INTRODUÇÃO À TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN

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INTRODUÇÃO À TEORIA DO DIREITO DE RONALD DWORKIN
Antonio Armando Ulian do Lago Albuquerque 1
Introdução. 1. Contextualizando Dworkin. 2.
Introdução ao positivismo jurídico na Inglaterra:
enfoque em Bentham e Austin. 3. Aspectos da
teoria jurídica de Hart. 4. As críticas de Dworkin
em relação ao utilitarismo e à Escola Analítica do
Direito. 5. Algumas conceituações teóricas de
Dworkin. Considerações Finais. Referências
Bibliográficas.
Introdução
O presente estudo tem o objetivo de apresentar de forma
introdutória as principais contribuições do pensador estadunidense
Ronald Dworkin, tarefa complexa ante a enorme variedade e
profundidade de escritos do teórico. Sem pretensão alguma de
discorrer sobre toda a sua teoria, por questão metodológica priorizouse aspectos centrais das obras Derechos en Serio e O Império do
Direito.
Antes de adentrar-se às principais conceituações de Dworkin,
faz-se premente apresentar o desenvolvimento do pensamento dos
principais teóricos da Escola Analítica do Direito na Inglaterra:
Jeremy Bentham, John Austin e Herbert Hart. Todos influenciaram e
serviram de contraponto à formulação teórica de Dworkin.
A demonstração de alguns aspectos introdutórios das teorias
desses filósofos faz-se necessária para, posteriormente, evidenciar
1
Mestre em Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Professor de Graduação e Pós-Graduação Lato Sensu do curso de Direito da
Universidade do Estado de Mato Grosso. Autor de “Multiculturalismo e direito à
autodeterminação dos povos indígenas” e “A Sociologia Jurídica de Eugen Ehrlich e
sua influência na interpretação constitucional”, ambos pela editora Sérgio Antonio
Fabris.
as críticas que Dworkin faz, tanto ao utilitarismo como ao positivismo
jurídico. Por fim, a análise em questão desenvolverá as
conceituações teóricas de Dworkin como, por exemplo, a questão
dos casos difíceis, a conceituação de interpretação, as suas
parábolas, e o Direito como integridade.
1 Contextualizando Dworkin
Dworkin se inscreve, na atualidade, como um dos principais
teóricos do Direito representantes da filosofia jurídica anglo-saxônica.
Também é um ardoroso crítico das escolas positivista e utilitarista.
Ronald Myles Dworkin nasce em Worcester, Massachusetts
(EEUU) no ano de 1931. No final dos anos sessenta, Dworkin sucede
a Herbert Hart na Universidade de Oxford, e atualmente leciona na
Universidade de New York. O filósofo critica a construção jurídica
positivista de Hart, pois a entende como “a mais importante e
fundamental reformulação da idéia de positivismo jurídico (...).”2
A carreira jurídica de Dworkin começa em 1957 como
assistente do juiz Learned Hand. Este estava aposentando-se e mais
se interessava em aprofundar uma série de conferências sobre a sua
discordância com um recente caso decidido na Suprema Corte dos
Estados Unidos: o caso Brown vs. Board of Education3. Talvez um
dos processos mais famosos que tramitaram naquela Corte, e o
impulso definitivo para o ingresso de Dworkin no mundo da teoria do
direito.4
A Suprema Corte havia proibido a segregação racial no âmbito
das escolas públicas, evidenciando a não aceitação de uma prática
contrária à Constituição dos Estados Unidos. Hand, politicamente era
um liberal de esquerda e radicalmente favorável à bandeira
antidiscriminatória, não só do ponto de vista político, mas também
2
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 42.
Trata-se da obra O conceito de Direito, traduzida por A. Ribeiro Mendes e publicada
na sua quarta edição pela Calouste Gulbenkian, Lisboa, em no ano de 2005.
3 DWORKIN, op. cit., p. 36.
4 Disponível em:
http://fp.chasque.apc.org:8081/relacion/9904/filosofos_de_hoy.htm>, acessada em
08 de junho de 2001.
sob o viés moral. Juridicamente não concordava com a decisão final
do caso, pois entendia que o debate residia no caso precedente:
Plessy vs. Ferguson. A parte ré alegou que a prática do
segregacionismo infringia a emenda constitucional décima quarta5. A
Suprema Corte estadunidense negou a alegação "afirmando que as
exigências dessa cláusula estariam sendo atendidas se os Estados
oferecessem serviços separados, porém iguais, e que, por si só, o
fato da segregação não tornava esses serviços automaticamente
desiguais".6
O caso Brown vs. Board of Education se inscrevia sobre outro
contexto social, a maioria da sociedade já não mais aceitava a
segregação e a decisão da Suprema Corte não descartava
textualmente a forma “separado, mas igual” do caso Plessy.
Baseando-se em análises sociológicas o julgado demonstrou a
existência de segregacionismo nas escolas públicas como um
indicativo da impossibilidade de terem tratamento iguais por esta
mesma razão.
Para alguns críticos a segregação, apesar de imoral, era
perfeitamente constitucional, pois a expressão “igual proteção” não
possibilitava dizer se a segregação estava proibida ou não. Os
legisladores da décima quarta emenda tinham consciência de que o
segregacionismo ocorria nas esferas públicas, logo se não
expuseram expressamente a contrariedade a tal prática é porque
pretendiam mantê-la, ou, pretendiam continuar dando legitimidade a
sua prática, portanto, tais alegações fundamentam-se em questões
de direito constitucional e não na ordem moral. O precedente Plessy,
não deveria ser tão “levianamente” derrubado. Para Hand os juízes
não deveriam se envolver com as decisões políticas ou assumir a
atividade de um filósofo. Não deveriam confundir o plano moral com
o nível político-jurídico.
5
DWORKIN, op. cit., p. 36. Este caso data de 1896, portanto, logo após o fim da
Guerra civil norte-americana. Os estados do norte emendaram a Constituição pondo
fim a escravidão. A décima quarta emenda dispõe que nenhum Estado pode negar a
ninguém a igualdade perante a lei. Mas após a reconstrução, os estados sulistas,
novamente com o novo controle sobre a própria política, praticaram a segregação
racial em serviços públicos.
6 Ibid.
Dworkin torna-se assistente de Learned Hand nesse contexto,
três anos depois do caso Brown. O desenvolvimento de sua carreira
jurídica torna-se uma busca incessante de demonstrar o equívoco de
Hand, afirmando que os juízes devem permitir que as justificações
morais desempenhem um papel nas suas decisões. O fundamento
concentra-se no reconhecimento e na proteção dos direitos
individuais. Este é o principal tema de sua primeira coleção de
ensaios: Derechos en Serio.
Essa obra de Dworkin não só outorga um lugar sério aos
direitos na Teoria Geral, mas trata sobre os direitos como núcleo e
justificação última da lei.
Para Dworkin, era simplemente inconcebible que
la Constitución de los EE.UU. admitiera la
segregación racial, por eso decidió que la
"Declaración de Derechos" no debería verse como
"la lista concreta y detallada de remedios", sino
como "un compromiso con un ideal abstracto de
gobierno justo". Si la Constitución y las decisiones
judiciales que forman jurisprudencia no proveen la
compensación suficiente, nosotros deberíamos
cambiar nuestra lectura de ellas. Así comienza
Dworkin a trabajar sobre una teoría que pudiera
identificar los derechos fundamentales aun donde
la ley positiva sugiera su ausencia.7
A década de sessenta tem influência direta sobre o
pensamento a respeito dos direitos individuais. É neste momento
histórico que se concentram esforços para o reconhecimento dos
direitos civis, dos direitos ao voto, da liberdade de expressão, da
liberdade reprodutiva, reagindo contrariamente ao principal estorvo
para a sociedade estadunidense: a discriminação racial.
7
OENEN, Gijs van. Deconstruyendo a Ronald Dworkin el Derecho y sus
descontentos.
Disponível
em:
<http://fp.chasque.apc.org:8081/relacion/9904/filosofos_de_hoy.htm, acessada em
08 de junho de 2001.
Tais questões necessitam apoiar-se num marco referencial da
teoria jurídica e política, conduzindo o trabalho teórico de Dworkin ao
estabelecimento das contrariedades teóricas predominantes no
Direito e na Teoria Política dos anos sessenta.
A perspectiva teórica de Dworkin apresenta-se em três
dimensões inter-relacionadas. Primeiramente, no reconhecimento
dos direitos individuais e liberais como elementos básicos
constitutivos da lei. Posteriormente no trabalho de situar os direitos
individuais sob o plano da teoria política liberal. E, finalmente, na
formulação de uma teoria do direito que relacione essas duas
dimensões anteriores. Dworkin opõe-se à cultura jurídica
predominante de sua época, sobretudo à obra de seu predecessor
em Oxford (Hart).
O ataque ao positivismo jurídico e a crítica ao utilitarismo
constituem o grande objetivo de seu trabalho. Quer Dworkin construir
uma alternativa de ciência jurídica fundada em outros pressupostos
que não os tradicionais.8 O pensamento jurídico tradicional anglosaxão reside nas teorias de Jeremy Bentham, John Austin e Herbert
Hart.
2 Introdução ao positivismo jurídico na Inglaterra: enfoque em
Bentham e Austin
2.1 Jeremy Bentham
O pensamento de Bentham contraria a tese jusnaturalista, pois
inconciliável com o caráter empírico de suas investigações. Criticavaa pela impossibilidade de comprovar historicamente a existência de
um contrato do qual se originava, e não encontrava o motivo pelo
qual os homens poderiam cumprir tal compromisso.
Embora inconciliável essa idéia com a sua teoria, ele não
refutava o ideal iluminista-racionalista de fundar uma ética objetiva da
8
CALSAMIGLIA, Albert. Por que es importante Dworkin? Revista de Filosofía del
Derecho DOXA. n. 2, Universidad de Alicante, 1984, p. 154. "el ataque al
positivismo jurídico y la crítica del utilitarismo constituye uno de sus grandes
objetivos polémicos. Su alternativa exige la construcción de una ciencia general del
derecho basada en presupuestos distintos a los de la ciencia jurídica tradicional".
qual se deduziria as regras do comportamento humano. O princípio
no qual essa ética funda-se reside no fato empírico de que cada
homem busca a própria utilidade.9 Não se funda no próprio homem,
como defendiam os jusnaturalistas.
Jeremy Bentham nasceu em Londres em 15 fevereiro de 1748
e faleceu em 06 de junho de 1832 em Queen’s Square, aos 84 anos.
Desde o início de seus estudos já se destacava por escrever versos
em grego e latim. Em 1760 ingressa em Queen’s College, Oxford,
bacharelando-se em 1763, tornando-se "o mais jovem graduado que
as universidades inglesas jamais tinham visto".10 Nesse mesmo ano
ingressa em Lincoln’s Inn para estudar Direito, profissão de seu pai,
e forma-se quatro anos depois. A carreira jurídica jamais o atraiu
preferia mais as preocupações teóricas. Talvez a sua maior obra
teórica date de 1789, trata-se de "Uma Introdução aos Princípios da
Moral e da Legislação".
Nesta obra, Bentham estuda pormenorizadamente a aplicação
do princípio da utilidade como fundamento para a conduta individual
e social. Indaga-se sobre quais sentimentos devem ser preferidos a
outros, considerando todas as circunstâncias de prazer: intensidade,
duração, certeza, pureza etc. Posteriormente, indaga-se sobre "quais
os castigos e recompensas que poderiam induzir o homem a realizar
ações criadoras de felicidade e quais os motivos determinantes das
ações humanas, com seus respectivos valores morais".11
A natureza humana colocou o gênero humano sob
o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o
prazer. Somente a eles compete apontar o que
devemos fazer, bem como determinar o que na
realidade faremos. Ao trono desses dois senhores
está vinculada, por uma parte, a norma que
9
BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico: lições de Filosofia do Direito.
Editora Ícone, 1995, p. 92.
10 BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos princípios da moral e da legislação.
Trad. de Luiz João Baraúna; MILL, John Stuart. Sistema de Lógica Dedutiva e
Indutiva e outros textos. Trad. João Marcos Coelho, Pablo Rubén Mariconda.
Coleção: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. VI.
11 Ibid., p. X.
distingue o que é reto do que é errado, e, por
outra, a cadeia das causas e efeitos. O princípio
da utilidade reconhece esta sujeição e a coloca
como fundamento desse sistema, cujo objetivo
consiste em construir o edifício da felicidade
através da razão e da lei.12
Para Bentham, o indivíduo dever obedecer o Estado na medida
que essa obediência contribui mais para a felicidade geral do que a
desobediência. Essa felicidade geral é a soma dos prazeres e dores
dos indivíduos. Somente a experiência pode provar se uma ação ou
instituição é útil ou não. Para compreender qual o interesse da
comunidade deve-se primeiro falar sobre o interesse individual. O
interesse do indivíduo é favorecido quando “tende a aumentar a
soma total dos seus prazeres, ou então, o que vale afirmar o mesmo,
quando tende a diminuir a soma total das suas dores”.13
A análise dos motivos geradores da ação do homem de uma
dada maneira e não de outra ganha conotação na obra de Benthan,
pois para que essas causas sejam consideradas como “boas” devem
estar em harmonia os interesses individuais e os interesses dos
outros, enquanto os motivos “maus” proporcionam a desarmonia e o
desequilíbrio entre os homens. Entre aqueles motivos que se podem
considerar como “bons” estão a "benevolência ou boa vontade, em
seguida, a necessidade de estima dos outros, o desejo de receber
amor, a religião e os instintos de autopreservação, de prazer, de
privilégio e de poder".14
Princípio da utilidade é
aquele que aprova ou desaprova qualquer ação,
segundo a tendência que tem a aumentar ou a
diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está
em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros
termos, segundo a tendência a promover ou a
comprometer a referida felicidade. Digo qualquer
12
BENTHAM, op. cit., p. 3.
Ibid., p. 4.
14 Ibid., p. X.
13
ação, com o que tenciono dizer que isto vale não
somente para qualquer ação de um indivíduo
particular, mas também de qualquer ato ou medida
de governo.15
O Autor considera seu princípio como seguro e, por essa razão,
não se preocupa em aprofundá-lo ou até mesmo criticá-lo, acaba por
dogmatizá-lo e não percebe que poderia sofrer objeções que ele
próprio já tinha elaborado em relação a teoria do Direito Natural,
notadamente indagando por qual razão os homens deveriam cumprir
compromissos. Do mesmo modo, pode-se objetar por qual razão os
homens devem conduzir-se de forma a propiciar a felicidade de todos
em comunidade?
A proposta de reformar e codificar tanto o direito civil como o
direito penal nasce da sua crítica à produção judiciária do direito.
Bentham afirma o direito judiciário/direito comum como uma ficção,
um éter imaginário, fragmentos do direito real. Consequentemente
"aquele que deseja um exemplo de um corpo completo de leis a que
referir-se deve começar por fazer um (...)".16
Norberto Bobbio destaca os cinco defeitos fundamentais que
Bentham individualiza na sua crítica ao direito judiciário. 1) a
incerteza do sistema common law que não satisfaz a própria
sociedade, na medida em que permite que cada cidadão preveja os
efeitos de suas próprias ações; 2) a retroatividade do direito comum,
que reside no fato do juiz criar direito novo quando não se pode
resolver um caso com fundamento num precedente anterior; 3) o fato
do direito comum não se fundar no princípio da utilidade; 4) o dever
do juiz em resolver qualquer conflito, muito embora lhe falte uma
competência específica em todos os campos regulados pelo direito;
5) por fim, o povo não pode controlar a produção do direito pelos
juízes.17
15
BENTHAM, op. cit., p. 4.
BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico: lições de Filosofia do Direito.
Editora Ícone, 1995, p. 97.
17 Ibid., p. 97-99.
16
As características fundamentais que um Código deve conter,
segundo
Bentham,
reside
na
"utilidade,
completude,
cognoscibilidade, justificabilidade".18
Um Código deve se fundamentar no princípio do utilitarismo: a
maior felicidade para o maior número. Deve ser completo, uno, sem
apresentar lacunas e, para tanto, sua redação deve ser clara e
precisa. Ademais, a lei deve ser considerada como lei não por ser
advinda de uma autoridade, mas principalmente porque foi posta em
decorrência de motivos racionalmente cognoscíveis.
2.2 John Austin
A única obra publicada de Austin foi The province of
jurisprudence determined - A determinação do campo da
jurisprudência - datada de 1832. Só após sua morte, em 1859, sua
esposa, Sarah, publicou todas as suas aulas e outros apontamentos,
sob o título Lectures on jurisprudence - Lições de jurisprudência - em
dois volumes.
John Austin nasceu em 1790 e faleceu em 1859, exerceu a
atividade forense durante um período. Grande admirador dos juristas
alemães, notadamente Savigny e Thibaut, chegou a permanecer dois
anos na Alemanha com intuito de conhecer o pensamento jurídico
que lá se desenvolvia. Por isso mesmo Austin tentou promover uma
aproximação entre a escola histórica alemã e o utilitarismo de
Bentham. Participavam do círculo em torno de Bentham não só
Austin, mas James Mill e John Stuart Mill. Por intermédio de ambos
Austin conquistou a cátedra de Jurisprudence (correspondente à
Teoria Geral do Direito) na Universidade de Londres (inaugurada em
1828). O teórico se interessava em investigar os princípios e noções
gerais a todos os ordenamentos jurídicos positivos.19
A jurisprudência geral ou filosofia do direito positivo não se
refere diretamente à ciência da legislação. Trata dos princípios e
distinções que são comuns aos diversos sistemas de direito
particular e positivo, cada um deles inevitavelmente se envolve - seja
digno de louvor ou de censura, seja de acordo ou não - com uma
18
19
BOBBIO, op. cit., p. 100.
Ibid., p. 101-102.
determinada medida ou critério. A filosofia do direito positivo diz
respeito ao direito como ele necessariamente é, ou antes o direito
como deveria (ought) ser; o direito como deve necessariamente
(must) ser, seja ele bom ou mau, ou o direito como deve
necessariamente ser, se fosse bom.20
Austin se associa a escola histórica alemã devido à tese de
refutação da teoria jusnaturalista, principalmente na sua concepção
de efetividade do direito existente nas várias sociedades como o
fundamento da sua validade. Mas, também há divergências.
Enquanto a escola alemã tinha no direito consuetudinário o protótipo
do direito positivo, Austin observa a lei como fundamento último da
norma jurídica, considerando-a forma típica do Direito.
A conciliação de Bentham com a escola histórica alemã fez
com que Austin empregasse uma versão inglesa da aludida escola,
colocando em destaque o único caracter em comum existente: a
polêmica jusnaturalista. Por este viés acaba atribuindo àquela escola
o conceito de utilidade geral, até então a ela totalmente alheio.21
Austin e Hart são considerados os fundadores da moderna
Teoria Geral do Direito inglesa. Para eles, o Direito se reduz a ordens
(normas). Austin concebe o Direito como normas baseadas em
ameaça, normas jurídicas consistentes em ordens (comands)
emanadas do soberano. Hart adere ao positivismo benthiano, mas
não admite a redução de regras de toda sorte a um só tipo (as
emanadas do soberano). Para o professor de Oxford, o sistema
formador das regras jurídicas é identificado sobre a base de certos
usos ou práticas sociais22.
O comando é uma expressão do desejo, mas dele se distingue
pela razão de que a sua não satisfação é passível de um mal sob o
outro que não o satisfez, (...) sendo passível de um mal da tua parte,
se não satisfaço um desejo que tu exprimes, eu estou vinculado ou
20
AUSTIN, apud., BOBBIO, p. 103. Ver obra de John Austin Lectures on
Jurispridence, vol. I, p. 32.
21 BOBBIO, op. cit., p. 104.
22 CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. O Conceito de Direito. Home-page:
www.prt22.mpt.gov.br/trabmarc6.htm, acessada em 08 de junho de 2001.
obrigado pelo teu comando, ou eu me acho no dever de obedecêlo.”23
Austin distingue as leis em divinas e humanas. Interessa-nos a
segunda que se subdivide em leis positivas (direito positivo) e
moralidade positiva. A primeira emana de uma autoridade política
advinda de uma sociedade política organizada de forma
independente: o Estado. Os comandos emanam do soberano que os
estabelece. O objeto da jurisprudência é o direito positivo, ou o
chamado simples e estritamente direito, ou o direito posto pelos
superiores políticos aos inferiores políticos.24
A moralidade positiva advém de um sujeito sem a qualidade de
soberano em relação às outras pessoas. Austin chega a distinguir no
âmbito da moralidade positiva as leis propriamente ditas que
possuem um caráter de comando e as leis impropriamente ditas que
são as normas do costume social como, por exemplo, a honra e a
moda. Subdivide as leis propriamente ditas em três: 1) leis que
regulam os indivíduos no estado de natureza, 2) leis que regulam as
relações entre os Estados, e 3) leis das sociedades menores.
Encontram-se os três princípios fundamentais do positivismo
jurídico na obra de Austin. Primeiramente, a afirmação de que o
objeto da ciência do direito (jurisprudência) é o direito como ele é, e
não o direito como deveria ser. Segundo, a compreensão de que a
norma possui um comando, uma concepção imperativista. E, por fim,
o direito positivo é posto por um soberano: o órgão legislativo estatal.
Há leis positivas pertencentes ao direito e regras morais
positivas não abrangidas por ele, a não ser que, por efeito das
primeiras, algumas possam ser reconhecidas por uma autoridade
superior e, mude de gênero. O direito é princípio de governo,
referência normativa, modo contencioso, se assim não fosse não
poderia agir eficazmente ao todo comum dos sentimentos, dos
valores, das representações, dos ideais e dos hábitos que ordenam
em qualquer grupo social a regularidade das condutas.
Para Dworkin, a teoria de Austin de que o Direito é uma
questão de decisões históricas tomadas por aqueles que detêm o
23
24
AUSTIN, apud., BOBBIO, op. cit., p. 105.
BOBBIO, op. cit., p. 106.
poder político, nunca perdeu totalmente sua força sobre a doutrina
tradicional.25 Considera, pois que as teorias de Austin e Hart adotam
um posicionamento simplista do direito. Mas em que reside a
contrariedade à teoria hartiana?
3 Aspectos da Teoria Jurídica de Herbert Hart
A obra de Herbert Lionel Adolphe Hart, The concept of law
constitui uma versão mais depurada da Escola Analítica do Direito, e
Dworkin a toma como referencial para criticar a parte conceitual da
teoria do Direito. Para tanto parte da distinção entre normas,
diretrizes e princípios.
Hart parte da distinção de dois tipos de regras coexistentes no
sistema jurídico: as regras primárias exigem dos homens que façam
ou se abstenham de fazer certas ações, quer queiram ou não; as
regras secundárias asseguram aos seres humanos a possibilidade
de criação, ao fazer ou dizer certas coisas, estabelecendo novas
regras do tipo primário, extinguindo ou modificando as regras
antigas, ou determinando de diferentes modos a incidência ou
fiscalização da sua aplicação.
As regras do primeiro tipo [primárias] impõem
deveres, a do segundo tipo [secundárias] atribuem
poderes, públicos ou privados. As primeiras,
referem-se a ações que envolvem movimento ou
mudanças físicas, as do segundo tipo tornam
possíveis não só atos que conduzem ao
movimento ou a mudanças físicas, mas à criação
ou alteração de deveres e obrigações. 26
Hart sustenta a tese segundo a qual a existência de um
ordenamento jurídico depende necessariamente da utilização
compartilhada de critérios de validade jurídica. Compartilhada ao
menos pelos integrantes da estrutura de um governo e, sobretudo,
25
DWORKIN, op. cit., 1999, p. 41-42.
HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2005, p. 91.
26
pelas pessoas dedicadas a desempenharem uma função nessa
estrutura governamental: a de resolverem os conflitos mediante as
normas jurídicas. Trata-se, portanto, de um conjunto de juízes.
Por critério de validade entende-se a identificação das normas
jurídicas. As normas que se integram a um ordenamento jurídico.
Isso acontece quando os funcionários aceitam sempre a mesma
regra de reconhecimento. Uma norma pertence a um sistema jurídico
X, se, e somente se, satisfaz alguns critérios formulados na regra de
reconhecimento do sistema jurídico X. A regra de reconhecimento,
na maior parte dos casos não é enunciada, mas a sua existência
manifesta-se no modo como as regras concretas são identificadas,
tanto pelos tribunais ou outros funcionários, como pelos particulares
ou seus consultores27.
Para Ricardo A. Caracciolo, "decir que una determinada regla
es valida es reconocer que ella satisface todos los requisitos
establecidos en la regla de reconocimiento, y, por lo tanto, que es
una regla del sistema".28
Os critérios normalmente usados para identificar as regras de
reconhecimento incluem uma constituição escrita, a aprovação por
uma assembléia legislativa e precedentes judiciais. Na maior parte
dos casos, a solução para conflitos necessita da elaboração de uma
ordenação destes critérios numa hierarquia de subordinação. A regra
de reconhecimento, que “faculta os critérios através dos quais a
validade das outras regras do sistema é avaliada, é, uma regra
última, em que há vários critérios ordenados segundo a subordinação
e a primazia relativa, um deles é supremo”.29
Um critério de validade jurídica é supremo se as regras
identificadas por referência a ele forem ainda reconhecidas como
regras do sistema, mesmo que elas estejam em conflito com regras
identificadas por referência aos outros critérios. Ao passo que as
regras identificadas por referência a estes últimos não são
reconhecidas como tal, se estiverem em conflito com regras
27
HART, op. cit., p. 113-114.
CARACCIOLO, Ricardo A. Sistema Jurídico y regla del reconocimiento. Revista
de Filosofía del Derecho DOXA. n. 9, Universidad de Alicante, 1991, p. 295.
29 HART, op. cit., p. 117.
28
identificadas por referência ao critério supremo.30 A regra última não
é pressuposta como a norma fundamental de Kelsen, mas posta.
Que atitude o juiz deve tomar frente a uma regra de
reconhecimento? Dois argumentos. Primeiro, os juízes usam a
mesma regra de reconhecimento, e isso significa que utilizam o
mesmo critério de validade ou de identificação das normas jurídicas.
Segundo, consiste na obediência dos juízes, o que se supõe então
que a regra de reconhecimento lhe impõe uma obrigação ou um
dever.
Parece ocorrer uma ambigüidade terminológica quanto à
expressão “reconhecimento” utilizada por Hart. Primeiramente
significa a operação pela qual se identifica uma norma jurídica, pois
tem uma característica cognoscitiva e ainda pressupõe o uso de um
critério conceitual. Mas, por outro lado, reconhecer uma norma
significa aceitá-la, considerando seu conteúdo como modelo de
conduta exigível e correta. A aceitação é uma atitude prática e não
teórica, supondo a disposição em assumí-la como uma razão
orientadora da ação. O ponto de vista é externo e não interno. Para
aceitar uma norma previamente tem-se primeiro que conhecê-la.
Portanto, existem três tipos de condutas que podem constituir o
conteúdo obrigatório de uma regra de reconhecimento: identificação,
aplicação e aceitação das normas do sistema.31 O fato da aceitação
ser uma atitude não a exclui como alternativa toda vez que a conduta
se manifesta externamente em reações de aprovação ou reprovação.
30
HART, op. cit., p. 117.
CARACCIOLO, op. cit., p. 301. La imprecisión resulta aquí de la ambigüedad de la
expresión ‘reconocimiento’ en la teoría de Hart. En primer lugar, significa la
operación de identificar una norma, la que tiene un manifiesto carácter cognoscitivo y
presupone el uso de un criterio conceptual. Pero además, reconocer una norma es
lo mismo que aceptarla, esto es, considerar su contenido como pauta de
comportamiento correcto. La aceptación es una actitud práctica y no teórica u
supone la disposición a asumirla como una razón para la acción. Como indica Nell
MacCormick, la adopción del punto de vista interno comprende tanto la actitud
cognoscitiva como la práctica. Lo que es consecuencia de la constatación obvia de
que para aceptar una norma previamente hay que conocerla. De manera que se
tienen tres tipos de comportamiento que pueden constituir el contenido obligatorio de
la regla del reconocimiento: identificación, aplicación y aceptación de las normas del
sistema.
31
Em estudo específico sobre Hart teremos a oportunidade de
aprofundar o assunto.
Não obstante a importância dos critérios de validade
individualizados por Hart, também desenvolveu o conceito de textura
aberta: a demonstração do papel que a moral desempenha no
Direito. Defende a conexão entre direito e moral como necessária e
propõe seis formas de pretensão explicativa dessa conexão:
1. Poder e a autoridade – constitui uma condição necessária da
existência de poder coercivo o fato de que alguns, pelo menos,
devem cooperar voluntariamente no sistema e aceitar as suas
regras. É verdade que o poder coercivo do direito pressupõe a sua
autoridade aceite. Não há na verdade qualquer razão para os que
aceitam a autoridade do sistema não examinem a sua própria
consciência e decidam que, moralmente, não devam aceitá-lo, muito
embora continuem a fazê-lo por várias razões.32
2. A influência da moral sobre o direito – o direito de todos os
estados modernos mostra claramente a influência não só da moral
social aceite, como também de ideais morais mais vastos. Estas
influências entram no direito, quer de forma abrupta e confessada,
através da legislação, quer de forma silenciosa e paulatina, através
do processo judicial. Nenhum positivista pode negar que a
estabilidade do sistema jurídico depende de uma correspondência
com a moral.33
3. A interpretação – a textura aberta do direito deixa um vasto
campo à atividade criadora que alguns designam como legislativa.
Os juízes não estão confinados, ao interpretarem, quer as leis, quer
os precedentes, às alternativas de uma escolha cega e arbitrária, ou
à dedução mecânica de regras com um sentido pré-determinado.
Uma decisão judicial, especialmente em sede constitucional, envolve
uma escolha entre valores morais e não uma simples aplicação de
um único princípio moral proeminente. Os juízes podem fazer uma
escolha que não é nem arbitrária, nem mecânica, através de virtudes
como: a) a imparcialidade e a neutralidade ao verificar as
alternativas; b) consideração dos interesses de todas as pessoas que
32
33
HART, op. cit., p. 219-220.
Ibid., p. 220.
serão diretamente atingidas pela decisão; c) preocupação em
adequar um princípio geral aceitável como fundamento racional para
a tomada de decisão. Não se tratam de elementos morais?34
4. A crítica do direito – na crítica do direito, pode haver um
desacordo não só quanto aos padrões morais adequados, como
também aos pontos de conformidade exigidos. A pretensão de que
um sistema jurídico deve tratar todos os seres humanos dentro do
seu âmbito de aplicação como titulares de certas proteções e
liberdades fundamentais é, sem dúvida, aceite geralmente como uma
afirmação de um ideal com relevância evidente na crítica do direito.
Mesmo quando a prática se afasta desse ideal, usualmente lhe é
prestado um tributo verbal.35
5. Princípios de legalidade e justiça – na maior parte dos casos,
aqueles que vierem a ser eventualmente punidos pela violação das
regras, terão a capacidade e a oportunidade de obedecer.
Certamente que estes aspectos de controle através das regras estão
estreitamente relacionados com as exigências de justiça que os
juristas designam como princípios de legalidade. Um bom sistema
jurídico que se conforma em certos pontos com a moral e a justiça e
um sistema jurídico que não o faz é falacioso, isto porque é
necessariamente realizado um mínimo de justiça sempre que a
conduta humana é controlada por regras gerais anunciadas
publicamente e aplicadas por via judicial.36
6. Validade jurídica e resistência ao direito – o que está em
foco é um conceito ou modo de classificar as regras de forma mais
ampla ou mais restrita, os quais pertencem a um sistema de regras
eficaz de um modo geral na vida social. O mais amplo, destes dois
conceitos rivais de direito, inclui o mais restrito. Se se adotar o
conceito mais amplo, ele conduzirá a pesquisas teóricas que
proporcionarão agrupar e a considerar, conjuntamente, como direito
todas as regras que são válidas de harmonia com os testes formais
de um sistema de regras primárias e secundárias, mesmo se alguma
delas ofenderem a própria moral de uma sociedade. Se se adotar o
34
HART, op. cit., p. 220-221.
Ibid., p. 222.
36 Ibid.
35
conceito mais restrito, excluir-se-á do direito tais regras moralmente
ofensivas.37
Mas, a razão mais forte para se adotar o conceito mais amplo
de direito, reside em que negar o reconhecimento jurídico às regras
iníquas poderia simplificar de forma excessiva e grosseira a
variedade de questões morais a que aquelas dão origem. Um
conceito de direito que permita a distinção entre invalidade do direito
e a sua imoralidade favorece a observação da complexidade e da
variedade destas questões separadas, enquanto que um conceito
restrito de direito que negue validade jurídica às regras iníquas pode
cegar-se diante delas.
Seja precedente ou legislação, se revelarão como
indeterminados em certo ponto para a comunicação dos padrões de
comportamento, pois possuirão aquilo que foi designado como
textura aberta. Hart reconhece a incapacidade de conhecerem-se
todas as dimensões sociais objetivando regulamentá-las por meio do
direito. Por isso mesmo acredita em mundo infinito de possibilidade
combinantes.
Se o mundo em que vivemos fosse caracterizado
só por um número finito de aspectos e estes,
conjuntamente com todos os modos por que se
podiam combinar, fossem por nós conhecidos,
então poderia estatuir-se antecipadamente para
cada possibilidade. Tudo poderia ser conhecido.
Isto seria um mundo adequado a uma
jurisprudência mecânica. Este mundo não é o
nosso mundo.38
Sobre o uso do precedente do direito inglês é preciso
dimensionar fatos contrastantes. Primeiro, não há um método único
de determinar a regra relativamente a qual um dado precedente
dotado de autoridade funciona como autoridade. Segundo, não há
nenhuma formulação dotada de autoridade ou unicamente correta de
qualquer regra que deva extrair-se dos casos. Terceiro, seja qual for
37
38
HART, op. cit., p. 225-226.
Ibid., p. 141.
o estatuto dotado de autoridade que uma regra extraída de um
precedente possa ter, é compatível com o exercício pelos tribunais
por ela vinculados dos dois tipos seguintes de atividade criadora ou
legislativa. Por um lado o tribunal pode chegar a uma decisão oposta
à contida num precedente, através de interpretação restritiva da
regra extraída do precedente. Por outro, ao seguir um precedente
anterior os tribunais podem afastar uma restrição descoberta na
regra e, assim, estariam ampliando a regra extraída do precedente.
A textura aberta do direito significa que há, na verdade áreas
de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem
desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, estes
determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses
conflitantes que variam em peso, de caso para caso.39
A primeira dificuldade concentra-se na palavra moral e todas as
outras que se referem a ela, pois têm considerável área de
imprecisão ou de textura aberta. Há certos princípios e regras que
uns classificariam como moral e outros não. Mesmo que haja acordo
neste ponto, pode ainda existir um desacordo filosófico quanto ao
seu estatuto ou relação com o resto do conhecimento e experiência
humanas.
4 As críticas de Dworkin em relação ao Utilitarismo e à Escola
Analítica do Direito.
4.1 Críticas ao Utilitarismo
Se for verdade que o utilitarismo serviu de certo modo para o
bem estar social, também é certo que atualmente é considerado um
obstáculo para o desenvolvimento moral. E o é pela razão das
doutrinas utilitaristas não respeitarem os direitos individuais e, para
Dworkin, o bem estar social só existe se estiver fundamentado sobre
tais direitos. Tem-se direito à integridade física se e só si não existir
nenhum objetivo social, nem nenhuma maioria que possa justificar
39
HART, op. cit., p. 148.
que se torture.40 Um direito individual só existe se se triunfa sobre um
objetivo social ou sobre uma maioria.
O utilitarismo não pode levar a sério os direitos individuais
porque propugna uma teoria política baseada em objetivos sociais
beneficiosos. O bem estar social, ou, a felicidade, é o critério
supremo e logo abaixo dele estão todos os outros valores entre os
quais os direitos individuais que não podem preponderar sobre a
felicidade. Dworkin opõe à filosofia utilitarista uma teoria baseada nos
direitos individuais fundamentada na teoria de John Rawls, atacando
o pseudoigualitarismo e as atrocidades que as doutrinas utilitaristas
podem conduzir.41
O argumento utilitarista possui três passos: 1) as pessoas têm
o dever moral de agir, em cada decisão que toma, desde que os
interesses das outras pessoas sejam tão importantes quanto os seus
próprios; 2) as pessoas agem assim quando tomam decisões que
aumentam a felicidade média da comunidade, ou seja, troca aquilo
que alguns perdem em torno da felicidade por aquilo que alguns
ganham; 3) o dever decorrente dessas duas ações anteriores
assumem uma forma de regras que exigem das pessoas a ação
como se tivessem fazendo barganhas em negociações sem custo.
(...) as pessoas deveriam simular mercados e
tornar a comunidade mais rica desse modo, não
porque uma comunidade mais rica seja em média
mais feliz, mas porque ela geralmente o é, e
porque não se pode esperar que qualquer outro
modelo de responsabilidade seja melhor para a
felicidade média. O argumento utilitarista admite
que as pessoas não têm o dever elementar ou
fundamental de aumentar a riqueza da
comunidade; propõe que a melhor realização
prática do dever que elas têm, o dever de
40
CALSAMIGLIA, Albert. Por que es importante Dworkin? Revista de Filosofía del
Derecho DOXA. n. 2, Universidad de Alicante, 1984, p. 160. "tengo derecho a la
integridad física si y sólo si no existe ningún objetivo social ni ninguna mayoría que
pueda justificar que se me torture".
41 Ibid., p. 161.
aumentar ao máximo a felicidade, será alcançada
ao agirem como se tivessem o dever de aumentar
ao máximo a riqueza.42
John Rawls, em particular, acusa o utilitarismo de conduzir, ao
menos potencialmente, a desigualdades extremas na distribuição de
recursos e de não oferecer garantias suficientes em matéria de
respeito aos direitos individuais.
Rawls afirma que ao atender exclusivamente ao aumento total
do nível de bem estar, o utilitarismo não se preocupa pelo modo com
o qual esse bem estar é distribuído. Assim se se tem uma sociedade
formada por índios e não-índios elege-se essa sociedade entre dois
estados do mundo. No primeiro Estado, os índios possuem 5
unidades de valor, e os não índios possuem 4 unidades de valor,
como total tem-se 9. No segundo estado os índios tem como unidade
de valor 5, e os não índios tem 10, tem-se como total 15. Para o
utilitarismo o que importa é que esses números são indicadores de
bem estar e o Estado que tiver maior unidade de valor é preferível ao
menor, pois facilitará a satisfação das preferências das pessoas.
Na realidade a história não nos oferece nenhum indício
convincente de que a melhor maneira de tornar uma sociedade mais
feliz é torná-la mais rica em sua totalidade. Este pensamento pode
ser mais aplicado em relação aos ricos do que aos pobres, pois
parece ser óbvio que as pessoas vivam melhor em países mais ricos,
mas parece que a questão é outra e não essa. O que faz pensar que
a felicidade média de um País rico possa aumentar conforme
coletivamente as pessoas aumentam a produção de mercadorias e a
sua comercialização? Com que fundamento se pode dizer que isso
pode ser verdadeiro? Admitindo-o como verdadeiro, em razão do
argumento utilitarista ao qual Dworkin critica, passa-se ao segundo
ponto, qual seja: tratar as pessoas que possuem o mesmo interesse
equivale dizer que, em assim agindo, se está aumentando a
felicidade de tais pessoas. Como resolver a questão de que em uma
sociedade extremista composta por numerosos fanáticos antiindigenistas, a tortura de um índio propiciasse o aumento significativo
42
DWORKIN, op. cit., 1999, p. 348.
do nível de felicidade dessa sociedade? Dworkin expõe que os
filósofos utilitaristas afirmariam que o bom raciocínio moral procede
em dois níveis:
No primeiro, o nível teórico, teríamos de tentar
descobrir as regras ou princípios de moral que,
como máximas de conduta, tendem
a
proporcionar, a longo prazo, a maior felicidade
média possível dentro da comunidade. No
segundo, o nível prático, deveríamos aplicar as
máximas assim escolhidas a casos concretos. 43
Se deveria escolher, no primeiro nível, os princípios que
condenassem o uso da tortura e do preconceito indígena. Porém,
essa defesa utilitarista, exposta acima, não torna impossível que de
acordo com as mudanças sociais, ou da conjuntura social de uma
dada sociedade, ela venha a se tornar hegemonicamente antiindigenista e que atinja até mesmo a primeira instância teórica, e
assim tornar-se-ia usual a tortura aos índios. Essa circunstância de
mudança social é pouco provável, mas isso não afasta a
possibilidade de que algum dia isso possa vir a ocorrer e, desta
forma, o argumento utilitarista poderia ser utilizado de forma a
propiciar a este tipo de sociedade um nível de felicidade geral pelo
prazer de torturar os indígenas. O que seria um absurdo! Óbvio que
tal prática não trataria as pessoas como iguais, portanto, deve-se
rejeitar este argumento utilitarista.
O primeiro argumento utilitarista admite que em nossos atos,
em nossa forma de agir sempre deve-se atribuir ao interesses dos
outros o mesmo grau de importância que atribui-se ao nosso
interesse em particular. Essa argumentação não parece ter
fundamento, uma vez que a maioria das pessoas tomam as decisões
das suas vidas com base no pressuposto de que são moralmente
livres para assim decidirem e atentarem à sua própria vida do que à
vida dos outros, porém isso não quer dizer que se deve ignorar as
outras pessoas.
43
DWORKIN, op. cit., 1999, p. 350.
Para Dworkin pode ocorrer a responsabilidade igualitária,
sobretudo em casos que se referem a ilícitos civis, negligências e
outros danos involuntários. Uma pessoa em seu apartamento possui
o direito abstrato de tocar saxofone da forma como lhe convir, assim
como outra pessoa tem o mesmo direito de estudar trigonometria em
paz. Esses direitos podem entrar em conflitos, na medida que o
exercício do direito de uma pessoa pode invadir ou restringir o de
outra pessoa. É neste caso que se propõe a questão concreta de
saber qual dessas pessoas têm o direito real de fazer o que quiser.
Talvez neste sentido que se pode ter uma responsabilidade
igualitária, ou seja, uma pessoa pode tocar guitarra elétrica desde
que respeite o interesse de outras pessoas, não porque se deve
sempre agir desta forma, mas pela razão de que se deve proceder
assim sempre que tais direitos abstratos entrem em conflito. Quando
esses conflitos entre direitos abstratos não acontece não há essa
responsabilidade igualitária.
4.2 Críticas à Escola Analítica do Direito
Dworkin toma Hart como ponto inicial para as críticas
conceituais em relação à ciência jurídica. Para isso parte de uma
distinção lógica entre normas, diretrizes e princípios. Tendo que nos
ordenamentos jurídicos vigentes podem-se encontrar esses três tipos
de prescrições jurídicas.
Diretriz política é um tipo de modelo com um objetivo a ser
alcançado geralmente uma melhora e algum risco econômico,
político ou social da comunidade. Princípio é um modelo que tem de
ser observado, não porque favoreça ou assegure uma situação
econômica, política ou social que se considera desejável, mas
porque é uma exigência da justiça, da equidade ou alguma outra
dimensão da moralidade.
A diferença entre princípios jurídicos e normas jurídicas é uma
distinção lógica. Ambos conjuntos de modelos apontam a decisões
particulares referentes a obrigação jurídica em determinadas
circunstâncias, mas diferem em caráter da orientação que dão. As
normas são aplicadas de maneira disjuntiva. A forma disjuntiva se
pode ver se se considerar de que maneira funcionam as regras, não
no Direito, mas em alguma atividade dominada por elas, como as
regras de um determinado esporte. Em teoria, pelo menos, se
poderia fazer uma lista de todas as exceções, e quantas mais
houver, mais completo será o enunciado da norma. Não é assim que
se opera com os princípios. Os princípios têm uma dimensão que
faltam nas normas: a dimensão do peso e da importância.
As normas possuem a particularidade de aplicar-se em todo ou
não se aplicar, pois indicam as condições de aplicação e os efeitos
delas. As diretrizes indicam um objetivo social beneficioso que deve
efetivar-se, muito embora os princípios fazem referência à justiça e
dão razões – mais ou menos poderosas – para decidir um sentido
determinado.44
As diretrizes políticas e os princípios têm maiores dificuldades
de identificação e de uso porque eles não estabelecem suas
condições de aplicação. Por esse motivo as Escolas Analíticas têm
deixado de lado a sua análise e preferido exclusivamente o estudo
das normas jurídicas. Para o reconhecimento de tais normas
jurídicas positivas as Escolas Analíticas têm idealizado diversos
procedimentos: o mandato soberano de Austin, a norma fundamental
de Hans Kelsen, a regra de reconhecimento de Hart. Esses são
critérios supremos aos quais se deve referir para identificar a
validade de uma norma jurídica positiva num dado ordenamento
jurídico. O conceito de norma permite identificar as normas válidas
através de um teste de origem. Porém, este teste de origem não é
suficiente porque não permite identificar as diretrizes políticas e os
princípios.
Partindo do ataque à distinção estabelecida pelo positivismo
entre Direito e Moral, critica Dworkin o critério usado pelo positivismo
mais estrito em distinguir a validade no Direito com base no critério
de sua origem. De fato, esse critério é para ele adequado para fundar
CALSAMIGLIA, op. cit., p. 161. “(...) las normas tienen la particularidad de
aplicarse in toto o no aplicarse porque indican las condiciones de aplicación y las
consecuencias de ellas. Las directrices señalan un objetivo social beneficioso que
debe conseguirse, mientras que los principios hacen referencia a la justicia y dan
razones - mas o menos poderosas - para decidir en un sentido determinado.”
44
a validade das normas jurídicas, mas o Direito não se resume às
mesmas (...).”45
Dworkin se propõe a analisar a solidez dos fundamentos do
positivismo jurídico e para tanto faz uma análise do próprio
positivismo jurídico. Para ele, o esqueleto do positivismo está
centrado em torno de proposições chaves a qual se organiza de
dada forma46, qual seja:
a) o direito de uma comunidade é um conjunto de normas
especiais usadas direta ou indiretamente pela comunidade com o
propósito de determinar que conduta será penalizada ou submetida à
coerção pelos poderes públicos, "... estas normas especiales pueden
ser identificadas y distinguidas mediante critérios específicos, por
pruebas que no se relacionam com su contenido, sino com su
pedigree u origen, o com la manera em que fueron adotadas o em
que evolucionaron".
b) o conjunto dessas normas válidas esgota o conceito de
direito, de modo que se alguma de tais normas não cobre claramente
o caso de alguém então o caso não se pode decidir aplicando a lei.
"Há de ser decidido por algún funcionário, por ejemplo um juez, que
ejerza su discreción, lo que significa ir más allá de la ley en busca de
algún otro tipo de estándar que lo guíe."
Ao demonstrar a debilidade dos critérios adotados pela Escola
Analítica, Dworkin elege a estratégia dos casos difíceis. Há um caso
difícil quando não existe uma norma aplicável a fim de solucionar o
conflito posto ao Judiciário. Diante de um caso difícil a Escola
Analítica tem dado duas respostas. A primeira, se na época do caso
apresentado, não havia norma que regulasse tal fato, o juiz deveria
então recusá-lo, uma vez que tudo que não está proibido, está
permitido; a segunda resposta, sustentada por Hart, o juiz tem
liberdade para decidir entre as várias alternativas possíveis e em
Direito não há a determinação absoluta da posição judicial.
A questão não está na não existência de norma para o juiz
aplicá-la, e nem na discrição do magistrado, mas sim no âmbito das
45
CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem
garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 55-56.
46 DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Madrid: Ariel Derecho, p. 65.
diretrizes políticas e princípios. O juiz deve voltar-se para a aplicação
do próprio direito, pois é composto por normas, diretrizes políticas e
princípios, capazes de resolver qualquer conflito que se apresente.
Esses princípios não têm uma matriz jusnaturalista, são princípios
dinâmicos que podem mudar conforme a própria sociedade se
transforma.
O Direito está totalmente envolvido por princípios jurídicos.
Uma vez decidido o caso com base nos princípios, o fato cria uma
norma determinada47. Mas a norma não existe antes de que o caso
tenha sido decidido.
Pode-se tratar sob dois pontos de vista diferentes sobre o
papel dos princípios e a obrigação jurídica: 1) pode-se tratar os
princípios jurídicos tais como se tratam as normas jurídicas, e que
devem ser tomados em conta por juízes e juristas que tomam
decisões de obrigatoriedade jurídica; 2) de outra forma, pode-se
negar que os princípios possam ser obrigatórios.
Aceptar uma norma como obligatoria es diferente
de tomar por norma o costumbre hacer algo. Si
volvemos a usar el ejemplo de Hart, es diferente
decir que los ingleses tienen por costumbre ir al
cine uma vez por semana y decir que los ingleses
tienen por norma que se debe ir al cine uma vez
por semana. La segunda formulación da a
entender que si un inglés no sigue la norma, se ve
sujeto a críticas o censuras, pero la primera no. La
primera no excluye la posibilidad de una especie
de crítica – podemos decir que quien no va al cine
descuida su educación -, pero con eso no se
sugiere que el sujeto en cuestión esté haciendo
algo malo, simplemente porque no sigue la
norma.48
47
Dworkin cita um exemplo desse tipo de norma com a possibilidade de se
apresentar um caso em que um herdeiro assassino do testamenteiro, como herdeiro,
não poderia se beneficiar do testamento de sua vítima, embora não havia lei
estadunidense alguma que o disesse de modo claro e objetivo.
48 DWORKIN, op. cit., p. 81.
A versão do positivismo de Hart é mais sofisticada do que a de
Austin em dois sentidos: a) porque reconhece que as normas são de
diferentes gêneros lógicos (normas primárias e normas secundárias);
b) rechaça a questão de que as normas são uma espécie de
mandato, e a substitui por uma análise geral da natureza das
normas.
As normas primárias são as que asseguram direitos ou impõem
obrigações aos membros de uma comunidade. As secundárias, são
aquelas que estipulam como e por meio de que se podem formar,
reconhecer, modificar ou extinguir as normas primárias.
Uma norma nunca puede ser obligatoria simplemente
porque uma persona debe tener autoridad para dictar la
norma, porque si no, no es norma, y uma autoridad tal
sólo puede provenir de otra norma que es ya obligatoria
para aquellos a quienes ella se dirige. Tal es la
diferencia entre una ley válida y las órdenes de un
pistolero.49
Há duas fontes possíveis para a autoridade de uma norma.
Primeiro, uma norma pode chegar a ser obrigatória para um grupo de
pessoas, porque esse grupo, mediante suas práticas a aceita como
norma de suas condutas. Segundo, pode chegar a ser obrigatória de
uma maneira muito diferente como, por exemplo, ao ser promulgada
de conformidade com alguma norma secundária estipuladora de que
as leis assim promulgadas serão obrigatórias, neste sentido estamos
falando de validade de uma norma. As normas só são obrigatórias
porque foram criadas do modo estipulado por alguma norma
secundária. Assim, a distinção fundamental que estabelece Hart
pode ser expressa da seguinte maneira: uma norma pode ser
obrigatória a) porque é aceita e b) porque é válida.
Esta norma secundária fundamental Hart denomina de regra de
reconhecimento, e esta regra é a única dentro do ordenamento
jurídico cuja força obrigatória depende de sua aceitação. Ela se
identifica pelo fato de que sua jurisdição é o aparato
49
DWORKIN, op. cit., p. 69.
institucionalizado
governamental,
da
legislação,
tribunais,
organismos, polícia etc.
A teoria de Hart difere ainda da Teoria de Austin tendo em vista
que Hart reconhece que as diferentes comunidades usam diferentes
fontes de direito, e que algumas permitem outros meios de criação
de direito, aparte de um ato deliberado de uma instituição legislativa.
"Hart, menciona la larga práctica consuetudinaria y la relación (de
uma norma) con decisiones judiciales como otros criterios de uso
frecuente, aunque generalmente se los combine con la legislación y
se subordine a ella".50 Porém, tanto Hart como Austin possuem
afinidades em relação aos limites incertos (textura aberta) da norma
em relação aos casos difíceis, dizendo que os juízes tem e exercem
a discrição para decidi-los mediante uma legislação nova.
Mi conclusión es que si tratamos los princípios
como derechos, debemos rechazar el primer
dogma de los positivistas, que el derecho de uma
comunidad se distingue de otros estándares
sociales mediante algún criterio que asume la
forma de una regla maestra. Ya hemos decidido
que en ese caso debemos abandonar el segundo
dogma – la doctrina de la discreción judicial – o
aclararlo hasta llegar a la trivialidad.51
Um positivista poderia sustentar que os princípios não são
vinculantes. Mas pode aí residir um equívoco. Quando se diz que
uma norma é obrigatória para um juiz isso significa outra coisa senão
que deve ser seguida se vem ao caso, e que se não o faz, haverá
cometido por isso um equívoco. Poderia ainda argumentar que
quando alguns princípios tornam-se obrigatórios no sentido de que o
juiz deve tê-los em conta, eles não poderiam determinar um
resultado particular. Não está claro que quer dizer que uma norma
determina um resultado. Sequer que a norma impõe um resultado
sempre que ocorre um caso, de maneira que mais nada conta. Então
é certo que os princípios individuais não determinam resultados, mas
50
51
DWORKIN, op. cit., p. 71.
Ibid., p. 99.
isso não é mais que outra maneira de dizer que os princípios não são
normas e que só as normas impõem resultados, ocorra o que
ocorrer. Quando se tiver alcançado um resultado contrário, a norma
ou foi abandonada ou modificada.52
Um positivista pode afirmar que os princípios não podem ser
considerados como Direito porque sua autoridade, e muito mais seu
peso, são discutíveis por natureza. Realmente, não se pode
demonstrar a autoridade e o peso de um princípio determinado como
se pode demonstrar a validade de uma norma, localizando-a num ato
do Congresso ou na opinião de um tribunal autorizado. Em
compensação pode-se defender um princípio – e seu peso –
apelando para um amálgama de práticas e de outros princípios nos
quais contam as implicações da história legislativa e judicial.
Dworkin apresenta três teses fundamentais que se relacionam
com o critério de base do Direito positivo, ou critério pelo qual o
Direito é entendido pela Escola positivista. A primeira sustenta que
em toda a nação possuidora de um sistema jurídico evoluído tem,
dentro da comunidade de seus juízes e funcionários legais, alguma
norma social ou conjunto delas que estabelecem os limites do dever
do juiz ao reconhecer como direito qualquer outra norma ou princípio.
A segunda, afirma que em todo sistema jurídico alguma regra ou
princípio normativo em particular, ou um conjunto complexo deles, é
a norma adequada para que os juízes usem na identificação de
normas ou princípios de direito mais particularizados. A terceira tese,
sustenta que em cada sistema jurídico, a maioria dos juízes aceitam
alguma regra ou teoria normativa que exige seu dever de tomar
outras normas como normas legais. O desacordo de Dworkin com
Hart está em relação a primeira tese, pois Hart a propõe e Dworkin a
nega.53
5 Algumas conceituações teóricas de Dworkin
52
53
DWORKIN, op. cit., p. 89.
Ibid., p. 120.
O projeto teórico de Dworkin é triplo. Em primeiro plano está o
reconhecimento dos direitos individuais liberais como elementos
fundamentais e constituintes da lei, no segundo, em situar esses
direitos individuais no contexto da teoria política liberal, e por fim,
fundar uma teoria do Direito que relacione esses dois temas
anteriores.
A principal objeção de Dworkin à teoria de Hart está em que ela
não podia prover uma adequada compreensão do reconhecimento
dos direitos fundamentais pelas cortes estadunidenses. Assim, a
atividade dessas cortes seria observada como uma discrição judicial,
ou seja, a liberdade dos juízes para interpretar as leis. Com certa
freqüência os juízes têm que exercer essa liberdade, sobretudo
quando há casos em que a lei não é suficientemente clara sobre a
possível solução. Por óbvio que há diretrizes que tais juízes devem
seguir e a mais conhecida de todas são os precedentes. Seguir uma
decisão anteriormente formulada que seja ao menos comparável
com o caso a que se que solucionar.
Outra forma de possível solução é encontrar o princípio que
possa explicar alguns precedentes comparáveis com o caso a
solucionar. Ou seja, o que há por detrás dos precedentes já
decididos que fez com que eles fossem daquela forma solucionados
e não de outra? Ainda há outra forma de solução por meio da
analogia, mas também é possível defender que além destas formas,
os juízes também levam em conta considerações extrajurídicas
como, por exemplo, a exigência social. Portanto, perfeitamente
demonstrável de que existem várias formas de resolver os casos
difíceis e não somente através da lei.
Qual a base teórica hermenêutica de Dworkin? Embora não
seja pretensão deste trabalho, é relevante mencionar através de uma
citação dos autores Simon Honeyball e James Walter, Integrity,
Community and Interpretation: A Critical Analysis of Ronald Dworkin's
Theory of Law, a aproximação do modelo interpretativo dworkiniano
com Hans-Georg Gadamer.
Ronald Dworkin has had a great and beneficial
influence on legal thought. He has frontally
challenged legal positivism and moral scepticism,
and has scouted economic analysis and critical
legal studies. He has advanced a view of law
deeply imbued with moral principles, and yet has
done so in a manner that bypasses the
mainstream of natural law theorizing. He has allied
himself with hermeneutics, especially the thought
of Hans-Georg Gadamer, but has done so in a way
that exhibits continuity with the 'Legal Process'
school from which he emerged. He has been
intellectually his own man, with no visible school of
followers or acolytes, and yet his work is
everywhere at the storm's eye of controversy.
Many have disagreed with him, but have done so
invariably with respect.54
Pode-se citar ainda uma passagem da própria obra de Dworkin
em que propõe essa aproximação: "precisamos primeiro lembrar uma
observação crucial de Gadamer, de que a interpretação deve pôr em
prática uma intenção.”55
Não se pretende adentrar neste tema de aproximação
hermenêutica de Dworkin e Gadamer, o que por certo poderá ser
feito noutra oportunidade. Resta assim retornar a questão dos
direitos fundamentais que parece estar evidente que se os “direitos
moralmente muito importantes” não forem reconhecidos pela lei
54
HONEYBALL, Simon and WALTER, James. Integrity, Community and
Interpretation: A Critical Analysis of Ronald Dworkin's Theory of Law.
Aldershot, UK, Brookfield, USA: Ashgate Publishing Company, 1998, p. 175. Ronald
Dworkin teve uma enorme e benéfica influência no pensamento jurídico. Desafiou
frontalmente o positivismo jurídico e o ceticismo moral, tendo uma análise
econômica, na juventude, a respeito da corrente Critical Legal Studies. Avançou seu
olhar do jurídico imbuído profundamente com princípios morais, mas, o fez
contornando a corrente teórica em voga da teoria do direito natural (como
fundamento dos princípios morais). Aliou-se na sua hermenêutica, especialmente
com o pensamento de Hans-Georg Gadamer, mas assim o fez de modo a dar
continuidade à “escola processual” da qual emergiu. Foi um homem intelectual, fez
sua própria escola, não se tornando assistente, entretanto, seu trabalho está em
toda parte no centro das controvérsias jurídicas atuais. Muitos discordaram dele,
mas o fizeram com invariável respeito.
55 DWORKIN, op. cit., 1999, p. 67.
positiva, os juízes estão obrigados a reconhecê-los e a impô-los.
Para Dworkin cada caso tem uma solução correta, e somente uma
decisão correta, e que deve ser expressada em termos de um Direito
a ser atribuído a uma das partes do caso.
Tais princípios, aqueles que estão por detrás dos precedentes,
deveriam ser reconhecidos como pertencentes à lei quando ainda
não tiver sido reconhecido pela instância judicial. Nestes termos,
Dworkin propõe uma interpretação da lei de maneira completa e
exaustiva, buscando razões e considerações que possam ser
pertinentes para a justificação de um Direito. As normas legais
“ocultas” podem ser “descobertas”, pois não se encontram num novo
conhecimento, mas numa confirmação das convicções já existentes.
5.1 Os Casos Difíceis
Se está diante de um caso difícil quando um dado conflito não
se pode subsumir claramente numa norma jurídica, estabelecida
previamente por alguma instituição, cabe ao juiz decidir de uma ou
de outra forma conforme já observado.
As teorias da função judicial se estão em volta cada vez mais
sutis e complexas, mas seguem subordinada a legislação. Os riscos
principais desta atitude são conhecidos. Os juízes têm de aplicar o
direito promulgado por outras instituições, não devem fazer novas
leis.
De fato os juízes não são nem devem ser legisladores. Mas
para isso Dworkin distingue entre argumentos políticos e argumentos
de princípio. Os primeiros são aqueles que justificam uma decisão
política demonstrando que favorece ou protege alguma meta coletiva
da comunidade enquanto um todo. Os segundos são aqueles que
justificam uma decisão política demonstrando que tal decisão
respeita ou assegura algum direito, individual ou do grupo.
Quando nenhuma norma resolve o caso, Dworkin acredita ser
possível que, apesar disso, uma das partes tenha direito e
independente da existência da lacuna legislativa será o juiz quem
deverá descobrir o direito das partes neste momento, sem contudo
inventar direitos novos.
Freqüentemente os advogados, os juízes e juristas estarão em
desacordo sobre os direitos das partes nos casos difíceis. O
raciocínio para resolvê-los terá como fundamento direitos políticos e
não jurídicos. "Lo único que quiero es sugerir como se puede
defender la afirmación general de que los cálculos que hacen los
jueces, referentes a las intenciones de la ley, son cálculos sobre
derechos políticos."56
Frente aos casos difíceis, Dworkin põe em dúvida a falta de
certeza da lei em certas circunstâncias e desta posição ele desfaz o
mito da certeza que o posicionamento positivista assume, propondo
explicitamente que há sentenças diferentes sobre casos difíceis
parecidos e até mesmo iguais, e isso se deve sobretudo à existência
de normas contraditórias ou na ausência de norma aplicável. Para
solucionar tal problema ele relaciona os casos difíceis com o Direito,
propondo de fato uma aproximação com base mais na teoria política
do que na teoria jurídica. "No se pueden tomar otras decisiones
políticas que las que puedan justificarse dentro del marco de una
teoría política general que justifique también las decisiones
relacionadas con el caso sobre el que se discute o ha de
resolverse."57
Para Antonio José Muñoz González a posição de Dworkin em
relação aos casos difíceis nada mais é que:
(...) una denuncia sobre que el positivismo jurídico
no es sino una aplicación mecánica del derecho
que no sirve en situaciones en las que el sistema
no tiene prevista una solución y en los casos en
que la aplicación de acuerdo con el sistema
establecido, exista o no norma predeterminada,
sea flagrantemente injusta. Esto supone que la
certeza de las tesis positivistas es insuficiente, ya
que el hecho de que exista un margen de
discrecionalidad en la aplicación del derecho
56
57
DWORKIN, op. cit., p. 149.
Ibid.
impide alcanzar el ideal de una única solución
correcta para cada caso.58
Para Dworkin, a solução de um caso difícil passa pelo
raciocínio de que se
debe organizar una teoría de la constitución,
configurada como un conjunto complejo de
principios y directrices políticas que justifique ese
esquema de gobierno, lo mismo que el árbitro de
ajedrez se ve llevado a elaborar una teoría del
carácter de su juego. Debe enriquecer esa teoría
refiriéndose alternativamente a la filosofía política
y a los detalles institucionales. Debe generar
teorías posibles que justifiquen los diferentes
aspectos del esquema y poner a prueba las
teorías en función de la institución global.
O juiz diante de um caso difícil deve ter em mente uma teoria
constitucional apropriada para poder resolvê-lo.
5.2 O conceito de interpretação
Tanto nas artes quanto nas práticas sociais se parte para uma
interpretação construtiva. Esta categoria supõe muito mais que se
inquirir sobre as intenções do artista, dos propósitos práticas de uma
obra de arte, pois uma melhor perspectiva interpretativa se apresenta
na articidade da obra. O modelo interpretativo de Dwokin é
construtivo, mas isso supõe que o sujeito intérprete deve demonstrar
o modo mais viável para o caso em questão, ou seja, dá a idéia de
uma hermenêutica em que o sujeito possua um ponto de vista
anterior interno, particular a qual aborda a interpretação. Cabe
ressaltar neste ponto, que Dworkin teve uma passagem de sua ida
dedicada à crítica literária, daí talvez essa idéia. Essa abordagem é
ampla, pois engloba um modo de desenvolver o Direito, ou a
interpretação do Direito, de forma a manter uma certa coerência com
o ordenamento legal vigente e com o futuro deste ordenamento,
58
GONZÁLEZ,
Antonio
José
Muñoz.
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representando de maneira inequívoca os valores que acompanham a
legislação de uma determinada sociedade. Deste modo, a
interpretação das obras de arte e das práticas sociais não se
preocupam essencialmente com a causa, mas com o propósito.59
Interpretar uma prática social é apenas uma forma
ou ocasião de interpretação, as pessoas
interpretam em muitos contextos diferentes e, para
começar, devemos procurar entender em que
esses contextos diferem A ocasião mais conhecida
de interpretação (...), é a conversação. A forma de
interpretação que estamos estudando
- a
interpretação de uma prática social - é semelhante
à interpretação artística no seguinte sentido:
ambas pretendem interpretar algo criado pelas
pessoas como uma entidade distinta delas (...). 60
Trata-se de impor um propósito ao quê se interpreta, seja
objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível de
gênero ou de forma ao qual se imagina que eles pertençam. A
evolução das normas se deve observar de forma que se mantenha
um sentido com o ordenamento, mas também que lhe atribua um
valor específico e determinado pelo contexto social a qual está
inserido.
Essa interpretação das práticas sociais se caracteriza em três
etapas: a primeira é a “pré-interpretativa”, onde se examina o
substancial, ou seja, uma fase descritiva, mas que implica algo de
interpretação, momento em que se identificam os materiais jurídicos
disponíveis; a segunda fase é a “interpretativa”, em que o interprete
deve possuir uma teoria que garanta a melhor maneira de abordar os
materiais jurídicos disponíveis, neste aspecto o fundamento é a
coerência e a integridade, e por fim, a fase “pós-interpretativa” ou
“reformadora”, que consiste, uma vez identificado o valor, evidenciar
seu objeto da melhor maneira possível, isto nos casos difíceis
implicaria na modificação da prática usual.
59
60
DWORKIN, op. cit., 1999, p. 63.
Ibid., p. 60.
5.3 Dworkin e suas parábolas
O Autor se vale de parábolas para explicar sua tese, ver-se-á
apenas duas “um romance em cadeia” e o “juiz Hércules”.
a) Um romance em cadeia
Para quê serve a parábola “um romance em cadeia”61 de
Dworkin? O autor serve-se dela para entender a complexidade em
que o intérprete se envolve na hora da aplicabilidade de uma
determinada norma jurídica da qual não é autor, sobretudo quando
se trata dos casos difíceis.
Consoante Dworkin o romance em cadeia se trata de um
projeto em que
un grupo de novelistas escribe una novela en
serie; cada novelista de la cadena interpreta los
capítulos que ha recibido para poder escribir uno
nuevo, que luego agrega a lo que recibe el
siguiente novelista y así sucesivamente. Cada uno
tiene la tarea de escribir su capítulo para construir
la novela de la mejor manera posible.62
Esta atividade resulta bastante complexa principalmente
quando Dworkin propõe aos leitores completar o romance sem
contudo conhecer o final, e toma como exemplo o relato anglosaxão
bastante conhecido Un cuento de Navidad. De fato para Dworkin o
Direito também apresenta essa complexidade, sobretudo no que se
refere aos casos difíceis, uma vez que assim como o final do
romance pode variar radicalmente, o texto apresentado para o
intérprete também poderá variar quanto à sua interpretação final.
Dworkin propõe, ante o projeto novelístico, que por um lado
deve ater-se à dimensão de concordância, mantendo a fidelidade ao
texto do projeto inicial que nos foi entregue, tê-lo como uma
finalidade última e, por outro, tem que se respeitar a “dimensão
interpretativa” que será bastante útil no caso em que nenhuma
61
DWORKIN, op. cit., p. 275-285.
GONZÁLEZ,
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José
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62
interpretação possível seja adequada ao texto recebido e a sua
finalidade inicial.
Nos casos difíceis a melhor maneira de um juiz interpretar um
texto a que recebe será de forma livre ou obrigatória? Poderá ele
demonstrar as suas próprias percepções e suposições de como as
coisas deveriam ser? Deve ignorar essas suposições ou deve sentirse escravo de um texto do qual não pode alterá-lo?
Para Dworkin ambas possibilidades se conjungam e se limitam,
pois o intérprete sentirá a necessidade criativa de interpretar e, por
outro lado, sentirá um possível afastamento do texto a que se propõe
a interpretar.
A conclusão está que há uma variedade de possibilidades de
decisões, nos casos difíceis, a que o intérprete poderia chegar,
porém o que poderá gerar dúvida é se estes diferentes resultados
foram empregados através de formas técnico-jurídicas corretas. Os
diferentes resultados a que se chegou o intérprete não se relaicona
ao método empregado, podendo mesmo ser totalmente seguido por
cada intérprete. O problema reside na discrepância que se
encontrará no sentido que cada um dos intérpretes deu ao texto
inicial.
b) O Juiz Hércules
Nesta parábola Dworkin apresenta um juiz imaginário de um
poder intelectual e de uma paciência sobrehumanos, e que aceita o
direito como integridade. Quando se apresenta um caso à jurisdição
do juiz Hércules, este juiz vai examinar os direitos de ambas as
partes, entendo-os como existentes previamente ao conflito.
Hércules no busca primero los límites del
derecho para después completar con sus
propias convicciones políticas lo que este
requiere. Se vale de su propio juicio para
determinar que derechos tienen las partes
que se presentan ante él, y una vez hecho
ese juicio, no queda nada que pueda ser
sometido a convicciones, sean las suyas, o
las del público.63
Hércules leva em conta desde o conceito de integridade, os
valores morais e políticos que ajudam a identificar os direitos das
partes, ou seja, ele não parte do contrário, só se volta para os
valores quando já fixou os direitos. Esse juiz deseja guiar-se pela
integridade constitucional, por supor que se aplicará melhor
interpretação do texto jurídico que se relaciona com o melhor juízo,
pois evidente que esta compreensão estará de acordo com as
questões políticas e fundamentadas sobre princípios de justiça e
imparcialidade.
O método de Hércules vislumbra a possibilidade de chegar a
um equilíbrio em que se renuncia a pretender uma solução ideal
fundamentada em princípios abstratos, ele se deixa levar pelo
sentido de integridade que o guiará a uma solução mais de acordo
com essa integridade.
Pode-se considerar, nos casos difíceis adequados, que um juiz
filósofo poderia elaborar teorias sobre o que é que exigem a intenção
da lei e os princípios jurídicos. Para tanto Dworkin inventou um juiz
dotado de habilidade, erudição, paciência e perspicácia
sobrehumanas. O Autor supõe que Hércules é juiz em alguma
jurisdição importante dos EUA. Supõe ainda que ele aceite as
normas constitutivas e regulativas não controvertidas de direito em
sua jurisdição. E aceita que as leis têm um poder geral de criar e
extinguir direitos, e que os juízes tem o dever geral de ajustar-se às
decisões anteriores de seu tribunal ou de tribunais superiores que
abarque o caso que tem em sua jurisdição.64
Para Dworkin a constituição estabelece um esquema político
geral suficientemente justo para dar-se por verdade, por razões de
equidade. Mas Hércules deve perguntar-se qual é, exatamente, o
esquema dos princípios fixados, isto é, deve construir uma teoria
constitucional. Como se trata de Hércules supõe-se a sua
63
GONZÁLEZ,
Antonio
José
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64 DWORKIN, op. cit., p. 177.
capacidade de apresentar uma teoria política cabal justificadora da
constituição em sua totalidade.65
Em algum ponto de seu raciocínio, Hércules deverá decidir, por
exemplo, que concepção é uma elaboração mais satisfatória da idéia
geral de liberdade religiosa. Deve organizar a teoria da constituição,
configurada como um conjunto complexo de princípios e diretrizes
políticas que justifique esse esquema de governo. Deve gerar teorias
possíveis que justifiquem os diferentes aspectos do esquema e por a
prova as teorias em função da instituição global.66
5.4. O Direito como Integridade
Para Dworkin, “o princípio judiciário de integridade instrui os
juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a
partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor
- a comunidade personificada -, expressando uma concepção
coerente de justiça e equidade.”67
O juiz que aceita esse modelo ideal interpretativo de
integridade do Direito, consegue decidir os casos difíceis, ou seja,
consegue a par de um grupo de princípios coerentes sobre os
direitos e deveres da pessoa, a melhor interpretação possível que
integre a estrutura política e a teoria jurídica de sua comunidade.
Quando se aceita o Direito como integridade, também é necessário
assumir os elementos políticos que poderão influir na interpretação e
tais elementos vão sempre ser o do intérprete e o da comunidade.
As proposições jurídicas serão verdadeiras se constarem, ou
se derivarem, dos princípios de justiça, equidade e devido processo
legal que possam oferecer a interpretação mais razoável e
construtiva da prática jurídica da comunidade.
O direito como integridade é tanto o produto da
interpretação abrangente da prática jurídica quanto
sua fonte de inspiração. O programa que
apresenta aos juízes que decidem casos difíceis é
65
DWORKIN, op. cit., p. 177-178.
Ibid., p. 179.
67 DWORKIN, op. cit., 1999, p. 271-272.
66
essencialmente, não apenas contingentemente,
interpretativo; o direito como integridade pede-lhes
que continuem interpretando o mesmo material
que ele próprio afirma ter interpretado com
sucesso.68
A integridade vai ser a base da aplicação do Direito e impõe
que toda decisão judicial tem de respeitar os direitos políticos e
morais, de modo que a resposta judicial aos problemas de uma
comunidade seja coerente, justa e imparcial. O juiz tem de respeitar
a integridade do ordenamento jurídico, tanto em seu aspecto formal
quanto material. Porém, o próprio Dworkin admite que tal prática
pode nem sempre chegar a resultados tão coerentes e, no entanto, a
melhor solução seria lutar para remediar as inconsistências do
princípio.
É possível compreender que o Direito como integridade vai
supor uma estrutura acima de todas as outras, inclusive sobre o
direito positivo em vigor, e é essa subordinação que supõe
sensivelmente que na hora de decidir por uma ou outra interpretação
o juiz deve-se voltar para os princípios morais e políticos da
sociedade que o formam.
Considerações Finais
Nunca é demais ressaltar que um trabalho nunca está findado,
por tal razão ainda que introdutoriamente não consta neste breve
escrito as críticas à Teoria de Dworkin, o que por certo poderá ser
objeto de outro trabalho, ou da contribuição de outro colega. No
entanto, é evidente a contribuição teórica de Dworkin para o mundo
jurídico, e por isso mesmo se explica a atenção que seu trabalho tem
merecido, em que pese poucas contribuições, ou estudos, no âmbito
do Direito brasileiro em relação a sua proposta jurídica.
Com toda certeza o pensamento de Dworkin é bastante
incômodo, sobretudo porque evidencia um campo de relação entre o
68
DWORKIN, op. cit., 1999, p. 273.
Direito e a Moral bastante estreito e que por certo o raciocínio jurídico
tem como fonte, embora renegue-o a escola positivista analítica
A importância de Dworkin está em propor uma teoria do Direito
com base normativa e que tenha como fundamento os direitos
individuais. Outro aspecto está na proposta de aproximação e
relação do pensamento moral com o jurídico, afastando desse modo
a interpretação analítica que havia estancado esse relacionamento, e
por isso Dworkin evidencia o caráter fragmentário e insatisfatório das
teses que fazem repousar a validade do sistema de fontes do Direito
em critérios normativos. Pode-se compreender por meio de Dworkin
que todo o ordenamento jurídico está integrado por um conjunto de
princípios, medidas políticas e regras normativas específicas.
É perfeitamente perceptível na obra de Dworkin que o mesmo
se sente pouco à vontade com as construções teóricas de nosso
tempo e, por isso mesmo, procura utilizar e inovar as categorias,
classificações e etiquetas, pois as do passado não o satisfazem. Ao
invés de jusnaturalismo, positivismo, realismo, formalismo,
fenomenologismo, institucionalismo, Dworkin prefere outras
categorias ou etiquetas como convencionalismo, pragmatismo
jurídico, teorias semânticas, teorias interpretativas, a teoria da
integridade.
A principal contribuição de Dworkin situa-se no marco teórico
de ruptura com o modelo positivista de regra e subsunção,
notadamente no plano constitucional.
Não obstante ao exposto é importante frisar o próprio
depoimento de Dworkin sobre qual o problema fundamental na
filosofia do Direito, enfrentado em suas obras Derechos en Serio e O
Império do Direito: “de modo general puedo decir que me he ido
concienciado progresivamente de la importancia la filosofía jurídica
como parte importante de la filosofía moral y política y, por tanto, de
la filosofía. (...) cualquier teoría del derecho competente debe ser ella
misma un ejercicio de teoría moral y política normativa. Este punto de
vista me ha levado recientemente a estudiar la idea de interpretación
como algo más importante para la teoría jurídica de lo que se había
considerado hasta ahora, y también a estudiar la filosofía política ya
que mi mayor preocupación ha sido la idea de igualdade”.69
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