1 OS QUATRO NÍVEIS DA REALIDADE SOCIAL O processo de socialização traduz a tomada de consciência de uma realidade preexistente ao indivíduo: a sociedade organizada. À Antropologia e à Sociologia competem o estudo dessa realidade, procurando identificar, na configuração histórica, a natureza e as significações estruturais da organização social. Na abordagem do social procedemos por fases, isto é, partimos dos aspectos morfológicos para atingirmos o complexo funcional, caminhando do mais acessível para o menos acessível. A identificação de níveis do social, caracterizada por Georges Gurvitch como “graus de profundidade”, permite-nos obter um quadro amplo para investigação empírica. Assim, partimos do que é conhecido morfologicamente para atingirmos os aspectos latentes, voltando ao ponto de partida, em explicação compreensiva. I II III IV VALORES I = Morfologia II = Controle III = Funções axiológicas estruturadas IV = Funções inovadoras Os quatro níveis principais que consideramos são: Morfologia, que Dürkheim considerou como estudo da superfície material calculável e mensurável; Controle, salientando a ação institucionalizada do poder; Funções axiológicas estruturadas (axiologia = ciência dos valores), definidas por padrões de expectativas, símbolos e valores, controlados e mantidos pelo controle institucionalizado; e Funções inovadoras dos comportamentos desviados estruturais, não sancionados e dos desviados não-estruturados, sancionados pela moral e pela lei. 2 Morfologia. É a base material, a manifestação do fenômeno social ou suas funções patentes. É a expressão do social que nos afigura conhecida imediatamente. Divisamos aí os fenômenos de população: crescimento demográfico, os processos de interação, as expressões organizadas, o conflito entre tradição e inovação, a ação das superestruturas, os problemas emergentes dos desequilíbrios entre estrutura obsoleta e valores novos. Controle. Fundamenta-se nas funções axiológicas estruturadas, representando uma necessidade dos grupos sociais, particulares e/ou na totalidade. Manifesta-se de forma não estruturada e/ou estruturada. A forma estruturada – “superestruturas organizadas”, na denominação de Gurvitch – compreende o controle sistemático exercido pelas instituições. Este papel de controlador, historicamente, foi progressivamente sendo assumido pelo Estado. O controle estrutura-se nas instituições, mas personifica-se nos detentores do poder instituído, refletindo-lhes a classe social, a configuração de origem etc., tipificando-se nos valores e demais padrões de valores psicossociais da classe. O controle exerce-se em função de uma minoria, como observou Max Weber, que define os interesses sociais a partir da fundamentação dessa classe dominante. Funções axiológicas estruturadas. Essa camada compreende padrões de expectativas, símbolos e valores refletidos no complexo organizacional da sociedade. Os padrões de expectativas prevêem comportamentos confirmatórios, voltados para tipos ideais, que demonstram haver condutas regulares no grupo total e/ou parcial. Os comportamentos desviados evidenciam condutas espontâneas, quase sempre passivas de sanções. Esses padrões compreendem tanto os do domínio do fazer (“mecânico”) – nãosimbólicos, modelos técnicos, hipotético-condicionais, como os do domínio do agir (“criativo”) – simbólicos, de base cultural, normativos, terreno onde atuam as condutas, que são inspiradas em padrões, símbolos, modelos e valores. Assim, dentro de um sistema cultural, cada elemento constitutivo possui um significado que lhe é atribuído pelos indivíduos que dele se servem. Sob este aspecto, o processo socializador prepara os indivíduos para viverem em configuração cultural onde os fenômenos são avaliados pela conveniência em relação aos indivíduos, grupos particulares e grupo total. A valoração social, posto que represente o modo de pensar e avaliar o coletivo, traduz os valores das superestruturas que garantem a persistência estrutural, escudada não só na tradição mas também na sustentação dos representantes sociais dessa superestrutura. Funções inovadoras. A organização social envolve uma faixa de comportamento desviado permitido. Essa tolerância acoberta comportamentos emergentes que, embora previstos na expectativa estrutural, fazem germinar as transformações sociais. Gurvitch chega a afirmar que, sob certo aspecto, a vida social é “uma luta permanente entre tradição e revolução”. A inovação, contudo, distingue-se da revolução. A inovação processa-se nos moldes estruturais, nas transformações progressivas, enquanto a revolução se fundamenta nos comportamentos desviados sancionados. Evidentemente, a inovação tolerada pela estrutura 3 pode constituir-se em matriz da revolução, se estender os limites da tolerância não sancionada aos comportamentos sancionados. Pode mesmo convertê-los em padrões. Por exemplo, Tiradentes, em sua época, foi condenado por comportamento desviado, colocando-se contra a estrutura vigente, com pretensão revolucionária, sendo posteriormente estabelecido como modelo nacional, tendo seu comportamento representado padrão de patriotismo. Os comportamentos inovadores tendem a quebrar padrões tradicionais ou “tradicionalizantes”, e substituí-los por novos. Essas funções surgem em face de valores que se arcaízam. O pensamento antropológico localiza-se diretamente nos aspectos funcionais do social: o controle. As caracterizações correlativas, funções patentes e funções latentes, delineiam elementos para a análise de padrões ideológicos em suas relações funcionais com a organização social em dimensão concreta. Temos que ter sempre presente um fato: o delineamento de funções patentes acoberta funções latentes, que não se descobrem sem uma penetração nos demais estratos da realidade social. FUNÇÕES E DISFUNÇÕES DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO GRUPO FUNÇÕES A) B) DISFUNÇÕES Elementos interligados em mútua A) Elementos interligados de adaptação adaptação. regressiva ou, simplesmente, sem Patentes (intencionadas e reconhecidas); condições de adaptação. e latentes (não intencionadas nem B) De conseqüências imprevistas: patentes, reconhecidas), mas funcionais. latentes ou alheias ao sistema, afetando ou não o complexo estrutural.