Uma polêmica em “cena” e a construção de uma imagem - fflch-usp

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UMA POLÊMICA EM “CENA” E A CONSTRUÇÃO DE UMA IMAGEM DE SI
Luiz Andre Neves de Brito
Universidade de São Paulo
Resumo: Neste artigo, nosso objetivo é mostrar, de uma perspectiva discursiva da Análise de
Discurso Francesa – AD, o funcionamento de uma polêmica. Analisamos como cada formação
discursiva, inserida neste espaço discursivo polêmico, constrói seu ethos. Para mostrar esse
processo de análise, partimos dos pressupostos teórico-metodológicos de Dominique Maingueneau.
Palavras-chave: Discurso; Polêmica; Ethos; Formação Discursiva.
Abstract: In this paper our aim is to show, under the rubric of French Discourse Analysis, how a
controversy works. We analyse how each discoursive formation, in a polemical relationship, builds
its ethos. In order to show this, our analysis is derived from the studies of Dominique Maingueneau.
Keywords: Discourse; Controversy; Ethos; Discoursive formation.
1. Considerações iniciais
O objetivo deste trabalho é verificar a construção do ethos em duas formações
discursivas
que
coexistem
em
um
espaço
discursivo
polêmico
sobre
a
descriminalização/legalização do aborto: as Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) – uma
organização não-governamental feminista de caráter ecumênico – e a Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB). A investigação do modo de enunciar de ambas as formações
é mostrada a partir da análise de enunciados extraídos do seguinte corpus: 1) textos de
apresentação dos materiais de divulgação produzidos pelas CDD – uma história não
contada (2000), aborto: descobrindo as bases éticas para decidir com liberdade (2001),
aborto legal: implicações éticas e religiosas (2002) e a escolha tem que ser dela:
conversando sobre a legalização do aborto (história em quadrinhos em campanha pela
legalização do aborto); 2) artigos de opinião, assinados por representantes das CDD – “um
silêncio difícil de amordaçar”, escrito por Maria José Rosado-Nunes (O Estado de São
Paulo, 5/11/2005) – e por representantes da CNBB – “o direito de decidir sobre o
nascituro” e “a vida humana é inviolável”, escritos por Dom Luciano Mendes de Almeida.
Nossa pesquisa parte do pressuposto de que “todo ato de tomar a palavra implica a
construção de uma imagem de si” (AMOSSY [1999], 2005: 9). No caso do discurso
polêmico, a tomada da palavra se dá numa zona de interincompreensão que implica na
construção de uma imagem de si e do Outro. Em suma, nossa proposta é estudar a relação
entre polêmica e ethos, ou seja, pensar a noção de ethos como um modo operacional para
observar o modo de dizer de formações discursivas em confronto. Tendo em vista os
pressupostos teórico-metodológicos mobilizados no quadro teórico da Análise do Discurso
de Linha Francesa, filiamo-nos a noção de ethos proposta por Dominique Maingueneau.
Para justificar o nosso posicionamento, retomamos uma consideração de Dominique
Maingueneau ([2002] 2006: 71):
Uma Análise do Discurso como eu a pratico não pode apreender o ethos da mesma maneira que uma
teoria da argumentação, ou uma teoria do discurso de inspiração psico-sociológica. (...) O
importante, quando se é confrontado com essa noção, é, pois, definir por qual disciplina ela é
mobilizada, com qual ponto de vista, e no interior de qual rede conceitual
2. Pressupostos teórico-metodológicos
No título deste artigo, o termo polêmica é empregado como substantivo (“uma
polêmica”), ou seja, como um conjunto de textos que se opõem sobre um tema em debate –
o aborto. Para analisar esse conjunto de textos, partimos do pressuposto de que “a polêmica
se instala quando há coexistência, num mesmo espaço discursivo, de dois pólos em torno
dos quais se estruturam formações discursivas oponentes” (BRANDÃO, 1994: 130). O
nosso conjunto de textos é composto por escritos de autores ligados às duas formações
discursivas (CDD e CNBB) que se encontram em concorrência no interior do campo
‘religioso’. Para tanto, “concorrência deve ser entendida da maneira mais ampla; inclui
tanto o confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade aparente etc... entre discursos que
possuem a mesma função social e divergem sobre o modo pelo qual ela deve ser
preenchida” (MAINGUENAU [1984], 2005: 36).
Para desenvolvermos melhor a noção de polêmica, precisamos tecer um breve
comentário sobre o conceito de formação discursiva que foi introduzido por Foucault em
1969 com A arqueologia do saber e reformulado por Pêcheux no quadro da AD (como nos
propomos a tecer um breve comentário, deixaremos de lado as reflexões de Foucault e
centrar-nos-emos nas reformulações desse conceito no quadro da AD. Em outras palavras,
não abordaremos o deslocamento do conceito, mas o conceito já deslocado). Ao observar,
na perspectiva teórica do marxismo althusseriano, a relação entre ideologia e discurso,
Pêcheux (em conjunto com outros pesquisadores: Haroche e Henry [1971] e Fuchs [1975])
diz que as formações ideológicas comportam uma ou várias formações discursivas
interligadas, que determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada numa
conjuntura. Essa tese tem incidência sobre a produção de sentido, pois toda seqüência ou
palavra só é dotada de sentido quando pertencente a uma formação discursiva. Segundo
Pêcheux e Fuchs ([1975] 2001: 169): “o sentido de uma seqüência só é materialmente
concebível na medida em que se concebe esta seqüência como pertencente necessariamente
a esta ou àquela formação discursiva (o que explica, de passagem, que ela possa ter vários
sentidos)”. Dando continuidade às suas reflexões, Pêcheux ([1983] 2001) introduz a noção
de interdiscurso para designar o “exterior” de uma formação discursiva. Diz o autor
([1983] 2001: 314):
Uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, pois é constitutivamente “invadida”
por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras formações discursivas) que se repetem nela,
fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo, sob a forma “préconstruídos” e “discursos transversos”).
Ao dizer que uma formação discursiva não é um espaço fechado, podemos inferir
que o processo analítico de uma formação discursiva não pode ser buscado na sua relação
consigo mesma, ou seja, uma análise fechada voltada exclusivamente para seu interior, mas
uma análise que coloque em foco o primado do interdiscurso, isto é, o que estrutura a
análise é a relação de uma formação discursiva com outras formações discursivas com as
quais dialoga/polemiza (cf. BRANDÃO, 1997).
Sob o primado do interdiscurso e dado o caráter heterogêneo da linguagem,
compreendemos o discurso como um sempre já-polêmico. Desse modo, a polêmica retifica
o quanto um discurso não é autônomo, pois todo e qualquer discurso só se constitui e
preserva sua identidade quando em relação interdiscursiva, regulada pelo caráter dialógico
na medida em que todo discurso contém outras falas com as quais mantém uma relação de
aliança, de reação ou de confronto. Na perspectiva de Maingueneau, é preciso compreender
a polêmica como interincompreensão, isto é, cada discurso repousa sobre uma semântica
que permite constituir e preservar sua identidade no espaço discursivo, conseqüentemente
“o discurso não pode haver-se com o Outro como tal, mas somente com o simulacro que
constrói dele” ([1984] 2005:103).
Nessa construção e preservação da identidade, “uma formação discursiva não define
somente um universo de sentido próprio, ela define igualmente um modo de coexistência
com os outros discursos” ((MAINGUENEAU [1984], 2005: 110). Esse modo de
coexistência, por sua vez, é regido por um procedimento semântico global, que apreende o
discurso integrando tanto os planos na ordem do enunciado quanto na da enunciação. Tal
procedimento nos leva a observar a imbricação entre ambiente enunciativo imediato e
ambiente institucional. Em outros termos, a eficácia da palavra não depende do que ela
enuncia, mas daquele que a enuncia e do poder do qual ele está investido aos olhos do
público. Isso implica em tomar o discurso em uma dupla perspectiva: interacional e
institucional (cf. AMOSSY [1999], 2005).
Para observar essa imbricação que constitui a prática discursiva das CDD e a da
CNBB, elegemos o estatuto de parceiros legítimos como procedimento de análise, pois
cada discurso define o estatuto que o enunciador deve conferir-se e o que conferir a seu
destinatário para legitimar o seu dizer. O discurso é então uma maneira de dizer específica
e, nesse sentido, o discurso é inseparável de uma voz específica, que permite remetê-la a
uma fonte enunciativa (cf. MAINGUENEAU [1984]2005, [1999]2005, 2006).
Nessa perspectiva, faz-se, então, necessário observar como se dá a adesão dos
sujeitos a uma posição discursiva, marcada por características amplamente históricas. Para
mostrar o que entendemos por adesão, recorremos à definição de Viala ([1999] 2005: 168),
chamando atenção para o grifo nosso:
Sem mais dialetizar Platão, diremos que a adesão é esse processo que, em sua forma acabada, faz
passar de uma de uma diversidade de maneiras de ver e de fazer à certeza de que há somente uma
que é válida, converte a subjetividade consciente de uma opinião relativa em pseudo-objetividade
inconsciente de uma certeza absoluta. Utilizam-se argumentos para justificar uma opinião; a adesão
faz passar da ordem do ‘isso é óbvio’ e acarreta a atitude que equivale a ‘incorporar’ uma
maneira de ver que se torna uma maneira de crer.
Nesse sentido, para refletir sobre essa incorporação, isto é, para refletir sobre essa
maneira de ver que se torna uma maneira de crer associada a uma maneira de dizer que
remete a uma maneira de ser, recorremos à noção de ethos postulada por Maingueneau
([1999]2005, [2002]2006) que entende a instância subjetiva como ‘voz’ e ‘corpo
enunciante’, historicamente especificado e inscrito em uma situação, que sua enunciação ao
mesmo tempo pressupõe e valida progressivamente. Essa voz, por sua vez, se manifesta
através de um tom que se apóia sobre um caráter (feixes de traços psicológicos – uma
maneira de ver, de crer e de dizer) e uma corporalidade (compleição corporal – uma forma
de vestir-se e de mover-se no espaço social, ou seja, uma maneira de ser). Dessa forma, o
texto faz emergir uma instância subjetiva encarnada historicamente que desempenha o
papel do fiador, cuja identidade está de acordo com o mundo que ele supostamente faz
surgir. Construindo a figura do fiador por meio de indícios textuais, o destinatário é
chamado a assimilar o corpo da comunidade imaginária criado pela enunciação. Esse
processo de incorporação, segundo Maingueneau ([1984]2005, [1999]2005, [2002] 2006),
faz aparecer três dimensões indissociáveis: 1) a enunciação do texto confere um corpo ao
fiador; 2) por parte do destinatário, a incorporação desse corpo, isto é, de uma maneira
específica de relacionar-se com o mundo; 3) a dupla “incorporação” (por parte do fiador e
do destinatário) assegura um corpo da comunidade imaginária dos que comungam de um
mesmo discurso.
Os pressupostos teóricos acima nos levam a pensar a noção de ethos como um modo
operacional de conduzir a análise de um discurso, uma vez que o “simples fato de que um
texto pertencer a um gênero de discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz
expectativas em matéria de ethos” (MAINGUENEAU [1999], 2005: 71). A noção de ethos,
por sua vez, leva-nos compreender melhor a adesão dos sujeitos às formações discursivas.
Sob o princípio metodológico qualitativo do paradigma de investigação indiciário
(GINZBURG [1986], 1990) que garante rigor às investigações centradas no detalhe e nas
manifestações de singularidade, mostraremos indícios que nos conduz a um modo de
enunciar (de ser) das CDD e da CNBB, ou melhor, adotando a investigação indiciária como
princípio metodológico, procuramos mostrar como as CDD, no processo de sua
constituição, legitima a discursividade do aborto legal e, do outro lado, como a CNBB, no
processo de sua constituição, legitima a discursividade da vida como princípio inviolável.
3. Análise do corpus
O foco da análise é a zona de interincompreensão entre duas formações discursivas:
CDD (Formação Discursiva 1 – FD1) e CNBB (Formação Discursiva 2 – FD2).
Analisamos, então, um duplo processo: um processo de “tradução” indo de FD1 a FD2 (o
discurso das CDD é então agente) e o outro indo de FD2 a FD1 (neste caso, o discurso da
CNBB é agente). A relação de enfrentamento das FDs é marcada por cenários
contraditórios no modo de ver a questão do aborto, resultando em duas maneiras de ser
católico, conseqüentemente, diferentes maneiras de questionar a prática do aborto.
Enquanto FD1 traduz FD2 como religiosos fundamentalistas, FD2 traduz FD1 como não
católicas.
Vejamos então como FD1 mostra uma maneira própria de construir uma imagem de
si e de interpretar seu outro (FD2). No dizer de FD1, ser fundamentalista é ocultar a
realidade; obstruir o diálogo sobre aborto; promover a superposição entre fé e política;
retroceder democraticamente e não respeitar o direito democrático. Em oposição a esse
avanço das forças fundamentalistas, um modo de ver o Estado laico, garantindo uma
pluralidade de vozes, ou seja, garantindo um debate para além da adesão da fé de cada
cidadão. Nesse sentido, o enunciador encarna a figura de um fiador consciente que lida com
o aborto como um dado da realidade brasileira, pois, sua preocupação não é discutir quem
é contra ou a favor; um fiador que dialoga com outros setores da sociedade, ou seja, um
fiador que amplia o debate entre os profissionais de diversas áreas – medicina, direito,
ciências sociais, ciências da religião e comunicação. Resumindo, é um fiador cujo caráter se
mostra consciente e conhecedor da realidade brasileira, enquanto o caráter do “antifiador” é
dogmático, pois, não informa ao público católico a diversidade de opinião no seio do
pensamento católico, limitando-se apenas a discutir quem é contra ou a favor. O corpo do
fiador é então qualificado pela sua pluralidade, pelo diálogo, por ir além da adesão de fé de
cada cidadão, ou seja, por avançar nas reflexões sobre o aborto. Já o corpo do “antifiador”
é desqualificado pelo seu fundamentalismo, pela sua singularidade, pelo seu dogmatismo
(limitando-se à adesão da fé), ou seja, por fazer retroceder nas reflexões sobre o aborto.
Para mostrar o que foi dito, vejamos as formulações abaixo:
(1) Temos assistido no mundo inteiro o avanço de forças fundamentalistas que promovem a superposição
entre fé e política, sinal de retrocesso democrático, de recuo nas liberdades individuais e nos direitos
humanos (...) não podemos nos esquecer, sobretudo, de que o Estado laico é condição fundamental de
democracia, garantia de pluralidade e conquista a ser garantida;
(2) Informar o público católico dessa diversidade de opinião no seio do pensamento teológico permitiria
às mulheres católicas uma decisão informada religiosamente, no momento crucial de escolher, ou não, pela
interrupção de uma gravidez não planejada ou indesejada (...);
(3) Esses assuntos (aborto e direito reprodutivo) tão controvertidos são objetos de fortes pressões por parte de
setores religiosos fundamentalistas, que colocam dificuldades para que os pontos de vista e os interesses
das partes afetadas sejam contemplados, obstruindo, desse modo, o caminho da reflexão, do diálogo maduro
e, conseqüentemente, da elaboração de leis justas (...);
(4) O discurso religioso anti-aborto, culpabiliza em qualquer situação aquelas que recorrem a um aborto,
contribuindo para ocultar uma das mais dramáticas realidades: a morte de centenas de mulheres que sofrem
seqüelas do aborto clandestino. Para além da adesão da fé de cada cidadão/ã, é fundamental garantir o
respeito e a qualidade do atendimento às mulheres que interrompem sua gravidez.
Outra característica do ethos das CDD é o fato do enunciador procurar salientar a
importância de estar contribuindo (oferecendo subsídios) para a ampliação do debate, ou
seja, verifica-se um tom provedor legitimado pelo uso das conjunções finais para e para
que e pelo uso dos verbos informar (como podemos observar na formulação (2) acima),
contribuir e oferecer. Esse tom provedor, por sua vez, ataca o tom punitivo dos setores
religiosos fundamentalista, legitimando o ethos da flexibilidade, que supõe uma definição
implícita do que seja um corpo católico adequado. Para validar o que foi dito, vejamos as
formulações abaixo:
(5) Esperamos, através desta iniciativa, contribuir PARA a ampliação do debate entre os/as profissionais de
saúde, oferecendo-lhes subsídios que qualifiquem sua atuação junto às usuárias dos serviços públicos nos
Programas de Aborto Legal;
(6) Queremos também, com este caderno, oferecer subsídios teóricos PARA QUE mulheres católicas de
diferentes setores sociais tenham argumentos PARA reafirmar a sua capacidade ética PARA tomar decisões
no que diz respeito à vivência da sexualidade e de sua capacidade reprodutiva.
Vejamos agora o processo discursivo indo de FD2 a FD1, isto é, vejamos como FD2
constrói a imagem de si e desqualifica a figura do “antifiador” FD1. O argumento central
para realizar esse processo discursivo é o de que a vida humana é inviolável. No dizer de
FD2, ser católico é acreditar na sacralidade da vida, cuja origem está estritamente ligada ao
ato criador de Deus, conseqüentemente, a prática do aborto viola esse princípio.
Enquanto FD1 defende que o direito de escolha tem que ser dela e que a qualidade
de vida humana depende da igualdade de direitos e de acesso aos serviços básicos, FD2
defende que o aborto é um ato ilícito e, portanto, nenhuma razão justifica sua prática.
Seguindo esse eixo argumentativo, FD2 traduz a liberdade de decidir de acordo com a
própria consciência (argumento defendido por FD1) como um ato arbitrário e totalitário.
Esse percurso argumentativo de FD2, por sua vez, constrói a imagem de um “antifiador”
irresponsável, pois uma decisão pessoal não pode ir contra a justiça. Além de ser
irresponsável, o “antifiador” é individualista e não sabe compreender a beleza e a
dignidade da vida.
Para validar o seu dizer, FD2 evoca freqüentemente a imagem divina, pondo-se
como porta voz legítimo da palavra divina. O tom utilizado é o da notoriedade, legitimado
pelo verbo conhecer: (a) são conhecidos os argumentos a favor da vida e contra a
interrupção voluntária da gravidez; (b) todos conhecemos a posição católica. Além do
tom notório, FD2 se mostrar como um fiador que sabe o que diz, pois sua posição é clara,
firme e constante, ou seja, coerente: (c) buscamos um mundo possível e melhor, mas só
acontecerá com a afirmação clara e convicta da dignidade da vida humana; (d) com que
coerência lutamos contra guerras, terrorismos, torturas e assassinatos, se somos conivente
com a eliminação de seres humanos inocentes e indefesos?; (e) todos conhecemos a
posição católica que é clara e constante em favor da vida nascente, com firme rejeição do
aborto provocado. Assim, por meio de toda uma rede metafórica centrada na clareza, na
firmeza e na coerência, FD2 desqualifica FD1 pela sua incoerência à doutrina da igreja
católica. A formulação abaixo exemplifica bem essa incoerência, é como se ouvíssemos a
voz de FD2 dizendo: “vocês CDD não podem se dizer católicas”:
(7) São conhecidos os argumentos a favor da vida e contra a interrupção voluntária da gravidez Acaba
também de circular pelo país uma série de considerações por parte da Organização não Governamental
"Católicas pelo poder de decidir", que não correspondem, no entanto, à doutrina da Igreja Católica.
Nesta publicação apresenta-se uma 'visão' teológica, católica e 'feminista'. Com todo respeito, reconheço, o
direito do grupo manifestar as próprias argumentações. Permito-me, no entanto, notar que todos conhecemos
a posição católica que é clara e constante em favor da vida nascente, com firme rejeição do aborto provocado.
Em discordância e numa outra perspectiva, a representante da ONG escreve suas reflexões, procurando
que sejam compreendidas as mulheres que decidem interromper a gravidez.
4. Considerações finais
A presente análise revelou-nos características importantes da construção do ethos de
cada uma das formações discursivas em foco no espaço discurso polêmico sobre a
descriminalização/legalização do aborto. Em relação à discursividade das CDD, verificouse a presença de um ethos religioso não fundamentalista em oposição ao ethos
fundamentalista da CNBB. O tom provedor das CDD supõe um fiador que informa a seus
destinatários a diversidade de opinião no seio do pensamento católico; um fiador flexível
em oposição à figura do antifiador que procura ocultar essa diversidade e a realidade
brasileira. Quanto à discursividade da CNBB, o enunciador mostrou-se como porta voz
legítimo da palavra divina. Para validar essa cena, o discurso produz um espaço onde se
desdobra um ethos rígido e um tom notório que lhe são próprios. Esse tom, por sua vez,
supõe um fiador coerente com os princípios da religião católica. Em suma, a presente
análise mostrou-nos como a noção de ethos discursivo pode ser um modo operacional
interessante para os estudos de discursos polêmicos; levou-nos compreender melhor a
adesão dos sujeitos às formações discursivas; por fim, permitiu-nos tornar menos nebulosa
a noção de formação discursiva.
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