20 20 Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, 20-27 Determinismo e indeterminismo nos primeiros textos de Freud Fátima Cristina Monteiro de Oliveira E ste artigo percorre a evolução do conceito de determinismo nos primeiros textos de Freud e a sua evolução ao conceito de indeterminismo, e procura fazer uma aproximação entre estes textos e a clínica psicanalítica atual. Palavras-chave: Determinismo, clínica, trauma, conflito psíquico T h is article describes the evolution of the concept of determinism presented in Freud’s early writings and his evolution toward the concept of indeterminism. These early texts are placed in the context of clinical practice. Key words: determinism, clinic, trauma, mental conflict Tecendo a manhã João Cabral de Melo Neto Um galo sozinho não tece uma manhã Ele precisará sempre de outros galos, De um que apanhe este grito que ele E o lance a outro. De um outro galo Que apanhe o grito que um galo antes Que com muitos outros galos se cruzem Os fios de sol de seus gritos de galo, Para que a manhã, desde uma teia tênue, Se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, Se erguendo tendas onde entrem todos, Se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação A manhã, toldo de um tecido tão aéreo Que, tecido, se eleva por si, luz balão. M ais de uma vez, a belíssima poesia de João Cabral, veio-me à lembrança como uma imagem poética de processo analítico, este movimento, por vezes doloroso, de conquista de liberdades pessoais e independência de pensamentos. Talvez a imagem seja significante apenas para mim, provinda de minhas próprias Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002 Determinismo e indeterminismo nos primeiros textos de Freud paixões tão voltadas para o ritmo e a sonoridade das palavras dos escritos da poesia, que procura traduzir esta luta humana por uma significação. Cada um de vocês há de ter seu modo pessoal de simbolização, que pode estar na lembrança de uma música, em um filme, em uma paisagem. Posso dizer que a força das palavras, o cruzamento dos fios de sol, a teia tênue que vai se tecendo e se erguendo, o outro que está lá apanhando o grito ou não, o encorpar em tela e planar livre de armação e, por fim, elevar-se por si, luz balão, formam uma metáfora que a mim tem o poder de poder significar e encantar. Cada um, decerto, terá as suas imagens, suas próprias metáforas, que estão de acordo com sua história e suas paixões de sujeito. Iniciarei este trabalho partindo da conceituação dos termos que abordaremos, detendo-me um pouco em sua etimologia para, depois, caminhar na evolução dos conceitos freudianos. No final deste trabalho, levantarei algumas idéias de como os conceitos abordados se inserem na prática clínica da análise, bem como algumas reflexões a que a elaboração deste trabalho me levou. Já em 1893, Freud, em “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”, enunciou que havia um aumento da soma de excitação mediante uma impressão psíquica e a tendência para diminuir este soma “incômodo” para preservar a saúde. Freud faz neste trabalho uma enunciação provisória do princípio da constância, princípio segundo o qual 21 o aparelho psíquico tentaria manter constante a quantidade de excitação que contém, descarregando a energia (por isso o afeto precisa ser descarregado) e defendendo-se contra o aumento destas excitações. Inicialmente, então, Freud procurava, no tratamento das histéricas, por um único trauma factual, ou seja, um único fato, datável e isolável na história de vida da paciente. O conceito de trauma está, então, ligado a acontecimentos externos reais que teriam ultrapassado a capacidade do ego em dar conta da angústia, está ligado à incompatibilidade deste com o que o sujeito é, do conflito que ele gera e da dor psíquica que provoca se contrastado com o conjunto das representações deste sujeito. Creio que podemos concluir disto que, em diferentes épocas e culturas, portanto, a construção de sintoma neurótico poderá ir se apresentando diferentemente, já que aquilo que envolve social ou culturalmente os indivíduos é, fundamentalmente, diferente de uma época ou cultura para outra. Assim, o traumático não é visto desde o início como vindo das fantasias, das pulsões do paciente. Como nos diz Monique Schneider (1994, p. 14-5), em Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud: O afeto enquanto traumatismo psíquico, não é logo apresentado como a resultante de um crescimento endógeno de excitação que poderia fazê-lo aparecer como a expressão de uma busca partindo do próprio sujeito. E continua mais adiante: Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002 22 Fátima Cristina Monteiro de Oliveira É na realidade a analogia com um ferimento físico [como dissemos acima: traumatismo = ferida], que permite a Freud introduzir o afeto como o que vem surpreender e perturbar. Nascida desta brecha pela qual o mundo exterior procedeu a irrupção em mim, a doença psíquica guardará sempre o signo desta exterioridade que se mantém sob a forma de uma violação perpetuada do sujeito. Freud já havia se dado conta de que uma somação de experiências com modos de funcionamento semelhantes e interligadas poderia ser a base onde mais tarde, a posteriori, uma tomada de consciência poderia fazer o paciente adoecer. Podemos, metaforicamente, comparar a trama psíquica a uma trama de fios de um tecido no tear. Guardemos a imagem deste tecido e imaginemos que vamos pintá-lo com tintas. Por baixo de nossa pintura aparecerá sempre a imagem em alto relevo do tecido original... Sem a tela, porém, não haveria a pintura. É essa trama que possibilita a ressignificação, e aí temos, como extensão para a clínica, que a análise deve ser possibilitadora de novas ligações, o sujeito não deve ficar atado a um entramado único, é preciso que uma nova apreensão libere estes fragmentos perdidos, isolados, para que o sujeito não fique condenado a repetir. Foi ainda na “Comunicação preliminar” que Freud (1893) disse: “Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências”. Esta frase nos assinala que as lembranças, as representações, é que são patogênicas para a histérica e são inconscientes. Assim, a histérica não padece de uma doença física. Suas lembranças são esquecidas, mas esquecer não é um fenômeno passivo, é colocar para fora (o sufixo é es), fora de um lugar onde possa ser lembrado e isto por causa do caráter doloroso, vergonhoso, da lembrança. Pathos vem do grego e dele deriva padecimento, paixão e também passividade. A derivação destes termos parece ir diretamente ao encontro das palavras de Freud (1893): Um insulto revidado mesmo que apenas com palavras é recordado de maneira muito diversa de u m que tenha sido forçosamente aceito, e o uso lingüístico descreve caracteristicamente o insulto, sofrido em silêncio, como uma mortificação (kraenkung, literalmente: adoecimento). Ora, em silêncio, representa a passividade com que a histérica sofria o trauma. O insulto é patogênico por conter paixão (afeto, excesso de emoção) que fica contido, e a mortificação, o adoecimento, é o pathos, o padecimento. Manoel Tosta Berlinck (2000) nos fala de Phatos em seu livro Psicopatologia fundamental. Diz-nos que pathos brota do corpo. O pathos faz o corpo sofrer e ao ser ouvido traz em si mesmo o poder de cura. O pathos é sempre provocado pela presença ou imagem de algo que leva a reagir, geralmente de improviso e aqui reagir não quer dizer reclamar, gritar pois aí a Patogenicidade seria menor. Ele é, portanto, o sinal de que vivemos constantemente na dependência do outro. O Princípio da Inércia rege o processo primário (energia livre), correspondendo Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002 Determinismo e indeterminismo nos primeiros textos de Freud ao percurso da energia pelas representações do inconsciente. Já o Princípio da Constância rege o processo secundário, ou seja, dos sistemas pré-consciente e consciente, que supõem uma ligação de energia. Pode-se inferir, inclusive à prática clínica, que para as representações inconscientes se tornarem conscientes se requer uma enorme elaboração, uma quantidade imensa de energia. Estes princípios teóricos são o embasamento para o tratamento da histeria pelo método catártico, o processo de cura pela fala. Catharsis vem do grego, e significa purificação. O termo foi usado por Aristóteles para designar o efeito produzido pelo espectador pela tragédia no teatro. Assim Monique Schneider (Ibid.), nos fala do catártico, como uma dramatização: Longe da reprodução se constituir em um segundo traumatismo, ela se dá antes como uma dramatização do que pôde ser vivido somente em um silêncio sufocado, estrangulado. (p. 38) E mais à frente: É difícil definir aqui o que reaparece apenas na linguagem e o que reaparece no afeto, já que a linguagem tem seu nascimento na vontade do ser afetado em afetar o outro. (p. 41) Em “Estudos sobre a histeria” (18931895), Freud busca, portanto, um trauma único, cuja lembrança traria a cura da doença, sendo os sintomas histéricos símbolos da lembrança suprimida, uma tentativa de religar a energia da represen- 23 tação que foi tornada inconsciente. Mas já fala na sobredeterminação dos sintomas, ou seja, a evolução do trauma factual ao modelo econômico estava subliminar na evolução do pensamento freudiano já em seus primeiros trabalhos, no princípio da inércia neuronal, no “Projeto...” onde se enuncia que “os neurônios tendem a desembaraçar-se da quantidade excessiva de energia”. No encaminhamento dos “Estudos sobre a histeria”, já se “assiste a um progressivo deslocamento do centro de gravidade”. No início o sintoma parecia ter causa pontual, mas no percurso dos “Estudos...”, Freud vai percebendo que nas análises das histerias, uma impressão pré-sexual tornava-se traumatizante quando reativada pela sexualidade que a mulher adquiria, ou seja, a posteriori. Logo, o traumático era da ordem do externo, mas também do interno. Podemos compreender o significado de “a posteriori”, remetendo-nos à sua tradução em alemão, nachtragenlich, onde teremos: tragen: levar, carregar e nach: depois. Figuradamente, na língua alemã, usa-se como sinônimo de “não esquecer, guardar rancor”. Vale a pena citar literalmente Schneider (Ibid.): A cena passada se carrega, então, de realidade no momento em que o sujeito a apreende como sendo este o lugar do qual se surpreende ao ler seu desejo, no momento em que é capaz de ler o acontecimento, não somente intelectual mas fisicamente, em uma visão corporal e afetiva. (p. 94) E mais adiante: Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002 24 Fátima Cristina Monteiro de Oliveira É preciso, então esperar que esta perturbação se aposse do corpo para que, verdadeiramente os olhos se abram, conferindo repentinamente à cena passada uma presença insustentável e intolerável. (p. 95) Neste momento em que renuncia a um trauma único, temporalmente localizado, advindo de fora, como causa da patogenicidade. Freud não está renunciando à influência de todas as experiências precoces, infantis, como determinantes daquilo que machuca, mas sim admitindo que o traumatismo tem uma origem externa e interna. “A agressão externa não machuca, a não ser que se acresça de uma agressão interna e pulsional, única capaz de dotar a primeira de um poder de fascinação e paralisia” (Ibid., p. 96). Quando Freud fala do efeito da revelação do reprimido emprega o vocábulo Annahme, (admissão). Assim Schneider observa que Annahme não significa ver, objetivar, mas ao contrário, admitir, adotar, assimilar, em outras palavras, fazer um movimento que implica o ser em vez de desemplicá-lo. E este movimento requer um mergulho no afeto, não um afastamento e um entendimento racional deste. Citando Schneider integralmente em suas belíssimas intuições: Este trabalho exige não um simples olhar, mas todo um trabalho que pode ir até a reestruturação interna do sujeito. Para que este acontecimento seja conhecido é preciso que seja apreendido como ultrapassando o sujeito, impondo-se a ele do interior e do exterior ao mesmo tempo, harmonia que não se dá a não ser em um afeto: momento de posse – renuncia onde o sujeito só dominará realidade à medida que se deixe surpreender por ela. (p. 99) Disto temos conseqüências para a clínica. Se pretendemos ajudar o outro a mitigar seu sofrimento, saibamos que antes ele terá que mergulhar nele, entrar, admiti-lo como traumatismo que pode ter vindo de fora, mas também de dentro dos movimentos pulsionais e afetivos do sujeito. Assim, não é o afeto que se torna outro, mas o sujeito que se torna outro para receber dentro de si aquilo que, até então, lhe era insuportável; e para isto não basta lançar uma luz intelectual e sim dar a esta noção de Annahme (tomada de consciência) um sentido afetivo e visceral. Tem-se que chegar às entranhas para uma ressignificação, um a posteriori que não limite mais o sujeito, que o retire do amordaçamento. Assim, ao resignificar, objetiva-se que o paciente possa re-entender e mesmo re-dizer, recontar a sua história e que se abram perspectivas de uma nova compreensão que, atravessada pela emoção, possui um valor terapêutico. A definição filosófica do determinismo, segundo o Aurélio, é: “A relação entre os fenômenos pela qual estes se acham ligados de modo tão rigoroso que a um dado momento, todo fenômeno está completamente condicionado pelo que os precedem e acompanham e condiciona com o mesmo rigor os que lhe sucedem”. Pelo princípio do determinismo psíquico, na mente nada aconteceria ao acaso sendo cada acontecimento psíqui- Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002 Determinismo e indeterminismo nos primeiros textos de Freud co determinado por outros que o precederam. Este princípio fica, porém, mais completo quando Freud, indo além das causas lineares, postula que várias causas produzem um mesmo efeito. Assim, a partir de 1900 (A interpretação dos sonhos), Freud propõe que além de muitas causas produzirem o efeito do sonho há o processo primário (inconsciente) podendo gerar efeitos conscientes. Deste modo por meio de elementos inconscientes múltiplos (conteúdo latente – aquilo que de fato está reprimido) é possível construir uma rede de conexões que constitui o sonho manifesto. O conteúdo inconsciente é substituído por outro segundo determinadas linhas associativas. Um prazer inconsciente pode estar desmascarado num sonho ou sintoma, mesmo nos sonhos de angústia. Achei interessante notar que sonho, em alemão, é traum, e trauma é trauma, portanto, os dois vocábulos parecem ter a mesma raiz. Em “Cinco lições de psicanálise”, terceira conferência, Freud (1909) também afirma sua crença no determinismo: “Notarão desde logo que o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental”. Para ele não existe nada insignificante, arbitrário ou casual nas manifestações psíquicas. Antevê um motivo suficiente em toda parte onde habitualmente ninguém pensa nisso; está até disposto a acertar causas múltiplas para o mesmo efeito, enquanto nossa necessidade causal se satisfaz plenamente com uma única causa psíquica. Nessa mesma conferência, Freud fala 25 dos atos falhos como regidos pelo “determinismo psicológico”, pois exprimem impulsos ou intenções que o sujeito procura manter fora da consciência, ou como advindos do desejo reprimido, responsável também pela formação dos sintomas ou sonhos. Sendo os sintomas, os atos falhos, os sonhos, os esquecimentos, regidos pelo determinismo psíquico, eles se constituem em material de trabalho para o analista ter acesso às representações inconscientes do paciente, possibilitando-lhe enganches entre as representações, através das frestas abertas por estas formações. São mais freqüentemente desejos da infância que conhecem uma fixação no inconsciente, mas nem todas as experiências infantis são destinadas ao inconsciente. Assim, os conteúdos do inconsciente seriam os representantes das pulsões, as fantasias, desejos, em que a pulsão se fixa. Nas formações do inconsciente (sonhos, atos falhos, lapsos, chistes), assim como nos sintomas, existem associações simbólicas com o conteúdo inconsciente que elas substituem. Deste modo, estas formações têm função de realização de desejo, e são regidas pelo processo primário, onde a circulação de energia pelas representações é livre. Que conseqüências tem o determinismo para a prática clínica? Quando o analisado é convidado a dizer o que pensa, ao livre-associar, estamos favorecendo uma comunicação em que o determinismo inconsciente, surge para nós, criando cadeias associativas, preenchendo espaços que estavam vazios, possibilitando a apreensão dos Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002 26 Fátima Cristina Monteiro de Oliveira conteúdos inconscientes. Deste modo, partindo deste princípio de que nada na mente acontece ao acaso, cada acontecimento psíquico está determinado por outros anteriores, e as causas não são apenas lineares já que várias delas podem produzir um mesmo efeito, o psicanalista irá possibilitar novos enganches para o paciente, apanhará sua fala e a enganchará com sua outra fala lá (como na poesia que inicia e ilustra este trabalho). Assim, podemos pensar no aparelho psíquico como sempre aberto às ressignificações, descapturado de um determinismo linear, estando as marcas sujeitas à ressimbolização, à feitura de novos caminhos, já que o traumático não é aquilo que está preso, encapsulado no passado, mas sim aquilo que não encontrou no momento de sua inscrição uma possibilidade de simbolização. Então, como analistas, nosso trabalho deve ir muito mais além da procura por um trauma, do alívio ao encontrar uma causa datável. Não podemos entrar pelo caminho simples, se queremos facilitar as vias de trânsito em que o paciente poderá caminhar. Há que abrir-lhe colaterais, veredas, trilhas estreitas, trilhas mais largas. Para isto temos que enxergar a história do sujeito, daquele que se sujeitou a ela, e ajudá-lo a historicizar. Não se trata de uma volta na máquina do tempo, trata-se de uma nova textualização, de um recompor, um retranscrever aquilo que até agora insistia como idêntico. É pegar uma fala aqui, a outra lá, um sonho acolá, o esquecimento, o sintoma, vendo o que os determina, o que têm em comum, como se en- trameiam, e possibilitando-lhes vias de derivação, novas ligações, diferentes tecituras. Silvia Bleichmar, em seu livro A fundação do inconsciente, nos expõe sua proposta teórica sobre a constituição do aparelho psíquico, partindo de que: O inconsciente não existe desde as origens. Então,se o inconsciente é constituído, constituição que se inicia no momento do nascimento, quando uma sucessão de inscrições se faz instituindo o aparelho psíquico daquele sujeito, podemos perguntar-nos o que seria traumático e de que depende a constituição deste aparelho? O traumático vem do outro humano, bem como pode vir dele a possibilidade de constituição do aparelho com um entramado que possibilite o domínio desta energia (traumática), por meio de ligações colaterais que, tecidas em uma rede, possibilitam formas de derivação das pulsões que não apenas pela descarga. É a capacidade de ligação do aparelho que determinará a possibilidade de contenção desta energia. O que o outro humano oferece, nesta experiência que propicia uma vivência de satisfação, não é da ordem apenas da satisfação nutritiva. Estas primeiras inscrições não são passíveis de consciência. Estes fragmentos precisam de um rearranjo, de um outro que lhes ordene, transcreva, possibilite enganches e novas derivações. É este outro que cuida, outro sexuado, normalmente a mãe, possuidora de um inconsciente que inserirá a criança na cultura na qual está também envolvida. É este outro que outorgará sentido ao desconhecido, oferecerá um código, uma Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002 Determinismo e indeterminismo nos primeiros textos de Freud linguagem compartilhados. Propiciará vias colaterais por onde a energia possa se ligar, e a formação de um entramado representacional no aparelho psíquico deste bebê. Quanto mais vias de derivação, maior amplidão psíquica poderá ter esta criança que, assim, não estará atada a um caminho único. O que encontramos no sintoma ou no sofrimento de um paciente? Uma satisfação pulsional proibida, um conflito, um desejo inconsciente. Podemos então, aqui, tentar redefinir o traumatismo, sendo traumático aquilo que vem do outro e não funciona como rearranjo, como transcrição, por exemplo, o bebê que fica sob múltiplos cuidados de “outros” que têm, cada um, um inconsciente, uma história, um código; ou o bebê de uma mãe psicótica ou com depressão profunda, impossibilitada de oferecer enganches, ligações e mesmo desejo. Nas palavras de Silvia Bleichmar (1984), devemos ter em vista “o caráter estruturante que a relação com o outro tem para o sujeito humano”. Outro que faz transcrições, religações, que está presente com seu inconsciente, sua cultura, sua história, outro que é historicizante, seja para o bebê, a mãe, ou para o analisando, o analista que lhe segue em seu processo. REFERÊNCIAS BERLINCK, Manoel Tosta. Psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta, 2000. BLEICHMAR, Sílvia. Nas origens do sujeito psíquico. 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São Paulo: Escuta, 1994. Artigo recebido em novembro/2001 Aprovado em janeiro/2002 Mais um e-mail da Livraria Pulsional, para melhor atendê-lo. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002 [email protected] Consulte-nos