Cadeira de Biofísica Molecular Teórico-Prática 11 Pergunta de desenvolvimento Paula Tavares, FCUL (2012-2013) 1 Proposta de Trabalho para as Teórico-Práticas • Trabalho escrito (a discutir na última TP): Nomeie e caracterize em termos de estrutura e funcionamento os principais tipos de músculo cardíaco. Nesse contexto, descreva os fluxos iónicos que estão na origem das flutuações do potencial intracelular durante o cíclo cardíaco, e a acção modulatória do sistema nervoso autónomo sobre os mesmos. • Máximo de 1000 palavras. Podem juntar figuras ao vosso trabalho. 2 O músculo cardíaco Três tipos principais de músculo cardíaco: • Músculo auricular (ou miocárdio auricular); • Músculo ventricular (ou miocárdio ventricular); • Sistema especializado de condução, que inclui: nó sinoauricular (nó SA); tractos internodais anterior, médio e posterior; feixe de Bachmann; nó aurículo-ventricular (nó AV); feixe de His; ramo esquerdo e direito do feixe de His; divisão ântero-superior, ântero-medial e póstero-inferior do ramo esquerdo do feixe de His; rede de Purkinje. Os músculos auricular e ventricular contraem da mesma forma que o músculo esquelético, mas a duração da contracção é muito mais longa no músculo cardíaco. Os músculos do sistema especializado de condução contraem muito pouco pelo facto de terem poucas fibras contrácteis. A sua função principal é a de gerar sinais 3 rítmicos, a velocidades variáveis, que controlam o ritmo cardíaco. 1 As células do músculo cardíaco 2 As células do músculo cardíaco são ramificadas, uninucleadas, estriadas como resultado do arranjo dos filamentos de actina e miosina de forma semelhante à do músculo esquelético. São conhecidas por cardiomiócitos. As áreas escuras que atravessam as fibras musculares cardíacas chamam-se discos intercalares. Os discos intercalares são http://umanitoba.ca/faculties/medicine/units/anatomy/images/cardiaccopy.JPG membranas celulares que separam duas células musculares cardíacas adjacentes. Consequentemente, as fibras cardíacas Katz, 2006, Physiology of the Heart, Lippincott Williams & Wilkins. são formadas por muitas células individuais, ligadas entre si em série. Na zona dos discos intercalares as membranas celulares fundem-se, comunicando entre si através de junções de hiato que permitem uma difusão quase livre dos iões entre células adjacentes. Consequentemente os potenciais de acção conseguem propagar-se sem obstáculos ao longo de toda a fibra, viajando de célula a célula. Por essa razão o coração é um sincício de muitas células musculares cardíacas. 4 Os sincícios cardíacos 3 O coração é composto por dois sincícios: • O sincício auricular, que constitui as paredes externas das duas aurículas. • O sincício ventricular, que constitui as paredes dos dois ventrículos. Os dois sincícios estão separados por tecido fibroso. Em condições normais, os potenciais não são conduzidos do sincício auricular directamente ao sincício ventricular. A comunicação eléctrica entre os dois sincícios faz-se através dum tecido de condução especializado designado nó aurículo-ventricular (nó AV; A-V bundle). 5 Potenciais de acção no músculo cardíaco 4 O potencial de acção no músculo ventricular tem uma amplitude média de 105 mV (varia entre -85/-90 mV e os 20 mV): -85/-90 mV entre batidas e +20 mV durante a batida. Despolarização Inicial: Mediada pela abertura de canais rápidos de Na+, que fecham abruptamente no pico da despolarização. Formação do Pico: Abertura temporária de canais de K+ e de Cl- provoca descida ligeira do potencial. Segue-se uma Zona de Repolarização Lenta onde o & Hall, 2005, Textbook of Medical Physiology, potencial permanece positivo durante cerca de 0.2 a Guyton Pennsylvania: Elsevier 0.3 segs – esta zona chama-se Plateau (a contracção ventricular dura cerca de 15× mais do que a esquelética). Mediada pela abertura de canais lentos de cálcio (tipo L) e pela diminuição da condutividade membranar ao K+ (cerca de 5×) após o início do potencial de acção. Repolarização ligeira durante o Plateau: Mediada pela saída de iões K+. Repolarização final: Fecho canais lentos de cálcio (tipo L) e aumento condução da 6 membrana ao K+. Saída rápida de K+ da fibra muscular cardíaca. O sistema especializado de condução 5 O sistema especializado de condução é constituído por: Nó ou nódulo sinusal ou sinoauricular (nó SA) Sinus Node, Sinoatrial Node or S-A node: é gerado o sinal que provoca o impulso rítmico normal do coração. Tractos internodais anterior, médio e posterior Anterior, middle and posterior internodal tract: : transportam o sinal do nó sinusal ao nó aurículo-ventricular. Nó ou nódulo aurículo-ventricular (nó AV) Atrioventricular Node or AV node: atrasa a condução do sinal das aurículas aos ventrículos. Feixe de Bachmann ou via inter-auricular Bachmann´s bundle or Interartrial band: conduz o sinal do nó sinusal à aurícula esquerda. 7 O sistema especializado de condução 5 Feixe de His ou Feixe aurículo-ventricular Bundle of His or A-V bundle: transporta o sinal do nó AV para os ramos esquerdo e direito do Feixe de His. Ramo esquerdo e direito do feixe de His Left and right bundle branch: conduz o sinal para a rede de Purkinje. Rede de Purkinje Purkinje fibers: conduz o sinal a todas as partes dos ventrículos. 8 Nó sinusal (células pacemaker) 6 Algumas fibras cardíacas tem a capacidade de se auto-excitarem, um processo que causa a descarga e a contracção muscular rítmica e automática. Isto é especialmente verdade no sistema especializado de condução do coração. A porção do sistema que apresenta os maiores índices de autoexcitação é o nó sinusal. Por essa razão, é o nó sinusal que controla a frequência de batimento cardíaco. O nó sinusal é pequeno, achatado e com formato elíptico (15 mm comprimento, 3 mm de largura e 1 mm de espessura). Este nó fica localizado na parede posterolateral superior da aurícula direita, muito próximo da zona de inserção da veia cava superior. As fibras não contêm quase nenhum filamento contráctil e têm cerca de 3 a 5 mm de diâmetro em contraste com o diâmetro de 10 a 15 mm característico das fibras musculares cardíacas circundantes. 9 Nó sinusal 6 As terminações das fibras nodais contactam directamente com as fibras musculares auriculares circundantes. Consequentemente, um potencial de acção que tenha origem no nó sinusal propaga-se ao músculo circundante, que por sua vez o transmite às fibras vizinhas, conduzindo à excitação de todo o músculo auricular. A velocidade de condução é de cerca de 0.3 m/s no músculo auricular. Existem umas fibras especiais, as fibras internodais e o feixe de Bachmann, que ligam o nó sinusal ao nó aurículoventricular (nó AV) e o nó sinusal à aurícula esquerda, respectivamente, onde a condução é mais rápida, na ordem do 1 m/s. A rápida condução nestas fibras deve-se à presença de fibras de condução especializadas, similares ao rápido sistema de condução das fibras de Purkinje. 10 Nó sinusal Note que o potencial de repouso das células do nó sinusal é de cerca –55 a –60 mV, por comparação com os –85 a –90 mV da célula muscular ventricular. As células membranares do nó sinusal apresentam uma maior condutividade ao Na+ e ao Ca2+, que tendem a entrar na célula aumentando o potencial de repouso. Guyton & Hall, 2005, Textbook of Medical Physiology, Pennsylvania: Elsevier. Nesta figura apresentam-se os potenciais de acção gerados no nó sinusal em três batimentos cardíacos, e por comparação o potencial de acção gerado numa fibra muscular ventricular durante um batimento cardíaco. 7 • As fibras nodais possuem um número moderado de canais de Na+ que estão abertos durante o estado de repouso. Como consequência entre batimentos cardíacos, o influxo de iões Na+ (if) provoca um aumento lento do potencial de repouso membranar. • Canais de cálcio (tipo T, de transient), activos numa gama de potenciais mais negativa que os tipo L, permitem a entrada de Ca2+ (iCaT) na parte final deste período de 11 subida progressiva do potencial (Katz, 2006, Physiology of the Heart, Lippincott Williams & Wilkins). Nó sinusal 7 • Quando o potencial atinge os –40 mV, dá-se a abertura dos canais lentos de cálcio (tipo L, de lasting), que permitem a entrada de mais cálcio (iCaL) , gerando o potencial de acção. • Cerca de 100 a 150 ms após a abertura, os canais de cálcio (tipo L) ficam inactivos. Ao mesmo tempo abrem os canais de K+ (iK). • O influxo através dos canais de cálcio (tipo L) cessa, enquanto que grandes quantidades de K+ movimentam-se para o exterior da célula, reduzindo o potencial de repouso para o seu valor mínimo de –55 a –60 mV (hiperpolarização), e terminando o potencial de acção. Nesta altura fecham os canais de K+. E o processo volta ao início. As concentrações citosólicas de repouso para o Na+, K+ e Ca2+ são restabelecidas, por todo o coração, através da bomba1 Na+-K+ ATPase, do trocador1 Na+-Ca2+e de bombas1,2 Ca2+ ATPase. 1. Sarcolema; 2. Retículo Sarcoplasmático. 3 Na+/Ca2+ (inward current +1) Katz, 2006, Physiology of the Heart, Lippincott Williams & Wilkins. 12 Nó aurículo-ventricular 8 O atraso da condução do sinal das aurículas para os ventrículos é feito no nó aurículo-ventricular e fibras de condução adjacentes. O nó aurículo-ventricular está localizado na parede posterior da aurícula direita, atrás da válvula tricúspide. A baixa velocidade de condução das fibras do nó aurículo-ventricular e das fibras de condução adjacentes deve-se em parte ao facto do seu tamanho ser consideravelmente menor do que o das fibras musculares das aurículas. Por outro lado, é menor o número de junções de hiato entre as células musculares adjacentes. No conjunto, estes factores provocam uma maior resistência à passagem do sinal iónico. 13 Nó aurículo-ventricular 8 Na figura estão representadas as diferentes partes do nó aurículo-ventricular e a sua ligação às fibras internodais e ao de feixe de His. A figura também indica o intervalo de tempo que já decorreu desde o disparo do sinal pelo nó sinusal. • O sinal chega ao nó aurículo-ventricular 30 ms após a sua origem no nó sinusal. • Sofre um atraso de 90 ms no nó aurículoventricular (Tempo total após passagem do nó é de: 30 ms + 90 ms = 120 ms = 0.12 segs). • Depois atravessa a porção penetrante do feixe de His, que penetra o tecido fibroso Guyton & Hall, 2005, Textbook of Medical Physiology, Pennsylvania: Elsevier. que separa as aurículas dos ventrículos. Esta passagem provoca um atraso adicional no sinal de 40 ms. O atraso conjunto do nó aurículo-ventricular e feixe de His é de 130 ms (90 ms + 40 ms = 130 ms). No total o sinal demora 160 ms a chegar ao princípio dos ramos esq. e dir. do feixe de His. 14 Fibras de Purkinje 9 As fibras de Purkinje são muito grandes, maiores do que as fibras musculares típicas dos ventrículos, e transmitem potenciais de acção com uma velocidade entre os 1.5 e os 4 m/s. Esta velocidade é 6× maior que a do tecido muscular típico dos ventrículos e 150× maior do que a de algumas fibras do nó aurículo-ventricular. Isto permite uma transmissão quase imediata do sinal a todo o músculo ventricular. As fibras de Purkinje tem origem no nó aurículo-ventricular, onde constituem o Feixe de Hiss. Na base do coração os ramos direito e esquerdo do Feixe de Hiss terminam nos ramos direito e esquerdo, respectivamente, da rede de Purkinje, que ascendem pelas paredes laterais do coração. 15 Fibras de Purkinje 9 A rede de Purkinje penetra em cerca de 1/3 da fibra muscular, e no seu término torna-se contínua com as fibras musculares cardíacas. A propagação do sinal desde a entrada nos ramos do feixe de His até às extremidades da rede de Purkinje demora cerca de 30 ms. A elevada velocidade de transmissão do sinal nas fibras de Purkinje deve-se à existência de inúmeras junções de hiato nos discos intercalares que separam as células adjacentes, o que facilita a propagação do sinal iónico entre células. As células de Purkinje tem muito poucas miofibrilhas, portanto quase que não contraem durante a transmissão do impulso. 16 Fibras de Purkinje 9 Uma das características especiais do feixe de His é a sua incapacidade, excepto em situações anormais, de conduzir os potenciais de acção em sentido inverso. Isto evita a reentrada de impulsos cardíacos dos ventrículos para as aurículas. Os tecidos musculares das aurículas e dos ventrículos estão separados, excepto no feixe de His, por uma barreira isolante de tecido fibroso. Quando há falhas nesta barreira, o sinal pode reentrar nas aurículas provocando arritmias graves (alterações do ritmo cardíaco normal). O músculo cardíaco enrola-se à volta do coração, formando uma espiral com duas camadas, separadas entre si por um septo fibroso (parede divisória). O impulso cardíaco segue estas espirais de músculo. Devido a isso, a transmissão do impulso do músculo que se encontra junto da superfície endocárdica até ao músculo que se encontra junto da superfície epicárdica requer cerca de 30 ms. Portanto, a propagação do sinal desde a entrada nos ramos do feixe de His até à activação de todo o músculo ventricular demora 60 ms. 17 Controlo da excitação e condução no coração 10 Em condições normais, o impulso cardíaco começa no nó sinusal. Em condições anormais, outras partes do coração podem exibir excitação rítmica, em especial o nó aurículo-ventricular e as fibras de Purkinje. As fibras do nó aurículo-ventricular, quando não são estimuladas por uma fonte externa, disparam 40 a 60 vezes por minuto. As fibras de Purkinje, quando não são estimuladas por uma fonte externa, disparam 20 a 40 vezes por minuto. Estas taxas de disparo são significativamente mais baixas do que as produzidas pelo nó sinusal: 70 a 80 vezes por minuto. De cada vez que o nó sinusal dispara um impulso, o sinal excitatório chega ao nó aurículo-ventricular e às fibras de Purkinje, onde também dispara impulsos. No fim desses impulsos, em ambos os nós e fibras de Purkinje, dá-se a repolarização membranar. O nó sinusal controla o batimento cardíaco porque é sempre ele que chega, antes de todas as outras fibras, ao limiar de activação. Diz-se por isso que o nó sinusal é o pacemaker do coração. 18 Controlo do ritmo cardíaco pelo sistema nervoso autónomo 11 A frequência cardíaca é controlada pelos nervos simpáticos (estimulam) e nervos parassimpáticos (inibem). A estimulação simpática pode aumentar a frequência de batimento cardíaco das 70× por minuto, para as 180 ou 200× por minuto, e raramente até 250× por minuto, ou seja, duas a três vezes mais do que o normal. A estimulação simpática aumenta também a força de contracção cardíaca, e consequentemente o volume de sangue bombeado e a pressão de ejecção. A estimulação parassimpática pode fazer Guyton & Hall, 2005, Textbook of Medical Physiology, Pennsylvania: com que o coração pare durante Elsevier alguns segundos. Mas depois o coração retoma os batimentos, batendo cerca de 20 a 40× por minuto. Forte estimulação parassimpática também pode reduzir a força de contracção cardíaca em 20 a 30%. As fibras parassimpáticas estão fundamentalmente distribuídas pelas aurículas, mas não pelos ventrículos. Isto explica porque é que a estimulação parassimpática afecta fundamentalmente a 19 frequência de batimento cardíaco e não a força de contracção. Estimulação Simpática 12 A estimulação simpática aumenta a velocidade de disparo do nó sinusal, a velocidade de condução do sinal no sistema especializado de condução, a excitabilidade de todo o coração, e a força de contracção em toda a musculatura cardíaca. Máxima estimulação pode quase triplicar a frequência de batimento cardíaco e duplicar a força da contracção cardíaca. Gαs Os nervos simpáticos libertam norepinefrina. A norepinefrina aumenta a permeabilidade membranar ao Na+ e ao Ca2+ (via cAMP). No nó sinusal o aumento da permeabilidade ao Na+ e ao Ca2+ origina um potencial de repouso mais positivo e faz com que se chegue ao potencial limiar mais rapidamente (dispara mais frequentemente). No restante sistema de condução, o aumento da permeabilidade ao Na+ e ao Ca2+ origina um potencial de repouso mais positivo (facilitando a sua excitação). O aumento da força de contracção muscular dever-se-á, em parte, ao 20 aumento da concentração do Ca2+ no interior das fibras musculares. Matthews (2001), Neurobiology, Wiley-Blackwell. Os nervos simpáticos encontram-se distribuídos por todo o coração, com uma forte representação no músculo ventricular. Estimulação Vagal 13 Os nervos parassimpáticos estão distribuídos fundamentalmente nos nós sinusal e aurículoventricular, e em menor extensão nos músculos das duas aurículas, e quase nada nos músculos dos dois ventrículos. A estimulação dos nervos parassimpáticos do coração (nervo vago) provoca a libertação de acetilcolina nas terminações nervosas. A acetilcolina: (1) Diminui o ritmo de disparo do nó sinusal; (2) Diminui a excitabilidade das fibras de condução adjacentes ao nó aurículo-ventricular, atrasando desta forma a transmissão do sinal aos ventrículos. Estimulação vagal fraca ou moderada pode diminuir o batimento cardíaco para metade do seu ritmo normal. Forte estimulação vagal pode bloquear a excitação rítmica do coração pelo nó sinusal ou a transmissão deste sinal ao nó aurículo-ventricular. Nestas circunstâncias os ventrículos param de bater até às fibras de Purkinje, normalmente da zona do septo interventricular, se tornarem o pacemaker. Este fenómeno chama-se 21 escape ventricular. Estimulação Vagal 13 Matthews (2001), Neurobiology, Wiley-Blackwell. A acetilcolina provoca o aumento da permeabilidade das fibras ao K+. O K+ sai da célula, fazendo com que esta fique hiperpolarizada, tornando-a por isso menos excitável. No nó sinusal, o potencial de repouso passa a estar nos –65 a –75 mV, em vez dos normais –55 a –60 mV. Desta forma, a subida do potencial membranar até ao potencial limiar, devido à entrada lenta de iões Na+ e de Ca2+, demora mais tempo. Gαi – Inibe adenilato ciclase (cAMP↓) Isto atrasa consideravelmente a taxa de disparo do nó sinusal. No nó aurículo-ventricular, o estado de hiperpolarização faz com que o sinal despolarizante transportado pela fibras de condução adjacentes ao nó não seja suficiente para o excitar. Broodle et al, 2001, Basic Res Cardiol 96: 528 – 538. 22