experiências anteriores não nos dispensam disso. Mas podem ensinar quais são os efeitos
do desconhecimento (Todorov, 1999, p. 299-300).
No plano da cultura, os povos exóticos correspondem àqueles que viviam em
culturas consideradas mais simples e mais rudes em sua sociabilidade e em suas conquistas na área do conhecimento, porém, em contrapartida, viviam em harmonia com
a natureza e eram mais felizes. O exótico-outro funciona como uma projeção do ideal
do sujeito concomitante a uma crítica à sua vida e à sua cultura.
Para o colonizador, o “bom selvagem” encontrado nas Américas vivia em estado natural, a usufruir da natureza e do seu corpo, sem interdições. O europeu observava com “olhos de recriminação e de inveja o bom selvagem”, sofrendo as repercussões dessa vivência contraditória na sua subjetividade e na sua rede social. No período
histórico das grandes navegações, do século XVI ao século XVII, o trabalho de exclusão
do diferente se associa à ordem da patologia e o outro abre as portas das prisões para
dirigir-se aos sanatórios (Foucault, 1989, 2001a). O outro necessita ser representado e
concebido como enlouquecido para que a mesmidade do sujeito não sucumba ao fascínio da natureza e da sexualidade em contrapartida às “benesses” da cultura e da sociedade repressora.
O trajeto que compreende as grandes navegações e o “bom selvagem”, exótico
amado e odiado, percorre e envolve diversas cenas e personagens: a nau da loucura, a
escravidão, os manicômios, a raça pura, os eletro-choques, os campos de extermínio, os
testes psicométricos, a privação cultural, a família desestruturada, a defasagem cognitiva, as aptidões, a personalidade, a violência simbólica. O denominado progresso civilizatório oferece solo a esse trajeto e, no mundo contemporâneo configura o multiculturalismo, a competência e a ética instrumental. Nesse percurso podemos acompanhar
a diversidade dos discursos e das práticas que continuam a falar sobre o exótico-outro
que aterroriza e fascina. O processo de exclusão se sofistica, se refina, porém continua a
operar e a desqualificar, a negar, a destruir, o que é representado pelo sujeito como da
ordem do diferente, do não idêntico.
A exclusão faz ressoar na rede social essa ambigüidade, já que, a cultura brasileira acompanha o jargão de exótica, desde a época das grandes navegações. Ora, tratando-se da cultura ocidental brasileira, quais os modelos identificatórios por ela pro-
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duzidos que levam as pessoas, a produzirem uma representação identitária calcada no
reconhecimento do outro a partir da crença na identidade, na mesmidade? No exemplo
que citamos no começo desse artigo, qual discurso legitima o olhar sobre o outro que
autoriza pessoas a designarem à um grupo de jovens um específico espaço geográfico e
social e os exclui como habitantes de direitos e de deveres da cidade? Supomos que a
angústia na cultura ocidental se encarna na condição econômica e social, o que produz
tanto a legitimação da violência aplicada ao outro quanto a busca da destruição e desqualificação do estranho que ele representa.
Em outras palavras, a angústia frente ao desamparo que marca o humano e ao
enigmático que o constitui (Freud, 1973a) se espraia em diferentes direções e se corporifica em conceitos e práticas econômicos, culturais e subjetivos. Assim, por um lado,
podemos localizar o modo de subjetivar predominante na modernidade ocidental calcado na concepção do indivíduo crente na sua constituição configurada como integrada e racional. Essa figura subjetiva se acredita como constituída por uma consciência
que subsume a subjetividade e lhe oferece acesso total ao real, bem como, o controle
sobre si e sobre o outro. Por outro lado, também localizamos o modo de produzir conhecimento na modernidade centrado na dissociação entre sujeito e objeto, mente e
corpo, razão e paixão, engendrando o sujeito epistêmico do cogito. Esses parâmetros
epistêmicos e ontológicos operam a partir da sua associação a axiomas configurados
como verdade e universalidade, o que possibilita a sua disseminação e o recobrimento
da rede social, cultural, econômica e subjetiva. Dessa forma, temos uma determinada
modalidade de organização econômica, do conhecimento e da subjetividade, que oferecem sustentação para a crescente expansão do modo de vida liberal e capitalista levada ao extremo nos processos de colonização e de globalização (Bauman, 2001; Sousa
Santos, 1996, 2003). A busca pela imposição hegemônica dos saberes e fazeres construídos pela cultura moderna e ocidental se alicerça na concepção dessa cultura tanto como produtora da verdade quanto como a verdadeira.
Essa perspectiva crítica explicita a necessidade de um novo paradigma que se
oriente pela dissolução das dicotomias que tanto estabelecem as disciplinas do conhecimento definidas como apartadas entre si, quanto definem as dicotomias entre corpo e
mente, objetivo e subjetivo, sujeito e objeto. Assim, é fundamental que um novo paradigma se oriente por uma concepção diferenciada sobre o conhecer e sobre a constituição subjetiva.
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A tradição filosófica ocidental e de forma específica a leitura liberal, associam
o particular ao individual, bem como, concebem o saber como estabelecido a partir da
relação direta entre o sujeito que conhece e o mundo a ser conhecido. Entretanto, para
um autor como Merleau-Ponty (1996) o que percebemos no mundo externo, no sentido
de exterior a nós, não equivale de forma linear a realidade percebida. Nessa perspectiva, existe uma correspondência direta entre o que ouvimos ou enxergamos e o que foi
por nós ouvido ou enxergado. Ainda, é necessário destacar que no processo de conhecer elaborado pelo autor o mais genérico é que abre a possibilidade para o não reprodutível. Em outras palavras, o denominado universal que constitui a herança recebida
por cada ser humano, não se sobrepõe a singularidade humana. Em outras palavras,
no trajeto histórico percorrido pelo ser humano a percepção sensorial, por exemplo, se
encontra no plano dos caracteres gerais a partir dos quais se engendra o singular que
por seu turno, também constitui cada humano. Assim, é possível afirmar que o singular é precedido pela percepção sensorial atualizada no corpo biológico da espécie.
O coletivo constitutivo da rede cultural, econômica e política, engendra teorias
e técnicas que se vinculam com determinadas configurações simbólicas e específicas
práticas. O plano coletivo instaura a produção de singularidades que, tanto alimentam
o coletivo quanto são por ele alimentadas. No plano que habitam as singularidades, se
cruzam raízes que estabelecem o vínculo com o outro, que lhe forneceu o substrato necessário a sua inscrição na ordem do humano. Reconhecer a dívida para com o outro,
implica reconhecer o vínculo frente a ele, pois essa inscrição veio acompanhada pela
delimitação inerente ao coletivo.
A partir desse contexto teórico, faz-se necessário pontuar o conceito de subjetividade e de modos de subjetivação no que eles explicitam da vinculação entre o solo
coletivo do mundo liberal e capitalista e o solo singular. A dificuldade se encontra na
tradição que acompanha o termo subjetividade, fruto da denominada “filosofia do sujeito“ ou “filosofia da consciência” e particularmente a considerar sua relação com a figura do sujeito individual. O recurso adotado por profissionais e pesquisadores preocupados em ressaltar o aspecto de “processo” inerente à constituição das subjetividades é falar em modos ou processos de subjetivação, a fim de explicitar o aspecto social
e temporal do psiquismo. Entretanto, a preocupação em não substantivar a noção de
subjetividade permanece presente, em decorrência da estrita associação da subjetividade com o sujeito e com a tradição da filosofia da presença. Uma possibilidade para
lidar com esse impasse é pensar o psíquico como singularidade conformada por um
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campo de experiências, assentada por experiências de subjetivação e dessubjetivação
(Figueiredo, 2002).
A constituição subjetiva se articula a ordem da consciência e do inconsciente,
o que demanda o trabalho analítico com o conceito de processo de identificações, conforme postulado por Freud, ao pensar a constituição da subjetividade como um processo singular e cultural da ordem da economia do desejo (1973a). O humano opera no
plano da fantasia, pois tem que lidar com a percepção do desamparo e da falta e se identifica com objetos parciais à procura de significações que possam oferecer-lhe sentidos a sua representação de eu e a representação sobre o outro e o mundo. As identificações operam no plano da consciência e no plano do inconsciente, permanecendo como um processo em aberto e contínuo, relacionado ao entorno espaço-temporal no
qual a pessoa circula. Esse processo produz a realidade psíquica da representação egóica que emerge como um substrato do jogo de forças pulsional e representacional e
oferece o referencial identitário como consistência ao inefável da configuração subjetiva. A representação identitária se configura como um precipitado de identificações que
nos oferecem a crença em uma pretensa unidade nos caracteriza e define e opera a partir do expurgo do outro. Nessa perspectiva, a elaboração psíquica envolve os processos
de sujeição e de autonomia como possibilidades do sujeito posicionar-se frente ao outro, sendo que esses processos permanecem em constante conflito no plano da organização subjetiva (Butler, 1997, 2003).
No cenário contemporâneo ocidental e brasileiro, podemos localizar no plano
coletivo o discurso social que transmite a idéia de que o êxito financeiro e profissional
está ao alcance de todos, bastando ser competente, audacioso e esforçado, para conseguir “vencer na vida” e ser feliz. Esse discurso prossegue, envolvendo também o êxito
pessoal, ou seja, a capacidade de ser feliz é traduzida pela idéia de completa satisfação
e abolição da angústia que supostamente acompanha aqueles que “vencem na vida”.
Sabemos do engodo dessa promessa e da sua impossibilidade; entretanto, a maioria
das pessoas é facilmente capturada por essa idéia e frustram-se com a impossibilidade
da sua realização. Onde encontrar a justificativa ao fracasso? Em decorrência da impossibilidade de alcançar as benesses social e econômica, a justificativa ao “fracasso”
em cumprir o mandato dos modelos identificatórios - seja o do êxito social ou o do êxito pessoal - pode ser delegada às condições sociais, ao Estado e à sociedade. Entretanto, o sujeito também pode buscar a justificativa no ato de culpabilizar a si próprio ou
ao outro (Souza, 2002).
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Nessa perspectiva, o discurso singular das pessoas que questionam os jovens
sobre sua presença no núcleo comercial e financeiro da cidade, pode dizer respeito ao
medo e angústia deflagrados pelas suas presenças, que ameaçam o lugar identitário e
social atingido por aqueles que detêm o usufruto desse espaço social e geográfico. Em
outras palavras, a constituição subjetiva entranhada no solo liberal e capitalista produz
justificativas à ação de exclusão ao praticar ações que acreditam resguardar o seu direito, a medida que os jovens do bairro da periferia estavam a invadir o seu espaço geográfico e social. Os cidadãos sugerem aos jovens da periferia que devem retornar ao
seu espaço que lhes foi outorgado, pois, eles não eram excluídos, antes eles tinham o
seu lugar estabelecido. Entretanto, o que esse discurso não explicita é a angústia deflagrada pela presença desses jovens, que ao saírem do seu espaço periférico desestabilizam e questionam a ordem e a hierarquia social e cultural.
4.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
O elo que associa teorias e práticas na produção e constituição das subjetividades, do
real, do conhecimento, do tempo, revela-se consistente e repercute nas teorias e práticas psicológicas e pedagógicas. Conforme apontamos no início deste artigo, esse elo
pode caminhar no sentido da manutenção do status quo secundado pela lógica clássica
definida pela modernidade como científica. Entretanto, ele também pode caminhar no
sentido da crítica e da transformação do status quo, ao articular teorias e práticas que
questionem de forma radical os pressupostos que sustentam os paradigmas da ciência.
Em outras palavras, o corte na raiz demanda criticar os pressupostos que sustentam a
ontologia e a epistemologia moderna ocidental. Nessa senda, a questão do singular ser
engendrado a partir do mais genérico revela-se profunda e fecunda e encontra pesquisadores e teóricos que a sustentam.
A produção teórica e metodológica da psicologia é orientada por diferentes
concepções de sujeito, sendo que a maioria dessas concepções acompanha o advento
da modernidade. Um dos projetos da modernidade é a produção do sujeito da razão
autônoma, concebido como capaz de conhecer o real, a verdade e agir orientado por
esse conhecimento. Assim, na tradição da filosofia ocidental, a subjetividade se constitui como consciência reflexiva que se acredita como integrada, capaz de conhecer a si
mesma, ao mundo e de orientar-se pela razão. Nessa perspectiva, o encontro desse sujeito com o Outro, suscita o contato com a sua própria diferença constitutiva, o que
ameaça sua crença na representação identitária calcada na hegemonia do eu. Esse con-
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tato pode levar o sujeito a expulsar para o exterior o que ele percebe como aquilo que
destoa e questiona a sua representação identitária. Assim, o inimigo está no exterior,
no Outro, no estrangeiro, no imigrante, no homossexual, no louco, na mulher, na criança. Essas configurações identitárias se espraiam para o aluno que não aprende; o
trabalhador desempregado; o homem e a mulher que exercitam uma sexualidade que
não corresponde ao seu corpo biológico, dentre outras. O outro desqualificado e destituído da sua condição humana também se encarna nos jovens e nas crianças que deixam seu bairro e se deslocam para um espaço geográfico na cidade que não lhes é atribuído. Afinal, os bairros distantes do centro comercial e financeiro das cidades justamente se configuram no locus de habitação dos excluídos do sistema financeiro, cultural e social. A exclusão assume contornos físicos, geográficos, subjetivos e culturais.
O estrangeiro explicita a impossibilidade de um projeto totalizante, seja ele
qual for. Os projetos sustentados na idéia da totalidade, da unidade, da identidade não
suportam o confronto com a diferença que explicita a impossibilidade mesma dessa
ambição: a pretensão de uma subjetividade una, plena, integrada e acessível à consciência. O projeto de uma economia una e plena, seja ela estatal ou liberal, o projeto de
um modo de vida, único e total não suportam o reconhecimento da diferença que explicita a impossibilidade totalizante.
O processo histórico que produz o esvaziamento e a desqualificação da alteridade e o processo filosófico que entroniza o mesmo como parâmetro à produção da
representação identitária e do conhecimento, secundam o processo subjetivo de produção do ódio pelo que não é idêntico. Como afirma o poeta, “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto, chamei de mau gosto o que vide mau gosto, mau gosto,
é que Narciso acha feio o que não é espelho”. Ainda, a relação com o outro demanda o
contato com o novo e se revela difícil, pois “foste um difícil começo afasto o que não
conheço, e quem vem de outro sonho feliz de cidade, aprende de pressa a chamar-te de
realidade, porque és o avesso do avesso do avesso do avesso” (Veloso, 1978).
De fato, Narciso acha feio o que não é espelho, bem como, a mente apavora o
que ainda não é mesmo velho. Assim, aprendemos depressa a chamar de realidade o
que é o avesso, do avesso, do avesso, do avesso. Em outras palavras, o espelho do narciso devolve o reflexo ainda que travestido de avesso, pois este movimento explicita a
relação do mesmo com o idêntico e escancara o problema de que o pavor é suscitado
pela identidade embalada na roupagem do outro.
Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 91-104
Mériti de Souza
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O espelho, o outro, a exclusão
Mériti de Souza
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC - SP;
Pós-Doutorado no CES - Centro de Estudos Sociais - da Universidade de Coimbra;
Professora no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFSC.
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