Artigo Especial O envolvimento cardíaco na doença de Fabry José Sobral Neto Ex-Preceptor-Chefe do Programa de Residência Médica em Cardiologia do Hospital de Base do Distrito Federal Cardiologista e Arritmologista do Centrocard / Ritmocardio / Incor-Tag. / Hospital Santa Lúcia Introdução A Doença de Fabry-Anderson é uma doença progressiva, de natureza recessiva, ligada ao cromossomo X, causada pela deficiência de alfagalactosidase A(1-2), que conduz ao acúmulo de glicoesfingolipídios (GL-3) em vários tecidos e fluidos corporais, daí a diversidade de suas manifestações clínicas33). Foi descrita pela primeira vez em 1.898(4-5) e sua incidência na população geral é de 1:40.000. Caracteriza-se por presença de acroparestesias, angioqueratomas cutâneos (Figura 1), hipohidrose, opacidade da córnea, insuficiência renal e comprometimento dos sistemas cardiovasculares, nervoso central e gastro-intestinal. Manifestações Cardiovasculares Ocorre na maioria dos homozigotos, secundária ao depósito progressivo de GL-3 no sistema cardiovascular, atingindo o músculo, as válvulas e o sistema de condução. Os achados de microscopia eletrônica revelam depósitos de GL-3 intracitoplasmáticos. São descritos os seguintes achados(6-16): Ao Eletrocardiograma: PR curto (Figura 2); PR longo (podendo chegar a bloqueio AV total); QRS largo (bloqueios de ramo); arritmias cardíacas, tais como extra-sístoles e taquiarritmias ventriculares e supraventriculares; sobrecarga de câmaras esquerdas; ondas “Q” patológicas; depressão do segmento ST; onda “T” invertida; síndrome de pré-excitação. Figura 2 Traçado característico da Doença de Fabry – PR curto associado a sobrecarga de ventrículo esquerdo Figura 1 Angioqueratomas em portador masculino (acima) e feminino (abaixo) da Doença de Fabry 24 número 03 - março de 2011 Ao Ecocardiograma: prolapso mitral; tendão fibroso; insuficiência mitral (Figura 3) e aórtica de graus variados; hipertrofia ventricular esquerda, concêntrica ou não, associada a padrão restritivo ou não, acompanhada sempre de septo e parede posterior de VE aumentados (>13mm), de movimento anterior sistólico da válvula mitral e de MVE>125g/m2, preservando a função sistólica. Figura 3 Insuficiência Mitral portador da Doença de Fabry em Outros métodos podem ser utilizados para a detecção dos achados, tais como: Rx de Tórax (aumento das câmaras cardíacas), Holter 24h (diagnóstico das arritmias), MAPA (tendência a hipertensão), Teste de Esforço (detecção de isquemia e arritmias), Estudo da Variabilidade Cardíaca e Tilt test (na avaliação de manifestações disautonômicas), Eletrocardiografia de Alta Resolução (substrato das arritmias), Ressonância Nuclear Magnética (detecção das áreas de fibrose miocárdica focal - realce tardio, Figuras 4 e 5) e Estudo Hemodinâmico (determinação dos parâmetros hemodinâmicos, quantificação do grau de regurgitação valvular e estudo das coronárias). Arco - Arquivos Centro-Oeste de Cardiologia de idade e para mulheres de 70 anos. A Cardiomiopatia hipertrófica é um fator de risco para eventos cardiovasculares e morte súbita, sendo a principal causa mortis o Infarto agudo do miocárdio. Outras Manifestações Clínicas: Hipotensão (Síndrome Vasovagal), Disautonomias e Síncope. Figura 4 Hipertrofia septal (septo 19mm) em ressonância magnética do coração de portadora da doença de Fabry Figura 5 Presença de realce tardio na ressonância magnética do coração em portador de HVE na doença de Fabry (cortesia Dr. Luis Carvalho/RS) Figura 6 Infarto do miocárdio precoce em portador da doença de Fabry, aos 22 anos Evolução Clínica da Doença de Fabry Dentre os sinais e sintomas observados na Doença de Fabry estão incluídos a Hipertensão arterial, Angina pectoris, além de Infarto do miocárdio (Figura 6) e Insuficiência cardíaca congestiva que podem surgir precocemente. A morte súbita é a manifestação mais dramática da doença, e está associada aos seguintes fatores: Taquicardia ventricular sustentada ou Parada cardíaca anterior, Idade inferior a 20 anos, História familiar de morte súbita, Taquicardia ventricular repetitiva ao Holter, Síncopes (por disfunção sinusal, BAVT ou taquiarritmias), HVE > 35mm ao ecocardiograma, pacientes com forma familiar de miocardiopatia hipertrófica e isquemia miocárdica detectada na cintilografia em pacientes jovens. A sobrevida média para homens é de 50 anos A hipertrofia do Ventrículo Esquerdo na Doença de Fabry Pode apresentar diversas formas ou graus(17-24) de Cardiomiopatia Hipertrófica, obstrutiva ou não, secundária ao acúmulo de glico-esfingolipidios nos cardiomiócitos, mimetizando Cardiopatia Hipertrófica primária. Sua incidência é maior entre os homens (até 61%) do que entre as mulheres (até 18%) e, quando associada a lesões valvulares, a doença é mais severa. A HVE é, portanto, um fator de risco para morte prematura por doença cardíaca e para a mortalidade de forma geral. Estima-se que incida entre 3 e 8% dentre os portadores não selecionados de HVE, de maneira que alguns autores já consideram a realização de provas bioquímicas e biópsia endomiocárdica como parte da investigação etiológica destes pacientes. Nakao(19) dosou a alfagalacto- sidase num grupo de 230 homens portadores de HVE e encontrou sete portadores (3%) de baixa atividade enzimática compatível com Doença de Fabry, sendo que dois com novas mutações genéticas. Sachdevp publicou dois estudos, onde encontrou no primeiro(25), seis portadores de baixa atividade enzimática dentre 153 portadores de HVE (4%) referendados ao seu Hospital e, no segundo(26), dosou a alfagalctosidase em 79 homens portadores de HVE e encontrou seis portadores (7,7%) de baixa atividade enzimática, todos com mutação genética confirmada, concluindo que a Doença de Fabry deve ser considerada como fator causal em pacientes com hipertrofia cardíaca inexplicada. Devido a relação causal entre Doença de Fabry e Hipertrofia de VE, os dados publicados sugerem que esta enfermidade não seja uma entidade tão rara como habitualmente se pensa e que pode comprometer o coração de várias formas, dentre as quais, manifestar-se como Cardiopatia Hipertrófica(27). Não há divulgação ampla sobre esta enfermidade, a despeito do registro de portadores da doença no Brasil(28), alguns inclusive em tratamento de reposição enzimática(29). Forma cardíaca da Doença de Fabry Também conhecida como variante cardíaca, ocorre em indivíduos com baixa atividade de alfagalactosidase que apresentam manifestações exclusiva ou predominantemente cardiovasculares, sem outras manifestações sistêmicas (Fabry clássico). Ocorre em mulheres heterozigóticas (incidência em até 17% dos casos) e em homens heteronúmero 03 - março de 2011 25 Arco - Arquivos Centro-Oeste de Cardiologia zigóticos ou portadores de mutação genética. Suspeitar nas seguintes situações: Portadores de hipertrofia de ventrículo esquerdo (HVE) de causa inexplicada (incidência de 3% a 8%); Associação de HVE + PR curto; Associação de HVE + bloqueio AV inexplicável (até 10% BAVT); Associação de cardiomegalia + proteinúria; Portadores de síncope de natureza inexplicável; Portadores de valvulopatia inexplicável. Como diagnosticar Diante da suspeita clínica de Doença de Fabry, se impõe a avaliação da atividade enzimática através da dosagem da alfagalactosidase A. São disponíveis 2 métodos: Em papel filtro (mais adequado para screening) e em leucócitos. Resultados positivos ou suspeitos deverão ser encaminhados para análise genética (genotipagem) em laboratórios especializados. Portadores de mutação genética para Doença de Fabry apresentam também maior tendência a colesterol HDL baixo e homocisteína elevada. Uma vez confirmado o diagnóstico, como em qualquer doença de etiologia genética, está indicado rastreamento familiar, com objetivo de identificação precoce de possíveis portadores da mutação encontrada(30). Terapia de Reposição Enzimática A Terapia de Reposição Enzimática (TRE) é indicada nos 26 número 03 - março de 2011 indivíduos com mutação genética confirmada, além do tratamento cardiológico convencional, instituído para as manifestações cardiológicas da doença: uso de betabloqueadores, vasodilatadores coronarianos, antagonistas do cálcio, estatinas e inibidores da ECA, antiadesivos plaquetários. A profilaxia da endocardite bacteriana se impõe em valvulopatas e portadores de prolapso mitral. Em casos selecionados poderá haver necessidade de revascularização miocárdica, implante de marca passo, ablação alcoólica do septo, ablação de circuitos de taquicardia e implante de cardiodesfibrilador. A pesquisa para a reposição enzimática iniciou-se nas décadas de 70 e 80 com o desenvolvimento de uma forma de a–GAL purificada de placentas, que não seguiu adiante devido a dificuldade de purificar quantidades suficientes para manter uma terapia sustentada. Nos anos 90, foi desenvolvida a alfagalactosidade beta através de uma forma purificada da enzima humana, produzida por meio de tecnologia de DNA recombinante, usando cultura de células de ovário de hamster chinês. Em estudos feitos para garantir a eficácia da terapia, foi verificada depuração extremamente significativa de lipídio no endotélio capilar renal, cardíaco e de pele, além da melhora da dor e da qualidade de vida(31, 32). Atualmente, existem disponíveis no mercado duas formas de alfagalactosidase: alfa(33) e be- ta(34). A utilização de ambas mostrou que, a partir dos 6 meses de TRE, observa-se detecção dos benefícios da terapia no sistema cardiovascular, tais como redução significativa do SL (SokolowLyon) após 12 meses de tratamento(35), redução da duração do QRS após 24 meses de tratamento(36), além de outros resultados, tais como melhora da condução cardíaca, diminuição da massa ventricular esquerda, melhora da função diastólica de VE e normalização da perfusão cerebral(37) (Figura 7). Figura 7 Terapia de Reposição Enzimática na doença de Fabry. Regressão dos critérios de HVE após um ano de tratamento Conclusão Recentemente, especialistas brasileiros reconheceram a segurança e eficácia da TRE através da publicação do primeiro consenso brasileiro para o diagnóstico e tratamento da Doença de Fabry(38). Este respaldo, aliado aos resultados animadores, para uma patologia até então desprovida de tratamento específico, reforça a necessidade de maior conhecimento sobre ela, visando um diagnóstico cada vez mais precoce. Arco - Arquivos Centro-Oeste de Cardiologia REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1.Desnick, RJ. Alfa-galactosidase A deficiency: Fabry Disease. In Lysosomal Disorders, chapter 150: 3733-3774. 2.Garman, SC et al. The molecular defect leading to Fabry Disease: structure of human alfa galactosidase. J. Mol. Biol, 2004; 337: 319-335. 3.Pina, PR. O coração e a Doença de Fabry-Anderson. 2003;Méd Int, vol10, n 4: 209-214. 4.Fabry J. Ein Beitrag zur kenntnis der Púrpura haemorrhargica nodularis (Púrpura papulosa haemorragic hebrae). Arch Deratol Syphilis, 1898; 43: 187-200. 5.Anderson WA. A case of angiokeratoma. Br J Dermatol 1898; 10: 113-117. 6.Yoshitama, T et al. Molecular, genetic, biochemical and clinical studies in three families with Cardiac Fabry’s Disease. 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