introdução

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1.1.
AIDS e Bioética
Prof. Carlos Fernando Francisconi
INTRODUÇÃO
A Bioética é uma disciplina relativamente nova no campo da filosofia e surgiu
em função da necessidade de se discutir moralmente os efeitos resultantes do avanço
tecnológico das ciências da área da saúde, bem como aspectos tradicionais da relação de
profissionais desta área e pacientes.
A Bioética é um ramo da filosofia, mais especificamente da ética aplicada, e
pode ser definida como ”o estudo sistemático das dimensões morais -incluindo uma
visão moral, decisões, condutas e políticas- das ciências da vida e cuidados da saúde,
empregando uma variedade de metodologias éticas em um ambiente multidisciplinar”.
A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA ou AIDS, utilizando a sigla
em inglês) é uma doença que trouxe consigo uma série de fatos morais novos por suas
características epidemiológicas, clínicas e sociais que serão discutidas no presente
trabalho.
QUESTÕES RELACIONADAS À EQUIPE DE SAÚDEPACIENTE
Existem várias maneiras, em Bioética, de abordar os problemas morais que
surgem na condução de problemas com os nossos pacientes. Dos pontos de vista prático
e didático parece-me mais adequado utilizar a estratégia de partir dos conceitos dos
princípios, conforme definições inicialmente propostas por Beauchamp e Childress, e
utilizá-los para discutir os problemas que surgem no nosso cotidiano no manejo dos
enfermos tanto portadores do vírus HIV como doentes com AIDS. Como premissa deve
ficar claro que nenhum deles é absoluto no sentido de ter precedência sistemática sobre
os demais. Eles deverão ser vistos como instrumentos que facilitem uma discussão
quando dilemas de ordem moral surgirem no manejo de nossos pacientes. Para fins
desta discussão dilemas morais são definidos como aquela situação em que pelo menos
dois caminhos moralmente aceitáveis, mas excludentes entre si, podem ser seguidos em
um determinado momento.
A) Autonomia
Este princípio contempla a idéia que os pacientes devem ter suas vontades
respeitadas, desde que estejam bem informados para a sua tomada de decisão e
plenamente capazes do ponto de vista psicológico.
Pesquisa do anti-HIV
Em princípio, a pesquisa do exame sorológico que detecta tanto o anticorpo
como o antígeno do HIV só pode ser solicitado com o consentimento do paciente.
Somente na situação em que exista uma limitação temporária ou definitiva da
consciência do paciente e que a informação do resultado seja importante para as
medidas clínicas que devem ser postas em prática visando o seu bem biomédico,
poderemos cogitar de solicitar estes exames sem vontade manifesta pelo paciente.
É questionável nesta situação específica se devemos pedir autorização para um
membro da família, mesmo que seja cônjuge, haja vista o risco potencial de quebra de
1.2.
confidencialidade de informações médicas. Fatores como prognósticos da situação
clínica do enfermo e circunstâncias familiares deverão ser cuidadosamente avaliados
pela equipe de saúde antes de se tomar decisões desta ordem.
O Conselho Federal de Medicina ao determinar deontologicamente que
prevaleça este princípio usa os seguintes argumentos:
a) é a AIDS uma doença peculiar com relação as potenciais repercussões sociais
que a liberação do conhecimento do seu diagnóstico pode provocar; é inerente a este
fato o risco de discriminação social e profissional que o paciente pode sofrer;
b) o significado prognóstico que a presença do HIV representa até este
momento, em que não se conhece tratamento curativo para a doença, dá ao paciente o
direito de saber se ele está condenado ou não a morte num espaço de tempo maior ou
menor;
c) devem ser desconsiderados os argumentos que os profissionais da saúde que
entram em contato direto com o paciente “tem o direito” ao acesso da informação do
status do seu paciente quanto a ser portador ou não do HIV visando a sua proteção.
O que se preconiza hoje em dia são os cuidados universais de proteção, que
devem ser empregados em qualquer circunstância, pois na maioria das vezes,
principalmente em momentos de atendimento de urgência, o resultado do exame
solicitado só chegaria após o atendimento ser prestado. Além deste fato, é importante
ressaltar:
a) que não existe até este momento evidências científicas que demonstrem que o
conhecimento da situação de infecção pelo HIV reduza o risco para a equipe que cuida
do paciente;
b) o risco de transmissão da doença é igual tanto nos pacientes obviamente do
grupo de risco quanto nos aparentemente “seguros”, embora a equipe de saúde tende a
tomar mais medidas preventivas no primeiro do que no segundo grupo.
Consentimento informado
Trata-se de um documento fundamental na prática da pesquisa biomédica. É
fundamental que todo paciente aidético ao ser recrutado para uma pesquisa tenha
conhecimento de todas as variáveis médicas envolvidas bem como das alternativas que
eventualmente podem ser contempladas no seu caso específico. Sua vontade deverá ser
respeitada, inclusive se ele desejar entrar em um braço de pesquisa terapêutica que, por
algum motivo, lhe parece mais promissora.
Diretivas de vida e morte
Embora seja um tópico ainda não formalizado na nossa cultura, o respeito às
vontades do paciente com relação a medidas médicas extraordinárias que o mantenham
vivo tem valor moral e, por isso, devem ser levadas em consideração quando
manejamos pacientes aidéticos terminais. É uma área potencialmente de tensão caso a
família não saiba nem do diagnóstico nem das vontades do paciente e ele não nos libere
para discutir estes fatos com seus familiares ou amigos próximos (autonomia versus
confidencialidade). Em princípio deveremos respeitar a vontade do paciente.
B) Beneficência
É o princípio mais antigo da prática médica, oriundo dos tempos hipocráticos.
Ele nos diz que devemos usar de toda nossa competência para buscar o bem do paciente.
1.3.
O problema operacional que eventualmente poderá surgir será quando o bem visto pelo
paciente não coincidir com a visão de bem da equipe de saúde.
Dentro deste princípio deveremos avaliar:
a) relação risco-custo/ benefício (utilidade) nas nossas ações diagnósticas e
terapêuticas;
b) se o efeito biomédico da nossa intervenção agrega um resultado satisfatório
para o paciente. Por exemplo: ao tratarmos um paciente em fase terminal de doença que
se apresenta com insuficiência respiratória aguda, o uso de respiradores poderá ter um
efeito imediato bom, na medida em que mantém o paciente vivo, mas poderá ter um
resultado ruim se o paciente não puder mais ser extubado, pois que esta medida
implicará em afastá-lo de sua família, aumentar seu sofrimento físico, bloquear um leito
de CTI que poderia ser utilizado para recuperar um paciente com intercorrência clínica
reversível e por vezes curável, aumento do custo econômico do atendimento a um
paciente sem perspectivas de vida etc...
Este princípio deverá igualmente ser contemplado na pesquisa em aidéticos:
a) não deveremos expor nossos pacientes a riscos desproporcionalmente grandes
em relação a possíveis benefícios;
b) não poderemos utilizar placebos quando a situação clínica em que uma nova
droga a ser testada já tem alternativa terapêutica com eficiência definida.(ver abaixo)
C) Não maleficência
Por este princípio estamos moralmente proibidos de intencionalmente infligir o
mal a um paciente. Trata-se de um tema muito atual no atendimento de pacientes
aidéticos, pois que no mesmo discute-se a eutanásia e o suicídio assistido. Neste
contexto a morte é o mal definitivo conseqüente de uma ação médica e que, por isso,
deve ser evitada. Do ponto de vista conceitual podemos definir a eutanásia ativa como a
ação deliberada de uma pessoa em provocar a morte de alguém por fins misericordiosos.
Ela traz consigo um elemento ativo (ação) e um fim (alívio de um sofrimento fisico
intolerável definido pelo paciente). A eutanásia passiva é aquela em que a equipe de
saúde não inicia um tratamento ou o interrompe quando fica claro que do mesmo não
resultará um resultado bom para o paciente ou que até o contrário pode ser antecipado:
prolongaremos o seu sofrimento e a sua agonia com medidas por vezes extraordinárias e
invasivas. O prolongar da vida, nestas condições, é chamado de distanásia. Do ponto de
vista de participação do paciente no processo decisório de sua morte, a eutanásia pode
ser voluntária (quando existe a sua concordância), involuntária ( quando ele é contra a
medida) e não voluntária (quando não se sabe da sua vontade). O suicídio assistido, por
sua vez pode ser definido como a morte provocada pelo paciente usando de informações
e/ou métodos fornecidos por membros da equipe de saúde.
Moralmente tanto a eutanásia ativa como o suicídio assistido não são admitidos
pela maioria das sociedades médicas no mundo atual. É aceita na Holanda e é legal nas
províncias do norte da Austrália. Em algumas situações até pode-se entender que surja o
dilema se devemos abreviar o sofrimento do paciente de maneira ativa ou não. Mas o
que predomina neste momento é a preocupação da generalização de uma medida como
esta na nossa sociedade. Em outra palavras, ao liberarmos a prática da eutanásia
estaremos correndo o risco que fins menos nobres justifiquem o meio e que as classes
sociais menos favorecidas sejam vítimas da banalização da morte provocada por
médicos e outros profissionais da saúde.
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A eutanásia passiva é aceita pela maioria das sociedades, com cautela e
prudência, dentro do pensamento aceito pela maioria das culturas médicas da “morte
com dignidade”.
D) Confidencialidade
Toda a informação adquirida como uma conseqüência da nossa profissão na área
da saúde deve ser, em princípio, considerada sigilosa. A AIDS trouxe consigo um
desafio a este princípio na medida em que um valor mais alto, no caso a vida das
pessoas que tem contato direto com o paciente, surge na discussão. Na prática estamos
obrigados tanto moralmente como legalmente a informarmos ao cônjuge/companheiro
da situação de doença do nosso paciente. É igualmente compulsória a notificação às
autoridades da saúde do caso de doença. É ainda controverso e, portanto não
universalmente aceita, a medida de informar contatos do caso mesmo garantindo o
anonimato do caso índice. Obviamente na situação de contato monogâmico e não
exposto a outra situação de risco, a quebra da confidencialidade seria imediata. Não se
provou ,até este momento, que este tipo de medida é eficiente no controle da epidemia
da AIDS e por outro lado política desta natureza pode ter um efeito perverso de afastar
pacientes de risco dos centros de saúde pelo medo da quebra confidencialidade de
informação tão delicada.
E) Privacidade
Trata-se aqui da responsabilidade institucional de manter o sigilo de informações
confidenciais e privilegiadas. Cabe aos médicos em suas clínicas, aos hospitais e
unidades do sistema oficial de saúde zelarem pelo segredo de seus arquivos
(informatizados ou não) e prontuários de pacientes. A questão transcende aos
profissionais de saúde, pois que na realidade pessoas de outra profissões também terão
acesso a informações privilegiadas. Por exemplo: calcula-se que em um hospital de
porte grande mais de 60 pessoas entrem em contato direto com o prontuário médico
durante uma internação do paciente.
F) Fidelidade
É o princípio pelo qual estabelecemos pactos com os nossos pacientes, que
basicamente nortearão a relação médico-paciente. Muitas vezes os paciente nos
solicitarão, por exemplo, que medidas extraordinárias não sejam colocadas em prática
nos momentos finais de suas doenças. A tensão que pode surgir nesta situação pode ser
de ordem médica, quando achamos que uma medida extraordinária está indicada porque
a situação clínica assim o exige, ou por pressões familiares que, ignorando ou não o
diagnóstico do paciente, exigem que tratemos o paciente além do que estipulado pelas
partes.
G) Justiça
O princípio da justiça diz respeito à coletividade, em contraste com os princípios
acima que se referem aos indivíduos. No seu sentido original é este um princípio ético
de ordem social, da estrutura moral básica da sociedade que condiciona a vida dos
indivíduos. Aqui nos preocupamos com um aspecto da justiça denominada de
distributiva, que regula as relações do estado com os cidadãos. Neste sentido, e dentro
de uma corrente de pensamento de John Rawls, podemos definir este princípio como o
1.8.
compromisso de uma sociedade de distribuir igualitariamente o bom (ou o bem) e o mal
entre os seus membros. Dentro desta ótica é inaceitável a discriminação de pacientes
quer por razões de ordem social, racial, religiosa ou de qualquer outra natureza,
incluindo doenças. A AIDS é uma doença peculiar pelo real risco de discriminação que
oferece aos seus portadores. Por este motivo que tanto se valorizam os princípios da
confidencialidade e privacidade, pois que uma vez quebrados expõem os pacientes a
sérios riscos de discriminação.
O administrador público, que gere os recursos finitos da área da saúde deve
procurar uma situação de equilíbrio, não permitindo que os programas de atendimento
dos pacientes aidéticos sejam prejudicados com o argumento de que se trata de uma
doença incurável ou que um bom número de pacientes adquiriu a doença por
escolherem comportamentos de risco. Este é um tipo de argumento moralmente
inaceitável. Por outro lado não pode ele permitir que os programas de atendimento desta
doença prejudiquem outros programas de saúde de interesse da comunidade . Tampouco
hospitais ou unidades de saúde poderão discriminar portadores de outras doenças em
benefício de aidéticos. Critérios baseados ou em ordem de chegada ou na gravidade
clínica do enfermo deverão servir de referência aos prestadores de atendimento médico.
H) Situações especiais
Pesquisa em pacientes aidéticos
Além do acima exposto na discussão dos princípios da autonomia e
beneficência, outros problemas de ordem moral devem ser discutidos na pesquisa
biomédica em aidéticos. A pesquisa de vacinas é um tema muito atual nesta doença.
Dois tipos de vacinas estão sendo pesquisadas: uma que imunizaria as pessoas contra a
doença (profilática) e outra que está sendo aplicada em pacientes portadores do vírus
HIV e que tenta reverter a história natural da doença (terapêutica).
Países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento tem sido usados para
aplicação de projetos de pesquisa de vacinas por vários motivos: altas taxas de
seroconversão, maior rapidez em obter informações com relação a sua eficácia, fatores
econômicos, benefícios potenciais que uma população carente poderia auferir caso a
vacina se mostre eficaz, menor chance de eventuais questões judiciais caras, entre
outros. Pesquisadores franceses , por exemplo, declararam que “era mais fácil obter uma
permissão oficial (no Zaire) do que na França”. O Comitê Diretivo do Desenvolvimento
de Pesquisas da Organização Mundial de Saúde identificou quatro países onde estas
pesquisas de campo poderiam ocorrer: Brasil, Uganda, Ruanda e Tailândia. No nosso
país um projeto desta natureza já foi colocado em prática em Minas Gerais.
Recentemente um grupo internacional de pesquisadores estabeleceu uma série de
recomendações éticas, sociais e comportamentais com relação à pesquisa de vacinas
(JAMA,271:4,295-300,1994). Destacamos neste trabalho o “checklist” de perguntas que
devem ser formuladas em países não desenvolvidos antes de se iniciar um ensaio clínico
com vacinas de proteção contra AIDS. A discussão ética que cada um dos quesitos
merece foge ao escopo deste trabalho. Tem o ensaio o apoio de especialistas
internacionais neutros? Corporações locais e internacionais se envolveram ativamente
no processo de seleção dos voluntários? A vacina completou ensaios de fase 1 e 2 de
maneira apropriada tanto em paises desenvolvidos ou não? Foi a seleção do país onde se
desenrolará a pesquisa um produto de discussão com autoridades locais? Existe previsão
de envolvimento ativo por pessoal local em todas as fases do estudo? O pessoal local
receberá treinamento adequado para que se envolva ativamente no projeto? Ficará o país
onde se realizará a pesquisa livre de custos adicionais por sua realização? Se mostrou a
vacina a ser testada eficiente contra cepas locais do vírus? Tem o fabricante experiência
suficiente na condução de ensaios em países em desenvolvimento? Demonstrou o
fabricante da vacina sensibilidade às preocupações éticas, sociais e comportamentais do
país? Irá o fabricante apoiar o treinamento de pessoal local e a compra do material
necessário? Será a mídia local chamada a colaborar no processo educativo da população
com relação à pesquisa? Estão as mulheres, minorias locais e outros grupos de risco
adequadamente representados no ensaio clínico? Na situação de ensaios terapêuticos,
receberão os pacientes zidovudina durante a pesquisa? Continuarão recebendo eles a
droga após o encerramento do estudo? Identificou-se uma intervenção comportamental
adequada nos grupos de estudo (controle e vacina)? Irão os pacientes/voluntários se
beneficiar da participação do estudo incluindo acesso a cuidados básicos primários de
saúde? Estará à disposição da comunidade local tecnologia adequada para distinguir
infecção natural de seroconversão induzida pela vacina? O patrocinador do estudo
preparou um termo de consentimento informado ao nível cognitivo da população local?
Foram os comitês locais de ética em pesquisa consultados para a preparação do termo
de consentimento? Necessitará o termo de consentimento de aposição individual de
assinatura? Contém o termo de consentimento as informações de aviso necessárias com
relação a potenciais efeitos adversos, tanto médico como sociais? Foram criados
métodos de proteção os pacientes do estudo, incluindo aqueles seroconvertidos pela
vacina, no sentido de evitar discriminações em emprego, habitação e imigração? Foi a
quantia financeira de ressarcimento de despesas dos voluntários estabelecida em um
nível adequado e ao mesmo tempo não coercitiva? Cientistas locais participarão do
corpo de pessoas que monitorizará o estudo? Foram previstas medidas que previnam
conflito de interesses na análise neste estudo? Será garantido acesso prioritário à vacina
efetiva por parte da população controle? Foi estabelecido um acordo de política de
publicação dos resultados e de autoria do trabalho a ser publicado? Foram estabelecidas
as normas de “propriedade” dos dados? Foi planejado um sistema de monitorização pós
liberação da vacina? Foram definidos critérios para garantir que qualquer vacina que se
prove eficaz esteja a disposição da população a um preço acessível no país em que a
pesquisa foi desenvolvida e em outros países em desenvolvimento?”
Médicos HIV +
Existe um risco real , embora remoto, que profissionais da área da saúde
transmitam o vírus da AIDS aos seus pacientes. O Centro de Controle de Doenças de
Atlanta (CDC) estima a probabilidade de um cirurgião HIV positivo transmitir a doença
ao seu paciente de entre 1para 42000 e 1 para 420000. Este risco se equivale àquele de
se contaminar com a doença em transfusão sanguínea com sangue testado e é menor do
que o risco de mortalidade de uma anestesia geral. Este é um assunto extremamente
delicado pois que coloca de um lado o direito do paciente de saber que ele corre um
risco mínimo mas definido de adquirir a doença de seu médico ou odontólogo e do
outro lado o direito do profissional da saúde preservar o seu diagnóstico, protegendo-se
de discriminação profissional, pessoal e social.
Dentro desta discussão evidentemente coloca-se a necessidade ou não de todos
que entram em contato direto com pacientes serem testados compulsoriamente para a
pesquisa do anti-HIV. Nos Estados Unidos foi calculado que testar todos os
profissionais da saúde custaria ao país 250 milhões de dólares. Isto representaria um
custo de 50 milhões para cada caso diagnosticado graças a esta intervenção. A
recomendação mais atual é no sentido que seja individualizada a conduta de testagem
1.9.
estas pessoas; dever-se-á levar em consideração ao grau de exposição do paciente à
especialidade do profissional, qual sua situação clínica , qual sua habilidade com o
método que ele emprega como profissional.
Recusa de tratamento a pacientes HIV positivo
Tem sido alegado por alguns médicos que é seu direito recusar o tratamento a
um paciente HIV positivo pelo risco definitivo, embora pequeno de adquirir a doença de
seu paciente. É estimado que o risco de transmissão do HIV de um paciente
contaminado ao cirurgião em uma punção acidental é da ordem de 0,7%. Calcula-se que
o pessoal de sala cirúrgica tenha um risco de 1,7 a 6,9 % de ferir acidentalmente sua
pele durante procedimentos cirúrgicos. Atualmente recomenda-se que medidas
universais de proteção sejam colocadas em prática por toda a equipe de saúde para que
o risco de transmissão profissional da doença seja diminuído ao mínimo. Moralmente é
muito difícil aceitar o direito do médico de não atender o seu paciente aidético. Faz
parte dos princípios morais da nossa profissão aceitar que certos riscos são inerentes ao
seu exercício. Pellegrino de maneira muito adequada escreve que “recusar o tratamento
de pacientes aidéticos, mesmo que o perigo fosse muito maior do que realmente ele é,
seria a renúncia ao que é essencial de ser um médico. O médico não está mais livre a
fugir do perigo no desempenho de seus deveres do que um bombeiro, um policial ou um
soldado.” Deve-se levar em consideração na execução do ato médico se o benefício para
o paciente está claramente estabelecido, se ele é provável e substancial. É diferente a
indicação de uma cesariana de urgência quando se compara a uma cirurgia plástica
estética de indicação discutível em pacientes seropositivas.
HIV e gravidez
A discussão neste tópico está centrada nas variáveis se tem a equipe médica o
direito de testar a gestante de risco para o HIV sem o seu conhecimento e o direito da
paciente de interromper sua gravidez ao tomar conhecimento da positividade do teste.
Em última análise discutimos o que fazer quando as decisões da gestante entram
em conflito com os melhores interesses da criança que vai nascer. O conhecimento atual
é no sentido que tanto a gestante quanto o recém nascido se beneficiam de um
tratamento antiretroviral precoce. Por outro lado novamente vem a tona os riscos que a
mulher corre de ter o seu diagnóstico feito: poderá ter dificuldade de acesso a programas
materno-infantis, a programas de tratamento de dependentes de tóxicos e, em países que
o aborto é legal, a centros que realizem este tipo de procedimento.
Claramente não estamos autorizados a realizar testes para o HIV em gestantes
sem o seu consentimento. Em uma evidente situação de risco da doença, quando se
define um conflito entre a vontade da paciente e o melhor interesse da criança,
recomendamos que seja feita uma consulta ao Comitê de Bioética da instituição.
QUESTÕES DE SAÚDE PÚBLICA
A) AIDS e educação da população
Um dos dilemas dos responsáveis pelos programas de prevenção da AIDS é de
como estabelecer o limite adequado das propagandas institucionais de prevenção da
doença. Pela sua prevalência aumentada em homossexuais e drogaditos e por ser uma
doença sexualmente transmitida, a comunicação das informações que efetivamente
1.10.
tenham impacto no sentido de diminuir a disseminação da doença traz consigo alguns
problemas. Quais os limites da apresentação pública de elementos que sejam ao mesmo
tempo entendíveis pela população em geral e que provoquem um impacto no grupo
potencial de risco? Sendo o Brasil um país de dimensões continentais e muito
heterogêneo do ponto de vista cultural ,social e religioso como adequar o conteúdo das
mensagens a suas diferentes regiões? Qual o risco do material veiculado pelos meios de
comunicação ser o vetor indutor da curiosidade de pessoas psicologicamente imaturas,
levando-as a uma situação de risco não antecipada ?
Em termos de saúde pública também surge o problema de como orientar as
gestante HIV positivas, principalmente nos países em que o aborto é permitido. De um
lado temos todos os aspectos morais envolvidos com a interrupção da gravidez e por
outro o custo social da disseminação da doença por gestantes infectadas. É avaliado o
risco de transmissão vertical da doença entre 20 e 30%.
B) Reclusão e criminalização do paciente HIV “irresponsável”.
Igualmente problemática é a conduta diante do paciente HIV+ que se recusa a
tomar as medidas cabíveis de proteção de parceiros de sexo ou drogas. Cuba tomou uma
medida radical e única no mundo, ao que se saiba, de isolar os pacientes infectados.
Naquele país as autoridades de saúde pública partem da premissa que é impossível saber
qual o infectado que se comportará de maneira responsável e , portanto, está indicada a
detenção preventiva dos pacientes sob o rótulo de quarentena. Nos países em que existe
um maior respeito pelos direitos humanos este tipo de conduta é inaceitável do ponto de
vista moral e legal. Não existe, por outro lado, uma saída para o problema a não ser o de
investir de maneira continuada e inteligente na educação da nossa população no sentido
aprender e colocar em prática medidas efetivas no controle de da disseminação da
doença.
Texto apresentado no Seminário “Aids Quo Vadis”: Tendências e
Perspectivas da Epidemia no Rio Grande do Sul - IV Módulo: Ética,
Direitos humanos e Avaliação - UFRGS/Secretaria Municipal da Saúde de
Porto Alegre, 28 de julho de 1997.
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