OSlO Humanização da dor e sofrimento no contexto hospitalar humanos Léo Pessiní Este artigo procura dor e sofrimento e reclama como humanos que um espelho, A humanização deste dor e sofrimento muito questão, contexto seja. física. universo petência desta maior de saúde. intervir da dor/sofrimento. técnico-científica para nos deixarmos brasileiro formador tecnologização campo e humana, das filosofias em meio em nossa Para além e religiões. desumanizada públicas também ao cuidado e pela digno da fase rudimentar. relacionadas Há com a para criar uma nova cultura. o resgate de uma visão nas suas várias dimensões. da difícil o cuidado à dor e sofrimento sensibilidade sociedade é urgente humanos se fala essa problemática está numa de profissionais e espiritual. Hoje. muito da reflete No tocante ainda do cuidado. no cuidado obrigatoriamente, de políticas da dor e sofrimento emocional tocar passa, de operacionalização que cuide na nossa da sociedade. de saúde no aparelho de crescente psíquica. instituição humana no hospital. O hospital acontece condicionante o sistema em termos da dimensão da saúde, especificamente o que de pior e de melhor holística, social, e a necessidade das instituições humanos, bem como antropológica ciosa no âmbito humanização o que se fazer "porquê" a importância da desumanização desumanizante. Num realçar resposta solidário, do outro e nos humanizarmos à questão ou do que alia com- é uma chance pre- no processo. "O sofrimento somente é intolerável quando ninguém cuida. 11 Dame CicelySaunders N o 7 "O -[ [ 11 S corpos nao so}rem, aS pessoas so}rem. Eric CasseI o .- g ~ ~ .,g ,O) ~ "Não há riqueza maior que a saúde do corpo, nem contentamento maior que a alegria do coração. É melhor a morte do que uma vida amarga e o descanso eterno, mais que uma doença prolongada. 11 Eclesiástico 30, 16-17 1__1- . INTRODUÇÃO "'Numa primeira aproximação à questão da que atinge o todo da pessoa(4). Avança real- humanização da dor e sofrimento humanos no contexto hospitalar, constatamos que passamos por uma profunda crise de humanismo. çando a necessidadede uma visão antropológica holística que valorize as diversasdimensões do fenômeno dor/sofrimento, ou seja, a Falamos insistentemente de ambientes desumanizados, tecnicamente perfeitos, mas sem dimensão física, psíquica, social e espiritual (5). Em termos de assistênciade saúde, enfa- alma e ternura humana. A pessoahumana vulnerabilizadapela doençadeixou,de sero centro tiza a necessidadeimperiosa de cuidado solidário que une competência técnico-científica e de atençõese passoua ser instrumentalizada em função de determinado fim, podendo ser humanidade, principalmente naquelas situações extremas na fronteira entre a vida e a transformada em objeto de aprendizado,o sta- morte (6). tus do pesquisador,ou ser cobaia de pesquisa, só para citar algumas situ1ções que comprometem a verdade ética de que as coisas têm 1. As catedrais contemporâneas da saúde preço e podem sertrocadas,mudadase comer- e do sofrimento humano cializadas, mas as pessoastêm dignidade que deve ser respeitada! A manipulação, enfim, Façamosinicialmente uma rápida viagematé a sutilmente sefaz presentee rouba aquilo que é Idade Média e entremos numa catedral. mais precioso à vida humana: sua dignidade. , "VIsívelà distância,emblema da cidade,a catedral é na realidadeo coraçãode um vastoconjuntode Acreditamos que frente a este cenário gerador múltiplas/unções:centroreligioso,intelectual,ecode sofrimento podemos implementar uma nômico,caritativo,artístico,umacidadesagradae 52 política de assistênciae cuidado que honre a dignidade do ser humano doente. Nos limites simbólicadentroda cidade.Lugar dos principais centrose nós de organizaçãodo espaçourbano e de um texto introdutório à problemática em do urbanismo(comsua praça),ela é tambémum tela, nosso roteiro tem como partida uma aná- centrodo poder,objetode conjlitos'l(l). lise contextual da realidade hospitalar (1), apresentaalguns dados preocupantesem relação à dor na realidadebrasileira (2), segueana- A catedralera ao mesmo tempo símbolo, centro e sínteseda história da cidade. Em volta e lisando o fenômeno da tecnologizaçãodo cuidado que transforma a dor e o sofrimento dentro deste templo, viviam-se e reviviam-se todos os acontecimentosfelizes,tristes e dolo- humano num mero problema técnico (3), aprofunda a problemática no contexto clínico, ridos daquelepovo. Diante de suasportas realizam-se os teatros que cantavam a vida da propondo uma distinção entre dor, que sesitua populaçãoà luz de seusvaloresculturais e reli- mais no âmbito da dor física e do sofrimento giosos. Os vitrais, como os outdoorsde hoje, ÓSIO eram catecismos coloridos de suas crenças. É importante termos uma visão histórica de Todas as corporações celebravam dentro da catedralo dia do seupadroeiro, bem como suas como era esta instituição até muito recentemente, e que passoupor transformaçõesradi- reuniões de rotina. A vida, as festas, as ale- cais ao longo do séculoxx. A narrativa de M. grias, as tristezas, a morte, as esperanças, Foucault é simplesmentecontundente: '.Antes enfim a vida -do nascerao morrer -era celebrada dentro daquele edifício sagrado,a catedral, verdadeiro orgulho de todos. do séculoXVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres. Instituição de assistência, como também de separaçãoe exclusão.O pobre como pobre tem Em nossa civilização contemporânea, a catedral da cidade está sendo substituída por necessidade de assistênciae, como doente,portador de doençae de possívelcontágio,é perigoso. outros tipos de templos sagrados, por novos tipos de catedrais. É o caso das catedraisdo Por estas razões,o hospital deve estar presente tanto para acolhê-loquanto para proteger os esporte,que são os grandes estádios; as cate- outros do perigoque eleencarna.O personagem drais da riqueza,que sãoos bancos;as catedrais ideal do hospital, até o séculoXVIII, não é o do lazer, que são os grandesparques de entre- doentequeé precisocurar, mas o pobre que está tenimento e diversões;as catedraisdo prazer, que são as casas noturnas requintadas e os morrendo.É alguémquedeveser assistido material e espiritualmente,alguéma quemsedevedar motéis luxuosos; as catedraisdo trabalho,que são as fábricas e empresasprestadorasde serviços; as catedraisdo saber,que são as universi- os últimos cuidadose o último sacramento.Esta é a /unção essencialdo hospital. Dizia-se correntemente,nestaépoca,queo hospital era um mor- dades.E no m~io de tantos novos templos, eis redouro,um lugar ondemorrer"(2}. que surgem as catedraisda saúde,que são os hospitais. Passarde uma instituição onde sevai para morrer para uma instituição onde se cuida e se Dentro de um hospital, como nas antigas cate- aprimora a saúde exigiu muito tempo e desco- drais, recapitulam-se todas as fasesda vida do ser humano. O nascimento, com suasfestase bertas c-ientíficas.Entremos no hospital. Esta instituição é um pequenomicrocosmodo gran- esperanças,as doenças,a restauraçãoda saúde, a cura, as pesquisasna buscade novos medica- de macrocosmo(sociedade),isto é, nele encontramos em dose concentrada um resumo do mentos, as cruzadasdas campanhaspreventi- que de mais nobre, bonito e incrível encontra- vas, asvigdias nas UTls -as corporaçõesou as mos na sociedade,bem comp o que de mais equipesprofissionais combatendo o "inimigo" infecção; as oraçõese meditaçõesnos oratórios triste, degradantee violento nela existe. Ele aceita a todos indiscriminadamente. Nele nos e/ou capelas, sem esquecerdo silêncio e da inquietude em momentos de despedida de defrontamos com a realidadenua e crua, sem disfarcesou máscaras,que caem por terra sem vida. pedir licença. É uma realidade contrastante f . que nos questiona. Nela nos defrontamos com o santo e o bandido, o crente e o ateu, a crian- opçãopelaeutanásiatoma-se atrativa,no sentido de abreviara vida intencionalmentepor causada ça que apenasexalouo primeiro vagido de chegadae que setoma um grito de adeuse o velhinho que, no vigor dos seus90 anos, ainda luta dor e do sofrimento.É muito freqüenteouvir nas UTIs e corredoresdo hospitalpacientesque verbalizamem alto e bom tom quenão tememtanto para viver e de fato vive... -e que alguns dias a morte em si mesma,mas sim a dor e o sofri- após a alta volta ao hospital para agradecere distribuir um "presentinho" aosque delecuida- mento do processodo morrer. O cuidadoda dor e do sofrimento é a chavepara o resgateda dig- ramo Em situações de emergência, chega no pronto-socorro alguém que fez tudo para tirar nidadedo serhumano nestecontexto crítico, e é um dosobjetivosda Medicina desdetemposime- a própria vida numa tentativa frustrada de suicídio, e nós, profissionais da saúde,somos cha- moriais. A problemáticada dor e do sofrimento não é pura e simplesmenteuma questãotécnica: madosa fazero possívele o impossívelpara que estamosfrente a uma dasquestõeséticascontem- continue a viver. Tantas jovens mulheres que- porâneasde primeira grandezae que precisa ser rendo sermães,e por problemasde esterilidade vista e enfrentadanas suasdimensõesfísica,psínão podem; por outro lado, outras, sendofér- quica, social e espiritual. Finalmente, veremos teis, desperdiçamvidas e em muitas circunstân- neste capítulo que, no Brasil, estamos ainda cias morrem no processo.Trata-sede uma rea- numa fase bastante rudimentar em relação ao lidade simplesmenteparadoxal. cuidadoda dor no sistemade saúde.Existe muita É um contraste chocante, provocador de dor não aliviadaea esperança estána intervenção nas escolasde fonnação dos profissionais da indigna~ão ética em muitas instâncias, mas que nos convoca a sermos arautos do cuidado da vida marcada pela dor e sofrimento. saúde,na refonnulaçãocurricular,quecontemple estavisão antropológica,para além da fonnação tecnocientíficanecessária e na implementaçãoda Ninguém vai ao hospital por prazer ou para tirar férias, muito menos para passear.Trata-se filosofia doscuidadospaliativos,em nívelinstitucional ou domiciliar,frente aquelassituaçõesem de uma necessidadede preservaçãoda própria que curar não é mais possível.Falamosaqui no vida. É neste contexto que sempre temos a presença inoportuna da dor e do sofrimento cuidadodo sofrimento tenninal da vida humana. Vejamosa seguircomoa dor é tratadano contex- que nos provocam profundamente como seres to de saúdebrasileiro. humanos e como profissionais da saúde. Uma dassituaçõescríticas do cuidadoda vida é 2. Alguns dados sobre dor na realidade quandoestaé marcadapor dor e sofrimentointo- brasileira leráveise sem perspectiva,provocadospor determinada doençaséria de característicasmortais. O contexto da assistência médica em nosso Este é um dosmotivospelosquaismuitas vezesa país é ainda caracterizado, em muitos seg- s ÓSIO mentos populares, por uma cultura que cheira cas, causadorasde dor contínua, ou que retor- o conformismo dolorista ("é assim mesmo") na em intervalos de mesesou anos. da sociedadeenquanto tal. Num ethos social marcado por desigualdadee exclusão,herança Estudos epidemiológicossobre a ocorrência e de nosso período de escravidão,"o pobre tem etiologia dos quadros álgicos são poucos, e o que sofrer", e o crente não menos, para conhecimento sobre o tema ainda é bastante "ganhar o céu". Felizmente, este manto dolo- primário no BrasJ. Sabe-se,porém, que a dor rista, que acaba sacralizando a desigualdade é a razão principal pela qual 75%-80% das sociopolítica e cultural, vai desaparecendoaos pessoasprocuram o sistemaprimário de saúde. poucos. A dor crônica acometeparcela significativa da populaçãobrasJeira e é apontada como sendo Alguns sinais positivos já começama surgir no a principal causade falta ao trabalho, licenças contexto clínico brasJeiro. Foi criado em 1997, no âmbito do Ministério da Saúde, um Programa Nacional de Educação Continuada médicas,aposentadoriaspor doença,indenizações trabalhistas e baixa produtividade. No BrasJ, 6 dos 11 medicamentos campeõesde em Dor e Cuidados Paliativos para os venda no ano de 1998 foram analgésicose/ou Profissionais da Saúde (3). antiinflamatórios (5). O que entender por dor? A palavra "dor" origina-se do latim d%re. Os dicionários costu- As dores oncológicas representam 5% das dores crônicas. Estima-se que 18 mJhões de mam defini-Ia como impressão desagradável pessoasno mundo apresentemcâncerdiagnosou penosa,deco~ente de alguma lesão ou con- ticado atualmente, e a dor é um problema tusão, ou de um estado anormal do organismo comum nesses pacientes. Os estudos têm ou de parte dele. apontado que a dor oncológica não tem sido adequadamentecontrolada, não por falta de O tema dor é geralmente negligenciadopelos profissionais e educadoresdo setor saúde que recursos terapêuticos, mas por avaliação imprecisa do quadro de dor e utJização inade- elaboram os currículos de formação dos futu- quada do arsenalantiálgico disponível. ros profissionais da área. Segundo especialistas, existem basicamentedois tipos de dor: as Estudos realizados nas unidades de cuidados agudase as crônicas. A dor aguda geralmente paliativos e câncerda OrganizaçãoMundial da está associadaa algum tipo de lesão corporal e tende a desaparecerlogo que esta melhora. A Saúde (OMS) mostram que 4,5 mJhões de pacientes em países em desenvolVimentoe dor crônica é aquela que perdura por mais de desenvolvidosmorrem anualmente sem receber seis meses. É aquela que persiste além do tratamento da dor e semquelhes sejamconside- tempo razoávele esperadopara a cura de uma radosoutros sintomastão prevalecentesquanto lesão, ou que está associadaa doençascrôni- a dor e que também causamsofrimento. 55 . Em suma, a dor ainda não recebea atenção pela dignidade do serhumano, bem como sen- devida na assistênciaà saúde em nosso país. Necessitamos de programas de educação em sibilidade no processode tomada de decisões terapêuticas, devem permear toda a atividade relaçãoa essaproblemática para doentes,fami- de ensino, pesquisae assistência; liares, médicos, farmacêuticos, enfermeiros, psicólogos, assistentessociais e outros profis- 3) Presença de equipe multidisciplinar. A sionais. O desafiopara a comunidade científi- experiência assistencialrepresentaa possibili- ca, para os profissionais da saúdee para toda a sociedadeé a elaboraçãode um programa espe- dadede integraçãodos conceitosque envolvem o estudo da dor e seumanejo. O treinamento cial sobre essaquestão nos currículos de for- deve incluir o atendimento aos doentes com mação dessesprofissionais. O tema dor deve dor, realizado por todos os profissionais de ser discutido e esclarecido para que haja melhor compreensãoe prevençãode sua pre- saúde,de forma integrada. Entre os princípios que devemalicerçaros programaseducacionais sença, bem como de seucontrole (6,7). da área da saúde em dor, devem ser acrescentados os conceitos da filosofia de cuidados Estes programas de educação devem funda- paliativos que visam cuidar da dor e sofrimen- mentar-se em alguns princípios fundamentais, to dos pacientesfora de possibilidadesterapê~- que assinalamosa seguir: ticas. 1) Visão da dor nas suasdiferentes dimensões. As escolasmédicas, em geral, têm a graduação A dor é uma experiência em que aspectosbiológi~os, emocionaise culturais estãoligados de baseadano famoso relatório Flexner, datado de 1912, que fundamenta o ensino da modo indivisível e no seu ensino deve-sepro- Medicina com uma visão biocêntrica/tecnover informação para que estesaspectospossam cêntrica. O corpo humano é estudadopor parser adequadamenteconsiderados,investigados tes e a doençaé vista como sendo o mau fun- ~ "" 5& e abordados. As intervenções terapêuticas devem sempreque possívelatuar na causa da dor, sendodesejáveisas terapias que interfiram cionamento dos mécanismosbiológicos, estudados sobo ponto de vista da biologia molecular e celular. O objetivo da açãomédica é inter- pouco na fisiologia e no comportamento normal do indivíduo, que sejampouco complexas, vir física ou quimicamente para normalizar o funcionamento da unidade esfacelada.A fina- menos dispendiosase com mínimo potencial lidade da escolamédica era formar estudiosos de complicaçõese efeitos adversos; 2) Valores éticos e a importância da qualidade em doenças, especialmente especialistasque atuassemem hospitais, e não capacitaros profissionais para cuidar de doentes. Tal modelo de vida. A valorização da qualidade de vida da pessoafrágil pela dor e sofrimento e que talvez esteja enfrentando o adeus à vida; o respeito resulta numa visão reducionista da pessoa como um todo. A preocupaçãoatual da/relação entre as condições psicossocioculturais na I , , i ,. ÓSIO expressãoe na solução de questõesde saúde pessoado fracassoe da vergonha da disfunção implicou a inclusão de um conceito sociocêntrico na educaçãobásica. Esta deve desenvolver-se na organização de currículos com fun- eréctil (impotência), proporcionando o prazer e a felicidade sexual. Atualmente, não mais possuímos os místicos de outrora, que atri- damentação antropocêntrica, ou seja, compe- buíam à dor um sentido e ao sofrimento uma tentes para formar profissionais capazes de contribuir para o bem-estar físico, psíquico e social dos doentes (7,8). Passamosa seguir a considerar a questão que fundamentalmente razão de ser. Estamos numa sociedadesecularizada em que o sofrer não tem sentido, e por isso somos incapazesde percebero sentido do sofrimento. As culturas tradicionais tomam o tem um componente ético, mas que a ideologia a toma mero problema técnico. homem responsávelpor seu comportamento sobo impacto da dor, sendoque hoje é a sociedade industrial que respondediante da pessoa que sofre, para livrá-Ia desteincômodo. 3. A dor e o sofrimento como problema técnico Em meio medicalizado, a dor perturba e desnorteia a vítima, obrigando-a a entregar-seao Vivemos numa sociedadedominada pela analgesia, em que fugir da dor é o caminho racio- tratamento. Ela transforma em virtudes obsoletas a compaixão e a solidariedade,fonte de nal e normal. À medida que a dor e a morte são absorvidas pelas instituições de saúde, as reconforto. Nenhuma intervenção pessoal pode mais aliviar o sofrimento. Só quando a capacidadesde enfrentar a dor, de inseri-Ia no faculdadede sofrer e de aceitar a dor foi enfra- ser e de vivê-Ia ~o retiradas da pessoa.Ao ser tratada por drogas, a dor é vista medicamente quecida é que a intervenção analgésica tem efeito previsto. Nesse sentido, a gerência da como um barulho de disfuncionamento nos dor pressupõe.a medicalizaçãodo sofrimento. circuitos fisiológicos, sendo despojadade sua dimensão existencial subjetiva. Claro que esta mentalidade retira do sofrimento seusignificado íntimo e pessoale transforma a dor em pro- SegundoIllich, o médicoe seucliente, por viverem numa sociedadeque valoriza a anestesia, aprendema "abafar a interrogação inerente a blema técnico. Diz-se que hoje temos a chamada trindade farmacológica da felicidade, no nível físico-corporal, psíquico e sexual, que está disponível a conta-gotas nas prateleiras toda a dor". Numa sociedadeanalgésica,parece razoável se libertar dos incômodos impostos pela dor, mesmoque isto custe a perdada independência.À medidaque a analgesiadomina, o das farmácias, a um custo razoável.O xenical -para o emagrecimento e busca da felicidade comportamento e o consumo fazem declinar toda a capacidadede enfrentar a dor, índice da do corpo escultural; o prozac -para livrar-se capacidadede viver. Ao mesmotempo, diminui dos incômodos da depressãoe da busca do a faculdadede desfrutar prazeressimplese esti- bem-estar psíquico, e o viagra, que liberta a mulantes fracos. Serão necessáriosestimulan- \ " r . tes cadavez mais poderosospara dar àspessoas particulares e individuais, que uma visita a um a impressão de que estão plenamente vivas. especialistarenomado, um bom calmante, um Fala-seaqui de esquizoalgia,significando o sin- passeio ou um regime alimentar na base dos toma de supermedicalização, destruiçãoiatrogênica do poder de sofrer. Gestãotécnica da dor, "diets'" e "lights" podemresolver.Isto é muito importante de ser levado em conta principal- que enfraquecee expropria(9). mente numa realidadede América Latina, em que temos "dor e sofrimento sociais" provocaA medicalização penetra fundo em nossas dos por um sistema socioeconômicoexcludenvidas e constitui um dos domínios em que o poder da técnica foi mais bem acolhido e te em plena era de globalizaçãoeconômica (8). Considerando-seestecontexto "macro", volte- menos contestado. Cada pessoatorna-se um mo-nos agora ao contexto "micro", ou seja,à hóspede potencial dos hospitais, um paciente quasecerto de determinadascirurgias, um fre- realidadeclínica, fazendo uma distinção entre a dor e o sofrimento humano causadopelas qüentador assíduode consultórios e ambulatórios. Se antes freqüentar um hospital era sinal de pobreza (local de concentraçãode indigen- enfermidades(11). tes), hoje os hospitais e clínicas são indica40res de desenvolvimento econômico e social, 4. A dor e o sofrimento humano no contexto clínico lugares que as pessoastêm obrigação quase moral de freqüentar (10). A cura da doença e o alívio do sofrimento, Sob tat ótica, a dor foi transformada em problema de economia política. A pessoatorna-se desde o nascedouroda medicina hipocrática, são aceitos como sendo os objetivos da Medicina. A doença destrói a integriqade do consumidora de anestesiase se lança à procura de tratamentos que determinam insensibili- corpo, e a dor e o sofrimento podem ser fatores de desintegração da unidade da pessoa. dade, inconsciência, abulia e apatia provocadas Enquanto hoje a medicina está até que bem artificialmente. Toda dor é vista como resulta- aparelhadapara combater a dor, no que tange do de tecnologia faltosa, de legislação injusta ao lidar com o sofrimento encontra-se ainda ou ausênciade medicina analgésica.A heteronomia da dor transforma-a em demandaaguda num estágiobastante rudimentar (12). de medicamentos, hospitais, serviçosde saúde Ganha sempre mais importância e até uma mental e outros cuidadosprofissionais. certa popularidade nos meios científicos que Por estecaminho da medicalizaçãoda vida bio- lidam com pacientes terminais a distinção entre dor e sofrimento. Disso resulta a neces- lógica e psíquica, os problemas cruciais são despojadosde suasdimensõessociais, são des- sidade de, ao tratarmos da problemática, estabelecermosclaramente as definições e distin- politizados, e apresentam-se como questões çõesnecessárias. - , PÓSIO CasseIaba que "o sofrimento ocorre quando lima abordagemque contemple não somenteo existe a possibilidade de uma destruição imi- tratamento de suas causas,mas também de nente da pessoa,continua até que a ameaçade suasconseqüênciaspsicológicase sociais. desintegraçãopassaou até que a integridadeda pessoaé restauradanovamentede outra maneira". Aponta que o"sentido e a transcendência" Existem pelo menos mais duas definições de dor que valem a pena lembrar. Em 1979, a oferecem duas pistas de como o sofrimento Associação Internacional para o Estudo da associadocom a destruição de uma parte da Dor assima definiu: personalidadepode serdiminuído. Dar um significado à condição sofrida freqüentemente reduz ou mesmo elimina o sofrimento a ela "uma experiência emocional e sensorialdesagradável, associada com dano potencial ou associado...A transcendênciaé provavelmente atual de tecidos, descrita em termos de tais a forma mais poderosana qual alguémpode ter sua integridade restaurada, após ter sofrido a danos". Em 1986, reformulou esseconceito para "uma experiência sensorial e emocional desintegraçãoda personalidade(13). desagradável,associadaa lesõesreais ou potenciais, ou descrita em termos de tais lesões"(4). Em relaçãoà dor, constata-seque grandeparte dos profissionais de saúde não sabem o que Dame Cicely Saunders, a fundadora do significa" dor" quando falam nela. A dor tem duas característicasimportantes: a primeira é que estamos diante de um fenômeno dual: de um lado, a perc~ção da sensação;de outro, a moderno hospice, tomando esta descrição como basecunhou a expressão"dor total", que inclui além da dor física a dor mental, social e espiritual. Falhar em considerar esta aprecia- \ respostaemocional do paciente a ela. A segunda característica é que a dor pode ser sentida ção mais abrangentede dor é uma das principais causaspelas quais os pacientes não rece- como aguda, e portanto passageira,ou crôni- bem alívio adequadodos sintomas dolorosos. ca, e conseqüentementepersistente. Por vezes,existe um momento na doença críA dor aguda tem um momento definido de início, sinais físicos objetivos e subjetivos e ativi- tica em que os sentimentos de desesperançae impotência se tomam mais intoleráveis que a dade exageradado sistema nervoso. A dor crô- própria dor. Neste ponto, a diferença entre dor nica, em contraste, continua além de um e sofrimento toma-se evidente. Nem sempre período de seis meses, com o sistema nervoso seadaptandoa ela. Nos pacientescom dor crô- quem está sentindo dor está sofrendo. O sofrimento é uma questão subjetiva e está mais nica, nem, sempre existem sinais objetivos, ligado aosvaloresda pessoa.Porexemplo,duas mesmo quando eles apresentam mudanças pessoaspodem ter a mesma condição física, visíveis em sua personalidade,estilo de vida e habilidade funcional. Esse tipo de dor exige mas somente uma delas pode estar sofrendo com isso. A palavra dor deve ser usada para a 59 . percepçãode um estímulo doloroso na perife- bilidade provocadapela doença exige uma res- ria ou no sistema nervoso central associadaa posta, chamada"cuidado" (16). uma resposta efetiva. Nem toda dor leva ao sofrimento (a dor de um atleta vencedor de Um dos principais perigos em negligenciar a uma maratona leva ao prazer), e nem todo sofrimento requer a presençade dor física (a distinção entre dor e sofrimento no contexto clínico é a tendência dos tratamentos se con- angústia de saber que um ente querido tem centraremsomentenos sintomas físicos, como mal de Alzheimer, por exemplo). se apenas fossem a única fonte de angústias Daniel Callahan (14) definiu sofrimento como sendoa experiênciade impotência ê6m d pros- para o paciente. Isto resulta, freqüentemente, na situação de pacientesque estãofisicamente mais confortáveis por causada terapia da dor, pecto de dor não aliviada, situação de doença que leva a interpretar a vida vazia de sentido. Portanto, o sofrimento é mais global que a dor A distinção entre dor e sofrimento tem um e, fundamentalmente, sinônimo de qualidade de vida diminuída (15) -situações como as de significado todo particular e urgente quando se trata de cuidar da dor dos pacientesterminais. doençassériase prolongadasque causamrupturas sociais na vida do paciente, juntamente Diante da impotência que define o sofrimento, Callahan (17) acredita que "a medicina que com a crise familiar, preocupaçõesfinanceiras, premoniçõesde morte e preocupaçõesque sur- somenteprocura prolongar a vida, estendendo, mas não aliviandoo sofrimento,chegouno fim de j mas cujo sofrimento continua presente. : j gemda manifestaçãode novos sintomas e seus seusrecursose objetivos".Não fazer a distinção possí"eissignificados. entre dor e sofrimento nos permite continuar agressivamentea prescrevertratamentos médi- A dor pode ser definida como uma perturbação, sensaçãono corpo, como já dito anteriormente. O sofrimento, por outro lado, é um cos fúteis, na crença de que enquanto protegem os pacientesda dor física também os protegem de todos os outros aspectos.Em outras conceito mais abrangentee complexo. Podeser definido, no caso de doença, como um senti- palavras,a distinção nos obriga a perceberque a disponibilidade de tratamento da dor em si mento de angústia, vulnerabilidade, perda de não justifica a continuação de cuidados médi- controle e ameaça à integridade do eu. Pode cos fúteis. A continuação de tais cuidados existir dor sem sofrimento e sofrimento sem pode simplesmente impor mais sofrimentos dor. Em cada caso, somente nós podemos para o paciente terminal. senti-Io, bem como aliviá-lo. Certamente, algum nível de dor e sofrimento pode sertolerado, e seria na verdadeutópico dizer que o alí- Ouvimos, com freqüência, confidências de pacientesterminais que não têm tanto medo de vio de toda dor e sofrimento seria um objetivo morrer, mas temem o sofrimento relacionado apropriado para o sistemade saúde.A vulnera- com o processodo morrer. Isto ocorre especial- j;~ - '] \ PÓSIO mente quando esta experiênciaé marcadapela notadamente no âmbito hospitalar (UTls e dependênciamutJante, a dor e o sofrimento emergências),inicialmente, foram de extrema não cuidadosque tão heqüentementeacompanham a doençaterminal, ameaçandoa integri- importância nestesúltimos anos para resgatar o serhumano para além de sua dimensão físi- dade pessoale a perspectivade um futuro. co-biológica e situá-Io num contexto maior de Um dos primeiros objetivos da medicina ao sentido e significado, nas suasdimensõespsíquica, social e espiptual (20,21). cuidar dos pacientes terminais deveria ser o aliviar a dor e o sofrimento causados pela Dimensão frsica doença. Embora a dor física seja a fonte mais comum de sofrimento, a dor no processodo morrer vai além do físico, tendo conotações É a facilmente observada quando presente. Surge de um ferimento, de uma doença ou culturais, subjetivas,sociais,psíquicase éticas. Portanto, lidar efetivamente com a dor em todas as suas formas é algo crítico e de suma da deterioração progressiva do corpo, no idoso e no doente terminal, impedindo o funcionamento físico e o relacionamento importância para um cuidado digno dos que estão morrendo. com os outros. No nível físico, a dor funciona como um alarme de que algo está errado Podemosdizer que a dor é fisiológica, enquan- no funcionamento do corpo. Contudo, como a dor física afeta a pessoana sua globalidade to o sofrimento é psicológico. O sofrimento é de ser, ela pode facilmente ir além de sua muito mais vasto, mais global, isto é, existen- função como um sinal de alarme. A dor seve- cial. Ele inclui~s dimensõespsíquicas,psico- ra pode levar a pessoa, por vezes, a pedir a lógicas, sociaise espirituais. A dor é uma experiência somatopsíquica.A dor e o sofrimento própria morte. se reforçam mutuamente: uma dor muito forte e persistente pode influir em todas as Dimensão psíquica dimensões do sofrimento, e, inversamente, a É a dimensãodo sofrimento que pode ter múl- ansiedade,a depressão,a solidão ou o sentimento do não-sentid0 da vida podem acentuar tiplos fatores causais num capítulo de alta complexidadena área da saúdemental. Entre a dor (18,19). Passemosa algumas considera- inúmeras situaçõescríticas que podem desen- ções a'respeito dasdimensõesdo sofrimento. cadear sofrimento psíquico, lembramos o enfrentamento da própria morte. Brotam sen- 5. As dimensões da dor/sofrimento timentos caracterizados por mudança de humor, sentimentos de perdado controle sobre A contribuição da medicina psicossomáticae a o processode morrer, perda de esperançase sonhos ou necessidadede redefinir-se perante entrada da psicologia no contexto da saúde, o mundo. . Dimensão social gico, é como que advertênciade utilidade incontestável;mas, repercutindotambémna vida psi- É a dimensãodo sofrimento marcadapelo isolamento, criado justamente pela dificuldade de comunicaçãosentida no processodo morrer. A cológicado homem, muitas vezestoma-se desproporcionadaà sua utilidade biológica, e pode assumir dimensõestais que gerem o desejode presençasolidária é fundamental. A perda do eliminar a própria vida custe o que custar. papel social familiar é também muito cruel. Por exemplo, um pai doente toma-se depen- "As súplicasdos doentesmuito gravesque, por J dente dos filhos e aceita ser cuidado por eles. vezes,pedema morte não devemsercompreendidascomo expressãode uma verdadeiravonta- j j Dimensão espiritual Surge da perda de significado, sentido e espe- de de eutanásia;nestescasossão quasesempre pedidosangustiadospara aliviar a dor, por um cuidado médico melhor, por amor" (27). .) .I rança. Apesar da aparente indiferença da sociedadeem relação ao "mundo além deste", a dor espiritual está aí. É quando o doente Nesta mesma direção, uma força-tarefa (task force) do Estado de Nova York sobre a Vida e confidencia ao seu conselheiro espiritual: "dói a Lei elaborou em 1994 um documento inti- a alma". Necessitamos de um sentido e de uma razão para viver e para morrer. Em recen- tulado Quando a morte é procurada: suicídio assistidoe eutanásiano contextomédicoe reto- tes pesquisasnos Estados Unidos, ficou evidenciado que o aconselhamento em questões mou e atualizou a questão num Suplemento, em 1997, cuja conclusãovale a pena registrar espiritlhis situa-se entre as três necessidades ipsis litteris: mais solicitadas pelos que estão morrendo e seusfamiliares (22, 23, 24, 25, 26). "O grande interesse público sobre o suicídio Essas dimensões do sofrimento inter-relacio- medicamenteassistidorepresentaum sintoma de um problema muito maior: nossa falha nam-se e nem sempre é fácil distinguir umas coletiva em responderadequadamenteao sofri- dasoutras. Se os esforçospara lidar com a dor enfocamsome~teum aspectoe negligenciamos mento que os pacientesfreqüentemente experimentam no final da vida. Aperfeiçoar os cui- demais, o paciente não experimentaráalívio da dados paliativos, e responder às necessidades dor e sofrerá mais. A dor não aliviada, como psíquicas, espirituais e sociais dos pacientes dissemos,pode causarnão somente depressão, que estão morrendo, deve ser uma prioridade mas até levar a pessoaa pedir para morrer. nacional crítica. Se o suicídio assistido será Como diz a Declaraçãosobre a Eutanásia, da Sagrada Congregaçãoda Fé (5 de maio de 1980): "A dor física é certamenteum elemento finalmente legalizado ou não, esperamosque todos os que estão envolvidos no debate sobre a legalização unirão as forças para ajudar a inevitávelda condiçãohumana; no plano bioló- atingir este importante objetivo" (28). 02 i , i i ÕSIO Vale relembrar, novamente, a dra. Cicely tões pendentes,ou simplesmentecomo forma Saunders,quandoafirma: "o sofrimento somen- de garantir algum controle em face da perda da te é intolerávelquando ninguém cuida" (29). É na filosofia do hospice,viabJizaçãoda medicina paliativa, quevemosa integralidadedo serhuma- autodeterminação.Outros, negam a dor para mantero sentimentode que ainda estãono controle, apesar de evidências em contrário. no no cuidadoda dor e do sofrimento (30). Outros, usamsua dor para proteger-sede questões mais difíceis. Outros, numa perspectivade , I I ! fé, abraçama dor,acreditandoque tem um valor 6. O cuidado da dor e do sofrimento redentorque podemoferecera Deus (32, 33). A dor física é geralmente a mais fácJ de se Os médicos também falham em aliviar a dor controlar. Embora os textos médicos descrevam abordagensfarmacológicas e não-farma- dos pacientes.Alguns ignoram a natureza da dor. Outros não diagnosticamacuradamentea cológicaspara controlar a dor, existemuita dor sua origem, ou falham em avaliar o pa~iente física não aliviada. Peritos estimam que 75% dos pacientes com dor são tratados inadequa- em intervalos regulares para detectar novos processos causadores de dor e que exigem damente, e que de 60% a 90% dos que estão novasterapias.Alguns simplesmentenão acre- na fase terminal sentem dor de severaa moderada, suficiente para prejudicar as funções físi- ditam na descriçãoda dor do paciente.Outros, ainda, não tentam alternativas para a terapia cas, o humor e a interação social. Quase 25% medicamentosa,tais como estimulação elétri- dos pacientesde câncer morrem com dor seve- ca dos nervos, massagemou terapiasorientais, ra e não aliviada"(31). como a acupuntura, por exemplo(34, 35, 36, 37,38,39,40,41,42). Na perspectivado paciente,a dor pode aumentar a partir do medo, isolamento, insônia ou depressão.As respostasdos pacientespara os tratamentos de dor também podemvariar. Um Os que utJizam terapias medicamentosassão por demais tímidos em prescrevernarcóticos, pelas seguintesrazões: a) ignorância básica da dos grandesproblemasque os pacientestêm é magnitude de dosesnecessáriaspara combater encontraruma linguagemadequadaparaexpres- a dor aguda; b) medo exageradode causaruma sar sua dor, de modo a que sejaadequadamente paradarespiratória; c) ansiedadeem relaçãoao identificada e cuidada.Muitos relutam em falar perigo de adicção; d) medo irracional de ser da dor, porque sentem que os outros os julga- processadocivil ou criminalmente; e) estimatiriam como fracos e que só sabem reclamar. va exageradados efeitos colaterais de alguns Outro problema em cuidar da dor dos doentesé analgésicos,tais como adicçãopotencial. que algunsnão cooperamcom o programaterapêutico, talvez para evitar efeitos colaterais do Recentesestatísticasestimamque mais de 90% tratamento que os impediriam de resolverques- da dor pode seraliviada, e geralmentepor meio : , --, . de drogas.O desafio, para os médicos, é identificar acuradamentea necessidade de cuidar da Em suma, no contexto clínico, um cuidado adequadodos que estãomorrendo procura res- dor e usar as técnicas para seucontrole. peitar a integridade do doente como pessoa, visando garantir que o paciente: a) serámanti- Na verdade, há muito a serfeito nesta área do do livre da dor tanto quanto possível,de forma controle, administração e alívio da dor. O sofrimento sentido na fase terminal da doen- que o momento final seja marcado pela dignidade; b) receberácuidados continuados e não ça é muito mais que físico. Ele afeta não será abandonado ou perderá sua identidade somente o conceito de si próprio, mas também o sensoglobal de sentir-se conectado com os outros e com o mundo. Este sofrimento pessoal;c) terá tanto controle quanto possível em relação a decisõesrelacionadas com seu tratamento, e permissão de recusar as inter- psicossocioespiritual pode ser sentido como vençõesterapêuticas que apenas prolongam o uma ameaça para o paciente em relação ao processodo morrer; d) será ouvido como pes- sentido de vida, perda de controle, enfraquecimento da relação com os outros, uma vez que soa nos seus medos, pensamentos,sentimentos, valores e esperanças;e) terá a opção de o processodo morrer intensifica o isolamento morrer aonde desejar. e interrompe as formas ordinárias de contato com os demais. Os pacientes em estadoterminal freqüentem ente têm sentimentos de A força-tarefa do Estado de Nova York sobre a Vida e a Lei conclui o documento Quando a impotência, morteé procurada:suicídioassistido e eutanásia desesperança e isolamento. Assim, um plano adequado para lidar com este ~ofrimento psicossocioespiritual deve enfrentar esta realidade. no contextomédico com as seguintespalavras: "O cuidado efetivo da dor exige um programa compreensível,como é exemplificado na filo- "Talvez o remédio mais eficaz em termos de sofia dos cuidadosde hospice. Os profissionais da saúdetêm o deverde oferecerefetivo alívio cura seja a qualidadedo relacionamento mantido entre o paciente e seuscuidadores,e entre da dor e paliaçãopara os sintomas dos pacientes quando necessário,de acordo com um jul- o paciente e sua famdia. A qualidadecuradora da relação terapêutica pode facilmente ser gamento médico apropriado e as abordagens mais avançadasdisponíveis. O alívio da dor e enfraquecida ou ameaçada quando reações emocionais(negação,raiva, culpa e medo)sentidas pelos pacientes, famdias ou cuidadores não são adequadamentetrabalhadas. É claro dos sintomas da doença é uma contribuição poderosapara a qualidadede vida do paciente. Ele pode também apressara recuperaçãoe prover outros benefíciosmédicos.Os médicose as que está no coração da relação terapêutica enfermeiras têm uma responsabilidadeética e entre paciente e cuidadores o cuidado das profissional para oferecer um cuidado efetivo necessidades de relaçãoe sentido, bem como de uma comunicaçãohonesta e verdadeira" (43). da dor e dos seussintomas. Esta responsabilidade deve ser entendida como central na arte ! ! ÓSIO da medicina e dos cuidadosmédicos. O cuida- Jó, a não serpara observar,em forma de acusa- do dos sintomas dolorosos sentidos pelo paciente não devese restringir ao final da vida, ção e julgamento, que ele devia ter feito alguma coisa de muito ruim para merecer aquele nem deve ser um sinal de que os esfor}5oscura- destino nas mãos de um Deus justo. Sob o tivos foram abandonados.Os cuidadospaliativos devem ser compreendidos para incluir o impacto de tantas perdas causadorasde sofrimento, Jó tentava desesperadamentemanter controle dos sintomas em todos os estágiosda doença"(44). sua auto-estima, a certeza de que era um homem bom e digno. A última coisa que desejava ouvir era que não vinha agindo bem (45). Vale a pena lembrar um dos principais lemas da medicina: Sedared%rem opus divinum est, Extrapolando a explicação cientificamente que traduzido para o português significa: perfeita e o arrazoadoteológico, a solidarieda- "Aliviar a dor é uma obra divina". Nesta missão de "aliviar a dor", quer como pro~sionais ou simplesmente como sereshumano~, vale a de marcada pela competênciatécnico-científica e humana é a chavedo cuidado e sentido do "mistério" do sofrimento humano. jll iI pena lembrar o livro da Bíblia, chamadoLivro li deJá, consideradoum dos clássicosda literatura universal. Seu personagem,Jó, sofre uma ,i ; ; Considerações finais série de perdas, entre outras a saúde, os bens materiais e a própria famdia. Em meio a tantas perdas,ousa perguntar: " Por que Deus faz Em suma, a questão da dor e do sofrimento humanos, numa perspectiva ética filosófico- isto comig~?" teológica para além da dimensão "mistérica" , portadora de difíceis interrogaçõesexistenciais Na visão do rabino Harold Kushner, as pala- não raramente sem respostasao porquê, semvras de Jó nem de longe contêm uma indagação pre exigem um cuidado que alie competência de ordem teológica, elas são um grito de dor. (...) O que Jó queria de seusamigos -o que ele técnico-científica e humanismo. Um dos objetivos fundamentais da medicina, desdeos tem- estavade fato pedindo com a pergunta "Por que pos hipocráticos, é justamente minorar o sofri- Deus faz isto comigo?" -não era teologia, mas mento humano causadopelasdoenças.Com o empatia. Não desejava que lhe explicassem fantástico progresso da medicina high tech, Deus, tampouco estavaquerendo mostrar-lhes chegou-seà Jusão de pensarque a gestãotécque sua teologia era falha. Ele queria somente dizer-lhes que era realmente um ser bom e que nica da dor seria a solução,mas, independente de seremum problema de ordem técnica, a dor as coisasque estavamacontecendoeram terri- e o sofrimento situam-se na esfera ética e velmente trágicas e injustas. Mas seusamigos devemserconsideradosnas suasvárias interfa- empenharam-se tanto em ser advogados de Deus que quase simplesmente esqueceramde ces, de ordem física, psíquica, social e espiritual. O desenvolvimentoe implementação da , ,65, . . filosofia dos cuidadospaliativos, que se consti- mento igualmente nos infunde temor, medo, tui num clamor unânime de todas as partes porque vemos como que num espelho nossa envolvidasnesta discussão,é uma grandeesperança para a real efetivação de um cuidado digno das pessoasque têm dor e sofrimento fragilidade, vulnerabilidade e mortalidade, dimensões de nossa existência humana que nem sempregostamosde que sejamlembradas. atrozes causadospor doenças. É procurando traduzir em gestosconcretos o A dor e o sofrimento humanos foram vistos no valor da pessoahumana em termos de autocui- nível fenomenológico enquanto sintomas dolorosos,que exigemuma intervenção urgente e por vezesemergentede cuidados médicos dado que estaremos melhor preparados para cuidar da vida, com humanismo e competência técnico-científica. Quem cuida do cuidador? e de toda a equipe,de saúde. Não foi nosso objetivo trabalhar a teologia ou antropologia Considerar a pessoanão simplesmente como um corpo, não reduzindo-a à biologia, pura e do sofrimento humano (46), chave preciosa para alcançar um horizonte de sentido numa simplesmente,é um grandedesafio. Uma visão holística, multi, inter e transdisciplinar, é perspectivade ética. Lembramos, ao finalizar estareflexão, uma preciosaafirmação antropo- imperiosa. O serhumano é um todo uno, um nó de relações.Ser gente é possuir corpo, é ter lógica da exortaçãoapostólica Salv;jici Doloris, ao afirmar que: "O sofrimento humano susci- um psiquismo e coração, é conviver com os outros, cultivar uma esperançae crescer na ta compaixão, inspira também respeito e, a perspectivada fé em valoreshumanos. seu modo, intimida. Nele, efetivamente, está conti~ a grandezade um mistério específico" É zelando, promovendo e cuidando desta uni- (47). dadevulnerávelpela dor e sofrimento que estaremos sendo instrumentos propiciadores de Reflitamos conclusivamente sobre o sentido destaafirmação. O sofrimento suscitacompai- vida digna. Quem cuida e se deixa tocar pelo sofrimento humano do outro toma-se um xão, isto é, empatia traduzida em ação solidá- radar de alta sensibilidade, se humaniza no ria e não somente uma exclamaçãoanestesia- processoe, para além do conhecimento cientídora de consciência: "que pena", "que dó". A fico, tem a preciosa chance e o privilégio de 66 indiferença, simplesmente, é um fator desu- crescerem sabedoria.Esta sabedorianos colo- manizante que aumenta ainda mais a dor e o sofrimento. O sofrimento suscita respeito ca na rota da valorizaçãoe descobertade que a vida não é um bem a ser privatizado, muito também. Em quem muito sofre acabamospor menos um problema a ser resolvidonos circui- criar uma auréola de sacralidade.Uma criança que nascecom seríssimosproblemasgenéticos, tos digitais e eletrônicos da informática, mas um bem fundamental, um "mistério" e dom, a por exemplo, os que a cuidam não se intimi- ser vivido prazerosamente e solidariamente dam em dizer "é um(a) santinho(a)". O sofri- partilhado com os outros. ~ ÕSIO ~ RESUMEN Humanización deI dolor y sufrimiento humano en el contexto hospitalario Este artículo busca realzar Ia importancia y Ia necesidad de Ia dimensión humana en el cuidado deI dolor y sufrimiento humano en el ámbito de Ia salud, específicamente en el hospital. Hoy, se habla mocho y se reclama de Ia deshumanización de Ias instituciones de Ia saindo El hospital refleja esa problemática como un espejo, 10 que de peor y mejor sucede en nuestra sociedad deshumanizada y deshumanizante. La humanización de esta institución pasa, obligatoriamente, también por Ia humanización de este universo mayor condicionante de Ia sociedad. En 10 referente aI cuidado digno deI dolor y sufrimiento humano, el sistema de salud brasilefio todavía está en una fase rudimentaria. Hay mocho por hacer en términos de operacionalización de políticas públicas relacionadas con el tema, como intervenir en el aparato formador de profesionales para crear una nueva cultura. En un contexto de creciente tecnificación deI cuidado, es urgente el rescate de una visión antropológica holística, que cuide deI dolor y deI sufrimiento humano en sus varias dimensiones, o sea, física, social, psíquica, emocional y espiritual. Más alIá de Ia difícil respuesta a Ia cuestión deI "por qué" deI dolor y sufrimiento, campo de Ias filosofías y religiones, el cuidado solidario, que coliga competencia técnico-científica y humana, en medio deI dolor y sufrimiento deI otro, es una oportunidad preciosa para dejar tocar nuestra sensibilidad y humanizarnos en el proceso Unitermos:Bioética-sufrimiento humano,humanizaciónhospitalaria-ética, dolory sufrimiento humano-etrca ,.' I ;;67 .i :1 . ABSTRACT A human approach to human pain and suffering This paper addresses the importance sion of efforts to alleviate the pain and suffering experienced days to the dis-humanization inhuman requires ofhealthcare and dis-humanizing human pain and suffering, marked holistic gical, emocional, else are these problems reveaIing the best and the worst facets of our of hospitaIs necessarily approach to the Brazilian health system is still at a very rudimentary technologization pain and suffering, afie-ta-afie provision stage. public policies on the issue, as well as to effect chan- In addition a territory of care, mixing to answering be it physical, social, psycholothe question better covered by philosophy technical and scientific tues in view of the pain and suffering In a context of medical care, it is impera tive to restare a view of human pain and suffering, or spiritual. sympathy Nowhere societies. Thus, the humanization experience to develop in the context of healthca- education apparatus intent on creating a new culture. by the increasing anthropologic institutions. I and references are made these of society at large. With regard to a dignifying Much needs to be dane to stimulate ges in the professional Many complaints than at hospitaIs, the humanization [ of a badly needed approach to the human dimen- re in general and hospitaIs in particular. more cIearIy mirrored in a hospital setting knowledge of "why" people and religion, the with human vir- of others, presents us with a precious opportunity and become more human in the processo Unitcrms: Bioethics -human suffering, hospital humanization -ethics, human pain and suffering -ethics. , REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS 1. BranderburgAE. Catedral.In: Le GoftJ, Schmitt ' 5. FigueiróJA. Op. cito2000.p,45. JC. Dicionário temáticodo ocidentemedieval.Bauru: Edusc/lmprensaOficial do Estado,2002.p.184. 6. 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