Revista Jurídica Logos São Paulo no 7 p. 1-204 2014 © 2014 Faculdade Damásio Damásio de Jesus Chanceler Marco Antonio Araújo Jr. Diretor-Geral da Faculdade Damásio Cinthya Nunes Diretora-Adjunta da Faculdade Damásio George Niaradi Coordenador de Projetos Institucionais Revista Jurídica Logos Publicação Anual da Faculdade Damásio Conselho Editorial Marco Antonio Araújo Jr. Cinthya Nunes Vieira da Silva Eduardo Iamundo Elisabete Vido Gianpaolo Smanio Margibel Adriana de Oliveira Olney Queiroz Assis Pietro Dellova Roberto Caruso Costabilè e Solimene Diretora Editorial Fabiane de Castro Luz Projeto Gráfico Kamila Amaro Fontes Capa Kamila Amaro Fontes Diagramação Thalita Brachuko Fantini Revisão Margibel Adriana de Oliveira FICHA CATALOGRÁFICA Revista Jurídica Logos – Ano 7, n. 7, jun. 2014 – São Paulo: Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus, 2014. Anual Publicação da Faculdade Damásio ISSN 1808-6861 1. Direito­ CDU 34 Índice para catálogo sistemático: 1. Direito 34 Bibliotecário responsável: Edivaldo Muniz de Souza – CRB 8/5415 Todos os direitos reservados. É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta Revista, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorização da Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis. Editorial Os sonhos são tidos para serem realizados. Um sonho da revista da Faculdade de Direito mais do que se realiza; se concretiza, no seu nono ano de publicação, com muita satisfação ao apresentar a presente edição. Com gosto redobrado eu a apresento, pois a revista vem mantendo, desde o seu nascedouro, o mesmo alto nível intelectual e com multiplicidade de temas e enfoques. Chanceler Entre os autores, consagrados juristas e novos talentos, oriundos do meio jurídico brasileiro e estrangeiro, a confirmar a perfeita convivência entre mestre e novatos; e, todos por um ideal; a construção do Direito. Os artigos alcançam diversidade de temas, desde o Direito Civil, Constitucional, Eleitoral, Arbitragem e Direito Internacional, até a formação dos novos bacharéis, Filosofia do Direito e Direito Comparado (Sistema Legal Estadunidense). Estão de parabéns os autores, os colaboradores, todos que trabalham na revista. E, de modo muito especial, Professores Marco Antonio Araújo Jr. e Cinthya Nunes. Damásio de Jesus Sumário 5 Alcione Aparecida Messa. A alienação parental e a importância dos vínculos parentais. Parental alienation and the importance of parental bonds. 27 Bruna de Carvalho Santos Pinesch. Direito Comparado: Sistema Norte- Americano vs. Sistema Brasileiro. Comparative Law: North-American System VS. Brazilian System. 47 Douglas Viola Barbosa e Edmila Montezani. A evolução ou estagnação do ensino superior nas escolas de direito no Brasil. The evolution or stagnation of education in Law schools in Brazil. 63 Fernando Antonio Notaroberto. A Súmula Vinculante como instrumento de violência simbólica. A binding precedent as an instrument of symbolic violence. 93 Fernando Cunha Silva. A importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil. The importance of arbitration for effective justice in Brazil. 125 Olney Queiroz Assis, Edson Saldiva Jordão Junior e Lucas Antzuk. Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal. Charles sanders peirce: theory of abduction and the Evidences on the criminal process. 151 George Augusto Niaradi e Marco Antonio da Silva. Parlamento do Mercosul: Perspectivas para a constituição de um direito eleitoral comunitário. Parlamento del Mercosur: Las perspectivas para la creación del Derecho Electoral de la Comunidad. 171 Mariana Cutlak Schiavi: Arbitragem e outros meios alternativos – aspectos históricos, gerais e processo. Arbitration and other alternative dispute resolution – historic, general aspects and process. 185 Mariana Dias da Costa do Amaral. Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno – convenção de Nova Iorque sobre pessoas com deficiência e convenção 158 do OIT. Incorporation of international treaties to internal law – New York convention on disability and the ilo convention 158. A alienação parental e a importância dos vínculos parentais 1 Alcione Aparecida Messa RESUMO O objetivo deste trabalho é discorrer sobre as implicações emocionais dos divórcios litigiosos, explorando a situação de alienação parental, em que se ressalta a importância dos vínculos parentais para os filhos. Além de envolver um processo judicial, o divórcio abrange também um processo psicológico e a partir de tal decisão, tem início uma fase de mudanças profundas na família. Quando o casal resolve se separar, deve regulamentar a situação de guarda dos filhos, exigindo que se tomem decisões importantes para as crianças e adolescentes. Quando os conflitos são intensos, um dos genitores pode exercer a alienação parental, afastando os filhos do outro genitor. A alienação parental representa um abuso no exercício do poder familiar, violando regras morais e éticas. O importante vínculo com um dos genitores é deturpado com a implantação de falsas memórias e conceitos, em que a criança é levada a perceber o genitor alienado como ausente e perigoso. As consequências desse processo podem ser sentidas a curto e longo prazo, e dependem dos recursos emocionais da criança e da intensidade da alienação. A avaliação psicológica se constitui como um importante instrumento que fornece informações sobre o funcionamento familiar e condições emocionais de todos os envolvidos, auxiliando nas decisões judiciais. Palavras-chave: alienação parental, vínculo parental, avaliação psicológica, divórcio. Psicóloga jurídica e clínica, Doutora em Ciências, Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento. Psicóloga do Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da Unifesp 1 Parental alienation and the importance of parental bonds ABSTRACT The purpose of this study is to discuss the emotional implications of divorce litigation, exploring the situation of parental alienation, underscoring the importance of parental bonds for children. Besides involving a lawsuit, divorce also involves a psychological process and from such decision, starts a period of family profound changes. When decides to separate, the couple should regulate the situation of child custody, requiring important decisions for children and adolescents. When conflicts are intense, one parent may exercise parental alienation, keeping the children away from the other parent. The parental alienation represents an abuse in the exercise of parenting, violating moral and ethical rules. An important bond with one of the parents is misrepresented by deploying false memories and concepts, in which the child is taken to realize the alienated parent as absent and dangerous. The consequences of this process can be felt in the short and long term, and depends on the resources of the child and the emotional intensity of alienation. The psychological evaluation constitutes an important tool that provides information about family functioning and emotional conditions of all involved, assisting in judicial decisions. Keywords: parental alienation, parental bonding, psychological assessment, divorce. Alcione Aparecida Messa 7 1. Introdução O divórcio é o rompimento do vínculo de casamento, por vias legais. Quando um dos cônjuges não aceita a separação, ou quando não o casal não chega a um acordo sobre os direitos e deveres de cada um, a situação é levada ao um litígio. Além de envolver um processo judicial, o divórcio envolve também um processo psicológico, que na maioria das vezes tem início antes do jurídico. A decisão pela separação pode partir de uma ou das duas pessoas em consenso e representa o auge da crise do casal. Antes disso, é provável que o casal tenha passado por um período de tentativas de reconciliação, com ou sem brigas, discussões, desentendimentos e decepções (BRANDÃO, 2004). Essas duas dimensões do divórcio, a jurídica e a psicológica, se relacionam e se influenciam; emoções e sentimentos se misturam aos procedimentos legais. As decisões judiciais são fortemente influenciadas pelo aspecto psicológico, ou seja, o que fica resolvido, em termos judiciais, pode intensificar o conflito emocional e viceversa (TRINDADE, 2010). A partir disso, tem início uma fase de mudanças profundas na família. Quando resolve se separar, o casal deve regulamentar a situação de guarda dos filhos, pensão, sistema de visitas e outras responsabilidades. Por outro lado, deve lidar com conflitos emocionais (CASTRO, 2003) e com a disponibilidade de negociação do ex-parceiro em debater sobre o que estão vivenciando, ou seja, o quanto conseguem ceder para que a situação se resolva. Cabe à família fornecer condições adequadas ao desenvolvimento saudável dos filhos, no que se refere à educação, saúde, vestuário e lazer, segundo a lei 6.515 que regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos. De acordo com o Artigo 27, o divórcio não modifica os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos. Alguns casais conseguem enfrentar a separação de uma maneira menos traumática e desestruturante e, apesar das dificuldades, conseguem se comunicar em uma relação amistosa. Embora seja um momento difícil, a separação não acontece da mesma forma e pelas mesmas razões para todas as pessoas. Por isso, não se deve generalizar seus efeitos, já que esse impacto dependerá das características das pessoas que estão se separando e seus recursos de enfrentamento (CASTRO, 2003), o que também é influenciado pelas leis que regem o país, por fatores culturais, sociais e o momento histórico em que ocorrem. A alienação parental e a importância dos vínculos parentais 8 Durante um processo de divórcio litigioso, todos os envolvidos vivenciam emoções e sentimentos ambíguos que envolvem medo, raiva, incerteza e fracasso nas diversas etapas do processo. O rompimento do vínculo de um casal significa o fim do projeto de união estável e objetivos comuns entre duas pessoas; podendo ser vivido como uma perda (PECK e MANOCHERIAN, 1995). O conflito do casal se estende inevitavelmente para as questões de guarda dos filhos, exigindo que se tomem decisões importantes para as crianças e adolescentes. Quando os conflitos são intensos, um dos genitores pode exercer a alienação parental, afastando os filhos do outro genitor. O tema da alienação parental foi disposto em nossa legislação pelo projeto 4053/08 e aprovado em julho de 2009 pela Comissão de Seguridade Social e Família. Dessa forma, a lei n. 12.318 de 26 de agosto de 2010 dispõe sobre a alienação parental e altera o artigo 236 da lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990. A lei define em seu artigo 2º o ato de alienação parental como uma interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie o genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com esse. A alienação parental representa um abuso no exercício do poder familiar e a violação dos direitos de personalidade da criança em formação. Além de representar uma manifestação de abuso emocional, que viola regras morais e éticas, o processo de alienação parental distorce os valores estabelecidos na Constituição (FONSECA, 2006; PIERSON; SAAD, 2010). O objetivo deste artigo é discorrer sobre as implicações emocionais dos divórcios litigiosos, explorando a situação de alienação parental, em que ressalta a importância dos vínculos parentais para os filhos. 2. Desenvolvimento As questões emocionais têm sido cada vez mais consideradas nas decisões pertinentes ao Direito de Família. A valorização do afeto nas relações ganhou destaque, já que ultimamente a família tem passado por mudanças na sua composição e na convivência entre seus membros (PAULO, 2012). Além dos novos modelos familiares que surgiram, tais como as uniões homoafetivas (casais homossexuais) e as famílias monoparentais (comandadas por somente um dos genitores), observam-se mudanças dos valores e comportamentos Alcione Aparecida Messa 9 sociais. A urbanização, a industrialização, a entrada da mulher no mercado de trabalho e o uso de anticoncepcional são fatores que, em conjunto, mudaram as responsabilidades e os papéis da família (BRANDÃO, 2004; TEYBE, 1995). O casamento representa cada vez menos uma sobrevivência econômica, ou seja, a menor dependência econômica do casamento significa menor tendência ou constrangimento a permanecer em uma relação infeliz e insatisfatória. A formação familiar vem sofrendo alterações na delimitação dos papéis desempenhados por seus membros, principalmente dos genitores. O modelo tradicional patriarcal indicava ao homem a função de provedor do sustento e detentor dos bens. Já, à mãe, eram designados os cuidados com os filhos e a casa (ROCHA, 2012; SHINE, 2003). Dessa forma, houve o aumento da importância da afetividade na decisão de se manter ou dissolver um casamento. O sentimento compartilhado pelo casal é um dos aspectos levados em conta na hora de se decidir sobre a manutenção da vida em comum. O divórcio também tem sido mais aceito e menos estigmatizado na maioria das culturas (CASTRO, 2003). Se o casal já apresenta uma relação de conflitos durante o casamento, com dificuldades na comunicação, na resolução dos problemas e negociações, é provável que essa dinâmica se intensifique durante o divórcio, principalmente se os cônjuges não conseguem reconhecer sua parcela de responsabilidade no desentendimento e na separação. Um acusa o outro, prolongando as brigas e dificultando acordos (PECK; MANOCHERIAN, 1995). Os filhos podem se tornar instrumento de agressão e passam a ser manipulados para trazer e levar informações, espionar, atrapalhar novas relações e outras situações que acabam prejudicando a criança (PIERSON; SAAD, 2010). Nas longas disputas judiciais, os filhos são revitimizados, ao relatar repetidamente eventos traumáticos ou mesmo testemunhar fatos do casal. Na fase processual de decisões sobre guarda dos filhos e convívio familiar, os genitores têm a necessidade de mostrar que desempenham melhor suas funções como pai e mãe, que são mais presentes, cuidadosos e amorosos com os filhos. Cada um quer demonstrar que é o mais indicado a se responsabilizar pelos cuidados das crianças. Em um primeiro momento, as crianças costumam ficar assustadas e confusas (BRANDÃO, 2004). Não entendem o que está acontecendo, mesmo que conheçam outras pessoas que tenham passado por isso. Embora presenciem as brigas entre o casal, as crianças não costumam desejar o divórcio dos pais (TEYBER, 1995). A alienação parental e a importância dos vínculos parentais 10 O impacto do divórcio, nas diversas etapas, afeta as crianças de forma diferente, variando entre meninos e meninas. Outras variáveis precisam ser levadas em consideração ao se analisar o ajuste da criança ao processo de separação e divórcio de seus pais, como a idade no momento da separação, nível de conflito dos pais, separação de uma das figuras de apego, tipo de relação da criança com o genitor guardião e não guardião, novos relacionamentos, relação residual dos pais e aspectos econômicos (TRINDADE, 2010). A criança não tem de escolher entre um dos pais, já que tem o direito de conviver com ambos e usufruir de experiências diferentes em cultura, religião, lazer, posição social que estão inseridos. Uma escolha desse tipo pode trazer sentimentos de culpa e uma sobrecarga emocional excessiva para a qual a criança não está preparada para lidar (BRANDÃO, 2004). 2.1. Conjugalidade e parentalidade A dissolução do casamento não significa a dissolução da parentalidade, distinguindose a relação conjugal da relação entre pais e filhos. Mesmo separados, os pais devem cumprir seus deveres, de forma a garantir o pleno desenvolvimento e o crescimento dos filhos (ALEXANDRE; VIEIRA, 2009; BRANDÃO, 2004). As dificuldades conjugais ecoam na relação dos genitores com os filhos, impedindo o exercício adequado da maternidade ou paternidade. Mesmo que o casal decida se separar é necessário que se mantenham as relações parentais preservadas, proporcionando à criança a convivência com ambos os genitores (FIORELLI; MANGINI, 2008; ROCHA, 2012; SILVA, 2005). O papel de pai e mãe requer habilidade e disposição para ser desempenhado, independente do que é imposto juridicamente. Ter um filho gera mudanças profundas no casal, e exige adaptações importantes que ocorrerão mais rapidamente, na medida em que as funções parentais são exercidas com naturalidade e aceitação (CASTRO, 2003). A parentalidade é um conjunto de processos interativos inter-relacionados que se iniciam com o nascimento da criança, em que cada membro atribui um significado, de acordo com sua história de vida e recursos pessoais (MACCOBY, 2002). A guarda compartilhada é uma maneira prática de estabelecer um convívio mais intenso entre pais e filhos, mas deve ser uma proposta acompanhada do desejo dos pais em ter essa convivência e colocá-la em prática (ALEXANDRE; VIEIRA, 2009; BRANDÃO, 2004). Alcione Aparecida Messa 11 As mudanças de rotina, de casa e de convívio com os pais podem causar insegurança, que tende a diminuir quando a criança percebe que, apesar das mudanças, continuará sendo amada e cuidada e que, os laços afetivos com os pais serão mantidos depois da separação (PIERSON; SAAD, 2010). Em muitos casos, a separação conjugal se transforma em sinônimo das perdas dos direitos parentais, de forma dolorosa e injusta. A postura de imparcialidade, em comunicar os sentimentos referentes à situação conjugal para os filhos, requer maturidade das pessoas envolvidas, de forma que a prioridade seja preservar a relação da criança, com o outro cônjuge, sem a contaminação pelos conflitos e reivindicações do casal (FIORELLI; MANGINI, 2008). 2.2. A importância dos vínculos parentais para o desenvolvimento infantil As mudanças comportamentais e sociais aliadas aos achados das pesquisas, relacionadas ao desenvolvimento infantil, apontam para novos modelos de atuação dos pais. Atualmente, as funções parentais se estruturam de acordo com as atribuições de cada genitor na dinâmica familiar e com a participação ativa de ambos na criação dos filhos (ALEXANDRE; VIEIRA, 2009). Os estudos psicológicos são unânimes, em atribuir a importância do vínculo entre pais e filhos, para a formação psíquica da criança (HIDALGO; PALACIOS, 2004; MAIA; WILLIAMS, 2005). Observou-se que a privação de convivência com a figura paterna pode provocar distúrbios de personalidade e problemas na convivência social, o que promoveu mudanças na conduta de atribuir à mãe, a prevalência afetiva com os filhos. A partir do nascimento e durante os primeiros anos, ambos os genitores são responsáveis pela transmissão de valores, limites e conceitos fundamentais para a convivência da criança em sociedade. A interação da criança com os pais promove sentimentos de segurança e aceitação indispensáveis para o fortalecimento de sua autoestima. A participação paterna é essencial nesse processo, contribuindo para um desenvolvimento emocional saudável dos filhos (ORTIZ et al, 2004). O ser humano apresenta uma capacidade inata para a formação de fortes vínculos afetivos, e essa tendência pode ser prejudicada por fatores externos que impeçam a criança de desenvolver esse potencial. Essa tendência humana tem o objetivo de zelar pela própria sobrevivência. Segundo Bowlby (1984), o vínculo é um laço duradouro estabelecido com um parceiro, e o apego é uma função que busca proximidade e contato com uma figura específica, no intuito de obter segurança e garantir o acesso às pessoas que cuidam e protegem. A alienação parental e a importância dos vínculos parentais 12 É no contato com os pais que a criança integra sua identidade. Aos poucos, com a mediação do adulto, a criança vai criando autonomia e desenvolvendo habilidades. Os pais também auxiliam na formação da base moral de seus filhos, explicando porque determinadas atitudes são boas ou más, suas consequências e intenções. Com esse aprendizado, as crianças são incentivadas a considerar os sentimentos das outras pessoas, e os efeitos que seus comportamentos geram. Esse processo auxilia que as crianças compreendam suas próprias emoções e a empatia pelas pessoas (ORTIZ et al, 2004) Dessa forma, para alguns estudiosos psicanalistas do desenvolvimento infantil como Spitz, Winnicott e Bowlby, a capacidade de estabelecer vínculos na fase adulta está diretamente relacionada com as experiências de relacionamento entre pais e filhos na infância. Quanto melhor a interação que a criança tem com seus pais, nos primeiros anos de vida, melhor será seu desenvolvimento emocional, e maior será a capacidade de estabelecer vínculos no futuro. As duas vivências, tanto materna quanto paterna, são imprescindíveis para a criança e enriquecem seu desenvolvimento cognitivo e afetivo. A função dos pais não é somente prover as necessidades básicas materiais dos filhos. De fundamental importância é promover a assistência emocional e educacional para seu pleno desenvolvimento. A Constituição Brasileira reconhece o valor da convivência familiar e comunitária como prioridade absoluta, considerando-a como um dos direitos mais importantes para crianças e adultos. Quando a criança não tem a convivência familiar ou a ligação com pessoas que possam cuidar dela, tende a apresentar dificuldades nos relacionamentos e na própria função de apego, desenvolvendo um comportamento desconfiado e inseguro. Mesmo separados, os pais devem cuidar, para não permitir que a separação conjugal física, cause uma separação emocional, entre eles e os filhos. A legislação que determina o direito à convivência familiar inclui o direito da criança em manter o vínculo com o pai e com a mãe, legitimando a importância dessa relação para o desenvolvimento infantil. 2.3. Alienação Parental As situações de conflito conjugal podem se sobrepor aos interesses das crianças, evidenciando pendências não resolvidas do casal, as quais anulam as condições de altruísmo e dedicação necessárias, ao relacionamento entre pais e filhos. Os filhos deixam de ser vistos como seres em desenvolvimento, a quem se destina a proteção integral e preservação da integridade física e psicológica. Eles Alcione Aparecida Messa 13 passam a ser usados como instrumento de vingança e agressão contra o outro genitor, prejudicando o vínculo entre eles (BRANDÃO, 2004; CARVALHO, 2011; FONSECA, 2006; ROCHA, 2012). Ao processo de afastamento de um dos genitores (genitor alienado), promovido pelo outro genitor (genitor alienante), dá-se o nome de alienação parental. Os filhos são instruídos a deturpar sua percepção sobre o genitor que alienar, com o intuito de que desenvolva sentimentos negativos e de rejeição a ele (FONSECA, 2006). Para que se configure a alienação parental, é necessário que o vínculo com o genitor alienado não ofereça riscos para a criança. Os sintomas que a alienação parental provoca nas crianças evidenciam uma questão de abuso emocional, privando-as de usufruir de um vínculo saudável e afetivo. A criança que está envolvida na alienação parental, se nega a manter contato com um dos pais, independente de qualquer motivo, mesmo que essa convivência não apresente riscos, agindo como se tivesse sido programada para apresentar tais reações, em consequência da “lavagem cerebral” a que são submetidas (ROCHA, 2012). Para alcançar seus objetivos, o alienante se mostra como um bom genitor, capaz de suprir todas as necessidades da criança e age como se fosse uma vítima dos atos cruéis e injustos cometidos pelo genitor alienado. O alienante evidencia o desejo em tomar somente para si os cuidados dos filhos e as decisões relacionadas ao seu desenvolvimento (HUERTA, 2007). Em meio aos comportamentos e condutas de alienação e afastamento dos pais, o bem-estar da criança não é prioridade. O fenômeno começou a ser identificado e estudado por Richard Gardner, médico e professor de psiquiatria infantil da Universidade de Colúmbia (EUA), em 1985. Com o aumento da disputa pela guarda dos filhos em divórcios, Gardner identificou sintomas frequentes nas crianças envolvidas nesses processos, que não haviam sido relatados anteriormente (GARDNER, 1987). A alienação parental é, geralmente, fruto dos processos de separação, mas pode também acontecer com o casal ainda unido. Dependendo de como os pais se comportam e dividem as tarefas de educação e criação dos filhos, pode existir um movimento de alienação dentro da própria família. Nesses casos, os pais se esforçam para se mostrarem melhores quando cumprem suas responsabilidades e os filhos são manipulados a ter uma preferência por um deles. A alienação pode ser provocada por sentimentos de inconformismo, se uma das pessoas do relacionamento, não desejar a separação. Afastar o filho do ex-cônjuge significa uma forma de protesto, insatisfação e vingança pelo fim do casamento e por sentimentos de rejeição e abandono (ROCHA, 2012). A alienação parental e a importância dos vínculos parentais 14 Os sentimentos mais frequentes, nos processos de divórcio, são raiva, mágoa, tristeza, frustração e impotência e funcionam como fortes motivos para que a alienação aconteça, principalmente, quando o ex-casal discorda do novo arranjo financeiro estabelecido (pensões e divisão de bens) e a queda do padrão de vida; sistema de visitas (horários, flexibilidade, frequência) e mudança de domicílio. A alienação parental pode significar a busca de uma compensação ao sofrimento que todos esses fatores provocaram (FONSECA, 2006). Outro motivo pode ser o desejo de impedir que os filhos convivam com futuros parceiros do ex-cônjuge. Isso pode acontecer por ciúmes, ou por julgar que esse genitor não conseguirá cuidar das crianças adequadamente. A ideia que prevalece nessas situações é a de que o genitor alienado não é digno de receber afeto dos seus filhos, que não é merecedor do convívio com eles (LAGO; BANDEIRA, 2009). A solidão e o isolamento a que fica submetido o pai alienador, especialmente quando não tem por perto amigos e familiares, pode propiciar que deseje a convivência dos filhos somente para si. 2.3.1. Formas de alienação e a implantação de falsas memórias A dependência física e emocional das crianças, com seus genitores nos primeiros anos de vida, além de sua condição de vulnerabilidade e de sujeito em desenvolvimento contribuem para a implantação das falsas memórias e acontecimentos (ROCHA, 2012). Os filhos são convencidos de que os abusos aconteceram por não possuírem discernimento para separar realidade e fantasia. As crianças entendem que devem acreditar no que lhes é dito. Elas estabelecem um pacto de lealdade com o genitor alienante, que as faz pensar que qualquer manifestação de afeto a favor do genitor alienado pode significar uma traição. A criança manifesta comportamentos que protegem o alienante, estabelecendo um comportamento de concordância com as ideias implantadas e compartilhadas (ROCHA, 2012). As ideias criadas são nocivas e tendem a manipular a memória emocional da criança, que é induzida a repetir as acusações, reproduzindo o discurso do alienante. Com o desenrolar da alienação, a criança contribui para a desmoralização, passa a acreditar que tais fatos ocorreram e que o genitor alienado é abusador, prejudicial ou ausente (TRINDADE, 2010). A criança tem facilidade em criar fantasias, histórias e personagens. As falsas memórias são lembranças de eventos que não ocorreram na realidade (STEIN; NEUFELD, 2001) e consistem em uma distorção do registro de uma experiência. Alcione Aparecida Messa 15 Apresentam-se como uma mistura de fragmentos de eventos memorizados e ideias que são tidas como verdadeiras e reais. A criação dos detalhes e a repetição frequente geram condições para a implantação dos falsos eventos na memória. Alfred Binet (1857-1911) psicólogo e pedagogo francês - investigou os erros involuntários de crianças submetidas a testes de recordação e verificou que a criança apresenta um elevado grau de sugestionabilidade, em razão do nível cognitivo ou autossugestão. A tendência infantil, de criar fatos e fantasiar a respeito do mundo e de suas vivências, mostra o quanto o aparelho psicológico infantil é vulnerável às falsas memórias. Além disso, diversas atitudes do genitor são indicadores de que um processo de alienação pode estar acontecendo (FONSECA, 2006), como por exemplo: omitir detalhes da vida da criança, mudar de domicílio ou de país, sem justificativa ou prévio aviso, dificultar contato da criança ou adolescente com o genitor, dificultar a convivência familiar regulamentada, apresentar falsa denúncia contra o genitor e familiares, não atender ligações telefônicas e não transmitir recados. As acusações de abuso sexual são formas graves de alienação parental (ROCHA, 2012). As alegações contra o genitor alienado podem conter denúncias de alcoolismo, uso de drogas e más companhias, perturbações mentais (justificadas com os tratamentos que o genitor fez no passado), comportamento sexual impróprio, maus-tratos, negligência de que os filhos não se sentem bem quando retornam das visitas. O genitor alienador se coloca como protetor dos filhos, e propaga a ideia de que não estará por perto nos encontros da criança com o outro genitor para controlar a situação ou protegê-la. O mundo é visto como perigoso e o outro genitor como incapaz (CRUZ, 2008). A alienação parental se agrava, com a desistência do genitor alienado em estar com os filhos, ou seja, a mãe ou pai aceitam o afastamento e não oferecem mais resistência à prática da alienação, param de tentar visitá-los ou mesmo de lutar para mudar a situação. Quando o genitor alienado não desiste de tentar ver os filhos, as consequências podem ser amenizadas (CRUZ, 2008; FIORELLI; MANGINI, 2008). 2.3.2. Consequências da alienação parental e aspectos psicológicos A alienação parental compromete o desenvolvimento da criança em diversos aspectos e níveis e, por essa razão, pode ser considerada um comportamento abusivo, da mesma forma que os abusos sexuais ou físicos (LOWENSTEIN, 1998). As crianças e os jovens não estão preparados para lidar com a pressão na qual a alienação acontece. O alienador pode não perceber que suas atitudes são prejudiciais para a estrutura psicológica do filho. A alienação parental e a importância dos vínculos parentais 16 Quanto mais severa a alienação, mais graves são as consequências. Em pesquisa com adultos que sofreram alienação parental quando eram crianças observou-se a tendência destes indivíduos em apresentar episódios de depressão, baixa autoestima, falta de confiança em si mesmos e nos outros, problemas com álcool e drogas, alienação de seus próprios filhos e divórcio (BAKER, 2005). As consequências do afastamento para a criança podem se manifestar em sintomas de depressão crônica, incapacidade de adaptação social, transtornos de identidade, sentimentos de culpa, isolamento, instabilidade, hostilidade e desorganização psíquica (FIORELLI; MANGINI, 2008; FONSECA, 2006; LAGO; BANDEIRA, 2009), além de um conflito de lealdade, pois a criança não entende os motivos do afastamento do genitor ao qual é ligada afetivamente (ROCHA, 2012). Ao mesmo tempo em que não conseguem se opor à manipulação, passam a acreditar que devem ser fiéis ao alienador, com quem estabelecem uma relação de dependência. O genitor que aliena apresenta dificuldades em exercer a empatia, ou seja, em se colocar no lugar do outro, tanto do genitor alienado quanto dos filhos e perceber as necessidades, visto que impõe suas ideias como verdades, presumindo que tudo lhe é devido, inclusive o controle do tempo dos filhos e monitoramento de suas emoções e sentimentos (TRINDADE, 2010). Na família em que ocorre a alienação, todos os integrantes são vítimas. De um lado, o genitor alienador, que se encontra em desequilíbrio emocional para lidar com a criação dos filhos de uma forma saudável. De outro lado, está o genitor alienado que vivencia o distanciamento dos filhos, submetendo-se aos ataques, humilhações e falsas acusações. Durante a alienação parental, os filhos sofrem por falta de amor, atenção e pelos sentimentos negativos que são obrigados a sustentar. A situação de alienação instaura um dilema. Nas visitas com o genitor alienado, a criança sente prazer e desfruta do convívio, mas não pode compartilhar isso com o genitor guardião, uma vez que, irá contar somente o que não gostou ou foi desagradável, como se quisesse proteger o genitor alienante2. A criança aprende e repete o comportamento do alienante, já que percebe seus pais como exemplos a serem seguidos. Quando adulta, pode sentir culpa por ter tido comportamentos injustos contra o genitor alienado. Ao ter sido conivente com a alienação, foi privada de um importante convívio ao seu desenvolvimento (FONSECA, 2006). Conforme mencionado pelos participantes do documentário A morte inventada, direção Alan Minas e produção de Daniela Vitorino, Caraminhola Produções. 2 Alcione Aparecida Messa 17 Os pais, que começam a sofrer os ataques e injúrias dos filhos podem se sentir paralisados, visto que eles são pessoas que estão submetidas a danos morais, psicológicos, afetivos e até mesmo econômicos3, pois quando afastados dos filhos, adoecem e se desequilibram psicologicamente, podendo apresentar prejuízo da atividade laboral. A alienação em seu grau mais severo, além de provocar o afastamento definitivo entre genitor e filho, provoca também o afastamento de familiares, amigos e pessoas próximas do genitor alienado. O prejuízo ou a destruição total desses vínculos pode gerar danos psicológicos a curto e longo prazo4 . Embora seja difícil traçar um perfil psicológico específico do alienador, algumas características como manipulação, sedução, negação da perda, baixa autoestima, desrespeito às normas e dominação são evidentes no comportamento do genitor que aliena. O diagnóstico pode ser difícil por se tratar de um abuso invisível, silencioso e com a impressão de que uma criança está correndo perigo e precisa ser defendida. Por apresentar tais características, a manipulação de crianças e a denúncia de falsas ocorrências necessitam de profundas investigações (TRINDADE, 2010). 2.4. Avaliação e contribuição da psicologia jurídica A gravidade da alienação pode ser constatada com perícias e uma avaliação psicológica cuidadosa e aprofundada da criança, a respeito dos possíveis danos neste processo. O processo de avaliação realizada pela equipe multiprofissional é longo, pois depende de uma série de dados que devem ser coletados para a elaboração de um parecer (RAMOS, 2012). As avaliações não chegam a uma conclusão por si só, elas auxiliam o magistrado a decidir sobre a condução do caso (BRANDÃO, 2004; SUANNES, 2011). O avaliador deve ter uma compreensão do sistema familiar, dos relacionamentos entre seus membros, momento histórico e a veracidade das queixas apresentadas. Deve-se analisar se no passado havia um bom relacionamento do genitor alienado com os filhos, ou seja, se o relacionamento era harmonioso e somente depois da separação, os filhos começaram a se mostrar agressivos, evitando o contato. Se a hostilidade da criança se manifesta somente depois da separação do casal, a criança 3 4 Ibidem. Ibidem. A alienação parental e a importância dos vínculos parentais 18 pode estar influenciada por um dos genitores. Esse tipo de informação pode indicar um início de alienação parental (TRINDADE, 2010). Diante da resolução dos casos de alienação parental, o juiz se depara com a questão de decidir sobre a convivência da criança com o genitor que foi acusado (CRUZ, 2008; ROCHA, 2012). Até que as avaliações sejam concluídas, o juiz não tem material suficiente para emitir sua decisão: manter ou não as visitas da criança, com o genitor que foi acusado, autorizar as visitas somente com acompanhamento, promover ou não a extinção do poder familiar. A decisão de manter ou não a criança em contato com os pais é algo importante que irá afetar a dinâmica da família e o desenvolvimento dos filhos (LAGO; BANDEIRA, 2009; RAMOS, 2012). A reconstrução dos laços familiares é lenta, pois exige que a criança e o genitor se disponibilizem para esse convívio e construam as bases necessárias para uma relação de confiança e trocas afetivas. Um relacionamento leva tempo para se fortalecer e se estruturar de forma que os velhos conceitos negativos a respeito do genitor alienado sejam gradativamente substituídos, através das novas vivências que pai e filho vão criando. A criança pode aos poucos perceber que o genitor alienado não se comporta da maneira negativa, como lhe foi transmitido, e a convivência que os dois experimentam apresenta outras possibilidades de interação (TRINDADE, 2010). As acusações devem ser investigadas para se verificar se são verdadeiras ou falsas. As verdadeiras justificam o afastamento do genitor que cometeu o abuso. Se a criança for mantida em contato com ele, estará correndo sérios riscos ao seu desenvolvimento. Nos casos de alienação parental, geralmente as acusações de abuso são falsas, e se o afastamento é legalizado por uma decisão judicial, a criança será impedida de ter uma relação importante com o genitor (RAMOS, 2012). A prioridade deve ser o bem-estar da criança, sua saúde física e emocional (LAGO; BANDEIRA, 2009). O primeiro passo para qualquer intervenção é que a alienação parental seja identificada. A avaliação de casos deve ser levada ao Poder Judiciário e contar com a participação de profissionais de diversas áreas. Com os dados coletados, é possível uma compreensão ampla do caso, para que o juiz tome uma decisão correta, levando-se em conta todas as consequências possíveis (ROCHA, 2012). Os pais devem ser avaliados em sua capacidade de exercer a guarda da criança. Um bom critério é observar como as relações afetivas familiares se estabelecem, entre a criança e os pais. O pai ou a mãe que favorecer o convívio com o outro genitor, terá melhores condições de cuidar do filho, da forma mais ampla possível, ou seja, o genitor que demonstra a compreensão de que quanto mais os vínculos se mantiverem, menos traumática será vivida a separação (BRANDÃO, 2004; SOUZA, 2009). Alcione Aparecida Messa 19 Além disso, pode ser necessária a intervenção de uma equipe multidisciplinar também para tratar os efeitos da alienação, como psicólogos, médicos e assistentes sociais são envolvidos no tratamento, já que as consequências são inúmeras e atingem a saúde biológica, psíquica e social dos envolvidos (ROCHA, 2012; TRINDADE, 2010). Nos casos mais graves, em que a alienação não é revertida, a guarda da criança precisa ser reconsiderada. A criança deve ser retirada do convívio com o genitor alienante, e poderá ter sua guarda transferida ao genitor alienado, outro familiar, órgão neutro ou Estado para que seja preservada do abuso emocional, a que está submetida (CRUZ, 2008). O alienante dificilmente tem consciência da alienação ou se propõe a uma mudança de atitude. Também, pode se recusar a uma terapia imposta por decisão judicial, ou mesmo demonstrar interesse, bem como ser pouco cooperativo ou até mesmo sabotar as intervenções (HUERTA, 2007; TRINDADE, 2010). Uma das contribuições da Psicologia para conter e reverter os efeitos da alienação parental é ajudar a identificar o comportamento patológico do alienador e fornecer orientações e encaminhamento para os tratamentos necessários a todos os envolvidos. No âmbito da Psicologia Jurídica, a avaliação psicológica é um procedimento de investigação sobre uma pessoa ou caso, que permite auxiliar o magistrado a estabelecer condutas e decisões a respeito da questão da guarda de filhos, por exemplo. Essa apreciação utiliza técnicas e estratégias para avaliar os processos psicológicos de alguém, em uma questão jurídica, formando um conjunto de informações obtidas pelos psicólogos, para esclarecimento e compreensão das condições do indivíduo (SHINE, 2003; SUANNES, 2011). A avaliação psicológica ou biopsicossocial se constitui por entrevista pessoal com as partes, exame de documentos dos autos (SHINE, 2003), histórico do relacionamento do casal e da separação, histórico dos incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e do comportamento da criança em relação às acusações contra o genitor. O psicólogo emite um documento de fundamental importância para compor o panorama da situação que investiga, funcionando como um tradutor dos elementos emocionais motivadores das acusações e da própria dinâmica familiar. O laudo psicológico funciona como uma importante ferramenta para o juiz compreender a situação e as pessoas envolvidas, seus conteúdos emocionais, intelectuais e cognitivos (ROCHA, 2012; SUANNES, 2011). Esse instrumento ajuda a evitar erros nas decisões que podem acarretar grande sofrimento e danos a todos os envolvidos direta ou indiretamente. Os dados contidos no laudo e sua divulgação serão realizados de acordo com as determinações do Código de Ética do Psicólogo. A alienação parental e a importância dos vínculos parentais 20 Muitos casais podem resistir às avaliações e perícias a respeito da guarda de filhos e visitas, pois, embora sejam procedimentos necessários para a resolução, podem representar uma demora do processo, além de provocar a exposição das pessoas e dos conflitos. Os pais tendem a se sentir invadidos com os procedimentos impostos judicialmente para resolução das discordâncias. Esclarecer e clarificar os conflitos familiares pode gerar incômodo, principalmente se os familiares não estão conscientes de todos os seus atos e motivações. Dentre os instrumentos processuais determinados na lei, o juiz poderá declarar a ocorrência de alienação parental, advertir e até multar o alienador; ampliar o regime de visitas em favor do genitor alienado; determinar acompanhamento psicológico e/ ou biopsicossocial; alterar as disposições relativas à guarda ou determinar o domicílio cautelar da criança ou adolescente; declarar a suspensão ou perda do poder familiar. Esperar que os genitores decidam o que é melhor para a criança é desconsiderar a dimensão do problema. O alienador não está disposto a colaborar para a resolução (pelo contrário, na maioria das vezes, a intenção é dificultar a reversão da alienação e as relações da criança com o genitor alienado) e a família deve contar com uma ajuda externa, por exemplo, a judicial para solucionar a questão (HUERTA, 2007; TRINDADE, 2010). É necessário que o tratamento terapêutico dirigido ao genitor alienante tenha um foco de conscientização a respeito dos efeitos da alienação para todos os filhos e da importância da participação do outro genitor na vida da criança (TRINDADE, 2010), explorando as causas conscientes e inconscientes que motivaram a alienação. Possíveis diagnósticos constatados sobre transtornos e distúrbios serão igualmente relevantes ao processo. Além disso, pode ser necessária a assistência também aos genitores alienados, que estiveram expostos à rejeição e agressividade sem motivos. A forma como cada pai e cada filho vivenciou tais experiências é única e particular, e deverá ser analisada em uma avaliação global (HUERTA, 2007). Após ter sido constatada a alienação parental e para tratar as questões emocionais, é importante que as crianças e jovens sejam avaliados em relação ao que apresentam de sequelas. Em um tratamento psicológico, a criança terá um espaço reservado e sigiloso para tratar de questões emocionais, medos, tensões e ideias confusas. Ela será orientada e acolhida, com o intuito de diminuir as consequências da pressão que sofreu e resolver os conflitos emocionais da separação. O objetivo é tentar reestabelecer o relacionamento da criança com o genitor alienado, aos poucos retomando o convívio e auxiliando a criança a formar suas próprias opiniões. Ao relembrarem da relação saudável que tinham com os pais antes da Alcione Aparecida Messa 21 separação, os filhos podem perceber que suas manifestações hostis não são baseadas em algo que realmente ocorreu (HUERTA, 2007). A mediação se constitui como um método de resolução os problemas familiares, que pode ocorrer antes de uma disputa judicial e ajuda a preservar as relações familiares. Por ter um caráter não adversarial, os acordos obtidos por esse meio de resolução de conflito são satisfatórios para ambas as partes. As próprias pessoas buscam a resolução do conflito com a ajuda de um mediador, uma pessoa imparcial e especialmente treinada a dar assistência às pessoas envolvidas, com a finalidade de restabelecer a comunicação, ajudando-as a chegar a um acordo (BRANDÃO, 2004; CASTRO, 2003; FIORELLI; MANGINI, 2008; HUERTA, 2007; PECK; MANOCHERIAN, 1995). A proposta da mediação se volta para a cooperação e permite que as pessoas assumam as decisões. A mediação no divórcio para casais com filhos procura atender aos interesses das crianças, uma vez que a qualidade das relações entre pais e filhos está intimamente vinculada à qualidade de relacionamento entre os pais depois da separação (CASTRO, 2003; SCHABBEL, 2005). 3. Considerações finais Os filhos têm condições de superar problemas da experiência do divórcio, mas precisam da ajuda dos pais e em alguns casos, de ajuda profissional também. É comum os filhos se sentirem abandonados, pois os pais se encontram imersos em conflitos emocionais e jurídicos, sem condições de fornecer o acolhimento necessário às crianças (HUERTA, 2007). Muitas vezes não é a separação em si que mais impressiona os filhos, mas sim os intensos conflitos que acontecem, ou seja, toda a situação de tensão que a causou. A saúde emocional e o equilíbrio dos filhos estão relacionados ao entendimento que os pais estabelecem, sendo separados ou não. O tipo de relação que os pais definem depois de separados e o quanto conseguem diferenciar a relação conjugal da relação parental parecem contribuir para que os filhos tenham mais tranquilidade para lidar com a crise e as mudanças. Pesquisas apontam que no momento da separação, as crianças não recebem esclarecimentos a respeito do que está acontecendo (BRITO, 2007). Os filhos podem crescer acreditando que foram os culpados pela separação dos pais, sem entender os reais motivos que os levaram a tomar tal decisão. Eles não precisam saber de todos os detalhes da relação conjugal, mas têm o direito de entender o processo de separação, obtendo as informações necessárias para que possam elaborar e aceitar a perda. A alienação parental e a importância dos vínculos parentais 22 Os efeitos do divórcio serão menos traumáticos, se houver a possibilidade de manter as relações afetivas estabelecidas antes do fim do casamento, principalmente com os pais. Se um dos pais tenta impedir o convívio do filho com o outro, provavelmente não está preparado para exercer seu papel parental adequadamente. A criança que sofre a alienação parental pode passar a infância e a adolescência acreditando que um dos pais a abandonou, rejeitou ou lhe cometeu algum mal. Se a confusão emocional não se desfaz, as mágoas se acumulam (PIERSON; SAAD, 2010; SILVA; FOGIATTO, 2007). Dificilmente as crianças conseguem falar do que as faz sofrer; o sofrimento psicológico da criança se manifesta no seu comportamento, e geralmente reflete na sua vida escolar, social e afetiva. É importante que os genitores alienados não desistam de tentar retomar o convívio com seus filhos, mesmo que estejam sofrendo humilhações e rejeições constantes. Para combater a alienação parental é indispensável que haja uma postura de iniciativa para resolução de conflitos, e assim se possa diminuir seus efeitos e interromper o afastamento e a hostilidade (CRUZ, 2008). A guarda dos filhos deve ser revista, dependendo da severidade da alienação, de modo que as consequências não se agravem. As visitas podem ser supervisionadas, para que aconteçam sem problemas e as medidas legais devem levar em conta o melhor para a criança, seja através da mudança da guarda e um período de suspensão de visitas ao alienador, ou a colocação da criança em um local de transição neutro e a obrigação de participar de um programa terapêutico. Alcione Aparecida Messa 23 4. Referências Bibliográficas ALEXANDRE, D.T.; VIEIRA, M.L. A influência da guarda exclusiva e compartilhada no relacionamento entre pais e filhos. Psicologia em Pesquisa. v. 3, n. 2, p. 52-65, 2009. BAKER, A.J.L. The Long-Term effects of parental alienation on adult children: a qualitative research study. The American Journal of Family Therapy, v. 33, p. 289-302, 2005. BOWLBY, J. Apego. São Paulo: Martins Fontes, 1984. BRANDÃO, E.P. A interlocução com o Direito à luz das práticas psicológicas em Varas de Família. In: GONÇALVES, H.S., BRANDÃO, E.P. Psicologia Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2004, p. 51-98. 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Palavras-chave: direito comparado: sistemas jurídicos. 1 Acadêmica de Direito – Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Comparative law: North-American System vs. Brazilian System ABSTRACT It is argued in this paper, the development of a method capable of teaching students to reason and put into practice what you learn in the classroom. It is not purport to discredit all the traditional teaching methods, but we emphasize the challenge to develop in the student a critical capability that exceeds the posture and to understand the law as just a set of laws and precedents. Keywords: comparative law; legal systems Bruna de Carvalho Santos Pinesch 29 1. Introdução Pode-se entender ordenamento jurídico como um conjunto de normas vigentes sobre uma determinada sociedade, ou seja, o direito enquanto sistema normativo originase da cultura e da civilização, de acordo com a época vigente e os valores concentrados nela que são transmitidos para seus membros. Há países e estados que contam com uma pluralidade de ordenamentos jurídicos, como é o caso da aplicabilidade das normas legais nos EUA (que por ser extremamente federativo, cada Estado segue uma forma diferente de aplicá-las) e dos cantões da Suíça que possuem um direito local e outro federal. Embora haja inúmeros ordenamentos jurídicos, esses seguem com maior ou menor profundidade, a princípios e origens comuns. O ‘sistema jurídico’ funciona como um conjunto de elementos comuns, de acordo com a sua ordem da vida em sociedade, na existência de instituições jurídicas e administrativas semelhantes. Assim, conforme a sociedade vai mudando (cientificamente e moralmente), o ordenamento jurídico vai acompanhando as mudanças, e é nessa relação, que se dá a ‘continuidade’ ao direito. O destaque que cada sistema jurídico possui, em determinada época ou localidade, parte dos mesmos pressupostos filosóficos e sociais, dos mesmos conceitos e técnicas, com adaptações particulares. Assim, é possível analisar que cada direito e sistema jurídico segue suas fontes, de acordo com seus elementos materiais (biológicos, psicológicos e fisiológicos), históricos, racionais (derivados da razão humana sobre sua existência, e vida), ideias (aspirações do ser humano) e formais (cada direito como construído). O estudo dos sistemas jurídicos se faz importante devido à responsabilidade do jurista, nos dias atuais, de dar prosseguimento à realização do direito, quando o direito interno contrapõe-se a direito vigente em outra localidade, e a relação precisa de solução, ou seja, para instruir o aplicador do Direito a equilibrar a justiça entre os diferentes sistemas. Por não haver ainda uma codificação internacional madura para reger as inúmeras civilizações, e com a globalização cada vez mais intensificada, as mudanças em determinados povos passam a afetar muito os demais, e a análise dos sistemas, assim como as influências desses sobre os outros, se faz cada vez mais necessária. Direito comparado: sistema norte-americano vs sistema brasileiro 30 Hoje em dia, para dividir os sistemas, adota-se a classificação trazida pelo Professor René David em 1973, que possibilitou a divisão dos sistemas em quatro grandes famílias: romano-germânica (ou Civil Law), Common Law, sistema dos direitos socialistas (que costumavam compor a Europa Leste) e os sistemas filosóficos ou religiosos (como por exemplo, o direito muçulmano, indiano e do Extremo Oriente). Pelo direito contemporâneo, ainda se observa a existência de um quinto sistema jurídico, o Sistema Jurídico Misto (Common Law aliado à Civil Law). Os sistemas de maior destaque e de maior aplicação seriam a Common Law e a Civil Law, cuja diferença principal seria o fato da Common Law se fundamentar na lei não escrita, no direito jurisprudencial e nos costumes; enquanto que a Civil Law tem como fonte principal a lei devidamente positivada e codificada. O que será analisado adiante de forma mais aprofundada. Assim, o objetivo do Direito Comparado é aproximar essas grandes famílias, ultrapassando as barreiras linguísticas e buscando a equivalência dos sistemas com relação aos princípios, costumes, normas, palavras, e o sentido extraído das palavras, no meio da complexidade existente entre ordenamentos jurídicos. Desse modo, o objetivo do trabalho em tela é justamente realizar uma análise crítica a respeito da Common Law utilizada nos países norte-americanos, especialmente na maior parte dos Estados Unidos da América, e a utilização do sistema romanogermânico pelo Brasil nos tempos atuais, abordando a aproximação dos sistemas e suas respectivas influências. 2. Sistema Romano-Germânico ou Civil Law É uma das primeiras famílias do mundo contemporâneo (estende-se da América Latina a uma grande parte da África, a países do extremo oriente, como o Japão e mais a Europa continental), trazendo uma história milenar de tradições jurídicas até hoje empregadas. O seu surgimento está diretamente ligado ao renascimento. Nessa época, abandona-se a ideia de que a ordem só provinha do ideal religioso. A grandeza da tradição romana surge através de uma expansão cultural, originando Universidades, que são responsáveis pelos muitos documentos que chegam até nós para demonstrar as leis bárbaras. Bruna de Carvalho Santos Pinesch 31 Para convencer a igreja de aceitá-lo, veio Santo Tomás de Aquino provando que os princípios do justo e do equitativo, originários do Direito Romano, se encaixavam na religião cristã, e a partir daí, as universidades europeias passam a ensinar e a estudar este sistema. Os direitos locais demoravam muito para ser ensinados, e através das influências da universidade de Bolonha, o direito romano começou a ser aprendido, porém ainda não tinha força de lei. O direito romano passou a unir os direitos locais dos diversos povos da Europa. E só depois surgiram as escolas de direito natural, que introduziram o ‘direito subjetivo’, renovando os princípios das leis romano-germânicas. Embora alguns países apresentassem diferença, como ainda ocorre hoje em dia, a estrutura fundamental é o que caracteriza a unidade. O fato marcante para a história do direito romano-germânico foi a compilação e codificação do Direito Romano, que reuniu os costumes, as normas esparsas já escritas, as jurisprudências, e os entendimentos doutrinários, de forma agrupada, gerando um novo sistema de direito através das precedências fáticas. A Lei escrita passa a se preocupar mais com um sistema de princípios, e generalizações, do que com os casos particularizados, posto que, através desses princípios, seria possível chegar à solução dos demais casos por dedução. Nesse contexto, passa-se a adotar o “silogismo” para aplicação da norma ao caso concreto. O Civil Law tende a gerar uma racionalização do direito, ou uma lógica formal de aplicabilidade, sendo que a realidade do dia-a-dia passa ser secundária, e o raciocínio lógico extraído da Lei o fator primário. Entretanto, o grande problema na aplicação pura desse sistema seria o casuísmo. Ou seja, a preocupação trazida por esse sistema, discutida até hoje, é a importância que acaba se dando para as normas escritas, que resulta em certo descaso com as casuísticas dos costumes judiciários. O maior expositor desse sistema jurídico foi, sem dúvida, Hans Kelsen, através de sua obra “Teoria Pura do Direito” que expõe como fonte exclusiva do direito a norma. Fundamentos básicos da Civil Law: • As normas são voltadas para a preocupação de justiça e moral; • Predomina a lei como fonte do Direito; Direito comparado: sistema norte-americano vs sistema brasileiro 32 • Há preocupação com o estudo dos textos e obras legislativas, levando a prática a plano secundário; • O Direito Civil é a base de todo o sistema. Cabe destacar, os locais que o adotam: toda a Europa Ocidental e países colonizados por ela, inclusive o Brasil, que como dito, possui como fonte principal do direito a norma ou o texto de Lei, que será objeto dessa pesquisa em época apropriada. 3. Introdução ao Common Law O Common Law foi elaborado com base no direito costumeiro. Ou seja, a norma só tem valor nesse sistema à medida que o juiz a emprega, sendo assim a solução dos conflitos se torna o próprio Direito casuístico. Na essência, a Common Law estipula um conjunto de leis não escritas, já que são as decisões dos juízes que criam um direito formado pela acumulação de precedentes judiciários. Não possuem códigos, porém a lei tem papel importante no direito comum, sendo encarada de forma diversa: só é verdadeira se for eficaz no momento em que é aplicada no caso concreto, e sendo as leis particularizadas, torna-se difícil para o legislador estipular ordens gerais de comportamento. Porém, este sistema trouxe grande discussão, e foi ferozmente criticado pelos doutrinadores do Civil Law nos séculos anteriores, tento em vista que os juízes acabam virando verdadeiros legisladores, e isso violaria supostamente a separação dos poderes preconizada por Montesquieu. Para este filósofo do Direito, se os juízes forem capazes de criar Lei, estariam atentando contra a separação de poderes. Hoje em dia, já está consolidado no sistema da Common Law que os juízes são criadores de Leis, não sendo inoportuno referir a Case Law como ‘jugde-made law’. Os Locais que o adotam são a Inglaterra, os países que seguiram seu modelo, e colonizados. Os EUA e o Canadá adotam esse sistema, porém atualmente se distanciam muito do Inglês, sendo, de certa forma, autônomos dentro do próprio sistema. Historicamente, a concepção do Common Law sempre foi o “direito comum” trazido pelas sentenças judiciais dos Tribunais constituídos pelo Poder Estatal. Na Inglaterra, onde esse sistema se desenvolveu entre os séculos XII e XIII, se aplicava primeiramente o Direito Romano, porém, este foi deformado pelo costume Bruna de Carvalho Santos Pinesch 33 do reino, sobretudo, pelo Rei Henrique II, em 1154, que implantou o stare decisis, ou obediência aos precedentes. Na época, o Rei constituiu os Tribunais de Westminister como responsáveis por trazer o direito costumeiro aos povos ingleses, o que ficou conhecido por “Common Law”. E esses Tribunais, por sua vez, estavam subordinados pela Equity , trazida pelos Tribunais do Chanceler do Rei, que, na época, eram constituídos por eclesiásticos, e, portanto, traziam muita influência do Direito Canônico. Pelo sistema inquisitório Inglês, a Common Law se tornou o conjunto das decisões judiciais proferidas pelas Country Courts, que tinham como base a tradição, os costumes e os precedentes. Todos os Tribunais e decisões judiciais estavam subordinados ao poder do Rei, pois, era ele o responsável pela divisão da justiça, outorgando poderes aos jugdes (funcionários do direito), para que estes proferissem a solução dos conflitos quando fosse concedido o “writ”, que era a ordem dada pelo Rei para que se fizesse o direito entre as partes. Após a Reforma Anglicana de Henrique VIII, a chancelaria passa a ser ocupada por indivíduos fora do poder eclesiástico, afastando a Equity do direito Canônico, atraindo-a para a influência do Common Law, ou seja, pela força da coisa julgada, expressa na atuação do magistrado. Já em 1873-1875, os Tribunais de Chancelaria foram extintos, e a competência para estipular a Equity passou a ser dos Tribunais Comuns, e consequentemente o regime passou a ser mais unificado, preservando suas características originais. Hoje em dia, há certa aproximação entre o direito da Inglaterra com o direito continental pela necessidade de manter comércio com os demais países, exceto em matéria de direito criminal, contratos e responsabilidade civil, nas quais se aplica o Common Law. E no caso da Equity, tanto no Direito Inglês, quanto no direito Norte-Americano, só é aplicada quando não houver meios de resolver o conflito através da Common Law. Nos EUA, as actions at Law e os suits Law estão localizados dentro da civil actions, ambas são distintas entre si, possuindo peculiaridades, de forma que, em geral, as questões pertinentes a Equity são julgadas por um juiz togado, e as referentes à Common Law pelo Júri. Com relação aos países norte-americanos, especialmente os EUA, a Common Law (judge-made Law) ainda divide o espaço com as Statute Law (direito criado pelo Direito comparado: sistema norte-americano vs sistema brasileiro 34 Legislador, que geralmente é oriundo dos Tratados Internacionais, Constituição Federal ou Estadual, Leis Ordinárias federais e estaduais, regulamentos administrativos, etc.), o que será estudado a seguir. Por fim, vale ressaltar que, nos dias de hoje, já não se pode dizer que ainda exista uma aplicação pura do Sistema Jurídico da Common Law, seja na Inglaterra, ou nos países norte-americanos, tendo em vista que passado o tempo das grandes guerras do começo do século XX, os Estados têm procurado, cada vez mais, assegurar maiores garantias aos seus integrantes, comportando mudanças nesse sistema. 3.1 A Common Law aplicada nos EUA Esse país demorou em estipular seu sistema, pois até meados do século XIX, ainda se discutia entre o Common Law e o direito romano (que atualmente só o estado da Louisiana adquiriu). Vale ressaltar que pelo fato de casa Estado possuir a autonomia de escolher seu próprio sistema, o único direito realmente vigente em todos os EUA, seria o direito federal. Possivelmente este fato, assim como a questão de se adotar um sistema misto nos dias atuais, tenha se dado pela origem histórica do país, tendo em vista que partes dele sofreram colonização de países que adotavam o sistema romano-germânico, como por exemplo, o estado da Califórnia e do Texas, que antes de serem incorporados, possuíam colonização espanhola; e fora isso, por ter sido formado eminentemente por imigrantes. Pelo fato dos Estados Unidos da América adotar, em quase toda a sua totalidade, uma espécie de Common Law mista, suas diferenças com o modelo originário inglês são muitas, como por exemplo, nos EUA existe o federalismo, tendo um direito federal e um estadual. O Common Law é uniforme, mesmo cada estado tendo autonomia. Mas apesar disso, continua sendo essencialmente um direito de precedentes judiciais, pois cada estado conta com sua própria estrutura judiciária. A instituição jurídica dos EUA é mais presente do que na Inglaterra, mas a distribuição de justiça nos estados norte-americanos é descentralizada. Para o jurista norte-americano, sua constituição tem caráter fundamental. Já no inglês não há uma constituição escrita, e as garantias constitucionais são interpretadas com flexibilidade. O Common Law do país norte americano é um sistema misto, extraindo certas características do Sistema Jurídico Romano Germânico, como por exemplo, os EUA se utilizam desse sistema. Bruna de Carvalho Santos Pinesch 35 Alguns Estados possuem Código Civil, mas a lei escrita só é aplicada com eficácia pelos tribunais. Pelo fato de nos EUA haver uma dicotomia entre normas escritas e não escrita, é importante destacar a relação entre a Common Law, e a Statute Law (mencionada acima). Apesar da Case Law ser a principal fonte do direito norte-americano, posto que, somente em caso de lacuna da Case Law se recorra às normas escritas, a Statute Law possui hierarquia superior. Consequentemente, a Case Law pode ser “reversed by statute”, ou seja, modificada pela Statute Law. A Common Law estadunidense corresponde às decisões proferidas pelas Cortes, apresentadas sob a forma de Case Law (precedentes judiciários). Vale ressaltar que, no sistema da Common Law, o ‘legislator’ é tanto o Poder Judiciário, quanto o Poder Legislativo ou Poder Executivo. Esse aspecto faz divergir da Common Law originária da Inglaterra, pois o sistema Inglês desconhece Constituição escrita, inclusive no que tange aos ‘Statutes’, enquanto na Common Law mista aplicada nos EUA, já há a noção da base piramidal da norma. Esse fato também a difere do sistema de direito romano-germânico, posto que, a aplicação da Common Law ou Case Law seja a regra, enquanto a Lei escrita (Statute Law) é exceção. O Poder Judiciário, em síntese, se divide em Original Court (onde se encontra o juízo singular de primeiro grau, ou juízo ‘a quo’), Appellate Courts (correspondente aos Tribunais de 2ª e 3ª instância), arbitral tribunal (onde se encontram os árbitros ou colégio arbitral). As Appellate Courts são responsáveis por criar os Precedents (precedentes), e consecutivamente, as doctrines of stare decisis, or doctrine of precedents, vinculando os demais juízes que estão subordinados a ele, por passarem a possuir aplicação obrigatória. Além disso, ainda podem ser responsáveis por constituir um leading case, que nada mais é do que decisões extremamente relevantes, que refletem e refletirão em outras sobre a mesma matéria, como por exemplo, o famoso caso de Marbury vs. Madison, julgado em 1803, e é a principal referência para o controle de constitucionalidade difuso, que apesar de ter sido julgado há mais de 200 anos, ainda é responsável pela maior repercussão no Direito Constitucional estadunidense. Desta forma, a Appellate Court’s judicial decision tem, em regra, duas funções: a primeira de resolver o caso particularizado, ou seja, sub judice, fazendo coisa julgada Direito comparado: sistema norte-americano vs sistema brasileiro 36 entre as partes; e a segunda de criar a base obrigatória para casos futuros, ou, como já mencionado, os precedents. Sobre a decision, vale salientar a importância do holding (conhecimento da situação fática resultante da decisão), ou seja, a real necessidade de se fazer proferir aquela determinada norma jurídica dentro do que se foi debatido em juízo; e do dictium, ou seja, de todo o resto que se afirma na decisão que não é necessário para a resolução da lide, mas que ajudou a persuadir o juiz. Ambos são importantes, pois, ao se aplicar um precedente, ou transformar a decisão em um precedente, é necessário conhecimento da matéria fática e da real intenção da Corte para aquele caso concreto, sobre a circunscrição desses dois pontos. Nada impede que nos casos que vierem a surgir posteriormente, o holding passado vire dictium, e auxilie a persuadir o magistrado a proferir sua decisão atual, como em caso de ab-rogação ou derrogação de um precedent (fenômeno conhecido como overrruling), ou que o dictium vire holding. Com relação à obrigatoriedade dos precedents se imporem aos casos futuros, esta obrigação pode ser derivada de persuasão entre jurisdições paralelas (quando o entendimento de determinada Corte, reconhecidamente especializada naquele assunto, é invocado em outra Corte); ou quando constituir um precedent de Corte Superior de mesma jurisdição ou Corte (bindig authority). Nesse sentido, é possível observar certos benefícios que traz o direito norteamericano por adotar os precedentes em seu sistema, como, por exemplo, a economia processual, pelo fato de que a resolução de um conflito facilitará a resolução dos posteriores que forem a esse direito similares, devido à aplicação da equality dos direitos (tendência de se aplicar a mesma solução) e a previsibilidade jurídica. O que é interessante na aplicação do sistema misto aplicado nos EUA, é que além de ser um direito baseado no acompanhamento de precedentes, possui a relevância de um sistema piramidal com a presença de uma Constituição escrita (norma fundamental), talvez a mais rígida do mundo, emendada pouquíssimas vezes desde sua ratificação em 1788. Além disso, ainda existe a presença das Constituições Estaduais, Leis infraconstitucionais (federais ou estaduais) que possuem conteúdo extenso, visto a Statute Law ser analisada somente após a não resolução, através da Case Law, e a Constituição dos EUA possuir poucos artigos. A hierarquia de um sistema piramidal entre as normas escritas norte-americanas é evidenciada não só pela própria Constituição dos EUA, como pelas Case Laws que Bruna de Carvalho Santos Pinesch 37 especificam as formas de resolução de conflitos entre as normas escritas de ordem federal e estadual, e pode ser definido na seguinte ordem de supremacia: (a) Primeiramente, no topo da hierarquia, se encontra a Constituição Federal dos EUA e suas respectivas emendas (a partir da criação da Bill of Rights de 1789, que trouxe as primeiras 10 emendas constitucionais), que representam as Supremacy Clauses; (b) Logo em seguida, aparecem os Tratados Internacionais junto com os Executive Agreements (acordos que precisam de aprovação legislativa para ter vigor no território norteamericano). Observa-se que esses tratados, apesar de serem hierarquicamente superiores às Federal Statutes e poderem revogá-las, também podem ser revogadas por essas; (c) Em terceiro lugar, se encontram as Federal Statutes (Leis Federais), que podem ser elaboradas tanto com a participação do Executivo em conjunto com o Legislativo, quanto somente pelo Poder Executivo com auxílio dos Departaments (Ministérios) ou Federal Agencies, e ainda pelos atos normativos proferidos pela Supreme Court; (d) Posteriormente, são as States Statutes (normas estaduais, como, por exemplo, as Constituições dos Estados-membros), que devem respeitar as normas hierarquicamente superiores, sob risco de sofrerem o controle negativo de constitucionalidade (negative control) exercido pela Supreme Court; (e) E por fim, estão as Home Rules (normas municipais): local ordinances, local rules, e local regulations. Direito comparado: sistema norte-americano vs sistema brasileiro 38 Esse traço piramidal normativo assemelha-se, em muito, com o sistema brasileiro que tem como base o sistema romano-germânico, e, portanto, comprova seu sistema misto pela aplicabilidade dicotômica das normas, posto que, de um lado, há a regra da aplicabilidade primária das normas não escritas de origem no Common Law, e de outro, o sistema de normas escritas e sua devida hierarquia, de origem do Civil Law. 4. O sistema jurídico romano-germânico adotado pelo Brasil Inicialmente cumpre destacar, que como já dito, ao contrário do Common Law puro, o Brasil adota o sistema romano-germânico de direito, na qual as normas escritas são fonte principal do direito, dando importância secundária para os precedentes judiciários. Cabe destacar que por possuir na essência a cultura romano-germânica de direito, temos forte influência de doutrinadores como Hans Kelsen, que vê no ordenamento apenas a norma como hierarquizada, ou seja, a Lei escrita como única fonte de direitos. No sistema romano-germânico puro, não há a figura do juiz-legislador (responsável pelas judge-made Laws), o que veremos mais para frente, que, nesse aspecto, o Brasil se afasta um pouco desse sistema. Quando se refere a Leis como Fonte de Direitos, esta é considerada na sua forma strictu sensu, ou seja, é toda norma que se vale como fonte, o que chega a abranger os costumes, e as jurisprudências, porém vê muito mais importância numa legislação escrita, devidamente aprovada. Tendo em vista que a dogmática desse sistema propõe que as fontes sejam hierarquicamente classificadas com base no grau de maior ou menor objetividade jurídica (no que tange a sua origem e modo de formação), a primeira fonte de direitos do nosso sistema romano-germânico seria as fontes estatais reconhecidas institucionalmente, através de atos competentes, e em seguida, àquelas que possuem menor grau de certeza (costumes e jurisprudências). A ideia de legislação do sistema brasileiro tem origem romanística, adotada pelo direito europeu, e é vista como fonte de normas que requerem seu procedimento regulado por outras, também provenientes de atos competentes, com fim nas normas constitucionais. Assim, na teoria, a resolução do caso concreto se dá pela Lei em abstrato, e em caso de lacuna aplicam-se os precedentes judiciais. Nesses termos, a hierarquia da norma no direito brasileiro se divide em: Bruna de Carvalho Santos Pinesch 39 (a) Primeiramente, seriam as normas constitucionais (CF, ADCT, EC e Tratados e Convenções sobre Direitos Humanos). Dentre elas, a norma superior é a Constituição Federal brasileira (Lex superior) de 1988, que determina todas as demais competências normativas do Estado, e não pode se alterada por outra norma de hierarquia inferior; Depois a ADCT, responsável por regulamentar o período de transição do regime jurídico da antiga constituição para o regime da nova; as Emendas Constitucionais, somente seriam capazes de alterar ou reformar algo na Constituição; e os Tratados e Convenções de Direitos Humanos (Emenda Constitucional 45/04). (b) Depois, são as Leis Complementares, que regulamentam a Constituição Federal, e são previstas taxativamente por essa; (c) Logo em seguida, estão as Leis Ordinárias que regulam qualquer matéria, desde que não regulada por Lei Complementar, Decreto Legislativo, ou resoluções (possui competência residual); (d) Aparecem, posteriormente, as Leis Delegadas, hipóteses de transferência da competência do Poder Legislativo para o Poder Executivo, ou seja, o Presidente da República pode solicitá-la ao Congresso Nacional; (e) Medida provisória, que são proferidas apenas em caráter de urgência e relevância, com prazo de 60 dias, prorrogáveis por mais 60; (f) Decreto Legislativo, que é uma espécie normativa de competência exclusiva do Congresso Nacional; (g) Resoluções, que abordam matérias de competência privativa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal; e Tratados e Convenções Internacionais em geral, que não tem força de Emenda Constitucional; (h) Normas Infralegais, são aquelas de cunho administrativo, regulamentando as questões administrativas internas, elas detalham e especificam as normas infraconstitucionais; (i) Decretos regulamentam uma Lei já existente, e são expedidos pelo chefe do Poder Executivo, portarias e Instruções Normativas. Direito comparado: sistema norte-americano vs sistema brasileiro 40 Além das fontes primárias, o Brasil dá grande importância a fontes secundárias como a jurisprudência, costumes, doutrina e princípios. Isso é visível, pois precedentes judiciários no Brasil acabaram por tomar um rumo peculiar, dando origem às Súmulas Vinculantes (que tem força normativa), e as não vinculantes, que tendem a resolver os conflitos de acordo com o caso concreto, mas que não são de aplicabilidade obrigatória. Essa criação do direito brasileiro, faz com que o sistema se afaste cada vez mais de um sistema romano-germânico puro, posto que oferece aos magistrados e capacidade de legislar, equiparando-se às judge-made Law, de origem do Common Law, assunto que será tratado adiante, dentro das Novas Tendências do Direito Brasileiro. 4.1 Relações entre a Civil Law e o Common Law Obviamente, foi observado que o sistema da Common Law se preocupa mais com a resolução dos conflitos em caso concreto, do que com entabular normas escritas hierarquizadas, ou o estudo de doutrinas secundárias, que possuem pouca influência nesse sistema. Segundo Guido Fernando Silva Soares2 , é possível comparar o Common Law com uma espécie de colcha de retalhos, que cumpre à perfeição, sua finalidade, que é dar abrigo à sociedade. Dá-se mais importância aos casos particularizados, que, juntados. Estes formarão um número considerável e passam a se tornar casos generalizados de aplicação 2 Common Law – Introdução ao Direito dos EUA – Ed. Revista dos Tribunais, pág. 54 Bruna de Carvalho Santos Pinesch 41 abstrata para os futuros. A problemática apresentada por esse sistema é com relação ao encaixe dos novos tratados internacionais no sistema, e talvez a falta de segurança jurídica, tento em vista que uma Case Law é facilmente revogável por outra, o que não acontece com o sistema da Civil Law. Já o sistema romano-germânico, se baseia nas regras abstratas contidas nos Códigos para a resolução dos conflitos, talvez até de forma mais organizada do que parece na Common Law, levando em conta as demais fontes do direito para solucionar os casos concretos na ocorrência de lacunas na Lei, o que muitas vezes, acaba por fugir do sistema originário. Nesse sentido, apesar de já ter sido mencionado, ressalta-se mais uma vez, que os sistemas de direitos têm mostrado tendência de aproximação. No sistema Common Law, há tendência de conceber cada vez mais a norma escrita como fonte de Direito nos países de sistema inglês, com conteúdo do sistema romano, devido ao histórico de Guerras do início do século XX e a necessidade dos Estados protecionistas ou do bemestar social (Welfare States) gerando mais garantias para seus indivíduos. E, por outro lado, o dinamismo do direito moderno vem trazendo cada vez mais a necessidade de soluções novas entre Estados com sistemas diferentes, e até mesmo entre seus próprios integrantes. Essa situação de mutabilidade excessiva acaba trazendo aos países que adotam o sistema da Civil Law a necessidade de métodos mais dinâmicos, que acompanhem o desenvolvimento social na velocidade em que ele tem aparecido. O resultado disso é o surgimento de países com adoção de um sistema misto de direito, que possuem princípios romanísticos e do Common Law, como por exemplo, o caso da Escócia, Israel, Filipinas e a província de Quebec no Canadá. Além disso, os EUA que não apresenta o sistema do Common Law puro, como já foi dito anteriormente, e o Brasil que tem se afastado cada vez mais do sistema puro da Civil Law, apresentando, cada vez mais, características peculiares. Cabe às Universidades o trabalho de moldar o direito em vigor. Entretanto, há um problema a ser enfrentado: elaborar um direito que tenha por base os costumes existentes. Nos países do Common Law, parte-se daí para o casuísmo, adaptando-se a cada necessidade específica, já nos de sistema romano ocorre a adaptação aos costumes antigos. Assim, é possível observar que há uma ligação entre as normas do direito romano, direito canônico, e normas costumeiras, porque, ao contrário, impediria o desenvolvimento do Direito Romano na sociedade atual. Direito comparado: sistema norte-americano vs sistema brasileiro 42 Destaca-se que a lei não ascendeu à posição de primazia do nosso direito de modo rápido. Houve um período de transição. E dessa forma, a lei surge como fonte primária, com a função de corrigir ou reformar o costume. Por isso, é patente que toda a codificação apresenta vantagens e desvantagens. Nesse caso, é necessária a constante adaptação das normas existentes. 4.2 As Tendências do Sistema Brasileiro No caso do Brasil, muitas leis especiais derrogaram muitas normas mais antigas, de maneira que, muitas vezes, observam-se tentativas de se introduzir novas codificações. Dentro dessa situação, que vai de confronto com a rigidez das normas, o Brasil, nos últimos tempos, vem adquirindo uma tendência, que o aproxima cada vez mais de um sistema jurídico misto, fugindo da sua própria origem (no nosso caso, a romana). A tendência contemporânea no direito pátrio é a apreciação cada vez mais relevante dos precedentes judiciais, ou questões judiciais, com o objetivo de se adaptar ao dinamismo social, ou aos novos costumes das relações contemporâneas. Essa situação está claramente gerando uma aproximação a um direito baseado em costumes, ou no direito comum com base na utilização de microssistemas, estatutos, e construções jurisprudenciais. E, desta forma, a utilização das Leis escritas como forma de princípios gerais. Ou seja, o Direito Brasileiro moderno passa a adquirir influências cada vez mais gritantes do sistema norte-americano, mesmo que ainda o raciocínio jurídico aplicado seja voltado para a Civil Law. A regra do Civil Law passa a ser readaptada, devido à complexidade do mundo moderno, de forma que um novo direito traz a necessidade da crescente relevância das súmulas, e da aplicação de jurisprudências dominantes. O fator da escolha do sistema romano-germânico pelo Brasil, assim como nos EUA, teve reflexos da origem histórica do país, pela colonização brasileira ter sido, em quase toda a sua totalidade, portuguesa, adotou-se, inicialmente, o sistema de origem latina que era utilizado por seu país colonizador. Entretanto pelo fato do Brasil ser um país relativamente novo, não só em termos de descoberta, mas, sobretudo, pela independência, adoção de sistema político e finalmente, pela elaboração de sua primeira Carta Magna, o sistema se encontra em Bruna de Carvalho Santos Pinesch 43 constante readaptação, não sendo à toa que em menos de 200 anos, o Brasil já tenha elaborado oito Constituições diferentes (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e a atual de 1988). Além de tudo, com os demais Estados cada vez mais próximos nas relações internacionais, a necessidade pátria de manter sua imagem em perfeita ordem no âmbito externo, e as exigências de uma sociedade cada vez mais moderna, torna a cada dia mais visível a aproximação do país com os demais sistemas jurídicos, costumes e tradições. A adaptação dos princípios e costumes tem levado cada vez mais juízes e doutrinadores a analisar o real papel da fonte formal do direito (ou seja, da norma escrita). Hodiernamente, essa classificação entre fonte primária e fonte secundária do direito é cada vez mais colocada de lado, de forma que os precedentes judiciais têm exercido um enorme poder nas soluções para os casos concretos, o que torna o sistema brasileiro um sistema mais dinâmico, e, consecutivamente, questiona as matérias trazidas pelo direito escrito. Tanto isto é uma realidade que temos as súmulas do direito brasileiro. Essas, nada mais são do que verbetes que registram um entendimento majoritário e pacífico sobre diversos casos práticos, pelos Tribunais. O objetivo delas se equipara justamente com o objetivo das Appellate Court’s judicial decision presentes no direito norteamericano, que seria a publicidade do precedente ou jurisprudência, e a promoção de uma uniformidade entre as decisões de casos concretos similares. Ainda sobre a existência de súmulas no Brasil, é importante dividi-las em vinculantes e não vinculantes sobre um ponto de vista crítico da verdadeira fonte de direitos. Apesar de o sistema norte-americano não possuir hierarquia entre os case laws, o Brasil claramente estipula uma noção de hierarquia entre as “jugde-made Law”, tanto é que separam os precedentes em súmulas e jurisprudências, e dentre as súmulas, só algumas têm força vinculante e são equiparadas a Leis. As súmulas vinculantes validam a interpretação e a eficácia de determinada norma, motivo de controvérsia e insegurança jurídica sobre os diversos processos sobre a mesma situação. Nada mais é do que a soma dos precedentes jurisprudências sobre o mesmo assunto que, no momento em que são votadas e aprovadas, passam a ter efeito erga omnes, e força normativa, vinculando as demais decisões sobre aquele mesmo assunto. Se as súmulas vinculantes são a prova de que no sistema brasileiro é possível a normatização dos precedentes judiciais, o sistema brasileiro passa a seguir novos Direito comparado: sistema norte-americano vs sistema brasileiro 44 padrões dando competência ao jurista a criar normas de aplicabilidade obrigatória, equiparando-se as jugde-made Law, situação não permitia em um sistema romanogermânico puro. Além disso, as demais súmulas não vinculantes, apesar de não possuírem aplicabilidade obrigatória pelo magistrado, por uma questão de equidade e segurança jurídica, por mais que o magistrado de primeiro grau decida fugir do entendimento dos Tribunais Superiores, sabe que sua decisão está fadada à reforma, e dificilmente persistirá. Por esta razão, a jurisprudência, costume e os precedentes não devem ser vistos como fonte primária, pois, estão diretamente interligadas à aplicação da norma escrita, já que o Direito brasileiro busca cada vez mais readaptar seu sistema através das decisões dos Tribunais e mudanças de interpretação. A intenção da aplicação cada vez mais visível da “Case Law” é a concretização e vinculação de novos métodos interpretativos, com o fim de acompanhar os costumes e ritmos sociais, sem ter de reformular todo o sistema jurídico escrito. Tal situação também fica clara com o julgamento da ADI 4277 do STF (importante precedente judicial), que gera grande alteração no direito de família. Este precedente jurisdicional reconheceu a união estável para casais homoafetivos, quando a Constituição Federal em seu art. 226, § 3º é clara ao mencionar a possibilidade desse tipo de união entre o homem e a mulher (no singular), e não entre homens e mulheres. Obviamente, se for para avaliar de forma crítica a real intenção do legislador à época ao criar este artigo, dificilmente é possível concluir que este imaginava a possibilidade de aplicação da norma entre pessoas do mesmo sexo, tendo em vista os interesses sociais daquela sociedade brasileira eram outros, diferentes do entendimento atual. Para tanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) se utilizou dos princípios gerais do direito para alterar a intenção do legislador do passado, e readaptá-la às exigências sociais a uma nova concepção de família, por mais que, por uma questão de análise, a Lei escrita não tenha objetivado a extensão a essa situação. Esta posição adotada pelo STF até hoje é questionada por doutrinadores, e juristas mais “conservadores”, porém, o que é inquestionável, é que tal decisão visou acompanhar as necessidades sociais de uma nova época, se fundamentando em princípios, e métodos interpretativos, de forma a atingir a real função do direito, que seria o alcance do que é considerado justiça à atualidade, comprovando a relevância da Case Law em relação às normas escritas. Bruna de Carvalho Santos Pinesch 45 Posto isso, o sistema brasileiro não mais deveria ser visto apenas como num sistema de normas exclusivamente piramidal, e sim da seguinte forma: 5. Conclusão Desse modo, resta claro que devido à globalização, os sistemas têm se aproximado cada vez mais, trazendo a necessidade do estudo de diversos sistemas, para entender o direito moderno, originando sistemas cada vez mais singulares. Como foi demonstrado, nos EUA, o sistema do Common Law puro sofreu fortes modificações para ser adaptado à sociedade norte-americana, originando a aplicação de um Common Law misto, na qual há presença tanto de Statute Law (normas escritas), quanto da Case Law (normas não escritas). E, no caso do sistema brasileiro, que anteriormente seguia um regime romanogermânico mais puro, devido a circunstâncias históricas ou sociais, vem sendo demonstrado cada vez mais aderência às novas tendências. Portanto, resta clara a tendência do Brasil, em se aproximar cada vez mais de um regime misto, sob forte influência do direito norte-americano, ou seja, o Common Law misto, trazendo grande relevância do direito casuístico, seja pelo surgimento das Súmulas, notadamente as vinculantes, seja pela capacidade que a jurisprudência tem para dar uma nova análise para a norma escrita, evitando constantes alterações. Direito comparado: sistema norte-americano vs sistema brasileiro 46 6. Referências Bibliográficas FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 2008. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law: Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: RT, 1999. VENOSA, Sílvio Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 10ª ed. São Paulo: Atlas, volume 1, 2012. A evolução ou estagnação do ensino superior nas escolas de direito no Brasil 1 Douglas Viola Barbosa 2 Edmila Montezani RESUMO As técnicas de ensino e aprendizado contemporâneas e a utilização das novas tecnologias em sala de aula vêm sendo amplamente discutidas, no que diz respeito ao entendimento e crítica do conteúdo. Muitas escolas de Direito e seu corpo docente, em pleno século XXI, ainda mantêm praticamente os princípios de memorização e repetição utilizados na época dos jesuítas, abusando da explanação de conteúdos e de sua memorização. Visando a melhor qualificação das técnicas de ensino-aprendizado dos cursos de Direito no Brasil, ressaltamos neste trabalho a importância de se ter um bom projeto pedagógico das Escolas de Direito que funcione na prática, já que o conteúdo ou grade curricular nas instituições de ensino já é previamente determinado. Palavras-Chave: ensino; direito; universidades. Graduado em administração de empresas pela FEA-USP. Pós-Graduado em Business Economics pela FGVSP. Aluno de graduação em Direito pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus – SP. 2 Mestre em aplicações estatísticas em tecnologia nuclear – USP. Professora universitária da universidade Anhembi Morumbi e de pós-graduação MBA Business School São Paulo. 1 The evolution or stagnation of education in law schools in Brazil ABSTRACT The techniques of contemporary teaching and learning and the use of new technologies in the classroom have been widely discussed, with regard to the understanding and critique of the content. Many law schools and their faculty, in full XXI century, still retains almost the principles of memorization and repetition used at the time of the Jesuits, abusing the explanation of content and its memorization. With a view at better qualification of the teaching-learning techniques of the law courses in Brazil, in this paper we emphasize the importance of having a good educational project of Law Schools that work in practice, since the content or curriculum in educational institutions is already pre-determined. Keywords: teaching; law; universities. Douglas Viola Barbosa / Edmila Montezani 49 1. Introdução O Direito constantemente esteve presente na organização do homem como sociedade, desde as suas formas mais primitivas. Nas universidades seu surgimento data do século XI. Desde então, a tentativa de organizar o estudo do Direito sempre sofreu a influência de interesses diversos, principalmente das classes dominantes. Este trabalho analisou a evolução histórica do surgimento do Direito nas universidades e mais particularmente nas primeiras faculdades brasileiras. Pode-se perceber a necessidade de evolução dos métodos tradicionalmente utilizados de modo que se desenvolva um raciocínio crítico mais elaborado nos estudantes. O Direito faz parte da vida de todos que vivem em sociedade. Por isso o seu ensino está extremamente ligado ao compromisso com a ética e integração social. Os professores e alunos de Direito devem ser mais do que apenas comentadores e reprodutores do que dizem os códigos. Devem ser capazes de resolver problemas. Por isso, a importância de romper barreiras e adaptar às faculdades de Direito um ensino que propicie uma visão crítica sobre o assunto, com métodos que envolvem aulas práticas, discussões em salas de aula, estágios monitorados, visitas técnicas, inovações tecnológicas do ensino, entre outros. 2. O princípio: surgem as universidades A universidade, de acordo com Lopes, J.R.L. (2002), é uma invenção medieval e surge a partir dos séculos XI e XII. “A universidade medieval promoveu o surgimento dos juristas e eles se identificaram com ela” (LOPES, J.R.L., 2002, p.121). O autor também afirma que a universidade medieval mudou completamente a partir do século XVI, perdendo parte de sua importância e vigor, passando a ser dominada pelos debates teológicos. Muitos professores passaram a ser perseguidos quando não propagavam as religiões do Estado ou do príncipe. Nesta época surgiram as academias, que eram sociedades de pessoas já educadas que se reuniam para discutir, investigar e dialogar livremente sobre um determinado tema. Tornam-se, conforme o autor, a partir do século XVII, um centro de produção de cultura. Hoje em dia o papel das academias e das universidades evoluiu muito. As grandes transformações ocorridas no âmbito social e familiar, que tiveram como marco a sociedade moderna, resultaram na privatização do espaço familiar, que a partir desse momento passou a entender que a educação é um processo pertencente ao desenvolvimento humano, que vai sendo estabelecido na medida em que se constrói o conceito de educação. A educação superior tem o objetivo de preparar melhor o indivíduo A evolução ou estagnação do ensino superior nas escolas de direito no Brasil 50 para exercer suas atividades intelectuais e pessoais, levando em consideração a visão de mundo, com conhecimentos prévios adquiridos na educação básica. 2.1. O direito na universidade Para Wieacker (1967 apud Ferraz Jr 2012), a ciência europeia do direito propriamente dita nasce em Bolonha no século XI. Ferraz Junior (2012) menciona que neste momento nasce o pensamento dogmático. O autor relata ainda que foi desenvolvido graças aos digestos “justinianeus”, transformados em textos escolares de ensino na universidade. Na época, as técnicas utilizadas em salas de aula eram baseadas no “Trivium”, com os ensinamentos das disciplinas Gramática, Retórica e Dialética. O autor afirma que o jurista precisava harmonizá-los, desenvolvendo uma atividade exegética, interpretativa. Como os textos nem sempre concordavam, eram aplicados instrumentos retóricos para evitar a incompatibilidade, como a hierarquização dos textos conforme a autoridade e distinção entre gerais e especiais. Em síntese, neste momento a teoria jurídica se torna uma disciplina universitária. Ferraz Junior (2012) diz, porém, que o pensamento jurídico orbitava em torno do poder real. O Direito era centrado no soberano e os súditos se subordinavam a tal relação. E a soberania, por sua vez, era limitada pelo poder divino. A noção de soberania propicia uma forma de conceber o direito a partir de um princípio centralizador. Dessa forma, todos os seres tinham sua unidade de convergência em Deus; assim como a verdade só podia ser uma, assim também o direito só podia ser um, dentro de determinado território, de determinada esfera de poder (FERRAZ JR, 2012, p. 41). Já a partir do Renascimento, Ferraz Junior (2012) enuncia a progressiva perda do caráter sagrado do Direito, o que significa sua crescente importância técnica e sistemacidade. Passa a ser visto como uma reconstrução, de forma racional, das regras da convivência. O pensamento sistemático, sobretudo no começo do século XVII, (...), foi transposto da teoria da música e da astronomia para a teologia, para a filosofia e para a jurisprudência. No princípio, isso foi feito como instrumento de técnica de ensino (...)(FERRAZ JR, 2012, p. 42). O Direito passa então, ainda segundo o autor, a ser visto como um regulador nacional e supranacional, capaz de ser operado apesar de diferenças naturais e religiosas, fortalecendo-se aos poucos no estado moderno. Todavia, a partir do século XIX o autor afirma que o fato do direito tornar-se escrito possibilitou um confronto dos diversos conjuntos normativos, sendo que cresce a necessidade de regras interpretativas, que são aplicadas no ensino do direito. Nesta época surge a Declaração dos Direitos do Douglas Viola Barbosa / Edmila Montezani 51 Homem e do Cidadão de 1789 e a teoria clássica da divisão dos poderes, que possibilita o surgimento de uma nova forma de saber jurídico, a ciência do direito do século XIX. O direito deixa de ser estático e a mutabilidade passa a ser usual. Essa percepção de mutabilidade teve consequências importantes para o saber jurídico, provocando perplexidade no início do século XIX, “Afinal, dirá alguém, referindose à ciência do direito, que ciência é esta se basta uma penada do legislador para que bibliotecas inteiras tornem-se maculatura?” Kirschmann (1966 APUD FERRAZ JR, 2012, p. 50). 3. O início do ensino do direito no Brasil Conforme Vidal e Hilsdorf (2001), no Brasil do século XVII, a cultura escolar jesuítica associava-se à política católica portuguesa, por intermédio de um conjunto de normas. Estas normas foram sistematizadas e ordenadas pelo “Ratio Studiorum atque Institutio Societatis Jesu”. Publicado em 1599 em Nápoles, significa a ordem e maneira dos estudos e definia os saberes que deveriam ser ensinados, condutas a serem apregoadas e um conjunto de práticas que permitiam a transmissão desses conhecimentos e a incorporação de comportamentos, normas e práticas. Passou a organizar o ensino de todos os colégios da Companhia até a sua dissolução no século XVIII. De acordo com Vidal e Hilsdorf (2001), na época em questão o fundamental era o estudo da retórica, que desde a IV sessão do Concílio de Trento, em abril de 1546, tinha assumido papel fundamental nas práticas católicas. Para Vidal e Hilsdorf (2001, p.19, grifos do original), “O Ratio Studiorum especifica que o curso de retórica deve dar conta de três coisas essenciais, que então resumem e normalizam toda a educação, os preceitos, o estilo e a erudição”. A erudição não era adquirida por meio do estudo direto dos manuais de história ou letras, mas pelas leituras, explicação e imitação de autores. No caso, a eruditio correspondia à cognitio rerum e à cognitio verborum, o conhecimento das coisas (res) da invenção (os lugares-comuns, argumentos ou tópicas), e das palavras (verba) da elocução (os ornatos, tropos e figuras do estilo). [...] No século XVII, os jesuítas optaram por um humanismo de cultura e de formação, opondo-se nitidamente ao humanismo de erudição (VIDAL & HILSDORF, 2001, p. 21, grifos do original). Levava-se em conta, conforme os autores, que a finalidade de todo o ensino era a ação. Por isso a prática jesuítica da retórica visava desenvolver a agilidade no manejo da erudição, essencialmente a erudição doutrinária. O tempo das aulas era de cinco horas diárias, sendo duas e meia pela manhã e igual período à tarde. O professor aplicava três espécies básicas de atividades. A preleção, a repetição e a aplicação. A evolução ou estagnação do ensino superior nas escolas de direito no Brasil 52 Com dizem Vidal e Hilsdorf (2001), a preleção era a exposição oral de um texto determinado. O professor a fazia segundo a técnica tradicional do comentário, seguindo preceitos específicos e adequando ortodoxamente ao tema. Fazia um resumo de partes e do texto inteiro e resumia a matéria, sem a pretensão de ser original. Também mantinha a versão autorizada pela Igreja. A exposição deveria ser clara, breve e em ordem lógica, tratando dos temas do mais simples ao mais complexo, para adaptar-se ao nível intelectual dos alunos. Vinha então a repetição. Os exercícios de memorização eram um dos principais procedimentos do ensino jesuítico. Trata-se de aprender um método de memorizar fundamentado nas antigas artes da memória gregas e romanas, como é exposta na Retórica para Herênio; e, simultaneamente, de aprender as informações particulares memorizadas nele. Os alunos recitavam de memória para os decuriões as lições que tinham aprendido nas preleções; alunos eram nomeados pelo professor para ouvirem a recitação, recolherem composições, anotarem em cadernos o número de vezes em que falhava a memória de cada estudante, quem não tinha feito os exercícios ou quem não entregara cópia dupla dos mesmos etc. (VIDAL & HILSDORF, 2001, p. 23, grifos do original). Mas ainda faltava a terceira atividade, a aplicação. Nesta etapa, o professor previa a transferência dos conhecimentos memorizados para novos objetos, que eram apropriados ou adaptados. É angustiante sabermos que muitas escolas de Direito e seu corpo docente, em pleno século XXI, ainda mantém praticamente os princípios de memorização e repetição utilizados na época dos jesuítas. Abusam da explanação de conteúdos e de sua memorização. Conforme Mota (2007), é muito importante mostrar um sentido que estimule os estudantes a desenvolver seus próprios pensamentos sobre problemas jurídicos. Segundo o autor, buscar o sentido de alguma coisa importa uma atividade de compreensão mediada através da linguagem. E o ensino jurídico deve ser capaz de apreender a importância da linguagem na ciência do Direito. Não é apenas necessária uma compreensão do significado dos textos normativos. O Direito não é somente um conjunto de proposições jurídicas suscetíveis de juízos de verdade ou falsidade. É preciso interpretar a norma. Neste ponto reside a maior dificuldade de escolas e professores mal preparados. Aptos apenas a repetir o que é dito pela jurisprudência e doutrinadores, sem um juízo crítico e interpretativo capaz de atingir a prática e aludir ao raciocínio jurídico e compreensivo dos alunos. De forma antagônica, sabemos que a universidade é também um espelho do que ocorre nas sociedades. Nos dias de hoje há que se analisar, o quanto é justo a sociedade cobrar das universidades a transformação de que o Brasil necessita e há Douglas Viola Barbosa / Edmila Montezani 53 tanto tempo vem buscando. No caso das escolas de Direito, há muito já se discute seu papel na sociedade e sua função como agente de transformação social. Para Colaço (2006) há na história do ensino jurídico brasileiro uma clara influência elitista, que advém ainda do período colonial, época em que os juristas nacionais eram formados pela universidade de Coimbra. Segundo a autora, a partir de 1808, com a vinda da família real ao Brasil, surgem as primeiras escolas de nível superior: Academia Real da Marinha em 1808 e a Academia Real Militar em 1810. No período colonial, a política portuguesa não tinha interesse de que aqui houvesse instituições de Ensino Superior. As profissões mais valorizadas socialmente só podiam ser exercidas por aqueles que tivessem condições socioeconômicas de realizar seus estudos na Europa e, assim, a limitação do acesso ao saber formal configurava-se em um importante instrumento para a manutenção das ideologias colonizadoras (MÁRQUES, 2011, p.147). Colaço (2006) afirma que somente após a independência em 1822, com a necessidade de integração do povo e do território nacional, além da necessidade de consolidação do governo, foram criados os cursos jurídicos em 1827 nas cidades de Olinda e São Paulo. Foi a origem para as primeiras faculdades de Direito do país, a faculdade de Direito de Recife e a faculdade de Direito de São Paulo. Tais cursos foram determinados, precisamente em 11 de agosto de 1827, por carta de lei do Imperador Pedro I. Márques (2011) diz que a elite, associada a grupos como a Maçonaria, passou a reivindicar a criação de curso de Direito para que seus filhos pudessem ser preparados a futuros dirigentes, sem a interferência política e cultural de Portugal. As aulas da Faculdade de Direito do Recife, instalada em 15 de maio de 1828 no Mosteiro de São Bento, iniciaram-se em 2 de junho do mesmo ano, com 41 alunos oriundos de vários estados brasileiros e de outros países, como Portugal e Angola. Desta forma, a primeira turma de bacharéis formou-se em 1832. Já a Academia de Direito de São Paulo instalou-se no Largo São Francisco em um velho convento que datava do século XVI. Na década de 1930 construiu-se um novo edifício, hoje tombado como patrimônio histórico do Estado de São Paulo. Além disso, a Faculdade de Direito foi a primeira instituição a integrar a Universidade de São Paulo. Para Colaço (2006), o ensino jurídico propicia o surgimento de uma elite pensante para um cunho político-ideológico do novo Estado Nacional. Diz a autora, que o caráter conservador da Universidade de Coimbra prevaleceu no ensino jurídico brasileiro da época, propiciando a ascensão social dos estudantes. A evolução ou estagnação do ensino superior nas escolas de direito no Brasil 54 Colaço (2006) critica que a metodologia utilizada nas primeiras faculdades de Direito, a da aula-conferência, herdada de Portugal. Mas que ainda vigora em pleno século XXI. A autora critica o fato de a maioria dos professores não possuírem formação didático-pedagógica, serem conservadores e reprodutores de discursos oficiais, atuando como comentadores de artigos dos códigos. Desta forma, tornam-se insensíveis aos verdadeiros problemas da maior parte da população. Machado (2009) também diz que é preciso analisar o papel do Direito na sociedade e como está ocorrendo a formação dos operadores do direito. O ensino formalista, centrado apenas nos estudos dos códigos e das formalidades legais; o ensino excessivamente tecnicista, resumido no estudo das técnicas jurídicas de interpretação e aplicação dos textos legais sem qualquer articulação com os domínios da ética e da política; o predomínio incontrastável da ideologia positivista; o ensino completamente esvaziado de conteúdo social e humanístico; a baixa qualidade técnica da maioria dos cursos jurídicos; a proliferação desordenada desses cursos sem nenhum controle eficiente sobre a qualidade dos mesmos; o predomínio de uma didática superada e autoritária, centrada exclusivamente na aula conferência e na abordagem de conteúdos programáticos aleatoriamente definidos etc. (MACHADO, 2009, p. 19). Tal fato torna-se extremamente grave, pois é justamente o Direito que deveria se aproximar das adversidades sociais, fundamentalmente por estar associado à ideia de justiça. Mas o que vemos é um ensino de certo modo autoritário, que procura passar ao aluno conceitos prontos sobre o que é certo ou errado. Em geral há poucos debates sobre temas importantes e de grande relevância social. Consoante Colaço (2006), já foram realizadas diversas reformas curriculares nos cursos de Direito entre o século XIX e XXI. Mas são inúteis reformas curriculares se não alterar a mentalidade de professores e profissionais do Direito. Acrescenta ainda o fato de que parte da crise do ensino jurídico resulta da grande ampliação de cursos universitários de Direito em todo o Brasil, que muitas vezes oferecem professores mal preparados, com uma preparação pedagógica sofrível. Tal fato tem reflexo na quantidade de alunos aprovados nos exames da Ordem dos Advogados do Brasil, que muitas vezes têm de recorrer a cursos preparatórios, estendendo o tempo de preparação, para poderem exercer a profissão. Em alguns casos, o que deveria ser para recordar acaba se transformando em aprendizado de conceitos novos, face à má qualidade do ensino superior. De acordo com Colaço (2006), muitos alunos de Direito, com o decorrer no ensino jurídico deixam de lado o interesse pelas disciplinas propedêuticas geralmente ministradas no início do curso, perdendo o interesse pelos problemas sociais e tornandose tecnocratas, com visão apenas para o sucesso pessoal. Douglas Viola Barbosa / Edmila Montezani 55 4. O ensino jurídico brasileiro nas últimas décadas Segundo Calderón (2000), até 1968 o sistema universitário brasileiro estava dividido em universidades públicas e privadas. As públicas eram aproximadamente 31 instituições e as privadas cerca de 11 instituições de inspiração católica e 1 presbiteriana. “Essas universidades, embora particulares, pela própria missão educacional das instituições religiosas, tinham certa preocupação com a qualidade do ensino (...)” (CALDERÓN, 2000, p. 62). Neste período, as universidades particulares não podiam ter fins lucrativos. Calderón (2000) diz que nos demais países da América Latina houve uma massificação das universidades públicas diante da demanda de democratização do ensino superior. Já no Brasil optou-se pelo investimento financeiro na universidade pública de elite. De forma paralela optou-se pela criação de estabelecimentos de ensino privados isolados. Mas a proliferação ocorreu somente a partir da década de 1990. O autor comenta sobre a multiplicação das universidades mercantis, caracterizadas pela predominância da lógica empresarial, menciona também sobre a concentração das universidades particulares nas regiões Sudeste e Sul. Há concentração de investimentos em regiões de alta demanda com poder aquisitivo e prioridades em cursos de grande demanda e baixo custo de investimento financeiro. Em segundo lugar está o curso de Administração de Empresas e em primeiro lugar o curso de Direito. As relações do Estado com a educação no Brasil são por vezes obscuras e frequentemente ambíguas. Sem dúvida, a principal questão que perpassa essas relações é a da publicização ou privatização do ensino, que hoje encontra eco nas propostas que se autointitulam “neoliberais” e advogam a desestatização das escolas, abrindo-as plenamente à iniciativa privada. Por esses motivos é que a qualidade do ensino merece atenção dos governantes e da sociedade. Com a massificação do ensino, especialmente do ensino jurídico, o curso de maior expansão no mercado universitário brasileiro, surgem profissionais cada vez mais despreparados e sem perspectivas de trabalho. Barros Junior e Tucanduva (1980) traziam à tona questões discutidas nas faculdades de Direito, mais especificamente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo durante a década de 80. Eram debatidas questões como se era devido à universidade formar profissionais que pudessem vencer uma concorrência econômica, e se desta forma ela se tornaria ou não mero instrumento de continuidade da ordem vigente. Se ao invés de formar A evolução ou estagnação do ensino superior nas escolas de direito no Brasil 56 técnicos eficientes e neutros a universidade deveria formar jovens com valores humanos e culturais úteis à maioria da população. Ou se a universidade deveria ter um “curriculum” ou apenas programas de pesquisas. E ainda, se a função da universidade seria mais de educar e instruir do que de apenas ensinar, ou se a educação distinguiria funções técnicas das políticas. Alguns pontos foram superados, outros ainda tecem discussões nos planos acadêmicos. No início da década de 80 os mesmos autores traziam a importância dos estágios às faculdades de Direito, porém ajustadas ao final do ciclo básico. O papel das Faculdades de direito de propiciar a formação básica que permita ao acadêmico conhecer o direito, seus princípios, instituições, iluminálos pela pesquisa e análise das soluções sem comprometimento com os resultados, tendo em vista um desenvolvimento posterior, na verdade exige o estágio. Este se ajusta à fase final do ciclo básico (...) (BARROS JUNIOR & TUCANDUVA, 1980, p. 9-10). Para Bomfim, B. Calheiros (2009), trazendo os conceitos de Celso Campilongo, a crise da “Ciência do Direito” praticada nas faculdades, esbarra em três obstáculos: descompromisso com a ética, distanciamento dos fatos e uma forma incompatível com o dinamismo da sociedade, economia e tecnologia modernas. Abaixo, retrata o pensamento de Jônathas Silva. Em uma sociedade atingida pelas mais profundas transformações, o Direito, como norma e controle social, vive o drama do revisionismo conceitual e normativo. Daí ser o papel das faculdades de Direito o de preparar os juristas para um mundo em transformação, aparelhando-se para a tarefa de não só aplicar e interpretar o Direito, mas, sobretudo, o de construir (BOMFIM, 2009, p. 111-112). No contexto de codificação do século XIX, o Brasil busca acompanhar o desenvolvimento também das ciências jurídicas, que estariam regulando as relações não só entre as pessoas, mas, inclusive, entre as nações, que neste momento passavam por um novo período de desenvolvimento técnico-científico, do qual estariam condenados à marginalidade, ou a total exclusão, os países que não se institucionalizassem dentro do quadro de exigências da sociedade moderna (CICCO, 1993). De acordo com Braga da Cruz (1975, p. 35) podemos considerar: No domínio da história do direito, o problema cresce de interesse e importância quando recuamos em data e remontamos a épocas em que a escassez e a imperfeição das fontes imediatas – e, sobretudo, o seu caráter incompleto – obrigavam, não poucas vezes no quadro dos diversos direitos nacionais, um lugar de maior relevo e de mais larga aplicação do que as próprias normas de direito pátrio. E quando com este fenômeno se conjuga o do recurso por diferentes Douglas Viola Barbosa / Edmila Montezani 57 povos a um mesmo manancial de normas subsidiárias – como sucedeu durante a Idade Média e nos Tempos Modernos, em todos os países da Europa Ocidental, como o recurso ao direito romano-canônico (CRUZ, 1975, p.178). Diante do fato de que o mercado de trabalho está cada vez mais globalizado e competitivo, que exige constante atualização frente às questões legislativas e judiciais, as universidades necessitam ampliar seu quadro de disciplinas constituídas de atividades complementares, que proporcionam o aprofundamento e questionamento do conhecimento aliado à prática, conciliando uma visão do atual mercado de trabalho aos acadêmicos. 5. Críticas e sugestões ao ensino jurídico no século XXI: o rompimento de paradigmas Segundo Madruga (2012) gerações de alunos de cursos de Direito no Brasil foram formadas com pouca ou nenhuma atenção a problemas legais transnacionais. Salvo marcantes exceções, nossas escolas desenharam os currículos dos cursos de Direito e as ementas das respectivas disciplinas como se as questões que frequentariam as mesas dos futuros advogados, promotores e juízes estivessem fadados aos limites da jurisdição brasileira. Para Damásio de Jesus (2005), entre os requisitos fundamentais para uma boa faculdade, estão os propósitos autênticos e a correspondência entre o que foi planejado e o que ocorre nas salas de aula. Ressalta, portanto, a importância de se ter um bom projeto pedagógico que funcione na prática, já que o conteúdo ou grade curricular é determinado. O autor salienta ainda, a significância das aulas práticas na formação do aluno de Direito. Em sua opinião, tal método deve ocorrer uma vez a cada três aulas expositivas. Desta forma, alega eliminar-se a distância entre o que está nos códigos e a vida comum. Por isso, articula que as instituições devem preparar os professores para tal tarefa, lembrando-se sempre que o agente de transformação para esta atividade incide na figura do professor. Cabe à instituição, sem dúvida, capacitá-lo para essa tarefa, disponibilizar os seus melhores recursos e municiá-lo com um repertório criativo de meios institucionais e estratégias que venham a favorecer o desempenho de suas abordagens práticas. Será sempre do professor, porém, a missão de fazer acontecer, em sala de aula, a proposta pedagógica estabelecida para o curso (...) (JESUS, 2005, p. 11). Damásio E. de Jesus (2005) também argumenta que com a estratégia das aulas práticas, o aprendizado se torna mais rico, consistente e profundo. Mas diz que para A evolução ou estagnação do ensino superior nas escolas de direito no Brasil 58 que tal fato ocorra é necessária certa ruptura de paradigmas, principalmente por parte dos professores. Evidentemente, a aula prática exige muito mais do professor do que a aula expositiva, a começar da própria mudança de atitude, quase nunca uma tarefa simples, rápida e indolor. E, talvez apenas esse fato já explique, por si, as resistências observadas à sua utilização. Uma aula expositiva requer tão somente bom domínio do discurso legal (...). Uma aula prática, ao contrário, exige outro tipo de disciplina, mais flexibilidade e uma boa dose de criatividade na escolha de estratégias educacionais diferenciadas (JESUS, 2005, p.10) Para Streck (2011), há uma cultura de simplificação do Direito. O saber jurídico tem se resumido a comentários resumidos de jurisprudência, desacompanhados de contexto. Nos cursos de graduação predomina a cultura baseada em manuais, proliferando a construção de lugares comuns, da simplificação do conhecimento e o dedutivismo. Relata o autor que a crise do ensino jurídico é fundamentalmente uma crise do Direito. Ainda na análise do ensino jurídico, Streck (2011) intitula de mimetismo jurídico a perpetuação, consciente ou não do senso comum, pela qual os professores adotam a linguagem e ideias fraseadas, argumentos/fórmulas, essencialmente simplificados e copiáveis. Manifesta que, apesar desta perpetuação da linguagem jurídica padrão ser importante para manter as tradições jurídicas vivas, poderia ser substituída por linguagem mais moderna e coloquial, por força do princípio da simplicidade, a fim de evitar expressões ambíguas que podem dar margem a interpretações conflitantes. O autor adverte sobre a predominância ainda de um positivismo jurídico. Para superálo, há a apelação a alguma corrente voluntarista, resultando no que ele denomina de era dos princípios, na qual novos princípios são criados a todo o momento, gerando o fenômeno de “panprincipiologismo”. Neste contexto, o autor exprime que professores e alunos assumem um papel fundamental na formação dos profissionais do Direito. Descreve o professor como responsável por dar contexto às normas jurídicas, aproximar o aluno à realidade social, de forma didática e fazer com que o aluno adquira um raciocínio jurídico, e não bastando que ele simplesmente memorize manuais. Já quanto aluno é esperado ter uma postura questionadora, fugir do lugar comum e da formação fechada e formalista. Ademais, o papel precípuo de ambos é a integração e troca de experiências para atingir o objetivo principal, a correta aplicação do Direito em todas as suas vertentes, observando a aplicação da norma positivada e suas repercussões na esfera social. Mas há certa dificuldade para que tais requisitos ocorram. Tal complexidade é influenciada por alguns fatores. Douglas Viola Barbosa / Edmila Montezani 59 (...) é preciso reconhecer que, nos dias atuais, quando se fala em Ciência do Direito, no sentido do estudo que se processa nas Faculdades de Direito, há uma tendência em identificá-la como um tipo de produção técnica, destinada apenas a atender às necessidades do profissional (o juiz, o promotor, o advogado) no desempenho imediato de suas funções. Na verdade, nos últimos cem anos, o jurista teórico, pela sua formação universitária, foi sendo conduzido a esse tipo de especialização, fechada e formalista (FERRAZ Jr, 1987, p.49 APUD Streck 2011, p.100). Para Pupin (2011), o aprendizado do Direito deve ser um elemento de realização efetiva de uma significativa aprendizagem. Para isso são essenciais atividades práticas que não configurem mero cumprimento de uma exigência legal, mas que sejam contextualizadas e supervisionadas. Tais atividades podem ser estágios, visitas técnicas, entre outras. Importante desta forma, a responsabilidade pessoal e profissional do discente, que deve superar, segundo o autor, a abordagem meramente positivista. Esta formação global, segundo o autor, propicia a construção de capacidades profissionais de forma consciente e crítica, extrapolando a tradicional forma expositiva baseada no giz e na lousa. Segundo Pupin (2011, p. 69), “o conhecimento é construído pelo sujeito através de sua experiência e interação com o meio e, portanto, não é uma qualidade estática e sim uma relação dinâmica”. Desta forma afirma o autor que não há espaço para um sistema educacional fechado e estável. Na verdade o que importa não é a forma como algo está sendo transmitido e aceito pelo aluno, mas como ele está aprendendo. O autor ressalta a importância da vinculação das matérias estudadas com o todo, com a realidade para que as escolas não formem indivíduos sem senso crítico e sem consciência de seu papel. Desta maneira, a entidade educacional deve ser um canal de reflexão para a formação do indivíduo. Especificamente quanto ao profissional do Direito, há uma responsabilidade ainda maior, pois ele deve compreender a sua realidade social e cultural para realizar a sua prática profissional. O problema não está na fragmentação disciplinar, por si só, do ensino da ciência jurídica – plano de análise –, mas na ausência de uma organização curricular com elementos que permitam reunir – ou unir – as informações contextualizadamente com a realidade, com o meio físico onde se faz necessária – tenha significado para o aluno – para que seja, de fato, apreendida, para que se possa realizar uma representação pessoal do conhecimento (PUPIN, 2011, p. 71). Desta forma, falta conforme o autor, o questionamento, o enfrentamento de desafios, a discussão e a convivência com as adversidades das atividades jurídicas. Por isso, a importância cada vez maior das atividades de estágio supervisionado, núcleo de práticas A evolução ou estagnação do ensino superior nas escolas de direito no Brasil 60 jurídicas, visitas técnicas, audiências e júris simulados. Tais atividades são dinâmicas e possibilitam aos estudantes de Direito desenvolverem habilidades e comportamentos importantes ao desenvolvimento profissional e integrados ao saber jurídico. 6. Conclusão Após séculos de organização do homem em sociedade foi imperioso o desenvolvimento de práticas e teorias jurídicas, que fizessem com que a coletividade se tornasse factível. O surgimento das universidades esteve intimamente ligado às necessidades de desenvolvimento do ensino jurídico. No Brasil não foi diferente, pouco após a independência, com a criação das escolas de Direito de Olinda e São Paulo. Tal movimento propiciou o aparecimento de uma elite cultural para o império. Entretanto, pode-se dizer que o ensino do Direito propriamente dito pouco evoluiu desde então. Muitos métodos de ensino ainda remontam à época dos jesuítas, alicerçados na pura explanação de conteúdos e memorização. Porém, muitos estudiosos, como o professor Damásio de Jesus, ressaltam a importância das aulas práticas e de projetos pedagógicos bem elaborados, eliminando-se a distância entre os textos dos códigos e o cotidiano usual. Defende-se neste trabalho, o desenvolvimento de um método de ensino capaz de fazer o aluno raciocinar e colocar em prática o que aprende nas salas de aula. Não se tem a pretensão de desprestigiar todos os métodos tradicionais de ensino, mas ressaltase o desafio de desenvolver no aluno uma capacidade crítica e que supere a postura de entender o direito apenas como um conjunto de leis e súmulas. Douglas Viola Barbosa / Edmila Montezani 61 7. Referências Bibliográficas BARROS JUNIOR, Cassio de Mesquita; TUCANDUVA, Ruy. Estágio e Formação profissional do advogado: doutrina, prática, legislação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1980. BOMFIM, B. Calheiros. Conceitos sobre Advocacia, Magistratura, Justiça e Direito. Niterói: Editora Impetus, 2009. CICCO, Cláudio. Direito: Tradição e Modernidade – Poder e Autoridade na Família e no Estado. Das Origens Romanas ao Direito Brasileiro Moderno. Coleção Elementos do Direito. São Paulo: Ícone, 1993. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 6a edição. São Paulo: Atlas, 2012. JESUS, Damásio Evangelista de. Proposta Educacional: práticas, conceitos e uma filosofia muito particular de sucesso. São Paulo: EDJ, 2005. LOPES, J.R.L. O Direito na História. Lições Introdutórias. São Paulo: Editora Max Limonad, 2002. MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. VIDAL, Diana Gonçalves; HILSDORF, Maria Lúcia Spedo. Brasil 500 Anos: Tópicas em História da Educação. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. A evolução ou estagnação do ensino superior nas escolas de direito no Brasil 62 8. Webgrafia BRAGA DA CRUZ, Guilherme. Formação Histórica do Moderno Direito Privado Português e Brasileiro. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/ viewFile/66222/68832. Acesso em 31 de maio de 2013. CALDERÓN, Adolfo Ignacio. UNIVERSIDADES MERCANTIS: a institucionalização do mercado universitário em questão. Disponível em: http:// www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392000000100007&script=sci_arttext. Acesso em: 30 de maio de 2013. COLAÇO, Thais Luzia. Humanização do ensino do direito e extensão universitária. 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As atividades práticas como instrumentos do processo de aprendizagem significativa - enfoque ao curso de Direito. Revista Espaço Acadêmico, v. 11, n. 124, p. 67-75, 2011. ISSN 15196186. Disponível em: http://www.ufpe.br/ccj/index.php?option=com_content&view=article&id=210&It emid=188 . Acesso em: 29 de maio de 2013. A Súmula Vinculante como instrumento de violência simbólica 1 Fernando Antonio Notaroberto RESUMO O presente artigo consiste em analisar um dos mais importantes instrumentos jurídicos do direito constitucional contemporâneo, instituído e apontado por alguns teóricos como um dos principais avanços da Reforma do Poder Judiciário (EC nº 45/2004), a saber, a súmula vinculante editada pelo Supremo Tribunal Federal. Para isto, objetiva-se propor uma nova reflexão sobre a incidência da Súmula Vinculante correlacionando a Teoria do Poder de Violência Simbólica, tendo em vista que o escopo do supracitado instituto jurídico constitucional é preservar a coerência e harmonia com o sistema jurídico e social, e ao mesmo tempo, (re)estabelecer o controle das inúmeras interpretações jurídicas existentes e ditas controversas no campo jurídico e extrajurídico das relações intersubjetivas da sociedade. Consolidando, deste modo, o entendimento jurídico do Supremo Tribunal Federal sobre determinada matéria em conflito interpretativo, repercutindo por final segurança jurídica ao ordenamento jurídico brasileiro. Palavras-chave: Súmula Vinculante; Supremo Tribunal Federal; Poder Judiciário; Hermenêutica Constitucional; Poder de Violência Simbólica. Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus e pós-graduando lato sensu no curso de especialização em direito constitucional aplicado pela mesma instituição. Participou do programa de Formação em Direito do Estado promovido pelo IDAP e das primeiras formações do GEA-FDDJ. 1 A Binding Precedent as an instrument of symbolic violence ABSTRACT This article is to examine one of the most important legal instruments of contemporary constitutional law established and appointed by some theorists as a major advancement of the Reform of the Judiciary (EC no. 45/2004), namely binding precedent issued by the Supreme Court. For this, we aim to propose a new reflection about the incidence of binding precedent, correlating the Theory of Power Simbolic Violence, conside ring that the scope of the Supreme Court is to preserve the coherence and harmony with the legal and social system and at the same time (re) establish the control of the numerous legal and controversial interpretations that exist in the legal and extralegal fields of intersubjective relations of society. Consolidating, thus, the legal opinion of the Supreme Court about a particular subject during its interpretive conflict, reflecting a legal end to the Brazilian legal system. Keywords: Binding Precedent; Supreme Court; Judiciary; Constitutional Hermeneutics; Power Violence Symbolic. Fernando Antonio Notaroberto 65 1. Introdução O presente estudo pretende analisar a súmula vinculante, como instrumento do poder de violência simbólica do Supremo Tribunal Federal (STF). Para isto, este artigo não tem a pretensão de esgotar todos os temas tratados e aspectos relacionados à súmula vinculante, mas visa especialmente propor a reflexão sob um novo olhar em relação à súmula vinculante fundamentado na teoria de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Deste modo, asseverar-se-á sobre alguns pontos em relação à súmula vinculante, porém, se escusando de adentrar quanto aos seus reais aspectos polêmicos e controversos do supracitado instituto jurídico constitucional, haja vista, a enorme quantidade de autores por parte da doutrina que asseveram sobre o campo da súmula vinculante. Importante ressaltar que a súmula com efeito vinculante é um instituto jurídico constitucional engendrado no Brasil em 2004, pelo poder constituinte derivado reformador que se deu pela Emenda Constitucional nº 45, a denominada emenda da Reforma do Poder Judiciário. Aliás, ao falar da súmula vinculante não há como deixar de tecer comentários sobre a importância do Supremo Tribunal Federal no cenário jurídico brasileiro, pois somente o Supremo Tribunal Federal (STF) poderá criar, ou melhor, editar a súmula vinculante, desde que observados os requisitos do artigo 103-A da Constituição Republicana de 1988, bem como o da lei infraconstitucional (Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006) que a regulamentou. O estudo do tema se faz necessário, pois a súmula vinculante editada pelo Supremo Tribunal Federal vincula toda a estrutura do Poder Judiciário, bem como a Administração Pública, portanto, a súmula vinculante passa a ser caracterizada como uma norma jurídica, por possuir conteúdo normativo, ou seja, por apresentar enunciados prescritivos, repercutindo assim efeitos jurídicos e sociais para o ordenamento jurídico, em razão de suas qualidades no plano abstrato de bilateralidade, disjunção e porque não dizer de sanção, tendo em vista a existência da ação constitucional denominada reclamação constitucional que analisará a existência ou não de violação sumular. Ademais, observação a se fazer é que, ao editar a Súmula Vinculante, o STF (re)estabelece a coerência com o sistema jurídico preservando o princípio da supremacia constitucional por meio de seus mandamentos editados, mediante o controle das inúmeras interpretações jurídicas existentes, devidamente combatidas e debatidas no momento em que o pleno do Supremo Tribunal Federal se reúne, a fim de apreciar as demandas sub judice constitucionalizadas. Ao asseverar acerca da súmula vinculante como um instituto jurídico constitucional, sob o prisma do Poder de Violência Simbólica do Supremo Tribunal Federal, isto é, por A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 66 meio da teoria abordada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, consequentemente, surge a discussão ou mesmo cria-se uma grande celeuma se o STF estaria ferindo o princípio da separação dos poderes ao editar a súmula vinculante? De fato, ao tentar esclarecer essa digressão, observar-se-á a teoria ou o poder normativo sobre a perspectiva de Paulo de Barros Carvalho, no que tange à norma jurídica, delimitando deste modo, qual a natureza jurídica da súmula vinculante. Deste modo, a súmula vinculante como instrumento de violência simbólica é um tema bastante promissor e ainda complexo a se falar (haja vista a existência do projeto de emenda constitucional no 33/2011 que altera o procedimento de edição, bem como a eficácia da súmula vinculante) e porque não, a se refletir no campo zetético da academia, tendo em vista que é o guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, que a edita, revisa e cancela, sem falar que é realmente o Poder Judiciário em último caso que garante ou concretiza os postulados constitucionais, efetivando assim, os direitos e deveres consagrados pela Constituição Republicana, atribuindo, portanto, a promoção e a guarda da Carta Política de 1988. 1.1. Supremo Tribunal Federal, Poder Judiciário e Súmula Vinculante Em 1828 foi criado como Supremo Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Federal (STF) que é o órgão judicial brasileiro mais antigo, sendo atualmente, órgão máximo dentro da esfera do Poder Judiciário. Suas atribuições são estabelecidas no artigo 102 da Constituição Republicana de 1988, que define a competência para processar e julgar ações originárias, recursos ordinários e extraordinários. Importante ressaltar que a Constituição Republicana de 1891, introduziu uma nova concepção acerca do Poder Judiciário. Influenciada pela doutrina constitucional norte-americana conferiu-se ao aludido órgão a função de guardião da Constituição e da ordem federativa (MENDES, 2009, p. 981). Cabe a ele, principalmente, zelar pelo cumprimento e eficácia das normas ou postulados constitucionais. Aliás, todo Estado fundamentado na perspectiva de Estado Democrático de Direito tem seu próprio Tribunal Constitucional. Certo é que cada Estado atribui algumas particularidades aos seus Tribunais como, por exemplo, critério para escolha de seus membros, eficácia das decisões, competências que lhe são atribuídas, dentre outras. Destarte, com a Constituição Republicana de 1988 ampliou significativamente a competência originária do Excelso Pretório, especialmente no que tange ao controle de constitucionalidade de leis, atos normativos e ao controle da omissão inconstitucional (MENDES, 2009, p. 990). Posteriormente, a Emenda Constitucional no 3 de 1993, Fernando Antonio Notaroberto 67 estabeleceu a ação declaratória de constitucionalidade, a fim de afastar a insegurança jurídica ou o estado de incerteza sobre a validade de lei ou ato normativo federal, preservando assim, a ordem jurídica constitucional, com eficácia contra todos, e dotada de efeito vinculante em seu julgamento final relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo (SANTOS, 2012, p. 163-164 e 180). Mais tarde, de forma salutar, foi promulgada a Emenda Constitucional no 45 de 2004, que permitiu a extensão dos efeitos da decisão do caso concreto para o campo abstrato. Portanto, possibilitou a eficácia erga omnes da decisão do STF, e também o efeito vinculante das decisões constitucionalizadas2. Além disso, criou-se a incidência da demonstração de repercussão geral, para a admissão de recurso extraordinário na Suprema Corte Brasileira, como uma das medidas da aludida emenda constitucional. Pode-se dizer que, em nosso país, os olhares estão se voltando mais ao Supremo Tribunal Federal, fato este que não se via há alguns anos, tendo em vista que a própria topografia da Constituição vigente consagrou os direitos e garantias fundamentais do cidadão em relação ao Estado, advindo consequentemente o exercício da cidadania pela conscientização dos direitos. Assim, vem ganhando força e notoriedade o órgão que profere a última decisão dentro da estrutura do Poder Judiciário. Deste modo, sob uma visão panorâmica, não se vislumbra qualquer abuso das competências conferidas originariamente ao Supremo Tribunal Federal, haja vista, a separação de poderes3, na qual a própria Constituição (MIRANDA, 2011, p. 157 e 169) constitui o Estado e organiza o sistema de freios e contrapesos4. E até mesmo, quando há de se falar sobre a edição de súmula vinculante como uma das atividades exercidas pelo STF de acordo com a “mens legis” da Carta Política de 1988, como um instrumento sumular vinculante, oriundo do poder de violência simbólica da aludida Corte Brasileira. Aliás, para a análise da súmula vinculante, antes é necessário ter a compreensão do Poder Judiciário e sua reforma iniciada, de forma vigorosa, com a Emenda Constitucional nº. 45 de 2004, isso porque todas as discussões políticas importantes do Mais recentemente, com a criação da súmula vinculante, construiu- se uma ponte definitiva entre o controle difuso-concreto da constitucionalidade das leis e o controle abstrato-concentrado, já que as decisões proferidas no primeiro contexto poderão alcançar os efeitos próprios do segundo modelo, desde que sejam incorporadas no enunciado de uma súmula vinculante” (TAVARES, 2012, p. 310). 3 Artigo 2º da Constituição Federal. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 4 “Do ponto de vista dogmático, segundo uma visão positivista estrita, a jurisdição constitucional não sofre qualquer censura pelo princípio da separação de poderes: é a própria Constituição, como norma jurídica superior, quem institui o Estado e organiza o sistema de freios e contrapesos, conferindo aos juízes constitucionais competência para anular ou deixar de aplicar, conforme o caso, as leis inconstitucionais” (BINENBOJM, 2008, p. 145). 2 A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 68 país voltam-se à eficiência do sistema judiciário brasileiro conforme o artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição Republicana vigente. Sendo assim, Sergio Renault5 aduz que a criação da súmula vinculante foi um dos principais avanços realizados pela reforma do Judiciário, já que elas permitem a agilização do julgamento de processos com temática idêntica. Desta forma, se inseriu a reforma do Poder Judiciário que facultou ao Supremo Tribunal Federal a Competência (MIRANDA, 2011, p. 383) de editar, revisar e cancelar os enunciados de súmula vinculante, autorizando assim a construção de normas “gerais” ou de produção normativa (GOSSON, 2007, p. 160) produzida pelo sistema jurídico com o escopo de assegurar a interpretação dos dispositivos constitucionais, repercutindo, dessa maneira, o caráter de observância obrigatória por parte dos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Direta e Indireta de forma a concretizar uma eficiente prestação da jurisdição constitucional, conforme o artigo 103 – A da Constituição Republicana de 1988 6. 2. Noções iniciais acerca da súmula 2.1. A história da súmula no ordenamento jurídico brasileiro Inicia-se o estudo da história sumular com antecedentes longínquos no Direito português por meio das Ordenações Manuelinas de 1521. Estas ordenações foram as primeiras a estabelecerem os “assentos”. Importante esclarecer que cabia tão somente à Casa da Suplicação de Lisboa a edição dos referidos assentos. Com esses procurava-se resolver os conflitos de orientações jurisprudenciais de tribunais superiores que posteriormente adquiria força obrigatória geral a doutrina (interpretação) vencedora adotada pelo pleno do tribunal. Ademais, observa-se que a natureza jurídica dos assentos se revestiam de caráter jurisdicional, tendo em vista se tratar de normas jurisprudenciais (MIRANDA, 2011, p. 370-372). “As súmulas vinculantes são regras elaboradas pelo STF com base em repetidas decisões sobre um mesmo assunto. Elas devem ser obedecidas pelos outros tribunais do país e pelos órgãos da administração pública” (FOLHA DE S. PAULO, 2013, p. 2). 6 Artigo 103-A da CF. “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”. 5 Fernando Antonio Notaroberto 69 O resumo histórico dos assentos até as súmulas vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal se dá a partir das Ordenações Manuelinas. Com perfeição, Manoel Justino Bezerra Filho exerce grande influência no estudo do direito sumular brasileiro, pois elucida sobre as origens do direito sumular: a) 1446 – Ordenações Afonsinas – não conheceram qualquer tipo de súmula; b) 1521 – Ordenações Manuelinas – estabeleceram o sistema inicial de “Assentos”; c) 1603 – Ordenações Filipinas – mantiveram e aperfeiçoaram o sistema de “Assentos da Casa de Suplicação”; d) 18.08.1769 – A “Lei da Boa Razão” – tirou dos Tribunais de Relação do Rio de Janeiro e da Bahia, a possibilidade de “assentos”, o que foi restabelecido por D. João VI em 1808; e) 20.10.1823 – Lei sem número, de D. Pedro I, mantém em vigor as Ordenações Filipinas; f) 18.09.1828 – Lei sem número, de D. Pedro I, cria o Supremo Tribunal de Justiça, com poderes para relacionar julgados a serem uniformizados; g) 23.10.1875 – Dec. 2.684, de D. Pedro II, mantém os assentos da “Casa da Suplicação”, concedendo ao Supremo Tribunal de Justiça a possibilidade de também efetuar “assentos”; h) 01.05.1943 – O Dec. 5.452, Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 902, cria “prejulgados”, posteriormente substituídos pela Lei 7.033, de 05.10.1982, por súmulas e enunciados do TST; i) 28.08.1963 – Criação da “Súmula do Supremo Tribunal Federal”, por alteração do Regimento Interno do mesmo STF (BEZERRA FILHO, 2003, p.37). Ademais, esclarecendo a respeito da criação das “Súmulas”, pode se dizer que surgiu no STF, justamente pela iniciativa do Ministro Victor Nunes Leal, com o escopo de facilitar os trâmites dos julgamentos nas sessões e, ao mesmo tempo, trazer à memória, a reflexão dos casos já assentados pela aquela Corte. Por falta de técnicas mais sofisticadas, a Súmula nasceu - e colateralmente adquiriu efeitos de natureza processual – da dificuldade, para os Ministros, de identificar as matérias que já não convinha discutir de novo, salvo se sobrevivesse algum motivo relevante. O hábito, então, era reportar-se cada qual à sua memória, testemunhando, para os colegas mais modernos, que era tal ou qual a jurisprudência assente da Corte. Juiz calouro, com agravante da falta de memória, tive que tomar, nos primeiros anos, numerosas notas, e bem assim sistematizá-las, para pronta consulta durante as sessões de julgamento. Daí surgiu a ideia da Súmula, que os colegas mais experientes – em especial os companheiros da Comissão de Jurisprudência, Ministro Gonçalves de Oliveira e Pedro Chaves – tanto estimularam. E se logrou, rápido o assentimento da Presidência e dos demais Ministros. Por isso, mais uma vez, em conversas particulares, tenho mencionado que a Súmula é subproduto da minha falta de memória, pois fui eu afinal o relator, não só da respectiva emenda regimental, como dos seus primeiros 370 enunciados (LEAL, 1997, p. 294-295). Aliás, para o Ministro Victor Nunes Leal, a súmula traduzia-se num método de trabalho “destinado a ordenar melhor e facilitar a tarefa judicante (...)” (LEAL, 1981, p. 2). Além disso, em artigo “Passado e Futuro da Súmula do STF”, já dizia o Ministro Victor Nunes Leal que o surgimento da súmula deu-se pela “necessidade de sistematizar os A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 70 julgamentos do Tribunal, para se localizarem os precedentes com menor dificuldade” (LEAL, 1981, p. 24). Posto isso, deu-se a ideia da criação da súmula possibilitando, assim, a edição de uma emenda que posteriormente alterou o regimento interno do STF no qual acrescentou o Capítulo XX, do Título III do supracitado regimento, cujas súmulas editadas entraram em vigor no início de 1964 (LEAL, 1981, p. 1). Ora, é bom lembrar que na época não existia o Superior Tribunal de Justiça - STJ (tribunal competente para dirimir incertezas sobre a legislação infraconstitucional), e somente o STF cuja competência era mais ampla do que ocorre hoje com a Constituição Republicana de 1988. Ademais, com a edição da súmula tornou desnecessária a citação dos julgados antecedentes que deram origem a súmula nos votos deliberados. Deste modo, se introduziu brevemente a história do sistema sumular em nosso ordenamento jurídico e que consequentemente fez repercutir com mais força pelo advento da súmula com efeito vinculante, por meio da Emenda Constitucional no 45 de 2004. 2.2. Aspectos basilares da súmula Nas palavras do professor Marco Antonio Botto Muscari, um dos precursores sobre o estudo da súmula vinculante, a súmula, do latim summula, é o “resultado do julgamento tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, condensado em enunciado que constituirá precedente na uniformização da jurisprudência do próprio órgão” (MUSCARI, 1999, p.35). Corrobora André Ramos Tavares ao elucidar que “o papel da súmula seria o de fixar uma dessas interpretações possíveis, a partir de um texto normativo prévio, excluindo as demais” (TAVARES, 2012, p. 429). Pode-se dizer que a súmula, “vem a ser o enunciado que resume uma tese consagrada pelo tribunal em reiteradas decisões, servindo de orientação a toda comunidade jurídica” (BETIOLI, 2008, p. 165). Por outro aspecto, “a súmula constitui um instituto que busca a eliminação das antinomias do sistema. Objetiva-se, em outras palavras, alcançar a coerência, que deve haver no Direito” (TAVARES, 2012, p. 429). Conforme preconiza Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery “a súmula é o conjunto das teses jurídicas reveladoras da jurisprudência reiterada e predominante Fernando Antonio Notaroberto 71 no tribunal e vem traduzida em forma de verbetes sintéticos numerados e editados” (NERY JUNIOR, 2009, p. 529). Sendo assim, a súmula não possui caráter cogente, servindo apenas de orientação para futuras decisões. Pode-se dizer que a súmula, simplesmente, é desprovida de carga vinculativa, ou seja, de efeito impositivo ou de caráter obrigatório, ao contrário do que ocorre com as súmulas vinculantes, tendo em vista a ausência do referido efeito obrigatório, portanto, ela é conhecida como súmula persuasiva 7. Por outro lado, importante observação a ser feita que: Contudo, não se pode ignorar a profunda influência que as súmulas exerciam e exercem sobre o desempenho do judiciário como todo. Mas, tratava-se de uma influência persuasiva sem cunho normativo. Ademais, exerciam e exercem um papel fundamental como instituto de interpretação do direito, uma vez que forneciam e fornecem preciosa orientação sobre a hermenêutica a ser dada a casos concretos (PELICANI, 2007, p. 29-30). Deste modo, súmula significa resumo e esse resumo contém enunciados (conjuntos de palavras), proposições (significações) e verbetes (conjunto de significações). Assim, a palavra “súmula” nos remete a uma repetição de julgamentos que sedimentam uma interpretação sobre determinada matéria (PELICANI, 2007, p.19). Importante esclarecer é que as súmulas podem ser criadas por todos os Tribunais, tantos os Tribunais Especiais, e quantos os Tribunais de Justiça Comum, não permanecendo ao cabo simplesmente do Supremo Tribunal Federal. Aliás, há também as súmulas institucionais da Advocacia-Geral da União (AGU), cujo escopo é reforçar e padronizar a atuação em caráter nacional, unificando assim, o entendimento jurídico institucional no âmbito da advocacia pública federal, a fim de garantir segurança jurídica para a coletividade e reduzir a litigiosidade da Fazenda Pública. Por fim, se remontarmos ao tempo da “criação da súmula”, ou propriamente da “Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal”, posto que teve por finalidade dar a desejável firmeza à jurisprudência da Corte, a partir do imediato É aquela que não tem força obrigatória, nem para o tribunal que a emite, nem para os juízes e cortes inferiores; pode exercer (e frequentemente exerce) grande influência no espírito dos operadores do Direito, mas a sua inobservância não é algo que afronte o ordenamento jurídico (MUSCARI, 1999, p. 51). 7 A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 72 conhecimento de seus precedentes pelas partes interessadas, e principalmente, pelos próprios juízes. As súmulas conformariam desse modo, um sistema oficial de referência dos precedentes judiciais, estruturadas em verbetes que consolidariam a orientação predominante e segurança jurídica da aludida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (PELICANI, 2007, p. 86). Além do mais, a súmula remete-se ou remetia-se a ideia de possuir o escopo de vincular os tribunais estaduais (a respeitarem) a jurisprudência do STF em materiais de legislação federal (PELICANI, 2007, p. 61) uniformizando assim, as decisões dos Tribunais na época. 2.3. Conceito de súmula vinculante Como foi dito, a súmula vinculante está prevista no artigo 103-A, da Constituição Federal. O referido artigo foi acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Aliás, até a publicação desta emenda constitucional, não havia o poder de vinculação ou obrigatoriedade de observação da súmula no ordenamento jurídico. Deste modo, nas palavras de Helano Márcio Vieira Rangel, a súmula vinculante “representa uma aproximação entre a tradição romano-germânica, que concede primazia à lei como fonte do direito, e a tradição anglo-saxônica, que prioriza o precedente judicial” (RANGEL, 2011, p. 44)8. André Ramos Tavares, alude em sua obra que “reconhece-se a súmula vinculante como a possibilidade de construção de enunciados que sintetizem o entendimento (interpretação) anterior do Tribunal Constitucional” (TAVARES, 2012, p. 425). Aduz ainda, que para melhor compreender a súmula vinculante trata-se de um “processo objetivo típico (embora com certas particularidades), que promove a aproximação entre A tradição romano-germânica, própria da Europa Continental, foi transmitida ao Brasil pela tradição jurídica lusitana. Nessa tradição, as decisões judiciais devem ser subordinadas à lei, a qual adquire primazia como fonte do direito. A tradição romano-germânica fundamenta-se por uma desconfiança social em face da figura do juiz, cujo papel era legado ao Estado, no âmbito do poder administrativo. Tal desconfiança tornou-se nítida com as revoluções burguesas no século XVIII, pois os juízes eram vistos como representantes do antigo regime absolutista. Desse modo, o Direito pós-revolucionário e exegético, baseado no constitucionalismo liberal, no princípio da legalidade e no da separação dos poderes. Esse Direito cuidou de limitar o poder, de maneira que os juízes deveriam simplesmente aplicar a lei sem exercer quaisquer funções criativas. Para países como o Brasil, que seguem a tradição romano-germânica, a principal fonte formal do Direito é a lei em sentido lato, que se manifesta por leis em sentido estrito e códigos. Até o advento da súmula vinculante, a jurisprudência, que se sedimenta pela uniformização de decisões judiciais sobre determinado caso, não se constituía como fonte formal, pois a sua função não era a de estabelecer normas jurídicas, apenas a de interpretar a lei frente a casos concretos. (...) Por seu turno, a tradição anglo-saxônica é aquela cuja característica essencial é a força vinculante dos precedentes judiciais (RANGEL, 2011, p. 44–45). 8 Fernando Antonio Notaroberto 73 o controle difuso-concreto de constitucionalidade (reiteradas decisões) e o controle abstrato-concentrado (efeito vinculante)” (TAVARES, 2012, p. 437). Importante mencionar que, para o Ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal, a súmula vinculante possui conteúdo pedagógico-institucional de orientação das instâncias e da Administração Pública em geral (MENDES, 2009, p. 1014). Além disso, “a súmula terá por objetivo superar controvérsia atual sobre a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas capaz de gerar insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos” (MENDES, 2009, p. 1010). A propósito, Rosa Benites Pelicani, afirma que a súmula vinculante, por sua vez, “tem por base reiteradas decisões proferidas sobre determinada matéria e não será ela própria uma decisão judicial, mas um resumo da decisão judicial” (PELICANI, 2007, p. 126). Desse modo, a súmula vinculante possui como característica fundamental o seu efeito “vinculante”, por isso que há a deferência em relação a outra modalidade de súmula simplesmente, isto é, por vincular toda a estrutura e órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública direta e indireta, em todas as unidades da federação (União, Estados Membros, Municípios e o Distrito Federal). Aliás, para a existência da súmula vinculante, requer-se a presença de alguns requisitos constitucionais e legais, que acabam por definir o próprio conteúdo das súmulas vinculantes 9. Convém esclarecer que toda e qualquer matéria expressa na Constituição Republicana de 1988, ainda que não propriamente dita de natureza constitucional e que exista conflito interpretativo poderá ensejar a edição de súmula vinculante (PELICANI, 2007, p. 180). (...) em regra serão formuladas a partir das questões processuais de massa ou homogêneas, envolvendo matérias previdenciárias, administrativas, tributárias ou até mesmo processuais, suscetíveis de uniformização e padronização” (MENDES, 2009, p. 1011). 9 A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 74 3. Súmula vinculante, norma jurídica e suas consequências 3.1. Natureza jurídica da súmula vinculante A natureza jurídica da súmula vinculante é até hoje controvertida. Portanto, ocupase posição ainda vaga ou duvidosa por parte da doutrina quanto a sua classificação no ordenamento jurídico brasileiro. Afirma Marco Antonio Botto Muscari que “ao emitir súmula vinculante, o Poder Judiciário não inaugura a ordem jurídica, criando direitos e obrigações; simplesmente traça o alcance da norma que o legislador, antes, editou” (MUSCARI, 1999, p. 53). Prossegue ainda: É evidente que a súmula vinculante representa bem mais do que a mera jurisprudência, uma vez que a inobservância desta nada tem de ilegal e a afronta àquela configura ato violador da própria Constituição. Não se pode dizer, entretanto, que o preceito sumular esteja equiparado à lei ou à Carta Maior. A súmula vinculante é mais do que a jurisprudência e menos do que a lei; situa-se ao meio-caminho entre uma e outra. Com a jurisprudência guarda similitude pelo fato de provir do Judiciário e de estar sempre relacionada a casos concretos que lhe dão origem. Assemelha-se à lei pelos traços da obrigatoriedade e da destinação geral, a tantos quantos subordinados ao ordenamento jurídico pátrio (MUSCARI, 1999, p. 53). Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery entendem que a súmula vinculante não tem natureza de lei, porém é equiparada (lato sensu), haja vista o seu caráter geral e abstrato, tendo em vista a vinculação sumular em relação aos poderes da República (Poder Judiciário e Poder Executivo) (NERY JUNIOR, 2009, p. 531). Em artigo publicado, Helano Márcio Vieira Rangel, ancorado nos ensinamentos de Albuquerque e Gomes (Paulo Antônio de Menezes Albuquerque e Rafael Benevides Barbosa Gomes) e Arnaldo Vasconcelos afirma que a súmula apresenta duas características: (...) a súmula vinculante ocupa posição dúbia quanto ao seu enquadramento como norma jurídica ou decisão judicial (legal actor legal norm). Por um lado emana como decisão colegiada que decide sobre interpretação de matéria constitucional, mas discrepa de uma mera sentença que apenas resolve o caso concreto. Por outro lado, possui as características que a classificam como norma jurídica tais como bilateralidade, disjunção e sanção. Apesar da referida dubiedade, pode-se classificá-la como norma jurídica, uma vez que possuidora de características essenciais a tal condição. De fato, a súmula vinculante segue a mesma estrutura de uma norma jurídica, ou seja, se determinado fato X ocorre, então deve ser a consequência Y. A súmula vinculante ostenta ainda as qualidades de abstração e generalidade (RANGEL, 2011, p. 49). Fernando Antonio Notaroberto 75 Deste modo, pode-se concluir conforme ponderações supramencionadas que, apesar da súmula vinculante não advir do Poder Legislativo, apresenta peculiaridade de “generalidade” e abstração, o que lhe confere dizer para alguns doutrinadores que a súmula vinculante é uma norma jurídica prescritiva. Insta reiterar que não há violação a tripartição de poderes, por parte do Poder Judiciário em relação ao Poder Legislativo, como se verá adiante no quarto capítulo. Sendo assim, Helano Marcio Viera Rangel conclui que até o advento por emenda constitucional da súmula vinculante, a jurisprudência, que se sedimenta pela uniformização de decisões judiciais sobre determinado caso, não se constituía como fonte formal, pois a sua função não era a de estabelecer normas jurídicas, mas apenas a de interpretar a lei frente a casos concretos (RANGEL, 2011, p. 56-57). 3.2. Norma jurídica e súmula vinculante Norma jurídica é o elemento do direito positivo, que visa ordenar e transformar o comportamento humano em sociedade, cujo escopo consiste alterar a realidade social (CARVALHO, 2012, p. 90). Portanto, é uma estrutura do sistema social que orienta as diversas relações intersubjetivas dos indivíduos e dos indivíduos com o Estado. Primeiramente, pode-se dizer que a norma jurídica é uma construção de linguagem dotada de sentido, ou seja, apresenta uma proposição que pode (ou deverá) ser entendida de imediato pelos seus destinatários. Nesse sentido, a norma jurídica se insere no sistema de linguagem de cunho prescritivo. Dessa forma, pode-se dizer que as normas jurídicas são as significações que a leitura do texto desperta no intelecto do destinatário (CARVALHO, 2012, p. 298). Insta esclarecer que a norma jurídica possui duas peculiaridades, sendo a primeira de conteúdo descritivo e a segunda de conteúdo prescritivo (indicativo). O conteúdo descritivo consiste em indicar as condições de aplicação da norma jurídica, ou seja, o conteúdo, sentido e alcance das regras jurídicas (sujeito, tempo, espaço, objeto tutelado), e aquela segunda característica estabelece os modais deônticos do conectivo deve ser (proibido, obrigatório e permitido), que influenciam determinadas condutas a serem observadas pelo destinatário. Desta forma, a norma jurídica possibilita a descrição de uma conduta. De outro modo, a norma prescritiva (ou imperativa) indica aquilo que deve acontecer em decorrência de uma vontade ou ordem superior. Sendo assim “a principal característica das normas imperativas é o fato de descrever determinada conduta, ordenando que seja seguida” (DIMOULIS, 2007, p. 66). A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 76 Deste modo, esse enunciado deve ser transformado em uma norma jurídica mediante o trabalho do interprete, corroborando assim na “construção” da norma jurídica. Importante ressaltar que para a ciência do direito e sua positivação, a linguagem utilizada é decisiva, visto que ela se materializa no mundo exterior. Por conseguinte é essencial lembrar que “o direito positivo se insere no mundo por intermédio de linguagem, por sua vez, deve ser produzida a partir de suportes físicos de comunicação, por intermédio de textos” (CASTELLANI, 2009, p. 9). Sendo o Direito linguagem, dessa maneira, pode-se dizer que a súmula vinculante é norma jurídica que introduz no sistema de direito positivo os enunciados prescritivos 10 de linguagem direta que indicam condutas a serem seguidas tanto para Administração Pública, quanto para os órgãos do Poder Judiciário de forma obrigatória, ou seja, de ordem a ser cumprida e devidamente respeitada. Corrobora ainda, Grace Christhine de Oliveira Gosson, ao ponderar que: A expressão súmula “vinculante” também é utilizada para indicar o(s) enunciado(s), com conteúdo constitucional, que ingressa(m) no ordenamento jurídico por intermédio do veículo introdutor de normas jurídicas e cuja função é conceder validade, indicar qual a interpretação constitucional adequada e dar eficácia a determinadas normas jurídicas ou enunciados prescritivos já existentes no sistema jurídico” (GOSSON, 2007, p. 150). Sendo assim, a súmula vinculante é uma norma jurídica válida de competência (ou de produção) normativa oriunda da norma de estrutura 11, pois é emanada por um órgão (autoridade) competente para editá-la, conforme estabelece a própria Constituição Republicana de 1988, e consequentemente esta supracitada norma jurídica irradia seus efeitos para o ordenamento jurídico. Portanto, a enunciação aparece, assim, como um processo político-jurídico de produção dos enunciados prescritivos (direito positivo), cuja função é prescrever condutas que se materializam por meio dos instrumentos normativos. “Na nova teoria das fontes do direito a expressão enunciação é utilizada para indicar a atividade humana produtora de enunciados, ou seja, o procedimento de certos órgãos (autoridades competentes) que, em conformidade com determinados enunciados prescritivos que disciplinam o ato da enunciação, produz novos enunciados prescritivos” (ASSIS, 2012, p. 162). 11 “Para melhor compreender o sistema, as normas jurídicas (...) de competência ou de estrutura: são aquelas que estabelecem poderes e procedimentos, ou seja, têm por objeto os comportamentos relacionados à produção normativa, determinam os órgãos do sistema e os expedientes formais necessários para que se editem normas jurídicas válidas, bem como o modo pelo qual serão alteradas e desconstituídas (...)” (ASSIS, 2011, p. 1). 10 Fernando Antonio Notaroberto 77 Desta maneira, pode-se dizer que as súmulas vinculantes se inserem como enunciados prescritivos, que postos em circulação visam atingir o nível apurado de comportamento social no sistema jurídico, restringindo assim, o campo de contradições e ambiguidades, das diversas modalidades de interpretações em conflitos de uma determinada norma jurídica analisada, à custa de ingentes esforços de interpretação devidamente debatidos e combatidos no pleno do STF, a fim de não mais repercutir dúvida na transmissão da mensagem, corroborando por fim na compreensão e eficácia da norma jurídica, nos seus aspectos de conteúdo, sentido e alcance pleno da proposição jurídica. Aliás, o Supremo Tribunal Federal “tem limitado seu campo ao preceito sobre o qual se constrói a súmula. Não pode ir além dele. Portanto, e por idênticas razões, não se poderiam admitir súmulas contra legem ou extra legem” (TAVARES, 2012, p. 430). Afinal, numa análise geral sobre as súmulas vinculantes editadas até agora, se pode apontar, a priori, que a maioria dos enunciados foi produzida cumprindo, indubitavelmente, todas as exigências constitucionais e legais e que, em princípio, a grande maioria dos enunciados feriu matérias de intensa discussão na jurisprudência dos tribunais, e outra parte delas foi editada como forma de consagrar os precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal (OLIVEIRA, 2013, p. 1). 4. A súmula vinculante e o princípio da separação de poderes Ao aprofundar o estudo sobre a súmula vinculante e suas consequências no plano social e jurídico surge a discussão se ao editar o supracitado instituto jurídico constitucional o Supremo Tribunal Federal estaria ferindo o princípio da separação dos poderes. Para isto, primeiramente, cumpre esclarecer e reiterar que a súmula vinculante não é norma jurídica taxativamente empregada no sentido “geral” 12, ou seja, para todos e sim uma norma jurídica prescritiva que apresenta abstração e generalidade cujo conteúdo é autônomo. Portanto, ao editar o Supremo Tribunal Federal, a súmula vinculante não evidencia ofensa ao artigo 2º da Constituição Republicana e muito menos “E justamente porque somente cabe ao Poder Legislativo elaborar normas que possam inovar inauguralmente a ordem jurídica, que não é atribuído ao Poder Judiciário a prerrogativa de produzir norma jurídica de valência idêntica àquela emanada da atividade legislativa. Vale dizer: não é atribuição de nossos magistrados inovar o ordenamento jurídico de forma inaugural mediante a produção de normas gerais e abstratas. Não podem eles se substituir ao Legislativo por não terem recebido do povo mandato para manifestação da vontade popular”. (ZOCKUN, 2004, p. 167). Em outro aspecto, Pedro Lenza, afirma: “Tentando equilibrar os entendimentos, parece, então, adequado falarmos em certa competência legislativa atenuada, tendo em vista que a súmula vinculante estaria no meio caminho entre a lei em abstrato e o caso concreto julgado: muito embora atue em abstrato, fixa as diretrizes para uma situação concreta de direito material, mesmo que em tese” (LENZA, 2010, p.1). 12 A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 78 mudança no sistema jurídico brasileiro13 do civil law (primado da norma/primazia da lei) para o common law (precedente judiciário) ou possibilita seu enfraquecimento conforme pondera Ameleto Masini Neto (MANSINI NETO, [200-?], p.2), pois o STF estaria ferindo o Princípio da Separação dos Poderes ao editar a súmula vinculante, tendo em vista que esta regula condutas (comportamentos) no convívio social, mesmo não sendo lei. Deste modo, infere-se que a súmula vinculante não fere o Princípio da Separação dos Poderes, vale dizer, não há usurpação de competência por parte do Supremo Tribunal Federal em relação ao Congresso Nacional, uma vez que esse apenas consolida em súmula o entendimento predominante do tribunal com o escopo de facilitar o trabalho técnico no sistema jurídico e judicial. Importante esclarecer, pelo princípio do “inclusio unius alterius exclusio” e pela linha de interpretação adotada pelo Supremo Tribunal Federal, o Poder Legislativo não se sujeita ao efeito vinculante, portanto, a súmula vinculante editada e dentre outras decisões proferidas em sede de controle concentrado nas modalidades de ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) não vincula a função legislativa, consequentemente, não se abre caminho para o “inconcebível fenômeno da fossilização da Constituição e por seguinte, da petrificação da evolução social” (LENZA, 2012, p. 312-313). Importante consignar que é competência exclusiva do Congresso Nacional o escopo de zelar e preservar sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes da República (artigo 49, XI, da CF). Aliás, sob tal perspectiva, o Supremo Tribunal Federal (re)afirma que o efeito vinculante resultante de seu julgamento nos processos de fiscalização abstrata (controle normativo abstrato) não se aplica e muito menos se estende à atividade legislativa. Rodolfo de Camargo Mancuso adverte que: “(...) Embora o art. 5º, II, da CF afirme o primado da norma legal, fato é que, em termos de carga eficacial, (...) a súmula vinculante distinguem-se apenas pela origem – Legislativo e Judiciário – porque no mais apresentam os mesmos atributos de impessoalidade, generalidade, abstração e impositividade, tendo destinatários diretos e indiretos (...), sendo que tal súmula ainda beneficia do fato de já representar o extrato de reiterados pronunciamentos judiciais sobre uma mesma quaestio juris – sendo assim autoexplicável – ao passo que a norma legal vocaciona-se a ser interpretada, não raro alcançado mais de uma inteligência. Dessa forma, redefine-se a filiação do sistema jurídico brasileiro, agora postado a meio caminho entre a civil law (primado da norma) e a common law (precedente judiciário), devendo a norma legal, enquanto direito estático, e a súmula vinculante – o produto final e potencializado do direito judicado no STF – se integrarem harmoniosamente, descabe falar em hierarquia ou precedência entre uma e outra (MANCUSO, 2013, p. 421). 13 Fernando Antonio Notaroberto 79 Nesta consonância, a função legislativa não é alcançada pela eficácia ‘erga omnes’ das decisões proferidas pelo aludido E. Plenário 14. Deste modo, não há, pois, efeito vinculante para o Poder Legislativo. Portanto, o efeito vinculante somente alcança, atinge os demais órgãos do Poder Judiciário e toda a Administração Pública no momento em que o Supremo Tribunal Federal edita a súmula vinculante. Além disso, importante ressaltar que a separação dos poderes é relativa 15, tendo em vista que a própria Constituição traz exceções à regra e confere tarefas de um Poder da República em relação a outro poder (instituição estatal) republicano. Afinal, ao editar a súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal estaria simplesmente exercendo o seu mister constitucional funcional, no qual foi incumbido da aludida competência conforme o artigo 103-A da Carta Política. Desta forma, a súmula vinculante se tornou no emblema mais vistoso da chamada “legislação judicial” (MENDES, 2009, p. 211), ou seja, uma normatividade que esclarece e ao mesmo tempo “impõe” o dizer do direito aos destinatários da norma jurídica, ou seja, ao Poder Judiciário e Executivo. Aliás, André Ramos Tavares assevera: (...) Em outras palavras, também o magistrado cria Direito, e não apenas o legislador (nem tão somente por ditar a “lei” para o caso concreto). Toda aplicação de lei pressupõe um ato interpretativo, e a interpretação constitui um ato de criação do agente. O significado da lei não se extrai dela, mas antes é construído pelo intérprete, dentro, dentre outros, dos limites do texto legal. (...) A criação de “diretivas” gerais, de “súmulas” do pensamento (interpretação) do Tribunal, para serem generalizadamente assumidas pelos demais centros de “poder”, constituem, inegavelmente, uma atuação de ordem normativa. A circunstância, porém, de implicar a redação de um enunciado não deve turvar a Precedentes do Supremo Tribunal Federal: (Rcl 2.617-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 232-2005, Plenário, DJ de 20-5-2005); (Rcl 13.019-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 8-5-2012, DJE de 15-5-2012.); (Rcl 14.156-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 2-4-2013, DJE de 5-4-2013). 15 Embora a Constituição Federal estabeleça entre os Poderes (art. 2º) é notório que essa tripartição não mais opera com rigidez de outrora, bastando considerar casos em que o Legislador julga (art. 49, IX; art. 52, I e II) e administra (art. 52, XII e XIII); o Executivo julga (art. 84, XII) e legisla (art. 84, III, IV e XXVI); o Judiciário administra (art. 96 e incisos), e em certa medida legisla (arts. 93 e 125, §1º). Assim, hoje prevalece o aspecto funcional do Estado Social de Direito (dimensão semântica), sobre o aspecto da soberania ou do Poder (dimensão estática), devendo todos os entes políticos interagir na consecução do bem comum. (MANCUSO, 2013, p. 402). 14 A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 80 verdadeira atuação interpretativa que representa tal situação. Aliás, toda interpretação é necessariamente consignada em enunciados redigidos pelo Tribunal Constitucional. Não há nenhuma novidade nesse ponto, nem se deve falar em atuação legislativa. Ora, no caso da súmula vinculante, o que se faz é admitir a força do precedente norte-americano para um específico enunciado que se constrói a partir da decisão. Ela não é atividade meramente legislativa, muito menos com patamar de lei (TAVARES, 2012, p. 427-428). Em outra passagem Gilmar Mendes assevera: O precedente vinculativo, que se caracteriza pelo fato de a decisão de um alto tribunal ser obrigatória, como norma, para os tribunais inferiores, tem as nações anglo-americanas, a exemplo da Inglaterra, Canadá e Estados Unidos, como reputado ambiente natural, por serem elas de direito de criação predominantemente judicial. Isso, no entanto, não impede de se ver o precedente vinculante também em países de tradição romanista, embora aí mais formalizado, como referido (MENDES, 2009, p. 1008). Portanto, ao editar a Súmula Vinculante, o Supremo Tribunal Federal exerce uma “atividade positiva” a fim de aprimorar o sistema jurídico do país e não conturbá-lo. Deste modo, não há de se falar em Supremo Tribunal Federal atuar como “legislador positivo”, o que implicaria em flagrante ofensa ao Princípio da Separação dos Poderes e na usurpação de poderes incompatíveis com a independência e harmonia dos Poderes da República Federativa do Brasil16. Aliás, “ao Poder Judiciário é assegurada a independência em relação aos demais poderes para o desempenho de suas funções típicas” (ZOCKUN, 2004, p. 166), o que inclui, portanto, a competência de editar súmula vinculante. “É o que sucede com a autorização constitucional para a elaboração de súmula “vinculante” pelo STF” (GOSSON, 2007, p. 159). Importante esclarecer conforme doutrina e jurisprudência unânime que ao Poder Judiciário somente é dado exercer as prerrogativas de legislador negativo (MENDES 2009, p. 142) em sede do controle concentrado de constitucionalidade17 e ainda que em controle difuso, ou seja, apenas para declarar e afastar aquelas normas consideradas em desacordo ou em incompatíveis com as normas da Constituição da República. Precedente: ADPF 144, voto do Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 6-8-2008, Plenário, DJE de 262-2010. 17 Precedentes do Supremo Tribunal Federal: (AI 360.461-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 6-12-2005, Segunda Turma, DJE de 28-3-2008.), (ADI 1.063-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 18-5-1994, Plenário, DJ de 27-4-2001.), (RE 584.315-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 23-92008, Segunda Turma, DJE de 31-10-2008.) e (RE 335.275-AgR-segundo, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 9-11-2010, Primeira Turma, DJE de 28-3-2011). 16 Fernando Antonio Notaroberto 81 Logo, é absolutamente notório o consenso de que o Poder Judiciário atua como legislador negativo no exercício de sua função típica a fim de retirar, suprimir do ordenamento jurídico, uma norma ou dispositivo de uma lei declarado inconstitucional produzido pelos outros Poderes da República. Desta forma, “(...) como lembra Cappelletti, uma coisa é a inevitável criação judicial do direito - no âmbito das causas e controvérsias em que se travam os conflitos de interpretação -, e outra, bem diversa, é aceitar que os juízes atuem como autênticos legisladores (...)” (MENDES, 2009, p. 145) como no caso das súmulas vinculantes. 5. O poder de violência simbólica e a súmula vinculante A norma jurídica em sua aplicação cotidiana é interpretada e entendida de acordo com o trabalho (livros, sentenças, pareceres, petições, etc.) de um grupo de homens (juristas, professores, magistrados, advogados e promotores) que, na comunidade jurídica, gozam de autoridade, liderança e reputação. Esses homens contribuem para que a norma assuma um determinado conteúdo em cada oportunidade em que é invocada. Na comunidade jurídica, aqueles que têm poder (autoridade, liderança e reputação) podem influenciar outros a adotar a sua interpretação como premissa de procedimento (ASSIS, 2011, p.24). A respeito do poder de violência simbólica, assevera Olney Queiroz Assis que: A interpretação jurídica consiste num poder de violência simbólica que tem por objetivo a uniformização do sentido de um texto normativo, posto que não é possível uma interpretação simbólica unívoca de um texto expresso em termos vagos e ambíguos. Trata-se do poder capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força. Poder aqui é controle. Ao controlar, o emissor não elimina as alternativas de ação do receptor, mas as neutraliza. Controlar é neutralizar, fazer com que, embora conservadas como possíveis, certas alternativas não sejam levadas em consideração (ASSIS, 1995, p. 201). Assim, o decano ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal afirma a importância da Suprema Corte brasileira ao refletir sobre a Constituição Republicana de 1988: Em 5 de outubro de 1988 dissiparam-se os tempos sombrios que tanto afligiam a Nação brasileira. Hoje vivemos sob a égide de um estado impregnado de perfil claramente democrático e a responsabilidade institucional do STF é imensa na preservação da continuidade da ordem democrática e na subsistência do ordenamento fundado na lei fundamental da República (REVISTA VIRTUAL CONSULTOR JURÍDICO, 2011, p. 1). A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 82 Corrobora a professora Maria Tereza Sadek, ao dispor acerca do Poder Judiciário que “a visão da população brasileira tem mudado em relação ao Judiciário em reconhecimento à sua participação política na sociedade” (REVISTA VIRTUAL CONSULTOR JURÍDICO, 2013, p. 1). Nos últimos anos, dificilmente se encontrará uma questão marcante, que tenha tido impacto no âmbito político e/ou das relações privadas que o Judiciário não tenha participado. Temas de alto impacto na vida do país constam atualmente da agenda do Supremo Tribunal Federal, como a criação de cotas raciais, a interrupção de gestação de fetos com anencefalia, ocupação de terras por quilombolas. Esses exemplos poderiam ser multiplicados. O exame do que tem ocorrido permite afirmar que essa característica do modelo institucional brasileiro imprimiu uma feição política ao Judiciário, propiciando que atue, de fato, como poder (SADEK, 2011, p.1). Assim, torna-se evidente o Poder de Violência Simbólica nas decisões das Cortes por sua relação de autoridade 18 dentro do sistema jurídico e social, tendo em vista que a interpretação jurídica adotada pelos Tribunais consiste em poder e influência ao mesmo tempo, cujo objetivo é uniformizar o sentido da norma jurídica, pois “o exercício de poder pressupõe, (...), um ato de violência simbólica” (ASSIS, 1995, p. 202). Deste modo, diante da interpretação jurídica, se dará o poder propriamente dito dos Tribunais, capaz de controlar e influir interpretações como genuínas, corretas e, impedir outras interpretações de conteúdos múltiplos possíveis no momento em que estiver para decidir uma situação jurídica “problemática”. Sendo assim, são três as formas de exercício de poder de violência simbólica: autoridade 19, reputação e liderança (ASSIS, 1995, p. 184). Vale mencionar conforme lição de Olney Queiroz de Assis, que existe relação de autoridade quando a influência se opera através da neutralização do tempo. A passagem do tempo altera o sentido da norma, daí a necessidade de generalizar o sentido apesar do tempo diversificá-lo. Neutraliza-se a possibilidade de outras interpretações pelo estabelecimento de hierarquias em relação às normas e em relação aos intérpretes (autoridades competentes). A interpretação da autoridade é aceita orientada pela ideia de que sempre se procedeu da forma por ela interpretada, portanto, consolidada na tradição. A interpretação é considerada autêntica em oposição às interpretações contrárias, consideradas não autênticas, motivo pelo qual a interpretação da autoridade exige adesão convicta. Nesse sentido, a Jurisprudência dos Tribunais, especialmente, a do STF (ASSIS, 2011, p. 24- 25). 19 “No direito, é enorme a importância desse argumento. Basta pensar no valor da tradição, no papel dos jurisconsultos, na força da jurisprudência para ter-se uma ideia de sua presença. Por meio deles a própria doutrina, bastante discutida quanto a seu papel de fonte ou não do direito, pode exercer, como de fato exerce, grande pressão na conformação, compreensão e decisão dos conflitos judiciais e extrajudiciais. Basta ver o papel exercido pelo parecer técnico, cuja força está não apenas na correção dos raciocínios, mas, sobretudo no nome de quem o assina” (FERRAZ JR., 2003, p. 337 – 338) 18 Fernando Antonio Notaroberto 83 Anota Olney Queiroz Assis que: No processo interpretativo, a influência implica a generalização de sentido com vistas à neutralização de outras possibilidades. Nesse sentido, o poder assume três relações: a) relação autoridade: a interpretação é generalizada (confirmada) quando o intérprete ocupa uma posição superior dentro de uma determinada hierarquia, por exemplo, do Poder Judiciário; b) relação de liderança: a interpretação é generalizada quando todos ou quase todos repetem (imitam) a mesma interpretação; c) relação de reputação: a interpretação é generalizada com base no prestígio do intérprete (ASSIS, 2011, p. 24). Portanto, (...) nestas três formas o direito entra na relação de poder e dá plenas condições para que este se estruture e dissimule as relações de força que estão presentes na sua base. Com isto, é possível apontar que a interpretação das normas jurídicas é, no fundo um ato de poder, isto é, um ato de violência simbólica que se utiliza das relações de autoridade, liderança e reputação. Em outras palavras, é possível o poder penetrar na dogmática jurídica (ASSIS, 1995, p. 186). Dessa forma, “torna-se possível falar violência não como vis física, concreta e atual, mas no sentido simbólico de ameaça. Não se fala da violência como instrumento de direito, (...). Trata-se, porém, a violência como manifestação do direito, (...)” (FERRAZ JR., 2003, p. 346), por meio do qual se dá nos Tribunais pela dogmática da decisão, ou seja, o que é decidido pelos órgãos jurisdicionais. Emerge-se assim, o brocardo jurídico “roma locuta, causa finita”, portanto, no momento em que se decide o litígio, o Estado se manifesta por ato de império, dando termo a causa e consequentemente, vinculando as pessoas a respeitar a autoridade da decisão judicial, no caso em tela do Supremo Tribunal Federal. Deste modo, se insere a súmula vinculante não como meio propriamente dito de coerção ou imposição no mundo do direito, mas como um instrumento jurídico constitucional do Supremo Tribunal Federal, a fim de exercer sua influência no cenário jurídico e social da sociedade brasileira, combatendo assim, interpretações conflitantes de decisões judiciais e extrajudiciais (jurídicas) que desencadeiam incertezas e inseguranças no campo jurídico, conforme já reiteradamente afirmado e estabelecido pela possibilidade de criação da súmula vinculante previsto no artigo 103-A da Constituição Republicana de 1988. Além disso, como o STF é a instância máxima do Poder Judiciário brasileiro, possui prerrogativa constitucional de proferir a “última palavra a ser dada” no campo de interpretação do direito e efetivação da Constituição, haja vista a constitucionalização das relações sociais (BARROSO, 2009, p. 382), esse entendimento exarado da tese (interpretação) vencedora em súmula vinculante será fruto de decisões idênticas e A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 84 “maduras” realizadas pelo Plenário do supracitado órgão com o objetivo de uniformizar seu entendimento jurisdicional. Assim, pode-se dizer que a criação da súmula vinculante é um ato do poder de violência simbólica, ou seja, um ato de uniformização dos significados realizados pela hermenêutica jurídica. Deste modo, a interpretação jurídica 20 consiste em um poder de violência simbólica que tem por objetivo uniformizar o sentido da norma jurídica. Portanto, poder é, nesse sentido, um meio pelo qual a seletividade de uma pessoa exerce influência na seletividade de outra em razão, por exemplo, da prevalência argumentativa. Logo, ao editar a súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal emite um enunciado prescritivo sintetizando o seu entendimento consolidado sob determinada questão, expandindo seus efeitos com força obrigatória por meio da súmula vinculante para outras instituições da República, solucionando assim, a grave e relevante crise de multiplicação de processos sobre aquela mencionada lide idêntica e restabelecendo por final o princípio da segurança jurídica no direito com o seu posicionamento. Deste modo, o exercício do poder se dá agora por meio das instituições estatuídas, no caso em tela pelo Supremo Tribunal Federal, a última estrutura hierárquica do Poder Judiciário, local onde há, e concentra por final, inúmeras divergências jurídicas e interpretativas do universo do direito brasileiro, portanto, a introdução da força na estrutura do poder conduz, por isso, ao exercício da violência simbólica pela hermenêutica jurídica. Conclui-se que, “assim, o que aparece como Hermenêutica Jurídica nada mais é do que uma instância de poder (controle) na qual certas significações são impostas como legítimas” (SILVA E COSTA, 2005, p. 264 – 265). Logo, o “controle de interpretação” que necessita ficar como razoável e legítimo, resume-se com o que afirma Carlos Eduardo Batalha: O bom entendimento jurídico é a interpretação capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força, ou seja, a que melhor realiza a violência simbólica e, assim, produz aceitação. A Hermenêutica Jurídica é um discurso de poder ou de parapoder, pois, como doutrina, a própria dogmática acaba por conferir ao seu discurso uma espécie de autoridade pedagógica (SILVA E COSTA, 2005, p. 269). “A interpretação como poder de violência simbólica implica, portanto, um processo interpretativo que faz preponderar um significado diante da possibilidade de múltiplos significados possíveis. É um poder de controle capaz de impor significações como legítimas, justas e consensuais e neutralizar outras interpretações, de modo que estas não possam ser levadas em consideração” (ASSIS, 2011, p.23). 20 Fernando Antonio Notaroberto 85 Correlato a isto, vem à ilação conforme já exposto, o pensamento do Ministro Gilmar Mendes ao afirmar que a súmula vinculante é um instrumento de orientação pedagógica para todo Poder Judiciário e Executivo, cuja consequência mais importante é aumentar a segurança jurídica. Sendo assim, espera-se com as súmulas vinculantes debelar “a crise que há às vezes no sistema” que desencadeia o mal da insegurança jurídica e da intensa, longa e massificada discussão de direito nos tribunais pátrios. Até porque, as súmulas vinculantes, como são normas jurídicas prescritivas para o Poder Judiciário e para a Administração Pública, não podem ser produto do açodamento, nem do casuísmo, mas do “perfeito” apuramento e sensibilidade jurídica (OLIVEIRA, 2013, p. 1) devidamente debatida, combatida e convencida na “correta” interpretação jurídica considerada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. 6. Conclusão Objetivou-se o estudo da súmula vinculante oriundo do Supremo Tribunal Federal, conforme emana o artigo 103-A da Constituição Republicana de 1988, porém, foi restringido o enfoque sobre o aspecto da teoria do Poder de Violência Simbólica. Entretanto, não deixando de esclarecer as principais características do instituto jurídico constitucional e sua origem histórica, desde os tempos das ordenações portuguesas até as ponderações realizadas pelo Ministro Victor Nunes Leal do Supremo Tribunal de Federal em relação à súmula na década de 60 (sessenta). Deste modo, correlacionase principalmente neste trabalho científico a súmula vinculante como instrumento da teoria do Poder de Violência Simbólica e por seguinte, possibilita a reflexão da teoria normativa frente à súmula vinculante. Primeiramente, cumpre esclarecer que a súmula representa a consolidação de uma jurisprudência pacífica e predominante de um dado tribunal, por meio de um verbete sintético numerado e editado de um órgão do Poder Judiciário. Em relação à súmula vinculante, deu-se sua origem, sua criação com a promulgação da Emenda Constitucional no 45/2004, que acrescentou o artigo 103-A a Constituição Republicana de 1988, determinando-se que as atuais súmulas do Supremo Tribunal Federal somente produzirão efeito vinculante, após a sua confirmação pelo quórum mínimo de 2/3 (dois terços) dos membros de ministros do Supremo Tribunal Federal. Portanto, com a súmula vinculante, o STF poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de 2/3 dos seus membros aprovar uma súmula que, a partir da sua publicação, terá efeito vinculante, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional que consequentemente consagram os precedentes do aludido tribunal. A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 86 Importante esclarecer com a edição da súmula vinculante possibilita o mesmo efeito de uma dada decisão tomada pelo pleno do STF em sede de controle abstrato, na qual vincula toda a estrutura do Poder Judiciário e a administração pública criando assim, uma relação de “dependência” e “subordinação”, ou seja, de obrigatoriedade no que tange a sua observância e fiel exação em seu cumprimento. Em que pese as inúmeras objeções asseveradas pela doutrina, tendo em vista ao supracitado instituto jurídico constitucional é necessário esclarecer que a súmula vinculante visa preservar a coerência com o sistema jurídico constitucional e ao mesmo tempo (re)estabelece o controle das inúmeras interpretações jurídicas em conflito, (re)assegurando deste modo, o princípio da supremacia constitucional por meio de seus mandamentos. Aliás, por fim, há na súmula vinculante, o escopo de eliminar as antinomias criadas no sistema jurídico social alcançando assim, a coerência que deve existir no Direito. Importante mencionar a relevância que há no estudo da súmula vinculante, haja vista os inúmeros teóricos brasileiros que asseveram sobre o supracitado instituto jurídico constitucional apontado argumentos favoráveis e objeções da lavra de notáveis juristas como: Ada Pellegrini Grinover, André Ramos Tavares, Candido Rangel Dinamarco, Ives Gandra Martins, Humberto Theodoro Junior, Lenio Luiz Streck 21, Roberto Rosas, Teresa Arruda Alvim, e dentre outros doutrinadores. A propósito, consideração a se fazer e reiterar que no momento em que o Supremo Tribunal Federal edita a súmula vinculante, ele não elabora norma no sentido técnico formal de lei, e sim uma norma jurídica prescritiva sintética, produto de sua jurisprudência predominante e reiterada oriunda de sua interpretação devidamente combatida no campo sub judice constitucional. Ademais, essa interpretação materializada em súmula vinculante visa orientar toda estrutura do Poder Judiciário, bem como o Poder Executivo como agir em determinadas situações judiciais e jurídicas análogas, surgindo assim, por dizer um conteúdo pedagógico institucional em relação aos destinatários da aludida norma jurídica, ou seja, advindo caminho para correlacionar a súmula vinculante à teoria do Poder de Violência Simbólica sob o aspecto argumentativo de autoridade. A fim de enriquecer o estudo preconiza Lenio Luiz Streck com absoluta pertinência a análise das súmulas vinculantes com a crise do universo jurídico que há ao redor delas, abrindo-se caminho para refletir e correlacionar sobre o risco do decisionismo e das interpretações discricionárias e arbitrárias no que tange ao campo das teorias interpretativas e da edição de súmula vinculante (STRECK, 2007, p. 331-350). 21 Fernando Antonio Notaroberto 87 Partindo da premissa que ao Supremo Tribunal Federal incumbe como função principal defender a ordem constitucional (preservar o alicerce das estruturas públicas e o exercício da cidadania), assegurando deste modo, efetivamente o princípio da supremacia das normas constitucionais em suas deliberações judiciais, nada mais coerente com o “sistema” jurídico brasileiro, que ao editar a súmula vinculante o STF exerça uma atuação “positiva” a fim de evitar que cause um mínimo de perturbação social na estrutura do Estado Democrático de Direito, aprimorando assim, o ordenamento jurídico. Deste modo, por se encontrar o Supremo Tribunal Federal no ápice do sistema jurídico brasileiro, o último órgão da estrutura do Poder Judiciário, nada mais coerente e devidamente pertinente que o produto final “judicado” de suas decisões e interpretações devam ser devidamente observados e respeitados. Desta forma, advém o poder de violência simbólica por meio da edição da súmula vinculante (enunciado prescritivo), haja vista que incumbe a Suprema Corte brasileira o cuidado com o ordenamento jurídico, pois é o órgão de cúpula do Judiciário considerado o “guardião da Constituição”, “(CF, art. 102, caput), e, ao emitir a súmula vinculante, ele fixa no espaço e no tempo – a validade, interpretação e eficácia de uma dada norma constitucional” (MANCUSO, 2013, p. 402). Logo, o STF é aquele que concretiza em último lugar a força normativa da Constituição, em causas sob divergências interpretativas como no caso analisado das súmulas vinculantes, tendo em vista que é o “poder” que define e interpreta juridicamente em último lugar o conflito jurídico interpretativo, advindo o brocardo “roma locuta, causa finita” ao julgar uma determinada situação “problemática” ou até mesmo, quando enuncia por meio de súmula vinculante seu entendimento predominante e reiterado, repercutindo assim, segurança jurídica para todo ordenamento jurídico brasileiro. A súmula vinculante como instrumento de violência simbólica 88 7. Referências Bibliográficas ASSIS, Olney Queiroz. Interpretação do direito: estilo tópico-retórico x método sistemático-dedutivo. São Paulo: Lúmen, 1995. __________________. Fontes do Direito Tributário: Novos Rumos e Velhos Dilemas. In: Novo olhar para as teorias Jurídicas. São Paulo: RG Editores, 2013. __________________. 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Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 1 Fernando Cunha Silva RESUMO Em tempos de intermináveis conflitos que perduram por anos no Poder Judiciário Brasileiro, de forma exponencial, os brasileiros passam a optar pela Arbitragem para a efetivação de seus Direitos, garantindo sempre o devido processo legal, os costumes e os princípios gerais do Direito, que norteiam nosso ordenamento, nota-se que atualmente essa se apresenta como a melhor e mais rápida forma de solução de conflitos entre os mais diversos ramos do Direito. Desta forma, passamos a explorar este meio de solução de conflitos com maior especificidade e clareza para que esta prática deixe de ser um modelo a ser seguido e passe a ser efetivamente um meio costumeiro de resoluções conflituosas no Brasil. Palavras-chave: arbitragem; resolução; conflitos; efetivação; justiça. Aluno da Faculdade de Direito Damásio de Jesus e Participante do LEEP – Thomas Jefferson School Of Law – San Diego. 1 The importance of arbitration for effective justice in Brazil ABSTRACT In times of endless conflicts which last for years, in the Brazilian Justice, exponentially, Brazilians are opting for arbitration for the enforcement of his rights, always guaranteeing due process of law, customs and lawful general principles of law that guide our planning, we note that currently this is presented as the best and quickest way to resolve conflicts among the various branches of law. Thus, we began to explore this means of resolving conflicts with greater specificity and clarity that this practice ceases to be a role model and to effectively pass a means of customary conflict resolutions in Brazil. Keywords: arbitration; resolution; conflicts; effective; justice. Fernando Cunha Silva 95 1. Introdução No século III d. C., o Estado Romano consolidou a transformação da justiça essencialmente privada para domínio estatal e, desde então, assim permanece. Hoje, o Estado possui o monopólio do exercício da Jurisdição, que consiste no poder de atuar no caso concreto declarando o direito, garantindo também sua execução prática2. Diante da ineficiência no cumprimento de sua função jurisdicional, mecanismos processuais foram criados, como, por exemplo, a Emenda Constitucional no 45/04, que instituiu os princípios de duração razoável do processo e celeridade processual e também normas como a distribuição imediata do processo e a possibilidade de delegação aos servidores públicos que atuam no Poder Judiciário3. Porém, as medidas adotadas trouxeram poucos benefícios, exigindo ainda mais a evolução dos métodos alternativos de pacificação de conflitos interindividuais, como a arbitragem, demonstrando assim sua relevância para o direito brasileiro. A Lei 9.307 de 23 de setembro de 1996 estabeleceu procedimento de arbitragem no ordenamento jurídico brasileiro, como um método alternativo de solução de conflitos. A sua importância nos dias atuais se revela com o fim de atingir uma justiça menos arraigada no princípio da formalidade, que, aliado à morosidade do sistema jurídico, prejudicam a qualidade da prestação jurisdicional. Desse modo, o método alternativo arbitral pressupõe caráter de celeridade e desformalização, tanto processual quanto das controvérsias4, para auxiliar na eficiência da pacificação social. O termo arbitragem significa, segundo CARMONA5: Meio alternativo para solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nela, sem intervenção estatal, sendo a decisão destinada a assumir a mesma eficácia da sentença judicial – é colocada à disposição de quem quer que seja, para a solução de conflitos relativos a direitos patrimoniais acerca dos quais os litigantes possam dispor. A partir do conceito promovido por Carmona, vê-se que o procedimento arbitral se desenvolve de forma privada, dispensando a atuação do Poder Judiciário. A arbitragem CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 29. 3 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2007. 4 CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem – Lei nº 9.307/96. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 65. 5 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3ª ed. São Paulo: 2009, p. 31 2 Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 96 tornou-se independente do aparelho estatal, inclusive, é desnecessária a homologação judicial da sentença arbitral6. A arbitragem é uma prática adotada internacionalmente para resolução de conflitos sociais, principalmente os de ordem comercial. No Brasil, este método vem se tornando uma tendência frente à morosidade e burocracia da via estatal. O presente estudo limita-se à função jurisdicional da arbitragem no Brasil, por isso, apresenta uma reflexão sobre suas vantagens, bem como aponta para questões controversas da sua utilização, comparando-a com o processo civil convencional. Para efetivar seus princípios de celeridade e desformalização, a arbitragem garante sigilo do processo e proporciona ampla liberdade para as partes definirem a identidade do árbitro, a fundamentação da sentença arbitral – se de direito ou de equidade – e mesmo o tempo até que o árbitro profira a sentença. Esta liberdade não é obstáculo para a subordinação das partes aos princípios de boa-fé e lealdade, além de sua submissão à sentença arbitral, que não admite recursos e possui efeito de sentença judicial. Devido à sua natureza contratual, a arbitragem pode ser utilizada para todas as matérias que negociam interesses e direitos patrimoniais disponíveis, envolvendo pessoas capazes de contratar. Assim, mostra-se relevante e abrangente a sua área de atuação. O sistema arbitral deve ser utilizado no Brasil para a resolução de litígios referentes a interesses e direitos patrimoniais disponíveis, assim como o disposto no artigo 1o da Lei de Arbitragem7, excluindo, por exemplo, os que alteram estado ou capacidade das pessoas, por serem indisponíveis ou mesmo por questões de cunho criminal. Presidente do Comitê Brasileiro de Arbitragem, Eduardo Damião Gonçalves8 prevê até mesmo a expansão da abrangência de assuntos civis, os quais sejam conflitos passíveis de resolução via arbitral, podendo estes serem delimitados dentro dos diversos temas sociais. Um dos possíveis assuntos são as questões trabalhistas, que em certos tópicos envolvem direitos indisponíveis, tais como as férias do trabalhador. O sistema arbitral desperta tal interesse, em virtude dos seus pressupostos de celeridade e desformalização, para quem o vê com bons olhos. Contudo, os conservadores apontam inadequações constitucionais em sua utilização, sobretudo, Com a Lei nº 9.307/96, a tendência é utilizar “sentença arbitral” ao invés de “laudo arbitral”. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 24. 7 Lei nº 9.307. Art. 1º. “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. 8 LEMES, Selma Ferreira. CARMONA, Carlos Alberto. MARTINS, Pedro Batista. Arbitragem – Estudos em Homenagem ao Prof. Guido Fernando Silva Soares, In Memorian. 1ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2007. 6 Fernando Cunha Silva 97 sua aplicabilidade é questionada por contrariar o princípio do monopólio estatal sobre a Jurisdição, estendendo-se mesmo à garantia de acesso à justiça9. Assim, o presente estudo visa analisar a função jurisdicional da arbitragem, como meio alternativo para pacificação social, atualmente regida pelo monopólio do Estado, considerando os aspectos jurisprudenciais e doutrinários acerca do tema. Para isso, busca caracterizar o processo arbitral, identificando questões constitucionais e a relevância da utilização desse método no Brasil, bem como sua relação com o meio estatal de resolução de conflitos no Poder Judiciário. 2. Jurisdição Jurisdição significa a função pacificadora10 do Estado em dirimir conflitos da sociedade de maneira imparcial, com justiça11. Pela definição de Dinamarco, jurisdição é poder, função e atividade, que é a manifestação do poder estatal, ou seja, a capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. A função é de promover a pacificação de conflitos entre os indivíduos mediante direito justo e processo. Como atividade, a jurisdição é o complexo de atos do juiz no processo. 2.1. Meios alternativos de solução de conflitos A primeira forma de solução de conflitos, originada nas civilizações primitivas foi a autotutela, método baseado na justiça privada individual, uma vez que o Estado não era forte: o ofendido ou sua família resolviam o próprio conflito, o que caracterizava vingança. Esse meio pode ser considerado eficiente para a solução do conflito em sua individualidade, porém, jamais garantiria a paz social. Hoje, trata-se de um crime previsto pelo Código Penal. Entre os meios de justiça privada, ainda surgiu a autocomposição, quando uma parte (ou ambas) renuncia, desiste ou transaciona (concessões recíprocas) sua pretensão. Tanto a autotutela quanto autocomposicão são parciais, uma vez que os próprios interessados determinam a solução do litígio, ocasionando situações abusivas ou ROCHA, José de Albuquerque. A Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307, de 23.9.1996): uma avaliação crítica. 1ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 29. 10 ARAUJO CINTRA, DINARMARCO, GRINOVER. Teoria Geral do Processo, p. 32-33. 11 Dinamarco. Teoria Geral do Processo, p. 155. 9 Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 98 danosas para alguma das partes ou ainda tornando impossível a efetiva solução. Desse modo, uma forma que se mostrou fácil de solucionar os conflitos foi designando um terceiro, imparcial à demanda. O fortalecimento do Estado propiciou nova forma de solucionar conflitos. O Estado, forte e centralizado, passou a ser o responsável pela tutela aos direitos lesados entre a sociedade. Conforme afirma José Afonso da Silva12, a jurisdição é prestada através de um processo judicial, a fim de que órgãos do Poder Judiciário, com fundamento em ordens legais gerais e abstratas contidas no ordenamento jurídico vigente, realizem a solução dos conflitos. Enquanto monopolizada pelo Estado, a prestação jurisdicional revelou-se ineficiente. Desse modo, os juristas buscaram novos meios para fomentar o sistema de pacificação social, propiciando então, os surgimentos dos meios alternativos modernos para a solução de controvérsias. Os meios alternativos de solução de conflitos utilizados atualmente são: a conciliação, a mediação e a arbitragem, que será tratada no tópico abaixo. A resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconhece que, tanto a conciliação quanto a mediação, são instrumentos efetivos de pacificação social, se forem aplicadas na solução e prevenção de litígios. A implementação desses métodos no Brasil promoveu redução da excessiva judicialização dos conflitos, a quantidade de recursos interpostos no Judiciário e ainda ações de cumprimento de sentença. A resolução mencionada visa o estímulo da aplicação desses métodos alternativos na do maior número de conflitos possíveis, de acordo com suas peculiaridades, através da criação de programas e juízos específicos. 2.2. Arbitragem: evolução histórica e situação atual A prática da arbitragem surgiu há milhares de anos na Antiguidade, passando pela Idade Média e apresentando especial desenvolvimento nas relações comerciais. Há notícias de que na Babilônia e Egito Antigo, dentre outros povos da Antiguidade, faziam uso do método arbitral para solucionar litígios. Nas Polis gregas, tratados de paz e outros acordos, inclusive para estipulação de limites territoriais, eram decididos através de arbitragem13. 12 13 Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 553-554. Edgar A. De Jesus. Arbitragem: questionamentos e perspectivas, p. 9-10. Fernando Cunha Silva 99 Os reis e senhores feudais atuavam como árbitros, afinal, sua decisão era acatada sem possibilidade de contestação das partes14. Ainda na Idade Média, a Igreja Católica teve sua parcela de contribuição, tendo o Papa como árbitro principal. As relações comerciais instituíram a arbitragem para facilitar as transações, por ser mais rápida e justa, pois era feita segundo os usos e costumes do lugar, por um terceiro de confiança das partes envolvidas como árbitro. Dessa forma, mantinha a característica do informalismo15. Atualmente, a arbitragem é um meio alternativo de solução de controvérsias reconhecido internacionalmente e em ascensão no Brasil. Trata-se de um terceiro ou um conjunto deles – que podem ser de confiança das partes ou vinculados a uma instituição especializada – contratados pelas partes para solucionar um conflito. Esse mecanismo afasta a jurisdição do Poder Judiciário e resulta em uma sentença arbitral da qual não cabe recurso, nem arbitral nem judicial. Possui caráter essencialmente negocial e empresarial. Enquanto a conciliação e mediação são mecanismos autocompositivos, a arbitragem é heterocompositiva: um terceiro, o árbitro, estranho ao litígio, é quem profere sentença. O papel do árbitro assemelha-se ao papel do juiz, pois ambos têm a função de julgar a partir dos fatos expostos, assumindo posição imparcial perante os litigantes. Devido à modernização, hoje no Brasil, há várias câmaras arbitrais, como a Câmara de Arbitragem Empresarial (CAMARB), o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CCBC) e a Câmara FGV de Mediação e Arbitragem. Nesse sentido, além de poder escolher um árbitro privado, constituindo, a chamada arbitragem ad hoc, que seja de confiança de ambos litigantes, as partes também podem eleger uma câmara especializada, configurando arbitragem institucional. Enquanto no primeiro, o procedimento é livre, proporcionando autonomia às partes que determinam critérios para julgamento, o segundo é mais formal e deve obedecer ao procedimento interno. A arbitragem é um meio privado de solucionar um conflito, pois não envolve o Estado, é extrajudicial. Além disso, diferentemente da justiça comum, a prática arbitral proporciona maior autonomia às partes, permitindo que escolham o árbitro ou conjunto de árbitros e, ainda, faculta-lhes restringir o embasamento da decisão através de determinada legislação, jurisprudência, doutrina, livremente (sem restrições) ou por equidade16. Juan Luís Colaiácovo e outro. Negociação, Mediação e Arbitragem: teoria e prática, p. 91. Ibid. (nota de rodapé 1). Equidade é a forma pela qual se decide através dos conhecimentos e experiências próprias, dispensando fundamentação baseada em norma positivada. 14 15 16 Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 100 Carmona17 aponta três variações de utilização do mecanismo arbitral: a. Med/ arb, que, no início trata-se de mediação, porém, caso não haja acordo entre as partes o mediador assume papel de árbitro e profere sentença arbitral; b. High-low arbitration, geralmente empregado em litígios que versam sobre questões pecuniárias, pois consiste nas partes estabelecerem mínimo e máximo para decisão do árbitro, para que esta seja razoável, por exemplo, com relação à quantia expressa no contrato que deu origem ao conflito; c. Arbitragem não vinculante, na qual a sentença arbitral será cumprida se considerada aceitável pelas partes, senão, será empregada em negociações futuras. 3. O processo arbitral O processo arbitral assemelha-se, em alguns procedimentos, ao processo judicial e às previsões dispostas no Código de Processo Civil de 1973 e as alterações vigentes. Entretanto, há peculiaridades do método arbitral, introduzidas principalmente pela Lei 9.307/1996, a Lei de Arbitragem. 3.1. Lei de arbitragem (Lei 9.307/1996) Antes do anteprojeto de lei que deu origem à lei vigente de arbitragem, houve outras três tentativas de elaboração do projeto. O primeiro em 1981, o segundo em 1986 e 1988. Todos fracassaram, principalmente pela falta de precisão técnica e pelas falhas jurídicas que continham que eram inadmissíveis, como por exemplo, no primeiro e no segundo, que permitam a execução de sentença arbitral estrangeira sem qualquer procedimento homologatório, ou o terceiro, que sequer abordava o tema18. O anteprojeto convertido em lei foi elaborado a partir dos interessados, ao invés do Estado. A iniciativa foi tomada pelo Instituto Liberal do Pernambuco, em 1991, e apoiada por diversas entidades, entre elas associações de advogados e a FIESP. A estrutura adotada buscou não criar grandes impactos em relação ao Código de Processo Civil, seguindo, portanto, a mesma sistemática. Entretanto, revogou o Capítulo XIV, Título I do Livro IV do atual Código de Processo Civil (Lei 5.869/73) e também o Capítulo X, Título II do Livro III do antigo Código Civil de 1916 (Lei 3.071/16). 17 18 Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e processo: um comentário à Lei no 9.307/96, p. 33-34. Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo, p. 2-9. Fernando Cunha Silva 101 Desse modo, “no sistema antecedente, a arbitragem já possuía jurisdicionalização, sendo que a nova lei apenas lhe forneceu elementos que tornou útil e viável sua aplicação em sede interna, assemelhando ao modelo europeu, que obteve sucesso com essa empreitada”19. 3.2. Natureza jurídica da arbitragem A natureza jurídica da arbitragem é contratual, uma vez que as partes, no exercício da justiça privada, têm um processo baseado na autonomia da vontade. A autonomia de vontade entre as partes consiste na liberdade que têm para criar suas obrigações, desde que respeitadas as normas de ordem pública, conforme lecionado por Luiz Antonio Scavone Junior20. A liberdade que as partes possuem compreende na escolha do procedimento e do direito material a serem aplicados na arbitragem21. 3.3. Princípios constitucionais O processo arbitral não deixa de observar os princípios constitucionais destinados ao processo promovido pelo Estado. Dada a importância desses princípios, a arbitragem oferece as mesmas garantias. 3.3.1. O Devido Processo Legal Esse consiste na adequada prestação jurisdicional, instituído pelo artigo 5o da Constituição Federal de 1988, inciso LIV, que determina: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Esse princípio engloba outras garantias, como a duração razoável do processo, que garante a celeridade e efetividade do processo em tempo razoável, a ampla defesa e o contraditório, que asseguram o direito de defesa das partes, a isonomia processual, a fim de garantir processo imparcial. 19 20 21 Joel Dias Figueira Júnior. Arbitragem, Jurisdição e Execução, p. 110 e 111. Manual de Arbitragem, p. 73. Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo, p. 64. Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 102 3.3.2 Acesso à Justiça Denominado também de princípio do direito de ação e princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, o princípio do acesso à justiça visa assegurar o poder de agir em juízo e de defender-se, frente às demandas contra particulares e contra o próprio Estado. Este princípio engloba o monopólio da jurisdição pelo Poder Judiciário, conforme previsto no art. 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, que determina a possibilidade de apreciação pelo Judiciário de qualquer conflito. A arbitragem não viola nem o acesso à justiça nem o monopólio da jurisdição estatal. Primeiramente, não existe arbitragem obrigatória no país, sendo, portanto, esse meio sempre contratado entre as partes. Ademais, o art. 31 da Lei de Arbitragem já reconheceu a jurisdicionalidade do método, uma vez que equipara a sentença arbitral à sentença judicial. Segundo Carmona22, o conceito de jurisdição deve receber novo enfoque, adequando-se à realidade. 3.4. Arbitragem de direito e arbitragem de equidade O artigo 2o da Lei 9.307/96 permite que as partes escolham em que deve ser fundamentada a sentença do árbitro. Em observância ao princípio da autonomia da vontade, é facultado às partes vincularem o árbitro a uma decisão de direito ou de equidade. A arbitragem de direito vincula a decisão do árbitro ao direito positivo, enquanto a arbitragem de equidade proporciona mais liberdade ao árbitro, que pode decidir segundo “seu sentimento de justiça, aplicando regras por ele formuladas”, como define José de Albuquerque Rocha23, ou seja, a equidade relaciona-se com experiência e conhecimento jurídico além do direito positivado. Almeida Guilherme24 complementa que se trata da adaptação da norma ao caso concreto. A princípio, a equidade é recurso suplementar: diante de alguma lacuna do direito, ou seja, quando não houver dispositivo legal que se aplique a determinado caso concreto, o magistrado faz uso do recurso equidade para fundamentar a sentença que solucionará o conflito. Como observa Carmona25, a equidade é útil também nos casos de norma muito antiga ou em descompasso com a atualidade ou ainda norma que causa injusto desequilíbrio entre as partes, podendo assim, decidir de maneira oposta ao que determina a norma. 22 23 24 25 Carlos Alberto Carmona Arbitragem e Processo: um comentário a Lei nº 9.307/1996/96, p.26-27. A Lei de Arbitragem: uma avaliação crítica, p. 39. Fernando do Vale Almeida Guilherme. Manual de Arbitragem, p. 41. Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo: um comentário a Lei nº 9.307/1996/96, p. 65-66. Fernando Cunha Silva 103 No entanto, o § 1o do artigo supracitado, adverte que, independente das regras de direito que forem aplicadas à sentença arbitral, essas não podem contrariar os bons costumes e a ordem pública. Desse modo, restringe a atuação dos árbitros e garante decisão em conformidade com os pilares do ordenamento jurídico e jurisprudência. Joel Dias Figueira Júnior26 atenta que os julgadores também não podem se abster de julgar motivados por obscuridade ou lacuna legislativa. Nessa situação, devem os árbitros utilizar os princípios gerais do direito, a analogia e os bons costumes, como determinado no art. 126, Código de Processo Civil. 3.5. Outros recursos para a fundamentação da sentença arbitral A arbitragem também pode ser decidida segundo princípios gerais do direito, usos e costumes e regras internacionais de comércio, de acordo com o estipulado pelas partes ou do poder dado por elas ao árbitro. 3.5.1. Princípios Gerais do Direito A expressão princípios gerais do direito abrange premissa maior sem especificações, considerando a estrutura do sistema27. Desse modo, a expressão engloba tantos os princípios positivados quanto àqueles provenientes do Direito Natural, que inspiraram e regem os códigos vigentes. Para Carmona28, ao permitir que o árbitro aplique os princípios do direito na sua decisão, as partes dão liberdade similar à do julgamento por equidade, devido à amplitude desses princípios. 3.5.2. Usos e Costumes Segundo Miguel Reale29, os usos e costumes aparecem através da repetição e imitação de um ato consciente de um homem, que atende a uma exigência social. 26 27 28 29 Arbitragem, jurisdição e execução, p. 237. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, p. 213. Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo: um comentário a Lei nº 9.307/1996/96, p. 71-72. Lições Preliminares de Direito, p. 157. Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 104 Na arbitragem é permitido que a motivação do julgamento seja pelo direito consuetudinário – o que ocorre principalmente nos processos que envolvem questões comerciais e internacionais. Contudo, se o uso ou costume contrariar o ordenamento jurídico, para aplicá-lo o julgador estaria fazendo uso da equidade, portanto, deve-se consultar se as partes permitem esse modo de julgar30. 3.5.3. Regras internacionais de comércio Joaquim Simões Barbosa31 afirma que não há qualquer impedimento legal em relação à aplicação de regras de órgãos internacionais em arbitragem interna, numa hipótese de arbitragem do tipo misto, na qual o árbitro não é vinculado com nenhuma entidade, porém faz-se uso de regras de uma instituição especializada. O autor exemplifica que normas das renomadas United Nations Comission on International Trade Law (UNCITRAL) ou Chambre de Commerce et d’Industrie (CCI) podem ser utilizadas em arbitragens internas, sem que seja a sentença considerada internacional, caso fosse, implicaria necessidade de homologação judicial. Contudo, ressalta, resta certa conotação internacional inerente. 3.6. Convenção arbitral A arbitragem deve ser instituída por vontade das partes, ou seja, possui natureza convencional, surge de um acordo32, afinal, as partes não são obrigadas a recorrer a esse mecanismo de solução de conflitos – já houve arbitragem obrigatória33 no Brasil, porém, atualmente, não existe mais. A convenção arbitral é esse acordo escrito, que compromete as partes a submeter eventual litígio ao juízo arbitral. Desse modo, como expõe Luiz Antonio Scavone Júnior34, esse acordo de vontades acarreta duas obrigações, uma positiva e outra negativa, respectivamente: caso haja litígio na determinada relação jurídica, a de fazer (positiva) uso da arbitragem Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996/96, p. 72-73. Ricardo Ramalho Almeida (coord.) e outros. Arbitragem interna e internacional: questões de doutrina e da prática, p. 216. 32 Sebastião José Roque. Arbitragem: a solução viável, p. 16. 33 Com exemplifica Sebastião José Roque (Arbitragem: a solução viável, p. 12), o art. 245, do Código Comercial de 1850, estabelecia que “Todas as questões que resultarem de contratos de locação mercantil serão decididas em juízo arbitral”. Há exemplo também no Direito Societário, no qual o autor expõe o art. 294 do mesmo Código: “Todas as questões sociais que se suscitarem entre sócios durante a existência da sociedade ou companhia, sua liquidação ou partilha, serão decididas em juízo arbitral”. 34 Manual de Arbitragem, p. 73. 30 31 Fernando Cunha Silva 105 e a de declinar (negativa) a jurisdição estatal, ou seja, obrigação de não fazer. O autor ressalta ainda a obrigatoriedade da observância da convenção arbitral, pois “pacta sunt servanda”, respeitando, é claro, a teoria da imprevisibilidade, na qual é escusável o contrato que gerar onerosidade excessiva a uma das partes. Se fora feito prévio acordo de vontade determinando aplicação da arbitragem em caso de conflito, não é cabível ação judicial. Assim, a convenção de arbitragem (que abrange tanto compromisso arbitral quanto cláusula compromissória35) é motivo de extinção do processo sem resolução do mérito, conforme o art. 267, VII, Código de Processo Civil, e é admitida como arguição preliminar na contestação, conforme art. 301, IX, Código de Processo Civil (neste caso, é defeso ao juiz tomar conhecimento do compromisso arbitral, mas pode conhecer, de ofício, a cláusula compromissória36). 3.6.1. Cláusula Compromissória A cláusula compromissória é a convenção preventiva pela qual as partes acordam que, caso haja litígio futuro, será aplicada arbitragem para sua solução. Esta cláusula deve ser estipulada por escrito, sendo inserida em documento apartado que se refira ao contrato ou no próprio contrato. O art. 5o da Lei de Arbitragem37 normatizou a cláusula compromissória, dandolhe autonomia para instituir juízo arbitral, dispensando a anteriormente obrigatória celebração do compromisso arbitral, ou seja, a cláusula arbitral por si só basta como celebração de convenção arbitral. Essa cláusula é autônoma em relação ao contrato a que se refere. Desse modo, mesmo que o contrato seja anulado, ela permanece válida. Carmona38 atenta que há casos em que incide a nulidade tanto no contrato quanto na cláusula, como nos casos em que houver assinatura falsa no documento ou contratante incapaz, por exemplo, em que, obviamente, a cláusula compromissória também será nula ou anulável. No caso de nulidade da convenção arbitral, o árbitro proferirá sentença terminativa, sem resolução do mérito, que trate apenas de aspectos processuais. Joel Dias Figueira Júnior. Arbitragem, Jurisdição e Execução, p. 194. Edgar A. De Jesus. Arbitragem: questionamentos e perspectivas, p. 114. 37 Art. 5º Reportando-se as partes, na cláusula compromissória, às regras de algum órgão arbitral institucional ou entidade especializada, a arbitragem será instituída e processada de acordo com tais regras, podendo, igualmente, as partes estabelecer na própria cláusula, ou em outro documento, a forma convencionada para a instituição da arbitragem. 38 Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo: Um Comentário à Lei no 9.307/96, p. 18-19. 35 36 Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 106 Entretanto, persiste uma restrição em relação à cláusula arbitral, nos contratos de adesão, em que um polo elabora o documento devendo o outro ou concordar ou não celebrar o contrato, uma vez que o acordo não é passível de discussão. Visando proteger os hipossuficientes, uma vez que a parte que elabora um contrato desse tipo encontrase em posição mais vantajosa do que a outra – considerada, portanto, hipossuficiente, o art. 4o, §2o, da Lei 9.307/96 estabelece que somente será instituída arbitragem se a parte que aderiu concordar expressamente, através de assinatura ou visto na cláusula específica, que deve estar em negrito, ou em documento anexo. 3.6.2. Cláusula compromissória “cheia” e cláusula compromissória “vazia” Quando as partes não estabelecerem o árbitro ou órgão arbitral, o direito aplicável, fixação de prazo para apresentação da sentença, entre outros elementos necessários para a instituição da arbitragem, denomina-se que a cláusula compromissório é “vazia”. Estas cláusulas vagas causam inconveniente para as partes que, caso não consigam entrar em acordo de como ocorrerá o processo arbitral, deverão solucioná-lo através do Poder Judiciário. A parte interessada deverá requerer citação da outra para que o magistrado determine todos os elementos para que possa ser instituída a arbitragem, conforme disposto no art. 7o, caput, da Lei de Arbitragem. Se o pedido for julgado procedente, a sentença valerá como compromisso arbitral. As cláusulas “cheias” são aquelas que especificam os requisitos necessários para aplicação do processo arbitral ou determinam entidade especializada que o fará. Abranger essas condições formais em acordo prévio dispensa que as partes tenham que recorrer a um magistrado ou tribunal para determinar compromisso arbitral, sendo, portanto, recomendável sua utilização. 3.6.3 Compromisso arbitral O compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à sentença de um ou mais árbitros. Trata-se de um conflito já existente, ou seja, diferentemente da cláusula compromissória, o compromisso arbitral não possui caráter preventivo. Como exposto anteriormente, tanto a cláusula compromissória quanto o compromisso arbitral possuem força jurídica para instituição da arbitragem em detrimento à jurisdição estatal. Conforme disposto no art. 9, §§1o e 2o, da Lei de Arbitragem, pode ser judicial, quando celebrado nos autos, perante o juízo ou tribunal no qual correr demanda; ou Fernando Cunha Silva 107 extrajudicial, se firmado por instrumento particular, assinado por duas testemunhas ou ainda através de instrumento público. Mesmo que haja processo judicial em curso, em qualquer instância, desde que previamente ao trânsito em julgado, pode ser realizado compromisso arbitral. Desse modo, o litígio será decido por arbitragem e o processo judicial será julgado extinto, através de sentença terminativa (sem resolução do mérito). O art. 10 da Lei de Arbitragem arrola requisitos específicos obrigatórios do compromisso arbitral. São eles: (I) o nome, profissão, estado civil e domicílio das partes; (II) o nome, profissão e domicílio do árbitro, ou dos árbitros, ou, se for o caso, a identificação da entidade a qual as partes delegaram a indicação de árbitros; (III) a matéria que será objeto da arbitragem; e (IV) o lugar em que será proferida a sentença arbitral (principalmente para verificar se trata-se de sentença estrangeira, pois nesse caso necessitará de homologação judicial). Carlos Alberto Carmona39 observa que, mesmo não estando explícito no dispositivo, a carência de algum dos requisitos implica possibilidade de nulidade do compromisso. Porém, requisitos como o I e o II, por exemplo, dificilmente irão causar nulidade ao negócio jurídico do compromisso, já que podem ser facilmente saneados: sua importância é a mera identificação das partes e dos árbitros, ou da entidade especializada. O art. 11 da Lei de Arbitragem apresenta requisitos facultativos, porém bastante convenientes tanto para instituição da arbitragem quanto para o processo em si. São eles: (I) local, ou locais, onde se desenvolverá a arbitragem; (II) a autorização para que o árbitro ou os árbitros julguem por equidade, se assim for convencionado pelas partes; (III) o prazo para apresentação da sentença arbitral; (IV) a indicação da lei nacional ou das regras corporativas aplicáveis à arbitragem, quando assim convencionarem as partes; (V) a declaração da responsabilidade pelo pagamento dos honorários e das despesas com a arbitragem; e (VI) a fixação dos honorários do árbitro, ou dos árbitros. 3.7. Personagens Assim como no processo judicial, as partes devem agir conforme a boa-fé, com lealdade e de forma a corroborar com os acordos. 39 Arbitragem e Processo: Um Comentário à Lei no 9.307/96, p. 19 Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 108 3.7.1. O Árbitro É o julgador no processo arbitral. O cargo exige pessoa física40 e capaz, ou seja, o sujeito de direitos e obrigações – excluindo as pessoas jurídicas, maior de 18 anos (exclui-se os relativamente incapazes), que não possua enfermidades (doenças mentais) ou condições adversas (dependente químico) que prejudiquem sua consciência ou discernimento, conforme determina os arts. 3o e 4o do Código Civil. Por se tratar de um sistema privado, é dever das partes escolher pessoa de confiança para atuar como árbitro. Outro modo de eleger árbitros é através de um instituto especializado, contratado pela partes, que designa árbitro ou tribunal arbitral e acompanha o processo. Quanto à escolha do presidente, caso se trate de tribunal arbitral, deve ser feita pelos próprios árbitros. Caso não decidam, a regra, de acordo com o art. 13, §4o, é que o mais idoso assuma o posto de presidente do tribunal arbitral. Conforme o art. 13, §1o, deve ser eleito número ímpar de árbitros e é facultado às partes a nomeação de suplentes. Caso as partes os elejam em número par, esses devem eleger novo integrante. Em último caso, o impasse deverá ser levado a um juiz togado do foro que seria competente caso o processo pertencesse ao Poder Judiciário, que deverá eleger árbitro. Os árbitros podem eleger um secretário, conforme dispõe o art. 13, §5, que é um auxiliar que realiza atos processuais, tal como os auxiliares dos magistrados (escrivães ou serventuários). Carlos Alberto Carmona41 levanta suas questões em relação a quem poderia ser árbitro, entre os analfabetos e os estrangeiros. Os primeiros, são considerados capazes pelo Código Civil e os documentos e laudos poderiam lhe ser lidos, não havendo, assim, impossibilidades; o autor destaca que essa escolha é remota, uma vez que os casos aos quais a arbitragem é aplicada costumam ser complexos, exigindo alto nível de conhecimento do julgador. Os estrangeiros também não são impedidos de atuar como árbitro, mesmo que não compreendam o idioma nacional, afastando, o autor, qualquer corrente contrária. O autor ainda observa a impossibilidade do juiz togado desempenhar a função de árbitro, por determinação do art. 26, II, da Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar no 35/79). 40 41 José de Albuquerque Rocha. A Lei de Arbitragem uma avaliação crítica, p. 67-68. Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996/96, p. 229-230 Fernando Cunha Silva 109 Não podem exercer função de árbitro, além dos magistrados, todos os outros integrantes do sistema jurídico estatal: os funcionários públicos, procuradores, promotores, serventuários da justiça42. Sebastião José Roque43 observa que o árbitro geralmente possui conhecimentos aprofundados acerca do conflito. Por exemplo, em casos nos quais o cerne do pedido é questão iminentemente técnica, como referente a equipamentos industriais e maquinário, o processo seria mais célere se o julgador fosse uma pessoa que domina o assunto. O autor complementa que árbitros não precisam ser advogados, pois, em determinados conflitos, dentistas, contadores, administradores, economistas, etc. seriam mais eficazes no desempenho da função. 3.7.1.1. Conduta do árbitro O art. 13, §6o, reza que “no desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição”. Por imparcialidade, deve-se afastar qualidades de impedimento ou suspeição, garantindo que o árbitro não possua predileção por quaisquer das partes, nem interesse no objeto do conflito, como será melhor explicitado a seguir. Em relação à independência do julgador, esse deve estar objetivamente afastado de qualquer vínculo econômico, afetivo, moral e social com o litígio. Já a competência refere-se ao conhecimento de causa: o julgador deve ter capacidade técnica ou intelectual de entender e solucionar o caso. Entende-se por diligência o dever do árbitro de atuar positivamente para dirimir o conflito, dedicando-se de maneira efetiva a essa tarefa. Por fim, o árbitro deve atuar com discrição, uma vez que o processo arbitral é, a princípio, sigiloso; sendo assim, melhor o árbitro ser cauteloso com os comentários que profere sobre atos de um processo arbitral, para que depois não lhe seja imputada responsabilidade. 3.7.1.2 As exceções subjetivas: impedimento e suspeição Aos árbitros é vedado incidir nas exceções subjetivas, impedimento (art. 134, Código de Processo Civil) e suspeição (art. 135, Código de Processo Civil), assim como também o é para os magistrados, tanto que a Lei de Arbitragem (art. 14) determina seja 42 43 Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme. Manual de Arbitragem, p. 117. Arbitragem: a solução viável, p. 61. Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 110 consultado o próprio Código de Processo Civil. Almeida Guilherme44, citando José de Albuquerque Rocha, explica que, na arbitragem, impedimento e suspeição são relativos, pois se referem à pessoa e ao objeto de um litígio concreto. A impossibilidade de membros do sistema jurídico público atuarem como árbitros resvala-se em um critério absoluto, devido ao cargo que ocupam, sem variações que exijam análise caso do caso concreto. Impedimento arrola exceções passíveis de constatação objetiva: conforme consta no art. 134, Código de Processo Civil, não pode a parte, seu cônjuge ou parentes em linha reta e colateral até o terceiro grau atuar como árbitro ou quem atuou no processo como advogado (seu cônjuge ou parentes em linha reta e colateral até o segundo grau também são impedidos), perito, testemunha, funcionário do Ministério Público ou conheceu do processo enquanto pertencia à jurisdição estatal; está impedido o ocupante de cargo de direção do administração de pessoa jurídica que seja parte na causa. Suspeição, disposta no art. 135, Código de Processo Civil, refere-se a relações subjetivas, mais difíceis serem constatadas: reputa-se suspeito o árbitro que for amigo íntimo ou inimigo capital de alguma das partes ou que seja devedor ou credor (ou se cônjuge ou parente em linha reta ou colateral até terceiro grau) de uma delas; aquele que seja herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de uma das partes ou tiver recebido dádivas antes ou depois de iniciado o processo arbitral; o que aconselhou a parte acerca do caso ou lhes forneceu meios para arcar com as despesas processuais, nem aquele que possua interesse na decisão do conflito. O árbitro, assim como o juiz togado, pode fazer uso do parágrafo único do art. 135, dando-se por suspeito devido ao genérico motivo íntimo, sem justificação clara. Na arbitragem, impedimento e suspeição diferem do processo judicial convencional, pois trata-se de um vício tido como muito mais grave, ignorando mesmo o trânsito em julgado e permitindo ação rescisória45. De outro lado, devido a sua natureza contratual resvalada na autonomia da vontade, podem as partes acordarem que parente ou amigo comum, a princípio impedidos ou suspeitos, no qual depositem confiança, exerça função de árbitro na solução de um conflito entre elas. O árbitro possui dever de revelação acerca de eventual motivo que configure impedimento ou suspeição, antes de aceitar a incumbência – ou durante o processo, se surgir fato inédito. Sua finalidade é reforçar a garantia de um processo isento de vícios subjetivos. 44 45 Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme. Manual de Arbitragem, p. 117. Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996/96, p. 252 Fernando Cunha Silva 111 A recusa do árbitro pela parte pode ocorrer somente se o conhecimento do fato que a justifica for posterior à nomeação. O procedimento, disposto no art. 15 da Lei de Arbitragem, deve ser realizado através da arguição de recusa do árbitro apresentada pela parte ao próprio ou ao presidente do tribunal arbitral, que deverá afastar o árbitro impedido ou suspeito, inserindo ao processo um substituto (o suplente previamente determinado no compromisso arbitral, art. 13, §1o, da Lei de Arbitragem, se houver). Quanto à escusa da nomeação é a não aceitação da nomeação pela própria pessoa indicada como árbitro, não pelas partes, como ocorre na recusa. Pode ser fundamentada ou não (por exemplo, quando se trata de suspeição por motivo íntimo). No mais, regras de procedimento da arguição de exceções devem ser feitas pelas partes ou pela instituição arbitral escolhida. 3.7.1.3 O falecimento e outros empecilhos à atuação do árbitro É substituído o árbitro, além dos casos de suspeição e impedimento, por motivo de falecimento, enfermidade ou outra justificativa que impossibilite o desempenhar da função. Caso não haja suplente pré-determinado ou ele não aceite a nomeação, buscase regra específica da entidade arbitral que aplica o processo. Se não houver, deve-se recorrer ao juízo estatal que seria competente caso ação tramitasse junto à jurisdição convencional, como determina o art. 16, caput e parágrafos, da Lei de Arbitragem. 3.7.1.4. Da responsabilidade do árbitro como funcionário público O art. 17 da Lei de Arbitragem equipara o árbitro ao funcionário público, no que se refere à legislação penal, ou seja, crimes contra a administração pública – mais especificamente prevaricação, concussão e corrupção passiva46. A partir e interpretação extensiva, árbitro como vítima de delitos que só podem ser cometidos contra funcionários públicos, ex. corrupção ativa (vítima de suborno) e crimes contra a honra – calúnia, difamação, injúria – em razão da sua função47. Mesmo a lei não especificando, obviamente imputa-se ao árbitro responsabilidade civil. Porém, como observa Carmona48, há limites. Por exemplo, se há error in judicando, ou seja, sentença insatisfatória, sem a qualidade esperada, ou erros procedimentais (mesmo os que acarretam nulidade), o árbitro não poderá ser punido por responsabilidade civil. 46 47 48 Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996/96. Alexandre Freitas Câmara. Arbitragem: Lei nº 9.307/96, p. 49. Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/1996/96, p. 263-267. Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 112 Já, se o prazo para apresentação da sentença for excedido ou o árbitro julgar além dos recursos que lhe foram dados na convenção arbitral (como no caso da utilização de equidade numa arbitragem de direito), lhe será imputada responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos pelas partes com a postergação da solução do conflito, por exemplo, respondendo por eventuais perdas e danos. Instituições arbitrais também podem ser responsabilizadas civilmente. Em se tratando de arbitragem colegiada, atenta Carmona, não pode todo o tribunal arbitral sofrer consequências pelo equívoco de um árbitro. Nesse caso, aconselha o autor agir com cautela e parcimônia para identificar o erro e o responsável. Algumas entidades arbitrais, diante da falta de regulamentação legislativa, chegaram até a elaborar regras próprias quanto a responsabilidade civil dos árbitros. 3.7.1.5. Coercibilidade Em certo ponto, pode-se considerar o árbitro em desvantagem. Em relação ao poder do magistrado, o árbitro encontra-se prejudicado, uma vez que não possui aparato policial como apoio, nem poder coercitivo para obrigar que uma testemunha se apresente ou determinar penhora ou arresto de bens49. Portanto, o julgador depende do compromisso das partes e sua cooperação para dirimir o conflito. Caso se trate de ato imprescindível para o processo arbitral, pode o árbitro requerer a juízo estatal, de maneira devidamente justificada, que utilize seu poder coercitivo para realizá-lo50, como estabelecido no art. 22, §4o, da Lei de Arbitragem. 3.7.1.6 Do adiantamento de verbas para diligências e outras despesas. Mesmo que um dos requisitos importantes para o árbitro seja a competência, nada impede que este necessite de um perito ou outro técnico especializado, por exemplo, entre outras diligências, para as quais poderá requerer adiantamento de verbas, como determina o art. 13, §7o. da Lei de Arbitragem. Pode o processo arbitral restar prejudicado caso não seja concedido tal adiantamento ao árbitro, se a verba era destinada a medida necessária51. 49 50 51 Edgar A. de Jesus. Arbitragem: questionamentos e perspectivas, p. 90. Sebastião José Roque. Arbitragem: a solução viável, p. 79. João Roberto Parizatto. Arbitragem: comentários à Lei nº 9.307/1996, de 23-9-96, p. 54. Fernando Cunha Silva 113 3.7.2. O Advogado O art. 20, §3o, da Lei de Arbitragem, dispõe que as partes poderão postular por intermédio de advogado, não sendo esta figura obrigatória. Nesse sentido, a presença do advogado é facultativa para as partes52. Evidentemente, não deixa de ser importante a presença do advogado para assistir a parte durante o processo, apenas não se trata de uma exigência. Podem as partes recorrer a consultorias ou assessorias de advogados, as quais apenas tiram dúvidas e recebem algumas orientações, sem o permanente acompanhamento do profissional durante todo processo. Além de desempenhar as tradicionais funções de advogado ou consultor de parte, o advogado pode atuar como árbitro ou consultor do órgão arbitral. Embora se trate de um processo informal, é fundamental que tanto os procedimentos quanto à sentença arbitral estejam de acordo com a lei brasileira. Considerando que os árbitros não precisam de formação jurídica, é interessante que advogado seja contratado para analisar o processo em seus aspectos formais e materiais, garantindo que tudo esteja em conformidade com a ordem jurídica, afinal alguns vícios podem, inclusive, acarretar nulidade da sentença, como veremos mais adiante. Uma observação que os doutrinadores costumam fazer é que a arbitragem repele posturas agressivas – aceitas em dosagem moderada pelas cortes judiciais – uma vez que se trata de medida baseada no acordo de vontades e que depende da cooperação das partes e, é claro, de seus postuladores. Nos procedimentos arbitrais também não são aceitas – são veemente repudiadas - manobras meramente protelatórias, já que trata-se de um meio mais célere, alternativo ao moroso sistema judiciário nacional. 3.7.3. As Partes 3.7.3.1. Quem pode ser parte Diferentemente do processo judicial, no procedimento arbitral não há dúvidas em relação à legitimidade de parte e assuntos relacionados, afinal institui-se a arbitragem a partir de um compromisso voluntário entre ambas as partes. Ainda nessa linha de raciocínio, terceiros intervenientes e litisconsortes apenas serão admitidos se previstos na convenção arbitral (seja na cláusula, seja no compromisso) ou se admitidos pela parte 52 Alexandre Freitas Câmara. Arbitragem: Lei nº 9.307/96, p. 71. Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 114 contrária. Como não há arbitragem obrigatória, o árbitro não pode exigir que terceiro algum integre o processo, mesmo porque o julgador arbitral não possui poder coercitivo. 3.7.3.2. Litigância de má-fé Em qualquer processo, mesmo na jurisdição privada, imperam os deveres de boafé e lealdade. Sendo assim, como nos processos judiciais, nos quais litigância de má-fé incide sobre as partes, conforme art. 17 do Código de Processo Civil, na arbitragem não é diferente, como observa Almeida Guilherme. O dispositivo arrola as condutas danosas: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - provocar incidentes manifestamente infundados; VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. Como consequência do emprego de litigância de má-fé, a parte responsável deve responder pelos danos processuais que sua conduta causar, pagando custas e despesas que gerou e o árbitro também pode condená-la a arcar com uma indenização53. Pode a convenção arbitral prever tal conduta, estabelecendo procedimento acordado entre as partes. Caso não o façam, caberá a utilização das regras do órgão ou do juízo arbitral. Em última alternativa, deve-se recorrer à jurisdição estatal. 3.8 O procedimento arbitral Assim como o procedimento estabelecido no Código de Processo Civil, o procedimento arbitral regido pela Lei 9.307/96 possui fases: postulatória, ordinatória (saneamento), instrutória e decisória. Além disso, também possui princípios a serem observados. 3.8.1 Princípios Específicos Como no processo civil convencional, a arbitragem também garante princípios gerais do direito, dispostos no art. 21, §2o, da Lei de Arbitragem: o contraditório, a igualdade entre as partes, a imparcialidade do árbitro e o seu livre convencimento. Joel Dias Figueira Júnior. Arbitragem, jurisdição e execução – análise crítica da Lei nº 9.307/1996 de 23.09.1996, p. 265-266. 53 Fernando Cunha Silva 115 O contraditório estabelece uma parte deve ser notificada e ter a oportunidade de se manifestar em relação aos atos praticados pela outra. Tal qual no processo judicial, a arbitragem vincula as partes54, autor e réu, portanto, deve-se garantir o direito a defesa, estabelecendo duas partes no processo, não apenas uma. A igualdade entre as partes no processo arbitral difere do processo judicial. No primeiro, devido ao seu caráter negocial, as partes devem ter equilíbrio em relação às oportunidades: o que for facultado a um, deve ser oferecido ao adversário também. Já no segundo, a paridade é obrigatória, como, por exemplo, o art. 9o, §1o, da Lei 9.099/95 55, no qual se uma parte é assistida por advogado, o Estado deverá proporcionar assistência jurídica para a outra parte. A imparcialidade do árbitro é fundamental na arbitragem. Tal como nos processos sob jurisdição estatal, em relação aos magistrados, o árbitro deve ser equidistante das partes e não deve possuir interesse no litígio. O livre convencimento do árbitro é a liberdade que o julgador tem para formar sua convicção a respeito da lide, através das provas e circunstâncias que lhe forem apresentadas. Deve-se destacar que pode haver inversão do ônus da prova por convenção entre os litigantes, assim como pode acontecer também no processo civil. Lembrando-se que, à semelhança do processo judicial, tratase do livre convencimento motivado, afinal, o árbitro, assim como o juiz togado, deve fundamentar a sentença. 3.8.2 Maneiras de Instituição de Processo Arbitral De acordo com o art. 21, caput, da Lei de Arbitragem, o procedimento arbitral pode ser instituído de três maneiras: a partir do convencionado pelas partes (princípio da autonomia da vontade, anteriormente citado), ou fazendo uso de regras de instituições, ou ainda, deixando a critério do próprio árbitro ou tribunal arbitral responsável pelo julgamento do litígio. Em relação à primeira modalidade, Carlos Alberto Carmona56 comenta que não é muito usual e raramente as partes o fazem. Na maioria dos casos, afirma o autor, a cláusula compromissória é uma das últimas a serem discutidas num Joel Dias Figueira Júnior. Arbitragem, jurisdição e execução – análise crítica da Lei nº 9.307/1996 de 23.09.1996, p. 74. 55 “Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória. § 1º Sendo facultativa a assistência, se uma das partes comparecer assistida por advogado, ou se o réu for pessoa jurídica ou firma individual, terá a outra parte, se quiser, assistência judiciária prestada por órgão instituído junto ao Juizado Especial, na forma da lei local.” 56 Ibid., p. 290. 54 Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 116 contrato, dificultando elaboração de procedimento para eventual conflito relativo ao contrato que celebram. Porém, observa o autor, quando se trata de litígio já existente, a arbitragem ad hoc, como é denominada a arbitragem na qual o procedimento é estabelecido pelas partes, faz-se mais útil. Em relação à segunda modalidade, a escolha de uma entidade arbitral que determina procedimento é chamada arbitragem institucional. Apresenta vantagens, tais como evitar divergências e impugnações em relação a designação do árbitro (ou dos árbitros) e os custos do processo, a fixação de honorários, os locais das reuniões, entre outros. As decisões serão tomadas pela instituição. O inconveniente é financeiro, afinal é mais dispendioso do que quando as estabelecem regras de procedimento por conta própria. Em relação à terceira modalidade, quem estabelece o procedimento é o próprio juízo arbitral. Como disposto no art. 21, §1o, quando a convenção arbitral não estipular procedimento, caberá ao árbitro ou tribunal arbitral fazê-lo. Carmona57 comenta sobre o poder normativo do árbitro, pois, mesmo que, a princípio, a arbitragem seja ad hoc, por exemplo, nunca será completamente satisfatório: eventuais situações não previstas nas regras de procedimento deverão ser contornadas pelo árbitro, que, para isso, deverá instituir as regras necessárias, exercendo poder normativo supletivo. Seu poder normativo será pleno quando as partes convencionarem que todas as regras serão por ele estabelecidas, caracterizando a terceira modalidade. 3.8.3 Momento da instituição da arbitragem e primeiras providências Como observa Figueira Júnior58, considera-se instituída a arbitragem quando aceita a nomeação pelo árbitro, se for único, ou por todos os julgadores, caso se trate de um tribunal arbitral, enquanto no processo civil convencional, a citação (ato relacionado ao réu) é que é o marco culminante para formação da relação processual. O autor explica que isso se deve ao caráter convencional da arbitragem, sendo o ponto de partida o momento em que o árbitro - ou conjunto de árbitros – aceita a nomeação oriunda da convergência de vontades dos litigantes. A primeira providência do julgador deve ser analisar a convenção de arbitragem, para estabelecer procedimento, juntamente com as partes, em relação aos pontos que nela restaram omissos. O resultado será um adendo à convenção previamente 57 58 Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo: Um Comentário à Lei no 9.307/96, p. 292. Joel Dias Figueira Júnior. Arbitragem, Jurisdição e Execução, pp. 206-207. Fernando Cunha Silva 117 celebrada. Também devem ser analisados aspectos controvertidos e irregularidades, mais uma vez, em conjunto com as partes, para evitar vicissitudes na sentença59. Caso obtenha sucesso, o árbitro pode, a requerimento das partes, elaborar sentença arbitral com o conteúdo do acordo, pondo fim à arbitragem ou apenas homologar a desistência das partes em relação ao processo arbitral, dando-lhe por extinto. Pelo posicionamento de Luiz Antonio Scavone Junior60, a ausência de tentativa de conciliação implica em nulidade do procedimento arbitral, pois acredita que o dispositivo legal exige a tentativa, não sendo mera sugestão. Carmona61 discorda: para ele, com base na doutrina62 e na jurisprudência63, a lei deveria utilizar o vocábulo “recomendável” ao invés de “competirá ao árbitro”, já que a omissão desse ato não implica nulidade, observando o princípio de celeridade que rege a arbitragem. 3.8.3.1 Conciliação Após a instituição da arbitragem e saneamento, deve ser realizada tentativa de conciliação entre as partes, como disposto no art. 21, §4o, da Lei de Arbitragem – o que não impede que haja composição amigável em qualquer outro momento do processo. 3.8.3.2 Vício no procedimento: as exceções O art. 20 da Lei de Arbitragem regulamenta a arguição de exceções – competência, impedimento, suspeição do(s) árbitro(s) – que pode tornar a convenção arbitral nula, inválida ou ineficaz. Segundo Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme64, a nulidade é um defeito jurídico que impede que os atos produzam efeitos, a invalidade é decorrente da inobservância de requisitos estipulados pela partes ou por lei e a inutilidade refere-se à impossibilidade da aplicação da jurisdição paraestatal. Afirma também que a arguição de exceção deve ser apresentada ao árbitro ou presidente do tribunal arbitral através de documento escrito contendo a motivação do ato. Sebastião José Roque. Arbitragem: a solução viável, p. 69. Manual de Arbitragem, pp. 119-120. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96, p. 302-303. 62 Sálvio de Figueiredo Teixeira (Código de Processo Civil Anotado, São Paulo, Ed. Saraiva, 1996, p. 289) afirma que a lei processual deve ser interpretada de maneira teleológica, para que não haja retardamento da lei processual. 63 Ementa nº 43, aprovada pelo VI Encontro Nacional dos Tribunais de Alçada. 64 Manual de Arbitragem: doutrina, legislação, jurisprudência, pp. 115-116. 59 60 61 Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 118 O art. 20, caput, determina que devem ser arguidas exceções na primeira oportunidade a partir da instituição da arbitragem, deixando espaço para um dúvida: o que aconteceria caso a parte não se manifestasse no prazo? Carlos Alberto Carmona65 estabelece duas alternativas: ou não há consequências, pois a regra tem a mera finalidade de ordenar o procedimento ou há um prazo preclusivo e, sendo assim, servirá de respaldo para nulidade da futura sentença arbitral. O autor explica que depende da questão, afinal algumas são referentes aos princípios do processo e não admitem saneamento enquanto outras encontram-se à disponibilidade das partes. Por exemplo, se as partes silenciam perante situação de suspeição do árbitro, haverá preclusão se não apresentarem oposição na primeira oportunidade, pois presume-se que as partes ignoraram o possível vício e, portanto, esse não poderá ser alegado posteriormente. Conclui que, em relação às demais questões, a regra é meramente ordenatória, pois não impede que seja usada como fundamento para demanda de decretação de nulidade da sentença. 3.9 Características do procedimento 3.9.1 Comunicação de atos A comunicação dos atos do processo arbitral pode ser realizada: de forma acordada entre as partes, utilizando qualquer meio que produza comprovante, inclusive meios eletrônicos ou respeitando as regras de órgão arbitral66. Caso não haja regra previamente estabelecida regulando este procedimento, cabe ao árbitro discipliná-lo (art. 21, §1o). 3.9.2 Sentença arbitral Através da sentença arbitral é prestada a atividade jurisdicional, em virtude da obrigação gerada na relação jurídica processual, oriunda da pretensão das partes à tutela jurídica. Assim como no processo civil, na arbitragem, a sentença visa proporcionar a solução do conflito. No caso de conciliação, a qualquer tempo, o árbitro deverá proferir, a pedido das partes, sentença que declare o acordo entre elas. A sentença arbitral homologatória do acordo deverá conter os mesmo requisitos do art. 26 da Lei de Arbitragem. 65 66 Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96, p. 283-285. Luiz Antonio Scavone Junior. Manual de Arbitragem, p. 143-144. Fernando Cunha Silva 119 A partir do advento da Lei de Arbitragem, mais especificamente pelo seu art. 18, não há necessidade de que o Poder Judiciário homologue a sentença arbitral, afinal a lei atesta que “o árbitro é juiz de fato e de direito”. À semelhança das sentenças judiciais, as sentenças arbitrais podem ser distinguidas em terminativas, que sentenciam apenas em relação aos aspectos formais, não sendo o mérito analisado – por exemplo, sentenças que invalidam a convenção de arbitragem, e definitivas (aquelas que buscam solucionar o mérito da demanda – por exemplo) ao julgar procedente a pretensão do autor quanto ao recebimento de indenização. Também podem ser classificadas em declaratórias, constitutivas e condenatórias67. As primeiras, quando se tratam de sentenças que afirmem a existência ou não de relação jurídica ou declarem falsidade de documento. As constitutivas são aquelas que criam, extinguem ou modificam direitos. Por fim, as condenatórias são aquelas que geram obrigações ao(s) vencido(s). Há ainda quem adicione mais duas classificações: executivas e mandamentais. A executiva (ou executiva lato sensu) são aquelas que exigem apenas atos executórios, dispensando o processo de execução. Por exemplo, uma ação de despejo, na qual seja proferida sentença determinando 30 (trinta) dias para desocupação do imóvel. Se não conservada, emprega-se uso de força para que o faça. Não há execução, apenas atos executórios. Já a mandamental, trata-se de sentença de ‘mandar fazer’ ou ‘mandar dar’. Em alguns casos, se o réu não cumpre a obrigação determinada pelo juiz, arca com perdas e danos. Na sentença mandamental, entretanto, a indenização não é suficiente, pois o autor necessita da ação satisfeita. Assim, se não cumprir emprega-se força policial. Por exemplo, nos casos de retificação de registro público e mandado de segurança. A sentença arbitral deve ser proferida através de documento escrito (art. 24 da Lei de Arbitragem) e, em se tratando de juízo colegiado, prevalece a decisão da maioria ou, caso não seja possível, prevalece voto do presidente do tribunal arbitral. É permitido que o árbitro que discordar da maioria profira seu voto em separado (art. 24, §2o). 3.9.3 Recurso A princípio, arbitragem é um instituto que não determina duplo grau de jurisdição. Nesse caso, não cabe recurso à sentença arbitral, conforme dispõe o art. 18 da Lei Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil, p. 590-592. Luiz Antonio Scavone Junior. Manual de Arbitragem, p. 143-144. 67 Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 120 de Arbitragem. Salienta-se ainda que as partes não podem submeter o mesmo litígio, objeto de arbitragem, à apreciação do Judiciário. Porém, mais uma vez, devido ao caráter contratual da arbitragem, podem as partes determinar que se apliquem recursos previstos pelo Código de Processo Civil na arbitragem. Entretanto, como observa Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme68, essa determinação acarreta a desvirtuação do instituto arbitragem. Contudo, fica instituída, pelo art. 30, II, da Lei 9.307/96 que da sentença arbitral é cabível embargos de declaração, já que dispõe: Art. 30. “No prazo de cinco dias, a contar do recebimento da notificação ou da ciência pessoal da sentença arbitral, a parte interessada, mediante comunicação a outra parte, poderá solicitar ao árbitro ou ao tribunal arbitral que: (...) II - esclareça alguma obscuridade, dúvida ou contradição da sentença arbitral, ou se pronuncie sobre ponto omitido a respeito do qual devia manifestar-se a decisão”. Pelo inciso I, do mesmo artigo, pode-se pleitear que seja corrigido qualquer erro material da sentença arbitral. 3.9.4. Sentença arbitral estrangeira Considera-se sentença arbitral estrangeira aquela proferida fora dos limites territoriais do Brasil, definição essa, baseada em critério territorialista, de acordo com a Convenção de Nova Iorque. A Lei Modelo da UNICITRAL é mais flexível, permitindo que as partes estabeleçam se a arbitragem é ou não internacional. Conforme dispõe o art. 34 da Lei de Arbitragem, a sentença arbitral estrangeira será reconhecida ou executada no Brasil em conformidade com os tratados internacionais, com eficácia no ordenamento interno e, na sua ausência, estritamente de acordo com os termos da Lei. Até 1996, o Brasil sujeitava as sentenças arbitrais estrangeiras ao duplo exequatur: só eram reconhecidas as sentenças homologadas pelo sistema judiciário do país de origem e pelo do Brasil, país de execução. Porém, com o advento da Lei 9.307/1996 e a ratificação da Convenção de Nova Iorque em 2002, o duplo exequatur foi dispensado69. Entretanto, para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral estrangeira ainda está sujeita à homologação do Poder Judiciário nacional. Esse controle 68 69 Manual de Arbitragem, p. 144. Arbitragem – estudos em homenagem ao Prof. Guido Silva Soares, In Memorian, p. 175-180. Fernando Cunha Silva 121 é exercido apenas com a finalidade de verificação do preenchimento de requisitos formais, como um juízo de admissibilidade, não um juízo de mérito. Tradicionalmente, e conforme disposto na Lei de Arbitragem, o Supremo Tribunal Federal possui competência para homologar as sentenças arbitrais estrangeiras. Contudo, devido à Emenda Constitucional no 45, de 2004, foi transferida a competência ao Superior Tribunal de Justiça, seguindo a tendência internacional de não deixar a homologação sob responsabilidade do órgão de cúpula do Estado70. Quanto ao procedimento, o Presidente do Superior Tribunal de Justiça examina a regularidade da peça inicial. A parte tem o prazo de 10 dias para emendar a inicial acometida de irregularidade sanável, como a falta de algum dos documentos indispensáveis mencionados no art. 37 da Lei de Arbitragem. A inobservância do prazo acarreta extinção do processo sem resolução do mérito. Caso esteja tudo em ordem, o réu será citado e terá o prazo de 15 dias para apresentar contestação, que deverá versar apenas sobre os referidos documentos do art. 37 ou arguição de matéria preliminar. Havendo ou não a contestação, deverá se manifestar o Procurador-Geral da República, que atuando como custos legis (fiscal da lei). Se não houver contestação nem impugnação pelo Ministério Público, deverá ser proferida decisão monocrática pelo próprio Presidente do Superior Tribunal de Justiça. Se houver algum tipo de impugnação, o processo deverá ser julgado pela Corte Especial, sendo o relator sorteado entre seus membros. No caso de homologação, será competente o juiz federal do local em que a obrigação deverá ser cumprida, conforme estabelecido no art. 109, X, da Constituição Federal71. As hipóteses de rejeição do pedido de homologação de sentença arbitral estrangeira encontram-se no art. 38 da Lei de arbitragem, e dependem das provas e alegações do réu. São elas: I - as partes na convenção de arbitragem eram incapazes; II - a convenção de arbitragem não era válida segundo a lei à qual as partes a submeteram, ou, na falta de indicação, em virtude da lei do país onde a sentença arbitral foi proferida; III - não foi notificado da designação do árbitro ou do procedimento de arbitragem, ou tenha sido violado o princípio do contraditório, impossibilitando a ampla defesa; IV - a sentença arbitral foi proferida fora dos limites da convenção de arbitragem, e não foi possível separar a parte excedente daquela submetida à arbitragem; V - a instituição da arbitragem não está de acordo com o compromisso arbitral ou cláusula compromissória; 70 71 Carmona. Arbitragem e Processo – um comentário à Lei nº 9.307/96, p. 436-438. Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo, p. 449-451. Importância da arbitragem para efetivação da justiça no Brasil 122 e VI - a sentença arbitral não se tenha, ainda, tornado obrigatória para as partes, tenha sido anulada, ou, ainda, tenha sido suspensa por órgão judicial do país onde a sentença arbitral for prolatada. A litispendência e coisa julgada, mesmo que em outro país, deve ser mantida pelo árbitro, que deve ignorar a causa. 4. Conclusão Diante de todo o exposto e explanado, verifica-se que a arbitragem como forma subsidiária é de grande eficiência no desafogamento judicial, que, em linhas gerais, demonstra sua ineficiência devido à grande demanda de ações que poderiam ser tratadas em câmaras arbitrais. Assim, a exemplo do modelo norte-americano, em que a grande maioria dos casos são resolvidos pela arbitragem e pela conciliação, os brasileiros, necessitam desvincular-se do velho costume da litigância como meio único de resolução conflituosa. Elegendo, cada vez mais os demais meios de resolução como preferenciais, pois são mais rápidos e por vezes com maior qualidade técnica, pois o árbitro pode conhecer da matéria com maior propriedade do que o magistrado que está conferido a diversas matérias de direito. Fernando Cunha Silva 123 5. Referências Bibliográficas CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem – Lei no 9.307/96. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Editora Atlas, 2011 FIGUEIRA Jr. Joel Dias. Arbitragem, jurisdição e execução – análise crítica da Lei 9.307/1996 de 23.09.1996. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. JESUS, Edgar A. de. Arbitragem: questionamentos e perspectivas. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2010. JOSÉ ROQUE, Sebastião. Arbitragem: a solução viável. 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Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal1 3 2 Olney Queiroz Assis Edson Saldiva Jordão Junior 4 Lucas Antzuk RESUMO O presente artigo expõe a chamada teoria da abdução do filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce – fundador da moderna ciência da semiótica – que consiste na criação de uma hipótese de explicação que fundamente um fato surpreendente resultando, desta sorte, em um fenômeno empírico – e destaca sua relação com os inquéritos policiais. Mostra que a teoria da abdução possui um aspecto operacional que pode esclarecer, associado às observações de Michael Foucault sobre a tragédia grega Édipo Rei de Sófocles, a noção de prova indiciária, prova essa tratada nos artigos 126, 134, 239, 290, parágrafo 1o°, “b”, 312, 413 e 417 do Código de Processo Penal. Palavras-chave: Teoria da abdução; inquérito policial; pragmatismo; indícios; processo penal. Artigo elaborado pelo Grupo de Estudos Avançados do Complexo Educacional Damásio de Jesus (GEA – CEDJ). Coordenador GEA-CEDJ. Advogado, Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. 3 Bacharelando em Direito - [email protected]. 4 Bacharelando em Direito - [email protected]. 1 2 Charles Sanders Peirce: theory of abduction and the evidences on the criminal process ABSTRACT This article regards the Charles S. Peirce’s theory of abduction – founder of the modern semiotic science – which consists in the creation of explanatory hypothesis that justifies a surprising fact resulting, than, in an empirical phenomena – and enforce their connections with the police investigation. Demonstrate that the theory of abduction have an operational aspect that clarifies, associated to the Michael Foucault`s observation of the Greek tragedy Oedipus the king by Sophocles, the concept of indiciary proof foreseen on the Brazilian criminal process code, articles 126, 134, 239, 290, first paragraph, “b”, 312, 413 and 417. Keywords: theory of abduction, police investigation, pragmatism, evidences, criminal process. Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 127 1. Introdução Charles Sanders Peirce (1839-1914), nascido em Cambridge e considerado por diversos historiadores da filosofia como o mais importante filósofo norte-americano, formou-se em física e matemática na Universidade de Harvard. Exerceu grande influência sobre os filósofos norte-americanos de sua época, especialmente William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952). Peirce não teve, porém, uma carreira universitária bem sucedida. De personalidade instável e complexa, além de uma vida pessoal atormentada, seus últimos anos foram marcados pela enfermidade e pela pobreza. Autor de vários escritos com contribuições para a filosofia, não encontrou editores e limitou-se a publicar artigos em revistas secundárias. Sua obra só foi reunida organicamente em 1931. Peirce foi o criador da mais importante corrente filosófica norte-americana: o pragmatismo. São inquestionáveis suas contribuições para a teoria da abdução, a teoria dos signos (semiótica) e a teoria da comunicação. Nicola Abbagnano (1979, p. 7-15) anota que o pragmatismo (Charles Peirce, William James) e o empirismo clássico (John Locke, David Hume) possuem algumas semelhanças porque ambos estão assentados na noção de experiência; diferem, no entanto, em relação à maneira como entendem essa noção. O empirismo clássico (lógica indutiva) entende experiência como experiência passada, ou seja, como um patrimônio que pode ser inventariado e sistematizado de forma total e definitiva. Já o pragmatismo (lógica abdutiva) entende experiência como abertura para o futuro, ou seja, como possibilidade de fundamentar previsão. O pragmatismo apresenta duas formas fundamentais: a) a forma metafísica, elaborada por William James, que procura constituir-se como uma teoria da verdade e da realidade; e b) a forma metodológica, elaborada por Charles S. Peirce, que concebe o pragmatismo como um método lógico que tem por objetivo a clarificação de ideias. Nesse sentido, Peirce esclarece: O pragmatismo não foi uma doutrina circunstancialmente adotada por seus autores. Foi riscado e construído arquitetonicamente. Como o engenheiro que, antes de erguer uma ponte ou um prédio, leva em conta as diferentes propriedades dos materiais; e não usa aço, pedra ou cimento que não tenham sido testados antes e os dispõem segundo processos minutados, assim também ao construir a doutrina do pragmatismo, são analisadas as propriedades de todos os conceitos indecomponíveis e seus processos de composição possível (1974, p. 12). Peirce critica o método cartesiano que, fundado na dúvida metódica, estabelece como base do conhecimento científico as ideias claras e distintas. Para Peirce, não é possível distinguir uma ideia efetivamente clara e distinta de outra que apenas parece ser e, além disso, é impossível na prática, por ato de dúvida metódica, ignorar todas as Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 128 nossas crenças, portanto, o sujeito deve incorporá-las à sua teoria do conhecimento. Segundo ele, não existe cogito puro: “Não há que duvidar que um homem agirá de acordo com sua crença tanto quanto esta tiver efeito prático” (1974, p. 18). Ao comentar a obra de Charles S. Peirce, Lênio Streck (2011, p. 193) acentua que “não podemos começar com a dúvida completa; é necessário começar com todos os preconceitos que possuímos no momento em que começamos a estudar filosofia (...) e nenhum seguidor do método cartesiano descansa enquanto não recupera as crenças que pôs de lado apenas formalmente”. Peirce, ao contrário do método cartesiano, entende que não existem ideias inatas porque o mecanismo da mente só pode transformar conhecimento, mas nunca originálo, a menos que alimentado com fatos de observação. Nas palavras de Santaella, ao expor a obra de Peirce, (2004), “há uma diferença entre ter uma intuição e se saber que ela é intuitiva”. A autora continua, “não temos o poder de discriminar entre o que vimos e o que inferimos, por exemplo, ou entre o que é um dado intuitivo e o que é um dado modificativo pelo intelecto, entre o imediato e o que é mediado”, e conclui que “mesmo que haja intuição originária, não temos meios de saber se elas são, de fato, originárias”. A clareza das ideias, como mostra Peirce, resulta da aplicação de uma máxima formulada da seguinte maneira: “Considerar os efeitos práticos que concebemos como produzidos pelo objeto de nossa concepção. A concepção destes efeitos constitui a concepção total do objeto”. Isto significa que a nossa ideia de um objeto é a ideia dos efeitos sensíveis que concebemos como desse objeto. E prosegue (1974, p. 17) “Qual é a prova de que os efeitos práticos de um conceito constituem a soma total do conceito? O argumento sobre que se apoiava a máxima que ‘crença’ consistia em estar deliberadamente preparado para dotar a fórmula crida como guia da ação. Se esta for a natureza da crença, a proposição em que se crê é uma máxima de conduta”. Paulo Serra (1996) aponta que no pragmatismo a clareza de uma ideia pode ser explicada quando se compara o pensamento à linha de uma melodia através da sucessão das nossas sensações. Nesse sentido, enquanto os sons são o imediatamente percebido, o pensamento é uma sucessão ordenada de ideias, mediadas por essas sensações e orientada para uma certa função. Essa função é a produção de uma crença, que implica a determinação de uma regra de ação ou hábito. A ação com base em uma crença produz uma nova dúvida que, por sua vez, produz um novo pensamento; assim, a crença sendo lugar de paragem, é também lugar de recomeço para o pensamento. As Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 129 diferentes crenças distinguem-se pelos diferentes modos de ação, por exemplo: se um ocidental acredita que um objeto é um garfo, utiliza-se dele para levar alimentos à boca; mas, se for um oriental (chinês) e acreditar que se trata de um ancinho, utiliza-se dele para cuidar de flores. E a reforçar o entendimento, Arthur W. Burks (1946, p. 303) destaca a seguinte passagem do filósofo norte-americano: “(...) what we think is to be interpreted in terms of what we are prepared to do (5.35)” (o que pensamos deve ser interpretado da forma como estamos preparados para fazê-lo). Com efeito, o pragmatismo é “a maneira como o conhecimento (saber racional) está relacionado com a ação humana (finalidade racional)”. Nestes termos, o pragmatismo propõe que se dirijam o pensamento e a reflexão filosófica para problemas práticos, típicos da existência cotidiana. Daí sua relação para com a ciência jurídica, que trata justamente destas questões. Enfim, a resposta lógica ao problema da máxima pragmática leva Peirce a afirmar que a questão do pragmatismo não é mais que a questão da abdução. Nesse sentido, articula sua resposta em sete conferências proferidas em Harvard, em 1903, a convite de William James, e que sintetizamos na sequência. 2. Categorias Universais Para Peirce (1974, p. 43), a filosofia tem três grandes divisões: fenomenologia, ciência normativa e metafísica. A metafísica procura compreender a realidade dos fenômenos, e a realidade pertence àquilo que ele denomina terceiridade. Segundo ele, existem três categorias universais que pertencem a todo fenômeno, umas sendo mais proeminente que a outra num aspecto do fenômeno, mas todas pertencendo a qualquer fenômeno, a saber: A Categoria-Primeiro é a ideia daquilo que é independente de algo mais. Quer dizer, é uma Qualidade de Sensação. Categoria-Segundo é a ideia daquilo que é, como segundo para algum primeiro, independente de algo mais, em particular independente de Lei, embora podendo ser conforme uma Lei. O que é dizer é Reação como um elemento do Fenômeno. Categoria-Terceiro é a ideia daquilo que faz de Terceiro, ou Médium, entre um Segundo e seu Primeiro. Quer dizer, é Representação como um elemento do Fenômeno (Peirce, 1974, p. 31). A primeira categoria (primeiridade) implica a qualidade de ver o que está diante dos olhos, como se apresenta, não substituído por qualquer interpretação. Vale dizer, quando algo se apresenta ao espírito, a primeira característica que se nota é a sua Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 130 presentidade. O presente (imediato) é o que é, nesse sentido, ensina Streck (2011, p. 194), que o primeiro deve, portanto, ser presente e imediato – fresco –, porque, se for velho, será segundo para um estado anterior. Desse modo, imagine uma consciência em que não existe nenhuma comparação, relação ou mudança. Tal consciência pode ser simples odor, por exemplo, essência de rosas; ou uma contínua dor de cabeça. Em suma, qualquer qualidade de sensação preenche a nossa descrição daquilo que é tal como é, sem relação com nenhuma outra coisa. Disso resulta que “qualidade de sensação” é a verdadeira representante da primeira categoria do imediato em sua imediatidade, do presente em sua presentidade (Peirce, 1974, p. 24). Enfim, a primeira categoria implica fenômenos singulares, independentes dos demais, completos em si mesmos e constituindo livres possibilidades de experiência, de vir a acontecer. A segunda categoria (segundidade) implica conflito, relações de duplo termo, reação em relação ao mundo. Imagine uma pessoa lançando-se com todo o seu peso contra uma porta entreaberta. Existe aqui um sentido de resistência. Não há esforço sem resistência equivalente, e a resistência implica o esforço ao qual resiste. Ação e reação são equivalentes. Assim, também acontece quando alguma coisa atinge os sentidos. A excitação produz seu efeito, e nós causamos-lhe de volta um efeito indiscernível (Peirce, 1974, p. 24). Nesse sentido, ensina Peirce (1974, p. 27): “O fenômeno da surpresa é altamente instrutivo em relação a esta categoria por causa da ênfase que empresta a um modo de consciência detectável na percepção – a consciência dupla de um ego e de um não-ego agindo diretamente um no outro. A questão é saber o que é fenômeno”. Toda a questão, continua o filósofo (1974, p. 39-40), reside em saber o que são os fatos perceptivos, dados em juízos perceptivos diretos. Juízo perceptivo é aquele cuja característica é o assentimento a um percepto. Um percepto, por outro lado, é uma imagem ou outra coisa semelhante. Vale dizer, o juízo é o ato de formar uma proposição mental combinada com sua adoção ou assentimento. O juízo perceptivo é o primeiro julgamento que a pessoa faz em relação àquilo que está perante seus sentidos. Seguese daqui que os juízos perceptivos são as primeiras premissas de todos os nossos raciocínios e que não podem ser postos em questão. A terceira categoria (terceiridade) é representação como um elemento do fenômeno, o médium ou ideia que se interpõe entre sensação (primeiridade) e reação (segundidade). Na terceira categoria estão os fenômenos de termos triplos, que implicam conexão entre Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 131 outros dois fenômenos. Nos fenômenos (terceiros) encontra-se uma continuidade ou lei, tais como as que aparecem no desenvolvimento do pensamento lógico ou em algo que seja contínuo. O signo é um exemplo de terceiridade: “algo que equivale a alguma coisa para alguém, sob certo aspecto”. Em síntese, Santaella (2004) relaciona: a primeiridade (...) com as ideias de acaso, originalidade, presentidade, imediatidade, frescor, espontaneidade, qualidade, sentimento, impressão; a secundidade, com as ideias de ação e reação, esforço e resistência, conflito, surpresa, luta, aqui e agora; (e) a terceiridade, com as ideias de generalidade, continuidade, crescimento, aprendizagem, tempo, evolução. 3. Realidade da terceiridade Para Peirce, terceiridade é sinônimo de representação e implica capacidade de previsão de futuras ocorrências. Suponha-se – diz ele – que a questão é atacada experimentalmente. Uma pedra. Coloco-a onde não existe obstáculo entra ela e o soalho, e predigo que sem o meu apoio cai ao chão. Provo que posso fazer uma predição correta. Sei que a pedra cai se eu deixar, porque a experiência me convenceu que objetos semelhantes a ela sempre caem (1974, p. 35). A experiência (a pedra cai se eu a soltar) é a prova de que a fórmula (uniformidade), que fornece uma base segura para a predição corresponde a uma realidade. Ocorre que a proposição geral que estabelece que todos os corpos sólidos caem na ausência de força ascendente ou pressão é uma fórmula de natureza representativa. Ser e ser representado são duas coisas muito diferentes. A fórmula tem natureza representativa, pertence ao domínio do ser representado. Disso decorre que aquilo que tem natureza representativa não é ipso facto real. Neste aspecto existe um grande contraste entre um objeto de reação e um objeto de representação (Peirce, 1974, p. 35). Quando digo que a proposição geral (lei da natureza) é da ordem da representação, quero dizer que se refere a experiência in futuro, que não sei se foram ou virão a ser todas experienciadas. Quando afirmo que ser é diferente de ser representado significo que o ser real consiste naquilo que nos é imposto pela experiência, não é mera questão de razão... O fato futuro não depende de representação, mas das reações experienciais que ocorram, portanto, toda proposição geral está limitada a um número finito de ocasiões nas quais pode concebivelmente ser falsificada, supondo que seja uma asserção confinada à experiência possível de seres humanos; e, consequentemente, embora possa acontecer que seja verdadeira em todos os casos, mesmo assim permanece acidental a sua verdade (Peirce, 1974, p. 35-36). Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 132 Um homem de hábitos extremamente regulares, certamente não esquecerá de dar corda ao relógio diariamente. Neste caso temos somente duas hipóteses alternativas à escolha: a) primeira: podemos supor que algum princípio ou causa opera realmente para fazê-lo dar corda ao relógio diariamente; ou b) segunda: podemos supor que é devido à mera probabilidade que as suas ações até aqui tenham sido regulares; e nesse caso, a passada regularidade não dá a mínima razão para esperar que continue no futuro. O mesmo acontece com as operações da natureza. Com irresistível uniformidade, em nossa experiência passada, pedras caíram. Duas hipóteses se abrem perante nós: a) primeira: ou a uniformidade que presidiu à queda foi devida à mera probabilidade que não fornece o mínimo de fundamento de que a próxima pedra caia; ou b) segunda: a uniformidade havida até agora é devida a algum princípio geral ativo, caso em que seria uma estranha coincidência deixar de atuar no momento em que minha predição se baseava nele. Um homem em sã consciência escolherá a última hipótese. Isso significa que existem princípios operatórios na natureza (Peirce, 1974, p. 36). Para Peirce, um princípio geral operatório no mundo real tem natureza de representação e símbolo porque o seu modus operandi é o mesmo pelo qual as palavras produzem efeitos físicos. As palavras não atuam diretamente na matéria, produzem efeitos como símbolos, portanto, sua ação é meramente lógica, ou seja, consiste num símbolo justificar outro símbolo. “Tudo isto é igualmente verdadeiro para a relação entre as leis da natureza e a matéria. A lei em si própria nada mais é que uma fórmula genérica, um símbolo. Uma coisa existente é uma coisa em reação, à qual escapa toda ideia de generalidade, e mesmo toda ideia de representação” (Peirce, 1974, p. 37-38). 4. Três espécies de excelência Segundo Peirce (1974, p. 43), a ciência normativa investiga as leis necessárias e universais da relação dos fenômenos (coisas) aos fins (verdade, justiça, beleza). São consideradas ciências normativas: a) estética: considera as coisas cujos fins encarnam qualidades de sensação; b) ética: considera as coisas cujos fins residem na ação; c) lógica: considera aquelas coisas cujos fins é representar algo. Percebe-se que essa divisão é governada pelas três categorias (sensação, ação, representação). Neste exato ponto, diz Peirce, entramos na trilha que conduz ao segredo do pragmatismo, ou seja, às relações dessas três ciências entre si. Essas relações podem ser sintetizadas da seguinte maneira: Quando instituímos um experimento para testar uma teoria, trata-se de ato voluntário que a nossa lógica, quer natural ou científica, aprova. O aprovar um ato voluntário é algo de moral e a ética é justamente o estudo dos fins da ação que estamos deliberadamente preparados para Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 133 adotar. O homem justo é aquele que controla suas paixões e as conforma aos fins que deliberadamente adota como derradeiros. Um raciocinador lógico é aquele que exerce autocontrole nas operações intelectuais, portanto, a excelência-lógica é uma espécie do moralmente-excelente. Por outro lado, um fim derradeiro de ação, deliberadamente adotado, deve ser um estado de coisa que se recomenda razoavelmente por si próprio, sem qualquer outra consideração. Deve ser um ideal admirável; excelência estética. Assim, deste ponto de vista, a excelência moral depende do excelente estético (Peirce, 1974, p. 43-44). Segundo Peirce (1974, p. 44), para seguir a máxima do pragmatismo, é necessário saber em que consiste a excelência lógica e, para isso, é preciso adquirir uma compreensão clara acerca da natureza do estético e moralmente bom. A doutrina das categorias aponta que o objeto, para ser esteticamente bom, deve possuir uma multiplicidade de partes todas organizadas de maneira a produzir uma quantidade positiva imediata e simples; além do mais, não importa a natureza dessa qualidade; pode ser que nos enoje, assuste ou incomode a ponto de roubar o gozo estético. Mesmo nesses casos, o objeto permanece estético, embora as pessoas se achem incapacitadas para contemplá-lo calmamente. Segue-se daqui que existem inúmeras variedades de qualidade estética, mas não um grau puro de excelência estética. Todavia, no instante em que um ideal estético é proposto como finalidade da ação, um imperativo categórico pronuncia-se a favor ou contra ele. Nesse sentido, conclui (1974, p. 45), o problema da ética vem a ser determinar um fim possível. A importância do assunto para o pragmatismo é bastante óbvia. Pois a significação de um símbolo consiste em como ele pode levar-nos à ação, é evidente que este ‘como’ não pode referir-se à descrição de movimentos mecânicos causados pelo símbolo, mas deve procurar referir a uma descrição da ação que tem este ou aquele fim. 4.1. Excelência lógica Peirce entende que são imperfeitas as afirmações que distinguem entre verdade lógica, que alguns acertadamente limitam aos argumentos que não prometem mais do que fazem, e verdade material que pertence às proposições, que constitui o que a veracidade almeja; supõe-se que esta última assuma um grau mais elevado de verdade. Segundo ele: Tal concepção deve ser corrigida como segue. Em primeiro lugar, o conhecimento repousa sobre juízos perceptivos; são verídicos em maior ou menor Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 134 grau conforme o esforço realizado, mas não tem sentido dizer que possuem outra verdade além da veracidade, uma vez que um juízo perceptivo não pode ser repetido. No máximo um juízo pode ser ligado a outros, de forma a permitir uma teoria sobre os fatos. Assim julgo que vejo uma superfície branca e limpa. Um instante após duvido que estivesse realmente limpa, e olho de novo. Se este segundo juízo (mais verídico) ainda asserta que vejo uma superfície limpa, a teoria dos fatos será mais simples do que – na segunda olhada – se eu achar que está suja. Mesmo neste caso não tenho o direito de afirmar que o primeiro percepto era o de uma superfície suja. Qualquer outro juízo que eu possa fazer é conclusão de inferências baseadas em juízos perceptivos; e não havendo disputa possível sobre estes, a verdade do juízo consiste na correção lógica das inferências. Em consequência, a única diferença entre verdade material e a correção lógica da argumentação é que esta refere-se a uma única linha de argumento e aquela a todos os argumentos que possam ter uma proposição dada ou sua negação como conclusão (1974, p. 46-47). Disso resulta que o bem lógico é a excelência do argumento, ou seja, o bem mais fundamental consiste na correção e peso do argumento; na força exata pretendida; força essa medida pelo avanço que provoca em nosso conhecimento. Todavia resta a pergunta: Em que consiste então a correção de um argumento? Para responder a esta pergunta Peirce retorna às três espécies de argumentos dos Primeiros Analíticos de Aristóteles. 5. Três tipos de raciocínio Para Peirce (1974, p. 47-52), as três espécies de raciocínios ou argumentos são: dedução, indução e abdução (apagogé). A dedução é concebida como uma inferência necessária que extrai conclusão, frisese, já contida nas premissas. Na dedução, diz Peirce, partimos de um estado de coisas hipotético definido abstratamente por certas características. Entre as características a que não se dá atenção neste tipo de argumento está a conformidade do estado de coisas com o mundo exterior. A inferência é válida se somente existe uma relação entre o estado de coisa suposto nas premissas e o da conclusão. A indução é concebida como um processo de investigação experimental. Experimento é uma pergunta posta à Natureza. Como qualquer interrogatório, baseia-se numa suposição. Se esta for correta, deve-se esperar algum resultado em determinadas circunstâncias. A questão é: Será este o resultado? Se a Natureza responde “Não”, o experimentador já ganha um valioso conhecimento. Se a Natureza responde “Sim”, as ideias do experimento permanecem como eram, só que um pouco mais enraizadas. Indução é fazer o teste experimental de uma teoria. A sua justificação é que embora a conclusão num certo estágio de investigação possa ser mais ou menos errônea, a aplicação seguinte do mesmo método deve corrigir o erro. A Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 135 indução determina o valor de uma quantidade. Acompanha uma teoria e mede o grau de concordância dessa teoria com os fatos (Peirce, 1974, p. 47). Abdução é o processo para formar hipóteses explicativas. Indica o primeiro momento do processo indutivo, o da escolha de uma hipótese que possa servir para explicar determinados fatos empíricos. Abdução é a única operação lógica a introduzir ideias novas; pois que a indução não faz mais que determinar um valor, e a dedução envolve apenas as consequências necessárias de uma pura hipótese. A indução não poderá nunca dar origem a uma nova ideia. Nem a dedução. Todas as ideias da ciência vêm através da Abdução. Abdução consiste em estudar fatos e inventar uma teoria para explicá-los. Sua única justificação é que, se for para entender as coisas deve fazer-se assim (Peirce, 1974, p. 47). Enfim, Dedução prova que algo deve ser; Indução mostra que algo atualmente é operatório; Abdução faz uma mera sugestão de que algo pode ser. Sua única justificação é que da sugestão a dedução pode tirar uma predição testável pela indução, e que para apreender ou compreender os fenômenos só a abdução pode funcionar como método. Não se pode fornecer nenhuma razão para justificá-la; mas também não precisa, pois só oferece sugestões. Em síntese, ambas, dedução e indução, a situação posta já é certa, não há necessidade de comprovação a posteriori, todavia, em se tratando da abdução, trata-se apenas de formulação de uma hipótese a ser comprovada. 6. Teoria da abdução Para Peirce, a questão do pragmatismo é a questão da abdução. Segundo ele, as proposições que afiam a lâmina da máxima pragmática são as seguintes: Primeira: Não há nada no intelecto que não tenha passado pelos sentidos (Nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu). Na concepção peirceana, este princípio aristotélico significa que nenhuma ideia se encontra no intelecto sem ter passado primeiro por um juízo perceptivo, considerado a fonte do conhecimento. Segundo Peirce (1974, p. 57): “Por intellecttus (intelecto) entendo o significado da representação e qualquer espécie de cognição, virtual, simbólica ou outra. No que toca ao outro termo, in sensu (sentido), que uso na acepção de um juízo perceptivo, é o ponto de partida ou premissa primeira de todo o pensamento crítico e controlado”. Essa concepção peirceana coloca o seguinte problema: sendo os juízos perceptivos juízos particulares, como se passa deles para os conceitos e juízos universais? Esse problema o leva à segunda proposição afiadora. Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 136 Segunda: Os juízos perceptivos contêm elementos gerais, e desde modo proposições universais são deles dedutíveis. Embora os juízos perceptivos sejam singulares em relação ao sujeito (Esta mesa é...) eles não deixam de envolver a generalidade em relação ao predicado (...marrom), possibilitando, assim, a dedução de proposições gerais. A generalidade é, portanto, introduzida nos juízos perceptivos pela abdução. Vimos que a dedução prova que algo deve ser (é uma inferência necessária que extrai uma conclusão contida em certas premissas) e a indução mostra que algo é (é uma inferência experimental que não consiste em descobrir, mas em confirmar uma teoria através da experimentação). Esses dois tipos de raciocínio não criam algo novo. A criação, tanto das premissas que fundamentam a dedução quanto das teorias que fundamentam a indução, reside na abdução. A abdução sugere que algo pode ser, portanto, a abdução é uma inferência hipotética que Peirce considera o verdadeiro método para a criação de novas hipóteses explicativas. Muitos antes – diz ele – de eu ter classificado a abdução como inferência, já os lógicos tinham reconhecido que a operação de adotar uma hipótese explicativa estava sujeita a certas condições. A saber, a hipótese não pode ser admitida, mesmo como hipótese, a não ser que dê conta dos fatos, pelo menos alguns deles. A forma da inferência (abdutiva), portanto, é esta: O fato surpreendente C é observado; Ora, se A fosse verdade, C seria um fato natural, Assim, há razão para suspeitar que A é verdadeiro (1974, p. 60). Resta ainda a resposta sobre a seguinte pergunta: como entra, através da abdução, a generalidade nos juízos perceptivos? Essa questão conduz-nos à terceira proposição. Terceira: A terceira proposição afirma que a inferência abdutiva transformase no juízo perceptivo sem que haja uma linha nítida de demarcação entre os dois; ou, por outras palavras, as nossas primeiras premissas, os juízos perceptivos, devem ser considerados casos extremos de inferências abdutivas, diferindo delas por se encontrarem absolutamente fora de análise. A inspiração abdutiva acontece em nós num lampejo. É um ato de insight, embora extremamente falível. É verdade que os elementos da hipótese estavam antes em nossa mente; mas a ideia de associar o que nunca antes pensáramos em associar que faz lampejar a inspiração abdutiva em nós (...) Encarado assim, o juízo perceptivo é o resultado de um processo não plenamente consciente para poder ser controlado. Se tivéssemos que submeter este processo subconsciente à análise lógica, veríamos que ele desemboca numa inferência abdutiva baseada por seu turno em outra inferência abdutiva, e assim ad infinitum (1974, p. 57-58). Segundo Peirce, a realidade mostra que não é preciso ir além das observações da vida de todos os dias para encontrar diversos exemplos nos quais a percepção é abdutiva e interpretativa. Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 137 Paulo Serra anota o seguinte exemplo de juízo perceptivo em um dia de sol: “Está a cair água do telhado”. A partir deste juízo perceptivo, várias inferências abdutivas são possíveis, por exemplo: “Alguém está a jogar água no telhado” ou “A neve acumulada no telhado está a derreter”. Enquanto a inferência abdutiva admite sempre a possibilidade de ser negada (para afirmarmos uma outra), no caso dos juízos perceptivos não nos é possível conceber a sua negação. Nas palavras de Peirce (1974, p. 60): “Não somente acho que todo elemento geral da hipótese é dado na percepção, como até acho que qualquer forma geral de associar conceitos é fornecida na percepção. Para decidir se assim é, impõe-se ter uma noção clara da diferença entre juízo abdutivo e perceptivo. O único sintoma para distingui-los é que não podemos imaginar o que seria negar um juízo perceptivo. Uma sugestão abdutiva, contudo, é algo cuja verdade pode ser questionada ou até negada”. 6.1. Lógica da abdução Diante da infinidade de hipóteses explicativas para determinado fenômeno, como distinguir as admissíveis daquelas que não o são? Para Peirce só são admissíveis as hipóteses que possam produzir efeitos práticos na conduta daquele que as formulou. Nesse sentido explica (Peirce, 1974, p. 62), O problema do pragmatismo é o problema da lógica da abdução. Quer dizer, o pragmatismo propõe uma certa máxima que torna supérflua qualquer regra para admissibilidade de hipóteses para figurarem como hipóteses, isto é, explicações de fenômenos tidas como sugestões esperançosas; isto é tudo o que a máxima do pragmatismo realmente pretende, pelo menos no domínio da lógica, e não entendida como proposição da psicologia. A máxima do pragmatismo afirma que uma determinada concepção difere de outra na medida em que possa modificar diferentemente nossa conduta prática. A máxima do pragmatismo, se verdadeira, cobre plenamente toda a lógica da abdução. E prossegue: Admitindo que a questão do pragmatismo seja a questão da lógica da abdução, vamos considerar sob aquela forma. O que é uma boa abdução? Que deve ser uma hipótese explicativa para ser digna de figurar como hipótese? Deve explicar certos fatos, é óbvio. Mas que outras condições deve preencher para ser boa? A questão da ‘excelência’ de alguma coisa está em saber se essa coisa preenche o seu fim. Em que consiste, então, o fim de uma hipótese explicativa: Depois de submeter-se ao teste do experimento, consiste em remover toda surpresa e chegar ao estabelecimento de um hábito positivo de expectativa que não venha a ser frustrado. Qualquer hipótese, pois, é admissível na ausência de razões em contrário, desde que suscetível de verificação experimental, e Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 138 somente na medida em que tal verificação for possível. Tal é aproximadamente a doutrina do pragmatismo (Peirce, 1974, p. 63). A abdução consiste, assim, na adoção provisória de uma hipótese em virtude de serem passíveis de verificação todas as possíveis consequências, de tal modo que se pode esperar que a persistência na aplicação do mesmo método acabe por revelar seu desacordo com os fatos, se desacordo houver. Segundo Peirce (1974, p. 63), se o pragmatismo é a doutrina segundo a qual toda concepção é a concepção de seus efeitos práticos, então tal concepção vai além do prático. Permite todos os voos da imaginação, desde que alimentem a possibilidade de um efeito prático; e, desse modo, muitas hipóteses que à primeira vista seriam excluídas pela máxima pragmática não o são na realidade. Enfim, o pragmatismo envolve outras implicações que Peirce procura esclarecer na sua teoria do signo, à qual fazemos uma breve referência. 7. Teoria do signo Para Peirce, o objetivo do raciocínio é descobrir, a partir daquilo que já conhecemos, alguma coisa que ainda não conhecemos. Vale dizer, não é possível qualquer ato de cognição que não seja determinado por outra cognição prévia, na medida em que todo pensamento implica interpretação (ou representação) de alguma coisa por outra coisa. Em suma, nenhum pensamento (ou conceito) é capaz de interpretar a si mesmo, portanto, a interpretação somente pode realizar-se através do signo. O centro da teoria do signo reside na definição do que seja signo (representamen) e na distinção que estabelece entre os diversos tipos de signo. O signo, conforme anotamos, é entendido como “algo que equivale a alguma coisa para alguém, sob certo aspecto”. Nenhum signo pode ser literalmente aquilo que significa. Uma nuvem, por exemplo, é signo de chuva, ela não é idêntica à própria chuva, mas tão-somente a indica. O mesmo ocorre com a palavra “chuva”; ela também é apenas um signo de chuva, com a qual não se identifica. Da mesma forma, pensamento algum pode ser literalmente aquilo que significa. Em suma, a ideia ou pensamento implica três coisas: um objeto para a interpretação, um intérprete do objeto e a interpretação propriamente dita. As observações acima permitem identificar, na tríplice ralação que é o signo, três elementos: a) o signo em si (representamen): é aquilo que representa; b) o objeto (algo): é aquilo que é representado; c) o interpretante (imagem mental): é o signo criado na mente de alguém (interprete) pelo representamen. Um exemplo: se alguém quiser sentar-se e disser: “Passa-me a cadeira”, neste caso “cadeira” é tida como “objeto para sentar”, e não, por exemplo, como “objeto decorativo”. Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 139 Segundo Peirce (1974, p. 33-34), quando se toma qualquer classe cuja ideia seja representação, o desenvolvimento dessa ideia resulta numa tricotomia. Nesse sentido, os signos podem ser classificados em três tricotomias (signo em si, interpretante, objeto) que indicam nove categorias, a saber: O signo em si pode ser: a) qualisigno (tone): indica uma qualidade que é um signo, por exemplo: a cor preta pode indicar luto; b) sinsigno (token): indica uma coisa ou um evento singular tomado como signo, por exemplo: um cata-vento; c) legisigno (type): indica uma convenção ou lei estabelecida por seres humanos, por exemplo: as letras do alfabeto, os signos matemáticos. O signo em relação com o interpretante pode ser: a) termo (rema): é um signo que, para o seu interpretante, é um signo de possibilidade qualitativa, ou seja, é entendido como representando esta e aquela espécie de objeto possível, por exemplo: um termo simples (Sócrates), uma descrição (alto); b) proposição (decisigno): é um signo que, para seu interpretante, é um signo de existência real, por exemplo: “Sócrates é mortal”; c) argumento: é um signo que, para seu interpretante, é signo de lei (um raciocínio complexo), por exemplo: um silogismo. Conforme Peirce, um termo (“Pai”) é uma proposição (“Se pai, então alguém que é filho deste pai”) e essa é uma argumentação (“Todos os pais têm ou tiveram filhos; este homem é pai; então este homem tem ou teve filho”). O signo em relação com o objeto pode ser: a) ícone: é um signo que se refere ao objeto que denota apenas em virtude dos seus caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui quer um tal objeto realmente exista ou não, por exemplo: qualquer coisa (fotografia, desenho, fórmulas, imagens mentais) é ícone de qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como um seu signo; b) índice: é um signo que se refere a um objeto que denota em virtude de ser realmente afetado por esse objeto, funda-se não na semelhança, como o ícone, mas na conexão física com o objeto, por exemplo: fumaça como sinal de fogo, dedo apontado para um objeto, pronome (este) referido a um objeto, etc.; c) símbolo: é um signo que se refere ao objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma associação de ideias gerais que opera no sentido de fazer com que o símbolo seja interpretado referindo-se àquele objeto, por exemplo: todas as palavras, frases e outros signos convencionais. Peirce entende que o signo em relação ao objeto é a mais importante divisão dos signos, daí a necessidade de especificá-la um pouco mais. O ícone constitui um tipo de signo em que o significado e o significante apresentam uma semelhança de fato (exemplo: um desenho de um animal significa o animal simplesmente porque se parece com ele). Um índice é um signo que não se assemelha ao objeto significado, mas indica-o casualmente, é um sintoma dele porque indica uma contiguidade entre os dois (exemplo: Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 140 um furo de bala é o índice de um tiro, como a fumaça é índice de fogo). O símbolo opera segundo uma contiguidade instituída, ou seja, depende da adoção de uma regra de uso (exemplo: as bandeiras constituem símbolos das nações; entre as bandeiras e as nações não há qualquer relação causal necessária, trata-se apenas de convenção). A linguagem usual, falada e escrita, é de natureza simbólica, portanto, convencional. Como o signo envolve relações com três coisas (o próprio signo, o interpretante e o objeto), a Semiótica tem três ramos: a) gramática (sintaxe): trata da relação formal dos signos uns com os outros; b) lógica (semântica): trata da relação entre os signos e os objetos a que se aplicam; c) retórica (pragmática): trata da relação entre os signos e os intérpretes. Esses três ramos constituem os três grandes domínios da semiótica, são também identificados com as três dimensões da linguagem: sintaxe, semântica e pragmática. A noção de símbolo alocado nas dimensões da linguagem tem sido amplamente utilizado pelos teóricos do direito, especificamente na disciplina denominada hermenêutica jurídica. 7.1. Semiótica (signo) e lógica (abdução) A teoria da abdução substitui a noção de equivalência (signo-referente ou significante-significado) pela noção de implicação (um signo é algo através do qual conhecemos algo mais). Vale dizer, o signo é um “processo de mediação” do signo com o objeto que produz o interpretante, que servirá como novo signo. Esse processo é infinito e se designa semiose. Infinito porque a produção de um interpretante é uma representação (um novo signo), que produzirá um novo interpretante e assim sucessivamente, numa cadeia interminável. Se o signo fosse uma mera relação de equivalência, a sua decodificação seria um processo dedutivo e não abdutivo. A abdução também é usada para interpretar indícios, vestígios, sintomas, etc. No entanto, essa interpretação (como qualquer hipótese abdutiva) pode falhar, tendo em vista que representa apenas o propósito ou tentativa de explicar um fato surpreendente. Um exemplo clássico de abdução no domínio dos signos naturais pode ser apresentado da seguinte maneira: Kepler verifica que a órbita de Marte passa pelos pontos X e Y (fato surpreendente C); mas, se a órbita de Marte fosse elíptica (hipótese A), o fato C seria natural; donde, há razão para supor que A seja verdadeira. Verificada a hipótese, alarga-se a abdução aos demais planetas. O comportamento de Marte tornase signo dos outros planetas. Esse exemplo mostra que todo signo, mesmo que natural, implica a descoberta (invenção) de uma regra e, como tal, é de natureza abdutiva ou Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 141 interpretativa. A condição do signo é, assim, não apenas a da substituição e equivalência, mas também a da interpretação, em que o interpretante não se limita a traduzir o objeto imediato (conteúdo do signo), mas alarga a compreensão. A abdução parte sempre de um resultado (fato surpreendente) para uma regra (hipótese explicativa), funcionando o primeiro como signo da segunda. Toda abdução envolve um ato de interpretação (semiose), de atribuição de significado, que não tem o rigor formal da dedução nem o caráter de conformação experimental da indução. Essa dupla implicação entre signo e abdução esclarece a identificação entre semiótica (signo) e lógica (abdução). Trata-se, portanto, de uma lógica da descoberta ou da verdade procurada. Por tudo isso, é preciso ter em conta que o pragmatismo filosófico veda a elaboração de abduções que não possuam a mínima possibilidade de serem verificadas, ou, partindo de indícios mínimos, proponham hipóteses explicativas fantásticas ou fantasiosas. Com efeito, as abduções percebidas a partir de indícios que não são verificáveis incorrem em excessos interpretativos. A boa abdução, diz Peirce, deve ter uma hipótese explicativa capaz de explicar certos fatos e remover toda surpresa, portanto, toda hipótese explicativa é boa desde que suscetível de verificação. Além disso, o pragmatismo filosófico dedica especial atenção à relação entre os signos e seus utilizadores. O pragmatismo compreendeu para além das dimensões sintática e semântica, para uma dimensão contextual ou pragmática. O signo não é independente da sua utilização, portanto, há sempre a possibilidade da participação da ideologia na interpretação (uso) dos signos. 8. Pragmatismo e decisão Relembremos que o pragmatismo é um método lógico que tem por objetivo a clarificação de ideias. Nessa trilha considera em primeiro plano a realidade tal como se apresenta aos sentidos, para em seguida formular juízo perceptivo que é o primeiro julgamento que a pessoa faz em relação àquilo que está perante seus sentidos. O juízo perceptivo é, portanto, o ponto de partida ou premissa primeira de todo pensamento. Em seguida, processa-se a representação, que possibilita conexões entre fenômenos, numa continuidade na qual um signo justifica outro signo. Daí a máxima afiadora segundo a qual não há nada na representação (intelecto) que não tenha passado pelos juízos perceptivos (sentidos). O juízo perceptivo é o resultado de um processo que desemboca numa inferência abdutiva. Abdução é o processo de criação e escolha de hipóteses explicativas para explicar fatos surpreendentes. A abdução sugere que algo pode ser, portanto, trata-se apenas de Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 142 uma inferência hipotética. A hipótese não pode ser admitida se não der conta de explicar o fato. O fim da hipótese explicativa, depois de submeter-se ao teste do experimento, consiste em remover toda surpresa e chegar ao estabelecimento de um hábito positivo de expectativa que não venha a ser frustrado. O signo estabelece um “processo de mediação” do signo em si (representamen) com o objeto (algo) que produz o interpretante (imagem mental). Esse processo é infinito e se designa semiose. Infinito porque a produção de um interpretante é uma representação (um novo signo), que produzirá um novo interpretante e assim sucessivamente, numa cadeia interminável. O índice é um signo que indica a relação objetiva entre o signo e seu objeto, por exemplo: um furo de bala é o índice de um tiro, como a fumaça é índice de fogo, como o apito do trem é índice de sua chegada à estação, etc. Em virtude dessa relação, a abdução também é usada para interpretar indícios, vestígios, sintomas, etc. No entanto, essa interpretação (como qualquer hipótese abdutiva) pode falhar. Enfim, toda abdução envolve um ato de interpretação (semiose), de atribuição de significado, que não tem o rigor formal da dedução nem o caráter de conformação experimental da indução. Essa dupla implicação entre signo e abdução esclarece a identificação entre semiótica (signo) e lógica (abdução). A lógica da abdução é uma lógica da descoberta, motivo pelo qual é amplamente utilizada nos inquéritos policiais que pretendem estabelecer uma “verdade” a partir de indícios. Nesse sentido, remontemos ao caso do assassinato e esquartejamento do empresário Marcos Matsunaga (Caso Yoki), cujo representante do Ministério Público de São Paulo, ao constatar que o laudo da perícia apontava que o esquartejamento do corpo da vítima apresentava diferentes técnicas de cortes (fato surpreendente), estabeleceu a hipótese explicativa segundo a qual a ré teria tido ajuda no esquartejamento e solicitou novas investigações. Na forma da inferência abdutiva: “O fato surpreendente C (cortes com técnicas diferentes) é observado. Ora, se A fosse verdade (mais de uma pessoa participou do esquartejamento), C seria um fato natural. Assim, há razão para suspeitar que A é verdadeiro”. Não se pode perder de vista, porém, que o Promotor está apenas sugerindo uma hipótese, uma ideia possível, um tipo de insight, apenas provável. E não é por outro motivo, senão que para reforçar – por meio de novos indícios – o entendimento (hipótese explicativa) que solicitou novas investigações. Em um inquérito, os indícios são peças que se vão juntando para formar o mosaico – e, consequentemente, chegar a uma verdade –, tal como anota Michel Foucault (A Verdade e as Formas Jurídicas, 2009, p. 31) sobre o desvendamento do assassinato de Laio e a confirmação da profecia na tragédia Édipo Rei de Sófocles: “A tragédia de Édipo Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 143 é, portanto, a história de uma pesquisa de verdade; é um procedimento de pesquisa da verdade que obedece exatamente às práticas judiciárias gregas dessa época” (Grifo nosso). Para Foucault, a prática jurídica grega da época era uma maneira singular de produzir a verdade, não se passa pela testemunha, mas por uma espécie de jogo, de prova. A esse respeito anota Foucault: Eis a velha e bastante arcaica prova da verdade em que esta é estabelecida judiciariamente, não por uma constatação, uma testemunha, um inquérito ou uma inquisição, mas por um jogo de prova. A prova é característica da sociedade grega arcaica.” (Foucault, 2009, p. 33) Esse mecanismo da verdade obedece inicialmente uma lei, uma espécie de “pura forma”, que poderíamos chamar de lei das metades. É por metades que a descoberta da verdade procede em Édipo. Senão, vejamos. Como sabido, após uma grande peste na cidade, o Rei Édipo, é chamado para tomar providências. Diante dessa situação, este consulta o deus de Delfos (rei Apolo), que lhe diz apenas que “o país está atingido por uma conspurcação”. Entretanto, esta afirmação necessita de um complemento, isto é, que conspurcação se trata? Esta resposta é obtida de uma outra maneira, perguntando, desta vez, para Creonte, que responde: “o que causou a conspurcação foi um assassinato”. Ainda na esteira das metades, que se ajustam e se encaixam para se chegar à verdade, vêm à tona – devido à informação de se tratar de assassinato – duas novas questões, quais sejam, quem foi morto e quem matou. A primeira foi solvida por Apolo, ou seja, Laio é que foi morto. Entretanto, Apolo se recusa a responder à segunda questão. Assim, foi chamado o adivinho Tirésias que, quando indagado por Édipo sobre esse último problema, enuncia: “prometeste banir aquele que tivesse matado; ordeno que cumpras ter voto e expulses a ti mesmo”. Desde a segunda cena, temos toda a verdade, mas na forma prescritiva e profética. A essa verdade que é, de certa forma, completa falta a dimensão do presente, o testemunho do que realmente se passou. Verifica-se, pois, na tragédia, que passado e presente também são dados através de um jogo de palavras. Primeiro, é preciso estabelecer quem matou Laio, fato que se dá em decorrência de dois testemunhos. Pelo jogo de duas metades que se completam, a lembrança de Jocasta e a lembrança de Édipo, temos a verdade do assassinato de Laio. Contudo, isto é somente a metade da história de Édipo, uma vez que este não é apenas aquele que matou o rei Laio, mas também quem matou o próprio pai e casou com a própria mãe. Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 144 Esta segunda metade ainda está incompleta, pese os testemunhos de Jocasta e de Édipo. Completar-se-á através de dois testemunhos diferentes: o primeiro, de um escravo vindo de Corinto que anuncia a Édipo sobre a morte do rei Pólibio e diz ainda para Édipo que este não era seu pai; o segundo, de outro escravo, que fora quem entregou Édipo, ainda criança, a Pólibio. Desse modo, “sabemos que Édipo era filho de Laio e Jocasta; que ele foi dado a Políbio; que foi ele, pensando ser filho de Políbio e voltando, para escapar da profecia, a Tebas, que ele não sabia que era sua pátria, que matou, no entroncamento de três caminhos, o rei Laio, seu verdadeiro pai”. O ciclo se fecha por uma série de metades que se encaixam umas às outras e reconstroem o perfil total da história. Os mecanismos de enunciado da verdade mudam, pois o que havia sido dito em forma de profecia no início da peça vai ser redito sob a forma de testemunho. Nota-se que a construção da verdade em toda a tragédia grega de Édipo Rei se deu mediante um processo abdutivo. Daí que sua análise é importante. Cada constatação feita diz respeito a um indício, o qual precisara ser provado, o que foi feito confrontando e ajustando todas as provas obtidas. 8.1. Indício, prova e a lógica abdutiva “Todas as vezes que um individuo apparece como autor de um facto, que é, por força de lei, de consequencias afflictivas, e que se trata de lhe fazer a applicação devida, a condenação repousa sobre a certeza dos factos, sobre a convicção que se gera na consciencia do juiz. A somma dos motivos geradores dessa certeza chama-se a prova (...)” (Mittermaier, 1879, p. 71). Conforme André Lenart (2008), o direito penal brasileiro, especificamente o Código de Processo Penal de 1941, confere à palavra indício três significados distintos: a) como meio de prova ou prova indiciária (CPP, art. 239); b) como suspeita de cometimento de um crime ou início de prova (CPP, art. 126, 134, 312, 413, 417); c) como sinônimo para indicação de algo (CPP, art. 290, parágrafo 1º, “b”). Quando usada para indicar suspeita, a palavra indícios vem acompanhada dos adjetivos suficiente ou veemente. Nesse sentido, a suspeita se baseia num juízo de forte ou elevada probabilidade. Por outro lado, como meio de prova, Claus Roxin define indício como: Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 145 Fatos que permitem uma conclusão diretamente sobre um fato principal. Assim, por exemplo, o fato de suspeito de homicídio ter proferido, antes do óbito de X, ameaças de morte diretamente contra ele, ou depois do fato ter removido de suas calças marcas de sangue, ou que o suspeito de fraude contra o seguro tenha adquirido gasolina e elevado o valor do seguro. De igual sorte, Urs Kindhauser afirma que fatos indiciários ou indícios “são fatos que permitem uma conclusão sobre um fato principal por meio de uma regra de experiência”. Kindhauser, ainda, distingue série de indícios e cadeia de indícios, duas formas empíricas de seu aparecimento para efeitos probatórios. Na primeira, há vários indícios dependentes uns dos outros; enquanto na segunda, os indícios são independentes entre si. Em ambas as hipóteses, a prova indiciária é hábil à inferência (Lenart, p. 2008). Portanto, como anota Roxin, a finalidade do processo criminal consiste em provar, e provar não é senão “propiciar ao juiz a convicção sobre a existência de um fato”, daí que “a convicção do juiz pode ser fundamentada também por prova indiciária” (Lenart, p. 2008). Exposto o conceito de indícios, assim como seu uso com a finalidade de provar algo a doutrina brasileira analisa as noções de indução e dedução como formas de construção do raciocínio perante o processo. Para Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 542-543), indução: É o raciocínio no qual de dados singulares ou parciais suficientemente enumerados se infere uma verdade universal. Vale dizer, o raciocínio utilizado pelo magistrado, utilizando os indícios para chegar a uma conclusão qualquer no processo, é realmente indutivo. A dedução é um raciocínio mais simples, que não permite a ampliação do conhecimento, mas estabelece a conjunção do que já é conhecido, afirmando, pois, a noção que se tem de algo. A indução faz crescer o conhecimento do ser humano, unindo-se quadros parciais para formar um quadro mais amplo (...). (...) Dessa forma, ao pronunciar uma sentença, o julgador leva em conta tanto a indução quanto a dedução, a intuição e o silogismo. Quanto ao processo indutivo, ele seleciona os dados singulares interessantes ao seu conceito de justo, conforme sua experiência de vida e seus valores, determinando a formação de um raciocínio próprio. Ao analisar o art. 239 do CPP, Nucci (2011, p. 544 - 545) ainda expõe que indício “é somente subordinado a prova, porque não pode subsistir sem uma premissa, que é a circunstância indiciante, ou seja, uma circunstância provada; e o valor crítico do indício está em relação direta com o valor intrínseco da circunstância indiciante. Quando esteja essa bem estabelecida, pode o indício adquirir uma importância predominante e decisiva no juízo (...)”. Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 146 E conclui, “(...) em síntese, o indício é um fato provado e secundário (circunstância) que somente se torna útil para a construção do conjunto probatório ao ser usado o processo lógico da indução”. Os arts. 126, 134, 312, 413, 417 do CPP, suscitam comentários semelhantes quanto às noções de indícios que abrigam. A esse respeito, o autor se posiciona da seguinte maneira (Nucci 2011, p. 665): Indícios suficientes de autoria: trata se da suspeita fundada de que o indiciado ou réu é o autor da infração penal. Não é exigida prova plena da culpa, pois isso é inviável meramente cautelar, muito antes do julgamento do mérito. (...) Indício, é prova indireta, como se pode ver no disposto no art. 239, permitindo que através do conhecimento de um fato, o juiz atinja, por indução, o conhecimento de outro de maior amplitude. (...) A lei utiliza a expressão “suficiente” para demonstrar que não é qualquer indício demonstrador da autoria, mas aquele que se apresenta convincente, sólido (...). Vê-se, portanto, reiterada a utilização (indevida) da dedução e da indução como forma de raciocínio usada para se chegar a um convencimento. Ao passo que, como anota Peirce, é justamente o processo abdutivo aquele que permite atingir tal escopo. Processo esse, não enxergado pela doutrina brasileira em Aristóteles. Conforme já assinalado, a dedução prova que algo deve ser (é uma inferência necessária que extrai uma conclusão contida em certas premissas) e a indução mostra que algo é (é uma inferência experimental que não consiste em descobrir, mas em confirmar uma teoria através da experimentação). A criação, assim, tanto das premissas que fundamentam a dedução quanto das teorias que fundamentam a indução, reside na abdução, posto que esta sugere que algo pode ser, é uma inferência hipotética que Peirce considera o verdadeiro método para a criação de novas hipóteses explicativas. Por tais razões, não há falar nos processos dedutivo ou indutivo da maneira como estão sendo utilizados pela doutrina. O verdadeiro método, como coloca Peirce, é o abdutivo. No caso, é a mesma conclusão tirada a partir da literatura, dentro da qual, escritores como Sir Arthur Conan Doyle, Agatha Christie e Georges Simenon criam seus notáveis personagens, Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Miss Marple e Comissário Maigret, descrevendo os mais brilhantes processos abdutivos em meio às investigações, referindo-se à abdução com os infelizes termos criticados. Olney Queiroz Assis / Edson Saldiva Jordão Junior / Lucas Antzuk 147 Assim, a lógica da abdução tem fundamental importância em se tratando de inquéritos policiais e investigações, sendo possível notá-la amplamente no desenrolar desses processos. Ao remontar à tragédia de Édipo Rei, o conjunto de indícios que foi capaz de estabelecer a verdade, qual seja, Édipo matou o próprio pai e casou com a própria mãe, foi minuciosamente comprovado. A hipótese explicativa do caos é o cometimento de dois crimes, parricídio e o incesto, sendo que as provas desses, quando combinadas, formaram um mosaico com a verdade, como um inquérito. Isso mostra uma mudança no direito grego, ou seja, a introdução do inquérito como mecanismo de busca da verdade. Inquérito esse que vem até hoje na sociedade, fundado na lógica da abdução. É alvitrante, no entanto, a referência trivial dos termos dedução e indução e traduz inaceitável gesto de desprezo pela teoria de Charles Sanders Peirce, que deve ser colmatado através do estudo de sua obra. Charles Sanders Peirce: teoria da abdução e a prova indiciária no processo penal 148 9. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Vol. XIII. Lisboa: Editorial Presença, 1979. ____________________. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ASSIS, Olney Queiroz, KUMPEL, Vitor Frederico e ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. Manual de Sociologia Geral e Jurídica. São Paulo: Lex Editora, 2010. BURKS, Arthur W. Peirce’s Theory of Abduction. Philosophy of Science, Vol. 13, nº 4, 1946. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/185210. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 1988. DOYLE, Sir Arthur Conan. Um Estudo em Vermelho. Coleção Sherlock Holmes. Editora Rideel, 2001. ECO, Umberto. 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A partir desta problemática, o artigo desenvolve e analisa a trilha evolutiva do direito eleitoral do Mercosul, bem como do processo de integração destacando não só normas domésticas dos Estados-partes do Tratado, mas também as fases do processo de integração, o conceito de cidadania, governança regional, cooperação internacional, processo eleitoral com comentários essenciais acerca da teoria geral do direito eleitoral, dentre outros institutos relevantes para a abordagem substancial do tema. Palavras-chave: Mercosul; ParlaSul; Integração; Direito Eleitoral Internacional; Direito Eleitoral Comunitário. George Augusto Niaradi é Advogado; Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo – USP e Pós-Doutor em Direito Natural pela Università della Santa Croce, Roma, Itália; Presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB/SP. 2 Marco Antonio da Silva é Advogado; Bacharel e Mestrando (CAPES) em Direito pela Universidade Católica de Santos – UNISANTOS; Pós-Graduando pela Escola Judiciária Eleitoral Paulista – EJEP; Secretário Especial de Assuntos Jurídicos da Comissão Executiva Estadual do Partido Socialista Brasileiro – PSB de São Paulo; Membro da Comissão de Estudos Eleitorais e Valorização do Voto da OAB/SP. 1 Parlamento del Mercosur: las perspectivas para la creación del derecho electoral de la comunidad RESUMEN Este artículo se centra en la constitución del Parlamento del Mercosur y la construcción gradual de un derecho electoral de la Comunidad entre los Estados Partes en el Tratado de Asunción sobre la base de la integración de los pueblos latinoamericanos. A partir de este problema, el trabajo se desarrolla y analiza la trayectoria evolutiva del derecho electoral del Mercosur, así como el proceso de integración destacando no sólo la legislación interna de los Estados Partes en el Tratado, sino también las fases del proceso de integración, el concepto de ciudadanía , el gobierno regional, la cooperación internacional, el proceso electoral fundamental con comentarios sobre la teoría general del derecho electoral, entre otras instituciones competentes para abordar el tema sustancial. Palabras Clave: Mercosur; Parlasur; Integración; Derecho Electoral Internacional; Derecho Electoral de la Comunidad. George Augusto Niaradi / Marco Antonio da Silva 153 1. Introdução A constituição de um direito eleitoral internacional, apesar de ser uma realidade construída no decorrer do tempo, em razão da institucionalização da cooperação entre os Estados, especialmente quando alcançado nível de formatação de comunidades internacionais, é tema recente e de suma importância acadêmica devendo, brevemente, constituir ramo autônomo do direito. Na América do Sul, o Direito Eleitoral Internacional ganha relevância com a constituição do Parlamento do Mercosul – Parlasul. Com o novo parlamento dos povos latino-americanos a comunidade acadêmica passa a ter novo tema de estudo e desenvolvimento científico, em especial as academias brasileiras, uma vez que nosso Estado encontra-se na condição de protagonista na busca pela integração regional dos Países latino-americanos, seja pela sua importância política regional, seja por sua importância econômica junto ao Mercado Comum do Sul – Mercosul. O ParlaSul foi constituído por instrumento jurídico internacional que derrogou3 o protocolo de Ouro Preto4 efetivando a sucessão da Comissão Parlamentar Conjunta5, pelo atual parlamento representativo dos Povos dos Estados partes do Tratado de Assunção. A antiga Comissão Parlamentar Conjunta, ao seu tempo, integrou a estrutura do Mercado Comum do Sul – Mercosul, dando espaço, hodiernamente, após a derrogação do protocolo de Ouro Preto para o ParlaSul que a sucedeu enquanto componente estrutural, mas consubstancia-se, em profundo avanço, nos campos político e jurídico. Tais avanços são perceptíveis, em especial, em razão da prerrogativa de escolha dos representantes dos Povos junto ao parlamento o que, sem dúvida, além de ampliar a participação dos cidadãos amplia, outrossim, a legitimidade do órgão. Tal órgão, foi criado por meio de tratado, para a Constituição de um Mercado Comum entre a República Federativa do Brasil, a República Argentina, a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai. O Mercosul tem por finalidade precípua a ampliação dos mercados nacionais, com maior integração econômica dos Estados-partes. Utilizamos o vernáculo técnico derrogar em seu sentido mais estreito fazendo uso da citada expressão de origem latina – derogatio – indicamos que o Protocolo Constitutivo do ParlaSul revogou parcialmente o Protocolo de Ouro Preto tendo como efeito jurídico a sucessão da Comissão Parlamentar Conjunta, deixando essa de integrar o plano da existência em razão da perda da eficácia dos artigos 22 a 27 da Seção IV do Protocolo de Ouro Preto, sendo o ParlaSul o novo órgão de representação junto ao Mercado Comum do Sul - Mercosul. 4 Protocolo adicional ao Tratado de Assunção sobre a estrutura institucional do Mercosul. 5 Então órgão representativo dos Parlamentos dos Estados Partes no âmbito do Mercosul integrada de forma simétrica pelos parlamentares representantes dos Estados-Partes. 3 Parlamento do Mercosul: perspectivas para a constituição de um direito eleitoral comunitário 154 A par disso, as Repúblicas integrantes do Tratado de Assunção viram a necessidade de criação de um órgão legislativo supraestatal com o objetivo de fortalecer o processo de integração do Mercosul, contemplando, dessa maneira, os interesses dos signatários. Isso porque todo o processo integrativo, como bem acentua a Prof. Noemí B. Mellado, “depende de decisões e motivações políticas, de manutenção ou mudança do status quo” asseverando, ainda, que “a simples vontade política dos governantes não basta se não existem o consenso e a atuação de suas sociedades (...)”. (MELLADO, 2012, p. 129) Aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo no 408, de 12 de setembro de 2006, ratificado em 23 de novembro do mesmo ano, e promulgado pelo Decreto no 6.105, de 30 de abril de 2007, entrou em vigor internacionalmente em 24 de fevereiro de 2007 o denominado Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul – ParlaSul. Desta forma, mostra-se relevante o estudo das perspectivas para constituição de um direito eleitoral comunitário do Mercosul, no sentido de verificarmos o contexto e mecanismos de elegibilidade dos representantes nacionais no Parlamento Continental, em especial, no que se refere aos princípios fundantes do direito eleitoral do Mercosul, bem como as questões ligadas à simetria e assimetria territorial e eletiva, doméstica e internacional, para que os povos sejam devidamente representados em todas as suas idiossincrasias. 2. Direito eleitoral comunitário do Mercosul e perspectivas para o atendimento às finalidades pretendidas O ParlaSul objetiva equilibrar e proporcionar maior eficácia na elaboração de normas que garantam a segurança jurídica e a previsibilidade no desenvolvimento do processo de integração, para que se permita o desenvolvimento científico e tecnológico, a transformação produtiva, a equidade social, investimentos e geração de empregos em todos os Estados-partes e em benefícios de seus cidadãos, uma vez que o Mercosul atualmente não se limita a aspectos econômicos/comerciais. Apesar de possuir caráter e objetivo tipicamente econômico seria uma falácia afirmar que o Mercosul resume-se às questões econômicas. Deveras, desde sua constituição mirando acelerar os processos de desenvolvimento econômico visava-se, outrossim, a justiça social, conforme dispõe o próprio preâmbulo do Tratado de Assunção. Contudo, o ParlaSul vem auxiliar para que as políticas voltadas às demais áreas que não apenas econômicas possam ser debatidas e implementadas nos Estados-partes. A diminuta distinção cultural e linguística facilita a materialização da pretensão desenvolvimentista dos povos latino-americanos do sul, ainda mais no atual cenário George Augusto Niaradi / Marco Antonio da Silva 155 marcado pela internacionalização da economia. Todavia, esse processo econômico integrativo foi pensado, sob o conceito do regionalismo aberto, em época recente quando era crescente a interdependência econômica dos Estados, em âmbito regional. Mas, esse processo marcha lentamente em razão da crise econômica enfrentada pela Argentina, da ausência de peso político e econômico do Uruguai e do Paraguai e, principalmente, pela omissão do Brasil que, apesar de protagonista, ao que parece, não se encontra com o mesmo ânimo de outrora, devido à sua notória ascensão nas relações política e econômica em âmbito mundial, suplantando, assim, os vizinhos latinos. Ao afirmarmos que há diminuta distinção cultural e linguística, não desconsideramos, de forma alguma, majoradas outras distinções existentes entre os povos latinos. Tal pretensão seria absurda. O supedâneo da primeira assertiva encontrase nas semelhanças fruto da colonização. Os Povos dos Estados-partes do Tratado de Assunção têm origem uniforme, suas línguas são inteligíveis entre si e são em sua absoluta maioria cristãos. Tais qualidades facilitam, ao menos em tese, as tratativas necessárias. O Mercosul detém modesta estrutura em comparação com a União Europeia, bem como possui menores diferenças, sobretudo no que diz respeito a questões ligadas ao Nacionalismo, uma vez que o “Velho Mundo” acostumou-se com a defesa do Estado em razão das inúmeras guerras. O fator beligerante é de suma importância na constituição da Nação, pois fortalece os laços nacionais em razão da defesa da Pátria. No mesmo sentido, Rogério Carlos Born ao justificar a identidade do eleitor do Mercosul e a ausência de força do multiculturalismo dos povos latinos, em comparação com a União Europeia, afirma que “No âmbito do Mercosul, embora formado por Estados construídos sob forte imigração, o multiculturalismo já não é tão acentuado, o que facilitaria a integração dos povos” e ao final justifica: Isto porque as línguas faladas no Mercosul são de origem latina e inteligíveis entre os povos; as bases religiosas são polarizadas no catolicismo, apesar do crescimento das igrejas pentecostais no Brasil, e a cultura não exerce qualquer influência significativa no comportamento da América lusa e hispânica (BORN, 2012, p. 75). Para tanto, restou consignado, no protocolo constitutivo, que a instalação do ParlaSul observará uma adequada representação dos interesses dos cidadãos dos Estados-Partes, significando, assim, uma contribuição à qualidade e equilíbrio institucional do Mercosul, criando um espaço comum que reflita o pluralismo e as diversidades da região, e que contribua para a democracia, transparência e legitimidade no desenvolvimento do processo de integração e de formulação de suas normas. Aliás, a participação dos Povos nesse processo de integração, que se dará por meio do Parlamento do Mercosul: perspectivas para a constituição de um direito eleitoral comunitário 156 ParlaSul, é de elevada importância para que o processo seja concreto, não apenas no âmbito da normatividade, sendo os Parlamentares do Mercosul espécie de legitimadores das decisões políticas. O que se pretende com o ParlaSul é justamente o fortalecimento institucional da cooperação internacional, bem como instrumentalizar com maior presteza a incorporação das normas do Mercosul aos ordenamentos jurídicos internos, demonstrando, assim, verdadeira onda construtivista. A democracia é pressuposto para que um Estado integre o ParlaSul. Sobrelevese, que um dos principais objetivos do Parlamento é contribuir para o desenvolvimento da democracia nos Estados-partes. Ao se falar em adequada representação dos interesses dos cidadãos dos Estados, na criação de espaço comunitário que reflita o pluralismo e as diversidades da região, em participação, em representatividade, em transparência, em legitimidade social no desenvolvimento do processo de integração normativa, em cooperação interparlamentar, em fortalecimento da integração do Mercosul, no desenvolvimento de tecnologia e da ciência, na geração de empregos, bem como ao se falar em tantos outros temas caros aos Estados sul-americanos tratamos de temáticas que obviamente possuem caráter econômica, mas que estão além disso. Isto é, em profunda consonância com a justiça social, com o senso de liberdade, moralidade, legalidade, e das vontades emanadas dos Povos. Tanto é assim, que os representantes nacionais no ParlaSul devem atuar de forma autônoma a Pessoa Jurídica de Direito Internacional de que se origina. Isso porque seu compromisso genuíno é com o Povo, nacional e regional, que representa em distribuição assimétrica por Estados e nas circunscrições internas de seus Estados, incidindo, assim, o princípio do mandato não imperativo, isto é, atuando os parlamentares com independência no exercício do mandato. O protocolo constitutivo do ParlaSul proporciona o estudo de um direito eleitoral supraestatal, ou seja, comum aos Estados que fazem parte de um sistema integrativo, com base no Estado Constitucional Cooperativo. No caso do Brasil, a cooperação internacional é de fundamental importância, especialmente quando se trata de assuntos ligados ao progresso da humanidade, com relevância constitucional insculpida no art. 4, IX, da Constituição Federal. Mas, mais do que isso, o Constituinte brasileiro afirmou no mesmo art. 4, parágrafo único, que “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Norma Constitucional similar encontra-se na segunda parte do art. 6º da Constituição da República Oriental do Uruguai ao afirmar: George Augusto Niaradi / Marco Antonio da Silva 157 La República procurará la integración social y económica de los Estados latino-americanos, especialmente em lo que se refere a la defensa común de sus produtos y matérias primas. Asimismo, propenderá a la efectiva complementación de sus servicios públicos. A Constituição da República Argentina também dispõe sobre o tema ao atribuir ao seu Congresso Nacional no artigo 75. 24 a seguinte competência: Aprobar tratados de integración que deleguen competencias y jurisdiccion a organizaciones supraestatales encandiciones de reciprocidade e igualdad, y que respeten el orden democrático y los derechos humanos. Las normas dictadas em su consecuencia tienen jerarquia superior a las leyes. Apesar da Constituição da República do Paraguai não disciplinar o processo de integração, ao menos cuida da cooperação internacional o que, podemos dizer tratarse de fase para a constituição da integração. Vejamos o que dispõe o artigo 145 da Constituição do Paraguai: La República del Paraguay, em condiciones de igualdad com outros Estados admite um orden jurídico supranacional que garantice la vigência de los derechos humanos, de la paz, de la justicia, de la cooperación y del desarollo, em o político, económico, social y cultural. A Constituição da República Bolivariana da Venezuela6, Estado que ingressou recentemente no Mercosul, também trata da temática de forma clara em seu artigo 153. Vejamos: La República promoverá y favorecerá la integración latino-americana y caribeña, em aras de avanzar hacia la creación de una comunidade de naciones, defendiendo los interesses económicos, sociales, culturales, políticos y ambientales de la región. La República podrá suscribir tratados internacionales que conjuguen y coordinen esfuerzos para promover el desarrollo común de nuestras naciones, y que aseguren el bienestar de los pueblos y la seguridade colectiva de sus habitantes (...). Com a suspensão da República do Paraguai em razão da aplicação do Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático em razão do ocorrido com o então Presidente Fernando Lugo, que deixou a presidência após o processo de impeachment, os demais representantes dos Estados-partes reuniram-se em 30 de julho de 2012 em Brasília e oficializaram o ingresso da Venezuela no Mercosul. O protocolo de adesão da Venezuela, assinado em 2006, já havia sido ratificado por todos os Estados-partes, com exceção do Paraguai. Assim, invocando a Cláusula Democrática do Mercosul, houve a suspensão do Paraguai pelos demais Estados-partes e, com a suspensão “providencial”, os demais membros decidiram pela adesão venezuelana. É bem verdade que a incorporação da Venezuela ao Mercosul ocorreu de forma ilegítima, uma vez que não foi observado o artigo 20 do Tratado de Assunção, nem as consultas obrigatórias instituídas pelo art. 4º do Protocolo de Ushuaia, que trata da cláusula democrática do Mercosul. 6 Parlamento do Mercosul: perspectivas para a constituição de um direito eleitoral comunitário 158 O ato jurídico do Constituinte elevar a status constitucional a cooperação entre os Povos, com o objetivo do progresso da humanidade e da criação de uma comunidade latino-americana de nações, estabeleceu a base – que ao lado do fundamento democrático – nos permite desenvolver um direito eleitoral internacional do Mercosul que visa a instrumentalização procedimental da escolha daqueles que irão ser guindados aos cargos representativos no Parlamento. Não seria possível deixar de lado uma questão de tamanha relevância, uma vez que ao criar um novo órgão de representação, o direito deve disciplinar o processo de legitimação e de instrumentalização das escolhas que desencadearão no preenchimento das cadeiras parlamentares do ParlaSul. Nesse sentido, importante colacionar os dizeres do Prof. Marcos Ramayana ao afirmar que: O Direito Eleitoral é um conjunto de normas jurídicas que regulam o processo de alistamento, filiação partidária, convenções partidárias, registro de candidaturas, propaganda política eleitoral, votação, apuração, proclamação dos eleitos, prestação de contas de campanhas eleitorais e diplomação, bem como as formas de acesso aos mandatos eletivos através de sistemas eleitorais (RAMAYANA, 2009, p. 23) O Direito Eleitoral Comunitário também deve percorrer todos os passos apontados pelo Prof. Ramayana, quando se referiu ao direito eleitoral interno. O Direito Eleitoral, seja ele em sua vertente interna ou externa, ao final está intimamente ligado a dois institutos básicos, isto é, aos direitos políticos – que são fundamentais – e à eleição – que é o principal instrumento da Democracia. A eleição é uma realização instrumental, organizada pela Justiça Eleitoral, que objetiva a escolha de mandatários, em dia e hora fixados, pela legislação mediante ato solene; ao passo que, o sufrágio é o direito em si, ou seja, o próprio direito político expressado na capacidade de eleger, ser eleito e participar da vida política e das decisões do Estado; enquanto o voto, por seu turno, é o exercício do direito. A Constituição estabelece expressamente no art. 60, §4, II, na condição de cláusula pétrea, ser o sufrágio universal (direito de todo cidadão que preenche os requisitos constitucionais de votar e ser votado sem distinção de classe social, sexo, graduação acadêmica etc.), o voto direto (exercido pessoalmente e destinado diretamente ao candidato escolhido) e o escrutínio secreto, sendo este o modo pelo qual o direito é exercido. Essa sistemática se dá, em razão do regime político adotado pela República Federativa do Brasil, isto é, a democracia. George Augusto Niaradi / Marco Antonio da Silva 159 Aliás, a Democracia não é senão outra coisa do que o caminho que leva a liberdade7, verdadeira degeneração do poder. Nesse sentido, todos os cidadãos dos Estados-partes do Tratado de Assunção, observados os requisitos convencionais, constitucionais e legais, podem participar do processo decisório mediante o exercício da democracia representativa – sufragando seus representantes –, ou, ainda, sendo o próprio representante de seu Povo. Por essa razão, o Povo tornou-se elemento imprescindível ao Estado. Da mesma forma, é elemento essencial para a legitimação da representação no ParlaSul. Passou a ser o ponto de partida do Direito Eleitoral, seja ele nacional ou internacional, em especial, quando se está sob a égide da Democracia embasada na doutrina da soberania popular. Segundo citada doutrina democrática o Povo exerce de fato e de direito, direta ou indiretamente, a soberania que outrora pertenceu ao Estado – Pessoa Jurídica de Direito Internacional – e que em tempos mais longínquos personificava-se no Monarca. Aliás, a origem etimológica do vernáculo “Democracia” significa justamente poder que emana do Povo, ou seja, demos = povo e kratos = poder. Desta forma, com ascensão da democracia no Estado contemporâneo esse passa a ser referência para a garantia das liberdades do cidadão. Para Celso Lafer, em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 18 de novembro de 2012, “Existe a dimensão da liberdade como não impedimento, ou seja, como uma esfera de atividade do ser humano não controlado pelo Estado e pela sociedade, assim como a liberdade de participação nas deliberações coletivas, que está na raiz da democracia”. Com a democracia, e a consequente degeneração do Poder, cria-se campo propício para a atuação do Direito Eleitoral. Para tratarmos da constituição de um direito eleitoral internacional ou comunitário devemos tratar primeiramente do que vem a ser o Povo, pois sua importância é intensificada pelo protocolo constitutivo, uma vez que o parlamento comunitário representa justamente os Povos dos Estados-Partes e não os próprios Estados. Os representantes nacionais antes de observar os anseios de seus Presidentes – Chefes de Estado – deverão observar e ponderar os anseios de seus Povos. Deveras, trata-se de uma representação popular em um bloco econômico para que os Povos influenciem nos rumos do processo de integração que antes ficava a Para os antigos – Gregos – a liberdade era a possibilidade de participar das decisões tomadas pela comunidade. Ser livre era ser cidadão. A liberdade não tinha uma acepção individual, mas coletiva. Com os Romanos teve início a fase de transição para a concepção de liberdade moderna, em uma acepção individual, visto que a qualidade de cidadão foi alargada para àqueles que não eram nativos de Roma, isto é, para os estrangeiros e descendentes de escravos. 7 Parlamento do Mercosul: perspectivas para a constituição de um direito eleitoral comunitário 160 cargo exclusivo dos Ministros das Relações Exteriores e Ministros das Fazendas sob os auspícios de seus Presidentes. Hodiernamente, mesmo nas academias, muitos contestam a efetiva importância do Parlamento do Mercosul. Parlamento esse que até o momento não se encontra integralmente eleito, ao menos não na conformidade do protocolo e do que se espera dos Estados Democráticos, isto é, através do sufrágio universal, do voto direto e do escrutínio secreto. Nesse sentido, mesmo com eleições que se avizinham (2014) o Estado brasileiro ainda não definiu normas internas que instrumentalizarão as eleições dos representantes nacionais, uma vez que as normas já existentes não são suficientes e não possuem características a propiciar a organização de eleições dessa espécie, nunca antes realizadas no Brasil. Ao menos ao que parece, o Congresso Nacional não vem se debruçando sobre o tema com a importância devida. Contudo, a situação não deve ser encarada como um empecilho, no que se refere à formulação do Direito Eleitoral Comunitário do Mercosul. Nesse diapasão, é o ensinamento do Prof. Peter Häberle quando assevera que: Em muitos aspectos, o Estado Constitucional cooperativo ‘ainda’ não chegou a uma realidade completa. Principalmente na estrutura, processos, tarefas e competências cooperativas, são reconhecidas apenas nuances, formações fragmentárias ou arriscadas e precárias. Entretanto, essa constatação não se revela em obstáculo, e sim, puro estímulo para futuros trabalhos no ‘modelo’ de um Estado Constitucional cooperativo (...) (HÄBERLE, 2007, p. 8) Enquanto a República Oriental do Uruguai obteve êxito em aprovar diploma eleitoral interno para organizar as eleições de seus representantes nacionais, o Brasil ainda não aprovou nenhum projeto de lei. Existem dois projetos tramitando no Congresso Nacional, um na Câmara dos Deputados (projeto nº 5.279/09) e outro no Senado Federal (projeto nº 126/11), ambos com textos e soluções diversas, mas nenhum aprovado nem mesmo em suas próprias casas de iniciativa. Curiosamente o projeto de lei que tramita no Senado Federal pretendia que os representantes nacionais no ParlaSul fossem eleitos juntamente com os prefeitos e vereadores nas últimas eleições municipais ocorridas em 7 de outubro de 2012, mas o referido não foi aprovado até o momento. Segundo o projeto que tramita no senado, os representantes nacionais seriam divididos em duas categorias, a saber: a categoria eleita mediante o sistema majoritário, sendo estes representantes dos Estados-membros e do Distrito federal; e a categoria eleita mediante o sistema proporcional, sendo estes denominados representantes federais. Ainda segundo o projeto são setenta e cinco parlamentares nacionais que constituem a representação brasileira junto ao ParlaSul e esses deverão ser eleitos George Augusto Niaradi / Marco Antonio da Silva 161 observando a proporcionalidade em relação ao número de lugares reservados a cada Estado-membro e ao Distrito Federal na Câmara dos Deputados. Melhor sorte não assistiu ao projeto em tramitação na Câmara dos Deputados. Proposto com a pretensão de regulamentar as eleições dos representantes nacionais já em 2009, até o momento também logrou êxito em ser aprovado. Ambos projetos tramitam com apresentações de emendas parlamentares. Problemas como a competência do Tribunal Eleitoral que deverá presidir a eleição dos representantes nacionais permanecem em destaque. Como é sabido, o Tribunal Superior Eleitoral preside a eleição para os Cargos de Presidente e Vice Presidente da República; enquanto os Tribunais Regionais Eleitorais presidem as eleições para os cargos de Governadores e Vice Governadores de Estados-membros e Distrito Federal; Deputados Federais, Estaduais e Distritais, bem como para Senadores da República; restando aos Juízos Eleitorais a presidência das Eleições para Prefeitos, Vice Prefeitos e Vereadores. Destarte, como podemos verificar não há em nosso ordenamento atual espaço para eleições de representantes nacionais, razão pela qual o nosso sistema jurídico interno deverá ser adaptado prestamente para que se possa dirimir citada lacuna. Sobreleve-se, que mesmo os projetos ora em tramitação não são suficientes para solucionar esboçada questão. São projetos de leis ordinárias, razão pela qual não possuem força normativa suficiente para alterar as competências dos Tribunais Eleitorais que, segundo o art. 121 da Constituição Federal, necessita de edição de lei complementar. O processo legislativo brasileiro – art. 59 da Constituição Federal – compreende a elaboração de diversas modalidades normativas, dentre elas a lei complementar e essa, conforme disposição expressa da Constituição deve ser adotada para equacionar a questão eleitoral, sobretudo no âmbito das competências dos Tribunais Eleitorais. Deveras, a questão de competência de Tribunal é matéria tipicamente constitucional, mas a Constituição autorizou sua modificação através de norma infraconstitucional complementar, conforme dispõe o art. 121, caput, da CF. Importante anotar que com a aproximação das eleições e, por conseguinte, a necessidade de urgência de normas regulamentadoras, não justificará a edição de medida provisória. Primeiro, porque é vedada a edição de medida provisória em matéria eleitoral conforme dispõe o art. 62, §1, inciso I, alínea “a”, da Constituição. Segundo, porque segundo o art. 62, caput, da Constituição da República a medida provisória detém força normativa de lei ordinária e, no caso em tela, necessária edição de lei complementar. Sobreleve-se, outrossim, que o projeto de lei que tramita no Senado Federal não poderá prosperar em seus exatos termos. Além do vício formal, há outro grave vício, mas Parlamento do Mercosul: perspectivas para a constituição de um direito eleitoral comunitário 162 substancial, isto é, enquanto a norma internacional estabelece que os parlamentares são representantes do Povo o projeto em tramitação no Senado pretende mudar tal natureza fazendo com que parte represente o Cidadão e outra parte represente Entesfederados. Desta forma, há profundo desvio de finalidade. Do mesmo modo, a futura legislação que regulamentará as eleições para os representantes nacionais deverá ter premente preocupação com a distribuição assimétrica dos representantes nacionais, seja por Estados-membros, seja por novas regiões geográficas. Segundo o próprio protocolo constitutivo os representantes nacionais são representantes do Povo havendo, portanto, a necessidade da representação regional e do pluralismo. Assim, necessária a distribuição assimétrica das candidaturas observada as populações dos Estados-membros ou das regiões geográficas para que se atenda da melhor forma os princípios da representatividade e da proporcionalidade, ainda que se adote a proporcionalidade atenuada8, técnica essa consagrada na distribuição dos assentos na Câmara dos Deputados. No que se refere à simetria ou a assimetria existe um aspecto externo e outro interno acerca do tema. No âmbito externo, trata-se do número de representantes no ParlaSul, ligados a cada Estado-parte. Quando da Comissão Parlamentar Conjunta havia uma simetria representativa, uma vez que todos os Estados-partes encontravamse representados por um número idêntico de parlamentares. Hodiernamente existe verdadeira assimetria representativa, ou seja, quanto maior o Povo de um Estado maior será o número de representantes. Ora, a justificativa parece um tanto óbvia. Outrora, representavam o Estado-parte e, portanto, como cada Estado consubstanciase em uma Pessoa Jurídica de Direito Internacional cada um deles, por justeza, detinha o mesmo número de representantes. Contudo, com a vigência do protocolo constitutivo do ParlaSul, os representantes deixaram de representar seus Estados e passaram a representar seus Povos, motivo pelo qual alterou-se o número de cadeiras representativas no parlamento, sob a técnica da assimetria representativa que expressa maior apego ao princípio eleitoral da proporcionalidade. Por outro lado, no âmbito interno, a assimetria será imprescindível e dependerá de legislação que regulamentará as eleições para os representantes nacionais. Sem dúvida, fatores como a densidade populacional, economia regional e cultura influenciarão na instituição da assimetria representativa. Segundo a técnica da proporcionalidade atenuada diminui-se o número de representantes dos Estadosmembros mais populosos e aumenta-se o número de representantes dos Estados-membros menos populosos visando não deixar nas mãos de um único ou poucos entes da federação a concentração do Poder. 8 George Augusto Niaradi / Marco Antonio da Silva 163 O Direito Eleitoral Comunitário do Mercosul deverá observar para sua formulação todas as nuances aqui prescritas, em especial, a importância do Povo que segundo magistério de Friedrich Müller: ‘Povo’ evidencia-se como um conceito não-naturalista, a ser encontrado por via da ciência empírica. Não é ele também simples, mas complexo e artificial, i. e., uma inferência a partir de uma concepção e não a partir de um fato. Ele chega mesmo a ser um termo prescritivo, muitas vezes necessitado, empregado e gasto normativamente, nesse tríplice sentido do termo alemão ‘gebraucht’ (MÜLLER, 2003, p. 83). De fato, talvez em uma tentativa de autoafirmação da Democracia, muitas normas/documentos exageram na utilização da terminologia “Povo”, mas para o sistema do Mercosul, citada terminologia detém especial significado, pois procura a integração de fato e de direito mirando, inclusive, a supranacionalidade dentro de uma comunidade latino-americana de Nações. A supranacionalidade é o resultado final do processo integrativo dos Povos e elemento amplificador de laços Nacionais para laços comunitários com reciprocidade de direitos e obrigações entre todos os cidadãos da futura comunidade. Do ponto de vista da integração pretendida, o Povo aparece como um elemento descritivo normativo, que democraticamente presenta a soberania e que sua integração com os demais povos representa a integração de soberanias e a constituição de um ente supranacional, ocorrendo, assim, o que se denomina União Política9. De outro lado, apresenta-se a nação como um povo politicamente organizado, com características próprias, vinculado ao Estado e que em seu território, observada à legislação interna, seu nacional pode adquirir o status de cidadão e esse poderá articular-se com o direito eleitoral nacional e internacional, porque somente o cidadão detém a prerrogativa dos direitos políticos, ou seja, do sufrágio. Desta forma, a cidadania10 é elemento essencial para a construção da participação no processo democrático de escolha dos representantes nacionais, uma vez que não basta ser nacional, sendo imprescindível que o nacional esteja no pleno exercício de seus direitos políticos. Tanto na perspectiva funcional do ParlaSul, quanto na perspectiva do processo eleitoral, o elemento normativo e prescritivo “Povo” possui suma importância, pois Última fase do processo de integração que evolui do comercial ao político: a) área de livre comércio; b) união alfandegária; c) mercado comum; d) união monetária; e, e) união política. 10 Que é um direito que se adquire mediante o alistamento eleitoral junto à Justiça Eleitoral na conformidade da Lei. 9 Parlamento do Mercosul: perspectivas para a constituição de um direito eleitoral comunitário 164 equivale a dizer conjunto de cidadãos. Os representantes nacionais representarão os Povos e serão eleitos pelos Povos – cidadãos de cada Estado-parte –, que nesse contexto não se confunde, em absoluto, com a população ou Nação. As eleições para os representantes nacionais que adquirirão mandato com duração de quatro anos, a partir de 2014, deverão observar obrigatoriamente alguns princípios que são caros ao direito eleitoral comunitário do Mercosul e outros que são relativos aos ordenamentos jurídicos internos, uma vez que o protocolo constitutivo do ParlaSul anota em seu art. 6.2., que o mecanismo de eleição dos parlamentares e seus suplentes reger-se-á pelo previsto na legislação de cada Estado-Parte. Assim, de forma comum a todos os Estados-Partes anotamos o princípio do pluralismo, inclusive o político e partidário; o princípio da diversidade das regiões dos Estados; o princípio da adequada representação dos interesses do cidadão; princípio da reeleição indefinida; princípio do mandato não imperativo, pois o mandato do Parlamentar do Mercosul deverá ser exercido com independência funcional e política com relação ao seu Estado de origem; princípio da proporcionalidade atenuada, uma vez que os Parlamentares do Mercosul deverão ser distribuídos de forma assimétrica, mas observada certa limitação que venha impedir sobreposição política em razão de representantes excessivos, tanto no âmbito interno dos Estados, quanto no âmbito externo. Além dos princípios relacionados deve ocorrer a observância das condições de elegibilidade, estando, da mesma forma, ausentes às causas de inelegibilidade, tanto em âmbito nacional como em âmbito internacional. No caso do Brasil, o nacional que pretenda ser candidato ao cargo de Parlamentar do Mercosul deverá estar filiado a Partido Político até um ano antes da data da eleição; ter mais de vinte e um anos; ser alfabetizado; não estar servindo as forças armadas; estar devidamente alistado junto a Justiça Eleitoral; ter seu domicílio eleitoral na circunscrição pelo qual irá pleitear o cargo eletivo sul-americano; bem como não incidir nas causas de inelegibilidade aplicáveis ao mandatos nacionais, conforme preceitua o protocolo constitutivo em seu art. 11.3. Segundo o art. 11.2 do protocolo constitutivo é inelegível – causas de inelegibilidades internacional – aquele que é titular de mandato no Poder Executivo ou Legislativo no Estado-parte, bem como aquele que titulariza cargo nos demais órgãos do Mercosul. Na mesma esteira, o protocolo sub-roga às causas de inelegibilidade atinentes a cada Estado-parte, sendo essas válidas como causas de inelegibilidade internacional. No caso do Brasil são inelegíveis ao Parlasul os inalistáveis – como, por exemplo, os conscritos e absolutamente incapazes –; e os analfabetos, conforme o art. 14, § 4, George Augusto Niaradi / Marco Antonio da Silva 165 da Constituição Federal. Bem como, àqueles que incidam em causa de inelegibilidade as descritas na Lei Complementar nº 64 de 18 de maio de 1990, recentemente alterada pela Lei Complementar nº 135/2010, mais conhecida como “Lei da Ficha Limpa”. Desta forma, em havendo a pretensão de concorrer ao cargo de Parlamentar do Mercosul haverá, outrossim, a necessidade de se verificar as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade insculpidas no Protocolo Constitutivo do ParlaSul, bem como desenhadas nos ordenamentos jurídicos internos de cada Estado-Parte, sendo que cumpridas todas as formalidades da legislação eleitoral interna, bem como das normativas internacionais poderá o cidadão concorrer ao cargo pretendido e, uma vez eleito, deverá ser diplomado pelo Estado-parte, tomando posse, por conseguinte, no Parlamento do Mercosul. Findo o processo eleitoral e iniciada a fase pós-eleitoral, outros problemas podem surgir. No que se refere à diplomação e as ações eleitorais impugnativas – recurso contra expedição do diploma, ação de investigação judicial eleitoral e ação de impugnação de mandato eletivo –, assim como as representações eleitorais de toda espécie e verificação de contas, parece questão superada, pois a mesma norma que indicar o Tribunal Eleitoral que presidirá a eleição para o representante junto ao ParlaSul também estará indicando o órgão judicial competente para apreciar as demandas judiciais. Parece claro que os Tribunais Regionais Eleitorais deverão ser os órgãos incumbidos de presidir as eleições para os representantes nacionais do Brasil junto ao Parlamento do Mercosul. Contudo, caso não haja pronta atuação legislativa no sentido de editar norma legal complementar acrescentando tal competência, no rol de competências dos Regionais, correrá o risco de haver grave conflito institucional para organização das eleições. Isso porque quando não há norma específica apontando competência a um determinado órgão jurisdicional cabe a Justiça Estadual judicar em sua competência remanescente. Contudo, tendo em vista que a presidência das eleições não tem natureza judicante, mas administrativa atípica, o Poder Executivo também poderá avocar para si a legitimidade de organização do pleito. Nesse sentido, é importante sobrelevar que a organização das eleições é uma atividade administrativa deslocada do Poder Executivo para o Poder Judiciário por ser este um Poder imparcial. Todavia, na hipótese de inexistência de norma que altere referida competência é evidente que a administração das eleições recairá sobre o Poder Executivo da União. Apenas para ilustrar a natureza administrativa dos atos eleitorais, quando um determinado candidato requer o registro de sua candidatura junto à Justiça Eleitoral, ele não espera uma prestação jurisdicional, mas tão somente um deferimento administrativo. O sistema eleitoral a ser adotado – majoritário ou proporcional – também deverá ser indicado pela legislação. É provável que observará o sistema proporcional ou, Parlamento do Mercosul: perspectivas para a constituição de um direito eleitoral comunitário 166 ainda, um sistema misto. Caso seja adotado o sistema majoritário, as eleições deverão ocorrer mediante chapas, pois o candidato ao cargo de Parlamentar do Mercosul deverá indicar seu suplente, assim como ocorre nas eleições para o Senado Federal, ao passo que, em sendo adotado o sistema proporcional o suplente será aquele com número de votos imediatamente inferior filiado ao mesmo partido político, pelo qual o titular se elegeu. Em que pese haver pretensão legislativa discordante, no sentido do suplente ser o imediatamente mais votado, independentemente de partido ou coligação, o que inauguraria uma nova sistemática no direito eleitoral brasileiro. 3. Conclusão Conclui-se com o presente estudo que a criação do ParlaSul é uma tentativa de aplicação da técnica da governança global, que nas palavras do Prof. Alcindo Gonçalves trata-se da “gestão compartilhada de problemas comuns” (GONÇALVES, 2011, p. 16), em que os Estados-partes do Tratado de Assunção, de forma comunitária, pretendem integrar seus Povos e atingir um desenvolvimento social e econômico. Esses problemas comuns são aqueles que assolam os países latino-americanos e estão ligados: a geração de emprego, ao desenvolvimento científico e tecnológico, a segurança jurídica regional, a transformação produtiva e a circulação de bens e serviços entre os Estados-partes. Assim, com o propósito de instituição de um Povo latino-americano em última análise tentar-se-á, caso bem sucedido o ParlaSul e o Mercado Comum do Sul – Mercosul, a instituição da supranacionalidade, de moeda única, em uma espécie de centralização do poder político continental, firmando, assim, uma comunidade internacional latino-americana com direitos e deveres próprios aos seus Povos que após integrados constituirão verdadeira União Política. E é nesse contexto que surge do Direito Eleitoral do Mercosul como conjunto de normas jurídicas regulatórias, em nível geral, das formas de acesso aos mandatos internacionais do ParlaSul propiciando, assim, instrumentos para legitimação dos representantes dos povos junto ao Parlamento do Mercado Comum do Sul – MercoSul, cabendo à legislação nacional as especificações necessárias. George Augusto Niaradi / Marco Antonio da Silva 167 4. Referências Bibliográficas ACCIOLY, Hildebrando; CASELLA, Paulo Borba; SILVA, G.E. do Nascimento e. 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A arbitragem tem lei própria, contudo, há um projeto de lei que está em trâmite no Senado e possivelmente será votado até o final do ano, cuja proposta é melhorar a lei atual. As outras alternativas também têm respaldo legal, todavia algumas estão, também, tramitando sob novo projeto de lei no Senado. Os processos aqui tratados referemse especialmente ao sistema brasileiro. Algumas comparações serão acrescentadas. Assim, este artigo tem a intenção de trazer informações básicas sobre os meios alternativos de solução de conflito. Palavras-chave: Alternative Dispute Resolution (ADR); Judiciário; extrajudicial; conciliação; mediação; Med-Arb; Arbitragem. 1 Acadêmica da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus Arbitration and other alternative dispute resolution – historic, general aspects and process ABSTRACT The article that will be seen in the next pages treats about the alternative means of dispute resolution, especially arbitration which will be the main subject. The other alternatives will be commented, though. The arbitration has it own Law but there is a Bill running in the Senate and it will possibly be voted until the end of the year which aims at upgrading the present Law. The other alternatives also have legal support, but some of them have been running in the Senate Bills as well. The processes herein mentioned are referred particularly to the Brazilian system. Some comparisons will be added. Hence this article has intention to bring basic information on the alternative means of dispute resolution. Keywords: Alternative Dispute Resolution (ADR); Judiciary; extrajudicial; conciliation; mediation; Med-Arb; Arbitration Mariana Cutlak Schiavi 173 1. Introdução Parafraseando Rui Barbosa: “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade” (BARBOSA, 1921). É nítido em nossa sociedade que quanto mais o tempo passa, mais as pessoas têm vontade de recorrer ao judiciário. Por menor que seja o litígio, impossível imaginar alguém que não queira ‘ganhar’ algo que desde o princípio já merecia. Atualmente, encontra-se banida a prática de fazer justiça com as próprias mãos, a não ser que seja em medidas proporcionais e que o agente arque com as possíveis consequências depois. Prática essa que era utilizada nos primórdios, mas que certamente não é – e nunca foi – a mais eficaz. ‘Olho por olho, dente por dente’ já era falada em 1780 a.C., no Código de Hamurabi, a famosa lei do talião. Nessa época, para cada ação existia uma reação correspondente. A vida social do criminoso, e da vítima também, era levada em conta na hora da punição. Felizmente ou infelizmente para alguns adeptos, essa prática corriqueira foi se transformando até chegar ao formato que temos em nosso País, o Poder Judiciário. Como mencionado, algumas pessoas contrárias a esse sistema atual veem, em meios alternativos de solução de conflito, uma melhor forma de solução. Esses meios alternativos serão explicados brevemente, porquanto o foco aqui seja a Arbitragem. Por Meios Alternativos de Solução de Conflito (MASCS) - ou Alternative Dispute Resolution (ADR) - temos que são formas de solucionar os conflitos da população de uma forma que, geralmente, é menos onerosa, mais rápida e, consequentemente, mais eficaz. Em 1996 foi criada a Lei de Arbitragem, de número 9.307, que contém 44 artigos, essa lei traz todos os requisitos para uma arbitragem, bem como disposição sobre os árbitros, o processo arbitral, a sentença, o reconhecimento e a execução de sentença arbitral. As formas alternativas surgiram para, em primeiro plano, auxiliar o judiciário na grande demanda de litígios. É possível até mesmo dizer que antes de levar o litígio adiante no Judiciário, tem-se uma tentativa de acordo. Com o não comparecimento da outra parte no dia, local e hora marcados ou, comparecendo se recusar ao compromisso arbitral, a outra parte poderá demandar em juízo (vide artigo 6º, Parágrafo único da lei de Arbitragem). Além da arbitragem, temos como meios alternativos a Mediação, a Conciliação e a “Med Arb”, que nada mais é do que a junção das modalidades mediação e arbitragem. Esses outros meios alternativos são criados pelos Tribunais e recebem o nome de Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos. Esses são Arbitragem e outros meios alternativos - aspectos históricos, gerais e processo 174 compostos por magistrados da ativa ou aposentados e servidores que tenham um notório conhecimento da área (Vide art. 7º da resolução 125/2010 CNJ). 2. Conciliação A conciliação é um meio alternativo consensual e extrajudicial (podendo ser judicial) de solução de conflito em que uma terceira parte, não envolvida no processo, é incumbida de oferecer as propostas para as partes, que podem ou não aceitá-las. Esse meio está regulamentado pela resolução 125 de 2010 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Também chamado de facilitador, o conciliador tem como objetivo a extinção da lide entre as partes. Não há nenhum tipo de vinculação entre a proposta do conciliador e as partes, de modo que essas podem conversar entre si, fazer sugestões ou até mesmo propor uma nova oferta. Desse modo, temos que a conciliação é dotada de liberdade. Os conciliadores são pessoas capacitadas pelos Tribunais através de cursos aprovados pelo Comitê Gestor do Movimento pela Conciliação, com conteúdo programático, exercícios simulados, carga horária mínima exigida, além de estágio supervisionado. Não basta fazer o curso, os conciliadores devem passar periodicamente por avaliações. Diferentemente do processo judicial, a conciliação não revela um ‘vencedor’, mas visa obter duas pessoas satisfeitas. A conciliação pode ocorrer em qualquer lugar, por isso a facilidade e praticidade. Além disso, não é necessária a produção de provas, tornando-a mais barata. Outra vantagem que, nos dias atuais é relevante, é a rapidez. Enquanto no judiciário o processo pode perdurar por 5 ou até mesmo 10 anos, na conciliação, o litígio pode ser resolvido no mesmo dia. A conciliação acontece em dia e hora marcados e pode ocorrer após a demanda no judiciário, o que é muito comum e configura a modalidade judicial. As partes quando decidem por conciliar, devem comunicar ao Tribunal em que tramita o processo para que conste nos autos o interesse de conciliar. Também pode ocorrer a conciliação antes do processo ser iniciado, é a chamada conciliação pré-processual. O desfecho de uma conciliação, que na maioria das vezes resulta em um acordo, tem validade jurídica, ou seja, caso uma das partes descumpra aquilo que foi acordado, a outra parte poderá demandar uma ação na Justiça. Anualmente acontece a Semana Nacional de Conciliação2, em que os Tribunais da Justiça Federal, Estadual e do Trabalho estão envolvidos. Para que um processo 2 Este ano, a Semana Nacional de Conciliação ocorrerá entre os dias 2 e 6 de dezembro. Mariana Cutlak Schiavi 175 esteja na lista da Semana de Conciliação é preciso que seja selecionado com a possibilidade de acordo entre as partes. O Tribunal Federal cuida de processos não criminais, em que a União, uma de suas autarquias ou empresas públicas foram parte no processo; Criminais, como os crimes políticos, praticados contra bens, serviços ou interesses da União, de uma de suas autarquias ou empresa pública. Os Tribunais do Trabalho apenas lidam com questões trabalhistas. Os Estaduais são incumbidos das demais ações, exceto aquelas de competência da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar. Além da Semana Nacional de Conciliação, por todo país são feitas semanas de conciliação, os chamados mutirões de conciliação. Nesse sentido, nota-se que a Justiça Federal e a Trabalhista se mostram proativas, realizando com maior frequência as conciliações. No âmbito penal, não existe conciliação pelo simples fato de que, essa área tem como responsabilidade a vida das pessoas. Em contrapartida, no Juizado Especial Criminal (JECRIM) temos a figura da conciliação e da transação penal, que muito se assemelha a conciliação. Essa proposta do Promotor de Justiça se dá em audiência preliminar. Se na audiência preliminar não houver a proposta, essa poderá ser oferecida no procedimento sumaríssimo, na audiência de instrução e julgamento. No âmbito da conciliação judicial, a homologação pelo juiz se faz necessária, tendo as partes que juntarem o termo de acordo. O juiz nesse caso deve homologar, mesmo que exista disparidade no acordo. Já as conciliações extrajudiciais não requerem a homologação pelo juiz, apenas assinatura de duas testemunhas e a certificação pelo cartório de notas. Se for feita no Juizado Especial Cível (JEC), o próprio facilitador poderá recolher as assinaturas das partes e obter a homologação pelo juiz. Vale ressaltar que, o acordo homologado no criminal vale como título executivo no cível. 3. Mediação A mediação, assim como a conciliação, encontra respaldo legal na resolução 125 do CNJ. Dessa forma, se iguala à conciliação, visto que é uma alternativa consensual e judicial, ou extrajudicial. No que tange ao mediador/facilitador, não há possibilidade desse propor ou oferecer propostas. Dessa maneira, o mediador tem como função estar presente na sessão de mediação para escutar as propostas das partes e assegurar o direito, de maneira que a parte menos beneficiada, ou menos Arbitragem e outros meios alternativos - aspectos históricos, gerais e processo 176 informada, não saia prejudicada. Ele deve agir com imparcialidade e será sempre supervisionado pelo juiz togado e deve reduzir a termo as propostas para posterior homologação do magistrado. Por mais que o mediador seja aquele que fará com que as partes entendam as propostas umas das outras, é possível a presença de advogado nas sessões, o que apenas tem demonstrado como mais um elemento útil, que ajuda, na hora do acordo. Nos litígios envolvendo valor de mais de 20 salários mínimos, é obrigatória a presença do advogado. O fato do mediador não opinar nas propostas, muitas vezes faz com que a sessão termine sem um acordo. Diferente da conciliação, que na maioria, se não em todas as sessões, termina em acordo. Ainda assim, as pessoas que passam por uma sessão de mediação, mesmo que não entrem em um acordo, conseguem adquirir mais informações, o que no final é um ponto positivo. A mediação é recomendada no uso de questões como guarda e visita de filhos, pensão alimentícia, divórcio, divisão de bens, sucessão, dificuldade de convivência entre parentes, cuidados com idosos, questões de vizinhança e condomínios, ações possessórias, entre outras que assim se assemelham. Recentemente, foi entregue ao Senado, um Projeto de Lei (PL) sobre Mediação em processos de natureza civil. Esse envolve muito mais do que uma simples ‘divisão’ da mediação com a conciliação, haja vista que ambas encontram-se na resolução 125 do CNJ. O projeto dispõe sobre a mediação judicial e extrajudicial, a mediação ‘online’ e mediação pública. O PL contém 39 artigos e trata desde um rol de conflitos que não poderão ser mediados até um processo eletrônico, que envolvem conflitos no âmbito digital. A mediação até então, tem se mostrado como uma forma de solução de conflitos muito produtiva. Dessa forma, estudos comprovam que 80% dos casos que se submeteram à mediação, foram resolvidos. Isso significa menos custo, menos tempo e mais solução. O projeto tem também como objetivo fazer com que a mediação seja obrigatória, chamada de paraprocessual, o que de certa força traria um ‘desafogamento’ para o judiciário. O Projeto de Lei que tem por número 94/2002, mas que na verdade teve como marco inicial o ano de 1998 pela Deputada Federal Zulaiê Cobra, tem como modalidades de realização ser prévia ou no decorrer do processo judicial, e quanto ao mediador, podendo ser judicial ou extrajudicial. Outra peculiaridade é em relação à mediação que previa em que esta deverá ser finalizada em 90 (noventa dias). Não ocorrendo o acordo, a parte interessada deverá demandar ação civil em até 180 (cento e oitenta) dias, sujeitando-se, caso perca o prazo, a ter que propor nova mediação paraprocessual. Mariana Cutlak Schiavi 177 Outra novidade é relacionada ao co-mediador, ou seja, uma segunda pessoa também neutra na sessão. Tanto o mediador como o co-mediador devem ser pessoas imparciais. Se não o forem, as partes deverão comunicar e pedir para que seja designado novo mediador, sob pena de infração. O co-mediador será necessário apenas em casos de Direito de família ou que versem sobre o estado da pessoa, devendo ser eles profissionais psiquiatras, psicólogos ou assistentes sociais. 4. Med-Arb O Med-Arb é uma forma de resolução de conflito em que há uma mistura, entre as alternativas de mediação e arbitragem, apenas dos ‘pontos positivos’. Essa modalidade, visa única e exclusivamente ajudar as partes a resolver o litígio. O processo é muito simples, a sessão de mediação começa, pois como já existe e caso não chegue a um denominador comum, o mediador passa a fazer o papel do árbitro que segue as regras de arbitragem. Esse método, por mais que possa não parecer muito útil, deve ser observado a fundo. Ao invés de uma mediação ser levada ao judiciário, aperfeiçoa-se o tempo e o árbitro, antigo mediador, passa a decidir a causa. Importante frisar que, o facilitador apenas poderá agir como árbitro quando as partes decidirem que não haverá acordo. Essa modalidade poderá vir expressa, por exemplo, em contratos nacionais ou internacionais, deixando assim com que as partes resolvam o litígio de forma harmônica e, em regra, em menor tempo. Em alguns países, como os Estados Unidos da América, esse método já é muito utilizado. No Brasil, aos poucos está sendo difundido, principalmente através de contratos Internacionais com esses países que já utilizam do método. Algumas Instituições Privadas, como o ‘Instituto MedArb’, já traz essa novidade para o país. Além de fazer mediações, as Med-Arb’s oferece cursos e é parceiro do Instituto Brasileiro de Estudos Avançados (IBEA) que tem contrato de representação exclusiva com uma universidade pública na Argentina, considerada uma das mais conceituadas (UNLZ) e faz captações de alunos no estado de São Paulo para cursar o mestrado por eles oferecido, em sistemas alternativos de resolução de controvérsias. 5. Arbitragem Atualmente em nosso país, poucas pessoas podem dizer que se sentem seguras, pouquíssimas, aliás, visto que o número de casos envolvendo furtos, roubos e afins, é Arbitragem e outros meios alternativos - aspectos históricos, gerais e processo 178 assustador. Certamente, alguém que nasceu até a década de 80 poderia muito bem confirmar como era poder sair na rua, mesmo de noite, e não sentir medo. Hoje em dia temos medo de ficar dentro de nossa própria casa. Com isso, façamos uma ligação dos crimes praticados e a arbitragem. A arbitragem nada mais é do que ir atrás daquilo que a parte tem a pretensão e o direito de receber ou tomar de volta. A partir do momento em que a parte merecedora do bem usa da própria força para obtê-lo, configura-se crime de ‘exercício arbitrário das próprias razões’, previsto no Código Penal, artigo 345. Nesse caso, o legislador impôs que ninguém poderá retirar de alguém, à força, um bem, ainda que lhe pertença. A solução varia já que temos o Poder Judiciário, a conciliação, a mediação ou a arbitragem. Esses meios foram criados para que as pessoas consigam viver em harmonia e ainda pleiteiem os bens de direito. 5.1 Cartas De Lei A história do Brasil na Arbitragem surgiu há tempos. Na constituição de 1824, a primeira Constituição após a Independência do Brasil, chamada de Constituição do Império, o artigo 160 já trazia em seus dizeres: “Nas cíveis, e nas penaes civilmente intentadas, poderão as Partes nomear Juízes Árbitros. Suas Sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas Partes”. Já no século XX, em 1916, foi decretado o Código Civil. Esse trouxe em seu capítulo X - “Do compromisso” - que compreende os arts. 1037 a 1048, as regras e procedimento para a arbitragem. A Constituição de 1946, art. 141, §4º previa: “a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”. E por tabela, a Constituição atual de 1988 trouxe a mesma redação. Por outro lado, a Constituição que veio após a de 46, no ano de 1967, ficou inerte com relação a isso. E mais, havia uma emenda de número 07/1977 que trazia uma condição para a parte de que, toda e qualquer ação ajuizada, deveria ter exaustão das vias administrativas. Por inteligência, o legislador voltou a aplicar o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, resguardando esse, como uma garantia e direito fundamental do cidadão. Em 1981, foi lançado o primeiro anteprojeto de lei, constituído por 28 artigos, tinha como potencial instituto, a equiparação da cláusula arbitral e o compromisso, além de definir como desnecessário a homologação de laudo arbitral. Mariana Cutlak Schiavi 179 Após essa tentativa, o segundo anteprojeto surgiu, em 1986. Dois foram os problemas ‘principais’ que levaram ao arquivamento. O primeiro surgiu quando o legislador, sem intenção, no 1º artigo escreveu a redação de um modo que, arbitragem e arbitramento seriam solucionados como se fosse apenas um processo. O outro problema técnico apareceu, sobre a redação dos laudos proferidos no exterior, em que era expresso quanto ao título extrajudicial, mas, nada dizia sobre os judiciais, que eram tratados de forma muito básica no extinto artigo 32. O terceiro e último anteprojeto ocorreu no ano de 88. Alguns equívocos que podemos apontar são os seguintes: pretendia colocar no Código de Processo Civil a hipótese do laudo arbitral ser recorrido, por apelação, e julgado pelo tribunal de Justiça local. Mais um grave erro foi o de introduzir que o árbitro seria aquele bacharel em direito, o que configura-se até uma desvantagem, se assim podemos dizer, em ter árbitros com notório saber apenas no direito, haja vista que a sessão de arbitragem muitas vezes envolve matérias além do direito. Já em relação às omissões, diferente dos anteprojetos de 1981 e 1986, nada foi dito sobre homologação de laudo arbitral e muito menos laudo estrangeiro. Após três tentativas infrutíferas, criou-se a ‘Operação Arbiter’, em 1991, pelo Instituto de Pernambuco. Envolveu não apenas legisladores, como nos outros anteprojetos, mas, outros Institutos, professores renomados de faculdades e até mesmo representantes de grandes escritórios. Este novo formato de anteprojeto teve como base algumas das ideias dos dois primeiros anteprojetos, além de recorrer a outras legislações como a Espanhola e a lei Modelo sobre Arbitragem Comercial da Uncitral. O processo para a formação do anteprojeto em lei, ou da Operação Arbiter, teve a passagem pelo Senado de maneira rápida, mas com uma demora compensadora na Câmara, tanto assim que, entrou no Senado em 92, saindo dali após um ano aproximadamente e sendo remetido à Câmara, que apenas em 1995 aprovou o projeto. Em 1996 o presidente da República assinou o documento. O Código Civil Brasileiro atual tem no XX capítulo, que expõe sobre o ‘Compromisso’, cuja abrangência está nos arts. 851 a 853. No âmbito processual, o Código de 1939 era expresso com relação à arbitragem. Estabelecido no livro IX, que era o último do Código, trazia disposições sobre o árbitro, o andamento da causa e o julgamento, assim como a homologação. Curioso que no capítulo da homologação existia a possibilidade de recorrer da sentença que homologou Arbitragem e outros meios alternativos - aspectos históricos, gerais e processo 180 ou não, a decisão arbitral, muito parecido com o anteprojeto de 1988, que fora rejeitado não só por isso, e que apenas demonstra um retrocesso no Direito. Após esse Código, veio o atual, de 1973. Esse um pouco mais extenso tentou tratar de uma forma mais detalhada o processo de arbitragem, posicionando os arts. 1072 a 1102. A seção tem o compromisso, dos árbitros, do procedimento e da homologação do laudo. Todos os artigos foram revogados pela Lei de Arbitragem que foi sancionada em 1996. 5.2 Procedimento A lei de Arbitragem prevê a existência de Cláusula Compromissória, uma condição em que as partes podem acordar, visto que diz respeito à arbitragem como forma de solução de eventuais conflitos. Não necessariamente esta Cláusula precisará vir expressa no contrato, assim como, também, poderá ser posterior à sua celebração. No tocante à execução da Cláusula, caso haja alguma que seja ‘vazia’, ou seja, que apenas informe que qualquer litígio será regido pela regra da Arbitragem, o juiz poderá exercer poderes mais específicos e mais abrangentes, tais como, indicação precisa das questões a serem resolvidas e prazo para apresentação de laudo. Esse procedimento vem abordado no art. 7º da Lei de Arbitragem. Os poderes do árbitro são expressos na lei, art. 8º. Os elementos indispensáveis para que uma arbitragem possa ser realizada são: as qualificações das partes, a(s) qualificação(ões) do(s) árbitro(s), a matéria que será objeto da sessão e o lugar onde será realizada a audiência. O art. 10 é inerte com relação à nulidade, mas a falta dos elementos obrigatórios poderá gerar a nulidade. As partes podem escolher um Instituto, entidade ou órgão arbitral, para que determine o árbitro. Quanto ao lugar, será sempre necessário saber com antecedência, para que as partes estejam cientes, se poderá ser reconhecido ou não o procedimento. Também alguns elementos facultativos devem ser mencionados. O local para realização da sessão poderá ser um daqueles que a lei sugeriu, ressaltando o que já foi exposto acima. A apresentação do laudo é decidida pelas partes e caso não o façam, deverá seguir o lapso temporal de 6 meses, entre muitos outros elementos facultativos. A extensão do Compromisso Arbitral nunca se dará pela recusa ou impedimento de árbitro, haja vista que deverá ser nomeado outro. Do contrário, a audiência ficar sem Mariana Cutlak Schiavi 181 árbitro, utiliza-se o art. 7º. Caso o árbitro atuante seja peça fundamental para a solução da lide, dessa forma, extingue-se o compromisso. Se por ventura as partes optarem por um órgão colegiado de árbitro, deverá ser necessariamente, de número ímpar. Sendo julgado monocraticamente ou por órgão colegiado, deverá o árbitro agir com toda diligência e integridade a que está submetido eticamente. Já na parte final, quanto à sentença arbitral, essa se assemelha à decisão dos juízes no poder judiciário. A sentença deve conter um relatório, com as qualificações das partes, um resumo sobre a matéria discutida na audiência e os fatos que levaram àquele desfecho, bem como a qualificação das partes. Após, temos a motivação, espaço em que o árbitro deve expor os fundamentos da decisão proferida. Ao final da sentença, o dispositivo virá acompanhado dos preceitos. Datado e com o local em que foi proferida a decisão, será por fim homologado. Em regra, não há qualquer recurso cabível contra decisão arbitral proferida. Porém, as partes podem acordar anteriormente à sessão de arbitragem, que a decisão seja reexaminada por outro órgão arbitral ou até no caso de decisão não unânime, a oposição de recurso que se assemelha aos embargos infringentes no Código de Processo Civil. Entretanto, nenhum desses recursos será remetido à Justiça Estadual, ou seja, continuarão tramitando nos órgão arbitrais, mesmo que as partes queiram acordar nesse sentido. Após proferir a decisão, essa pode conter omissão, obscuridade ou contradição, que no Processo Civil podem ser embargadas por declaração. O instituto dos embargos de declaração foi então equiparado na arbitragem. O prazo da parte será de 5 (cinco) dias, contados da notificação ou ciência da sentença arbitral pela parte. Os embargos poderão versar sobre erro material. A parte contrária será notificada, mas nada tem ao seu alcance para fazer. O árbitro terá o prazo de 10 (dez) dias para notificar a parte acerca do aditamento, ou não, da sentença arbitral. Na lei de arbitragem foi empregada a tese da jurisdicionalidade da arbitragem, não mais se fazendo necessário passar pelos órgãos do Estado para ser homologado e, mesmo assim, a sentença será condenatória de título executivo. A sentença poderá ser nula de acordo com o que dispõe o art. 1.100 do Código de Processo Civil, além do que foi acrescido no art. 32 da lei de arbitragem. Se tratando de ação rescisória, essa não poderá ser aplicada. Arbitragem e outros meios alternativos - aspectos históricos, gerais e processo 182 Mais um instituto do Processo Civil foi alocado na Lei de Arbitragem, a impugnação de sentença arbitral. O art. 32 da referida lei traz um rol com as possíveis impugnações que a parte interessada poderá fazer para o juiz togado, a fim da nulidade da sentença. A parte terá um prazo decadencial de 90 dias, contados da ciência da notificação da decisão final. Após essa fase, segue-se o procedimento do Processo Civil, qual seja, dependendo do valor atribuído, poderá ser utilizado o rito sumário. Se o pedido de nulidade for julgado procedente, com base nos incisos do art. 32, as partes poderão recorrer ao Judiciário para resolver o litígio. Se a matéria de nulidade não for aquela prevista no rol, o árbitro, órgão colegiado, ou quem tenha proferido a sentença, deverá rever a decisão. 5.3. O novo projeto de lei Recentemente, juristas elaboraram um novo projeto para melhorar a atual Lei de Arbitragem. Em especial, a parte de Consumidor, Trabalho, Societário e Administração Pública terão mudanças significativas. Os setores de consumo e trabalho terão como instituto inovador a iniciativa dos autores, respectivamente. Já no tocante ao setor societário, a mudança prevista está relacionada à Lei das Sociedades Anônimas, fazendo com que a arbitragem seja o meio de solução de conflitos ente os acionistas. Outra posição de juristas defende que com a nova Lei de Arbitragem, o comércio no exterior se interessará mais pelo país, pois, com o advento dessa nova lei, os problemas poderão ser resolvidos de maneira mais rápida e menos cansativa, o que é um atrativo para as Multinacionais. No campo da administração pública, tanto a direta como a indireta, é uma novidade, visto que esses órgãos poderão se utilizar da arbitragem nos casos em que o objeto envolvido for direito patrimonial disponível decorrente de contratos que esse tenha celebrado. Quanto à sentença arbitral estrangeira, para que seja reconhecida e assim, executada no Brasil, deverá ser homologada unicamente pelo Superior Tribunal de Justiça. No que tange às tutelas cautelares e de urgência, as partes poderão, antes de demanda a arbitragem, valer-se do Judiciário para consegui-las. Porém, a parte que requereu a tutela terá um prazo de 30 dias, a contar da data da decisão concessória, para postular a audiência de arbitragem. Após isso, fica a cargo do árbitro ou órgão colegiado seguir a decisão o juiz, revogar ou modificar. Se a parte já tiver pleiteado a arbitragem, tanto as cautelares, como as de urgência, serão definidas pelos árbitros. Mariana Cutlak Schiavi 183 Seguindo a linha do novo Código de Processo Civil, que também tramita no Senado, haverá uma comunicação direta entre o árbitro e o Juiz através de Carta Arbitral. Desse modo, práticas ou determinações de cumprimentos serão tratadas com maior agilidade. Com relação ao segredo de justiça, se comprovado, poderá ser requerido na Arbitragem. 6. Conclusão É, portanto, notável que ao longo dos anos, não só no Brasil como no mundo todo, os meios para solucionar conflito foram se desenvolvendo de tal maneira que hoje em dia, até mesmo um profissional da área educacional pode resolver uma questão familiar. O fato de ter uma terceira pessoa, neutra, com vontade de ajudar as partes, é algo que pode ser considerado solidariedade. Remunerado ou não, como em alguns casos de conciliação, o ‘mundo’ dos conflitos está tomando um rumo que pode ser considerado contrário às práticas atuais, qual seja, um lugar onde as pessoas estão cada vez mais egoístas e procurando formas de se sobrepor umas as outras. Com o novo Projeto de Lei, esperamos que o Instituto da arbitragem comece a ser mais utilizado pelo nosso país, assim como em muitos outros em que essa pratica já se tornou comum e muito bem sucedida! Por fim, quer seja a arbitragem quer seja outros métodos de utilização, estarão progredindo em larga escala para a resolução de conflitos. Arbitragem e outros meios alternativos - aspectos históricos, gerais e processo 184 7. Referências Bibliográficas CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. São Paulo: Editora Atlas: 2009. GARCEZ, José Maria Rossani. Arbitragem Nacional e Internacional. Belo Horizonte: editora Del Rey, 2009. Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno – convenção de Nova Iorque sobre pessoas com deficiência e convenção 158 do OIT 1 Mariana Dias da Costa do Amaral RESUMO O presente Artigo estudará a incorporação dos Tratados Internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro, explicando a definição de Direito Internacional Público, quais o sujeitos capazes para celebrar tais Acordos Internacionais, o conceito de Tratados Internacionais e todas as fases do processo para que se realize a incorporação dos Tratados ao Direito Positivo Interno, desde a negociação até seu registro. Trataremos da Convenção de Nova Iorque sobre Pessoas com Deficiência, quais seus objetivos, como se deu sua votação, sua equiparação à Emenda Constitucional e as teorias existentes acerca da aplicabilidade imediata dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. O estudo trará, ainda, os conceitos e entendimentos das Teorias Monista e Dualista e as diversas opiniões sobre qual seria a mais adequada a ser aplicada ao Direito brasileiro, já que a nossa Constituição Federal não faz esta definição. E, por fim, verificaremos as diversas discussões envolvendo a Convenção 158 da OIT, dentre elas, as duas ADIN´s propostas, o Decreto de Denúncia, sua eficácia, sua natureza jurídica, sua aplicabilidade imediata. Palavras-chave: Tratados; Estado soberano; Organizações materialidade constitucional; Direitos Humanos; monismo; dualismo. 1 Acadêmica da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus Internacionais; Incorporation of international treaties to internal law - New York convention on disability and the ilo convention 158 ABSTRACT This article explores the integration of international treaties into the Brazilian legal system, explaining various aspects involved, such as: the definition of Public International Law; who are those able and empowered to engender such International agreements; the concept of International Treaties and all the stages from negotiation to registry required to accomplish the integration of the Treaties into the Internal Positive Law. The New York Convention on Persons with Disabilities will be considered, including its objectives, how its vote came about, its way to Constitutional Amendment and the existing theories about the direct applicability of international human rights treaties. The study will also explore the Monist and Dualist Theories, its concepts and understandings. As our constitution does not distinguish these theories, various opinions on what would be the most appropriate to be applied to Brazilian law will be discussed. Finally, discussions on the Convention 158 of the Internation Labour Organization will be identified. Among these two ADIN’s proposals will be discussed, i.e. the Decree of Termination, its effectiveness, its legal status and its immediate applicability. Keywords: Treaties; sovereign State; International Organizations; constitutional materiality; human rights; Monism, Dualism. Mariana Dias da Costa do Amaral 187 1. Definição de direito internacional público Direito Internacional Público é o conjunto regras que servem para condicionar o comportamento dos sujeitos de Direito Internacional em suas relações recíprocas, respeitados os princípios internacionais. Conforme Ives Gandra da Silva Martins: O Direito Internacional Público trata das relações entre os sujeitos de Direito Internacional (Estados), aplicando regras, princípios e costumes internacionais. As relações interestatais não constituem, contudo, o único objeto do direito internacional público: além dos Estados, cuja personalidade jurídica internacional resulta do reconhecimento pelos demais Estados, outras entidades são modernamente admitidas como pessoas internacionais, ou seja, como capazes de ter direitos e assumir obrigações na ordem internacional (organismos internacionais) (MARTINS, 2007, p. 4). Ressalta-se que, apesar de o Direito Internacional Público condicionar comportamentos, deve-se ter em mente que é um Direito Voluntarista, ou seja, é o resultado de uma livre expressão de vontades daqueles que atuam no cenário internacional, daqueles que celebram um acordo internacional. 2. Sujeitos do direito internacional público Consoante entendimento do Professor George Augusto Niaradi: São sujeitos do direito internacional público as entidades destinatárias das normas jurídicas internacionais que participam de seu processo de elaboração e têm legitimidade para reclamar seu cumprimento ou incorrerem em responsabilidade quando as infringirem. Dessa forma, sinteticamente, podemos definir o sujeito de direito internacional público como os agentes capazes, isto é, aqueles dotados de personalidade jurídica internacional, aptos a participar da sociedade internacional (NIARADI, 2010, p. 97). Os sujeitos são aqueles que fazem parte da relação internacional. Ocorre que, para tanto, eles precisam apresentar determinados atributos: ser pessoa jurídica internacional com direitos e deveres no plano internacional e possuir capacidade jurídica. A personalidade jurídica refere-se à aptidão para a titularidade de direitos e obrigações, que se associa à capacidade, que é a possibilidade de uma pessoa, física ou jurídica, exercer seus direitos e cumprir suas obrigações. Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno 188 Diante disso, os sujeitos que atuam no cenário jurídico internacional são os Estados soberanos, Organizações Internacionais, ONG’s, empresas e indivíduo. Dentre eles, os Estados soberanos e as Organizações Internacionais são os sujeitos que têm capacidade para celebrar Tratados Internacionais. Pode-se dizer que os demais possuem tendências de personalidade jurídica, isto é, não reúnem todas as prerrogativas dos Estados e Organizações Internacionais, não possuindo personalidade jurídica internacional plena, mas podem atuar no plano internacional. Na plataforma normativa, existem duas Convenções Internacionais que determinam que os Estados soberanos e Organizações Internacionais podem celebrar Tratados: Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 (Estado soberano) e Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1986 (Organizações Internacionais). Ressalta-se que como o Direito Internacional é um Direito Voluntarista, os sujeitos capazes de celebrar Tratados somente o farão se for de sua vontade, podendo denunciá-lo quando entenderem pertinente. Já do ponto de vista histórico, o Tratado Internacional da Paz de Westfália em 1648 pôs fim à Guerra dos 30 Anos, contextualizando o elemento soberania, uma vez que definiu os limites dos Estados Soberanos. Assim, deste Tratado até o período após a Segunda Guerra Mundial, tecnicamente, o único agente capaz para celebrar os Tratados Internacionais eram os Estados soberanos, caracterizando um cenário homogêneo. No caso das Organizações Internacionais, sua capacidade para celebrar Tratados Internacionais passou a existir com o Parecer do Caso Bernadotte. Bernadotte, diplomata sueco, foi escolhido pelo Conselho de Segurança da ONU para ser o mediador entre judeus e árabes após a aprovação do Plano de Partição da Palestina (1947). Entretanto, pouco depois do início de seus trabalhos, foi assassinado em Jerusalém. Diante desta situação, uma questão foi levada à Comissão Internacional de Justiça (CIJ): quem possui responsabilidade jurídica pelo ocorrido? Foi elaborado um parecer consultivo pela mencionada Comissão com foco na personalidade jurídica internacional da ONU. Este parecer causou impacto normativo nas Organizações Internacionais, visto que consignou que, além dos Estados soberanos, elas também possuem personalidade jurídica internacional. Mariana Dias da Costa do Amaral 189 Dessa forma, a partir de 1949, o Estado soberano passou a dividir o palco das relações internacionais com as Organizações Internacionais (capacidade heterogênea). É correto afirmar que o Parecer do Caso Bernadotte está para a s Organizações Internacionais, assim como a Paz de Westfália está para os Estados Soberanos. Insta consignar que os elementos constituintes de um Estado soberano são: território, povo, soberania e governo. A soberania é o poder do Estado por meio do qual se traduz a superioridade de suas diretrizes em relação e um grupo de pessoas, que, normalmente, se materializa em um ordenamento jurídico composto por normas estabelecidas a este grupo. No caso das Organizações Internacionais, entende-se que possuem autonomia, visto que têm personalidade jurídica própria, distinta da de seus membros e advinda de seu Tratado Constitutivo. Por força do princípio da efetividade, basta a constituição de uma Organização Internacional para que ela adquira personalidade jurídica internacional. Entretanto, segundo entendimento de Paulo Henrique Gonçalves Portela, a capacidade dos Organismos Internacionais de elaborar Tratados apresenta certas peculiaridades, como, por exemplo, o fato de o poder dessas entidades não ser tão amplo quanto o do Estado, porque os Organismos Internacionais só podem celebrar acordos relativos a seus objetivos. Assim, pode-se considerar a existência de uma capacidade parcial que decorre de seu Tratado Constitutivo, estabelecedor dos objetivos da Organização (PORTELA, 2013, p. 106). Para Francisco Rezek, em relação ao Direito das Gentes, a personalidade jurídica do Estado é originária, enquanto a das Organizações Internacionais é chamada de derivada (REZEK, 2008, p. 151). No Brasil, as relações internacionais estão centralizadas na União, isto é, os Estados e os Municípios não têm capacidade para representar o país no plano internacional, não podendo celebrar Tratados Internacionais, de forma que não existe a chamada diplomacia federativa. Assim, a capacidade está relacionada ao plano internacional, visto que o Estado soberano, por exemplo, possui direitos e deveres frente ao Direito Internacional, ou seja, tem capacidade para atuar no cenário internacional. A competência, por sua vez, está ligada ao plano interno, uma vez que é competente aquele que pode atuar no plano internacional em nome de um Estado soberano, de modo que os critérios de competência são definidos dentro de cada Estado. Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno 190 Segundo nosso Direito Positivo Interno, quem possui competência para celebrar os Tratados Internacionais é o Presidente da República, que poderá delegá-la, nos termos do art. 84, inc. VIII, da CF: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”. 3. Definição de tratado internacional O conceito de Tratado Internacional pode ser verificado pelas disposições do art. 2º, 1, “a”, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 e do art. 2º, 1, “a”, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais de 1986. Preleciona o referido artigo da Convenção de Viena de 1969: 1. Para os fins da presente Convenção: a) “tratado” significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica. Desta feita, Tratado Internacional é um acordo solene, celebrado por escrito entre sujeitos capazes (Estados Soberanos e Organizações Internacionais), respeitando-se os princípios de Direito Internacional, podendo constar em um único instrumento ou apresentar dois ou mais conexos. 4. Incorporação dos tratados internacionais no direito brasileiro A incorporação dos Tratados Internacionais também pode ser chamada de caminho ou “iter” de celebração dos Tratados. Sobre o tema discorre Paulo Henrique Gonçalves Portela: A execução das normais internacionais dentro dos Estados é facilitada a partir da sua incorporação ao Direito interno, também conhecida como ‘internalização’, que é o processo pelo qual os tratados passam a também fazer parte do ordenamento jurídico nacional dos entes estatais, adquirindo status semelhante às demais espécies normativas da ordem estatal. (...) Com a incorporação, os tratados podem ser invocados por qualquer pessoa natural ou jurídica dentro do território de um ente estatal e podem orientar e fundamentar as ações e decisões dos órgãos e autoridades nacionais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (REZEK, 2008, p. 137-138). Mariana Dias da Costa do Amaral 191 Cabe a cada ente estatal disciplinar acerca da incorporação dos Tratados Internacionais, ao ordenamento jurídico interno, de forma que, para que este tenha validade, deve-se seguir todas as etapas necessárias estabelecidas no procedimento de celebração. Assim, entende Ives Gandra que, para o Direito Internacional, é indiferente o método escolhido pelo o Estado pelo qual irá recepcionar a norma convencional ao seu ordenamento jurídico, bastando que o Tratado seja, de boa-fé, cumprido pelas partes (MARTINS, 2007, p. 28). No Brasil, a incorporação possui seis fases. A primeira fase é a de negociação entre os sujeitos capazes (Estado soberano e Organizações Internacionais), que irão discutir e estabelecer os termos do Tratado, ou seja, irá se dar a elaboração de um texto. Como já dito, no Brasil, quem tem capacidade para negociar os termos do acordo é a União, já quem tem a competência para começar a negociação é o Presidente da República (art. 84, inc. VIII, da CF). A competência do Chefe do Estado é privativa, isto é, delegável aos chamados plenipotenciários (expressão utilizada na Convenção de Viena), que são aqueles que possuem plenos poderes para celebrar o Tratado Internacional como se fossem o Presidente. Ocorre que, em determinadas situações, em virtude da função exercida, não há necessidade de apresentação da mencionada Carta, sendo elas, dentre outras, o caso dos Chefes de Estado, Chefes de Governo, Ministros das Relações Exteriores, representantes acreditados pelos Estados ou os chefes de missões permanentes perante o Estado acreditante ou Organização Internacional. Conforme Francisco Rezek: Ressalvada, assim, a plenipotência que, de modo amplo ou limitado – respectivamente –, recai sobre o ministro das relações exteriores e o chefe de missão diplomática, é certo que os demais plenipotenciários demonstram semelhante qualidade por meio da apresentação da carta de plenos poderes (REZEK, 2008, p 36). A segunda fase é a da assinatura do Tratado Internacional, que possui a finalidade de encerrar a fase de negociações e confirmar a validade do texto escrito, permitindo a adesão do país ao texto negociado. Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno 192 Insta consignar, que, no Brasil, adesão não é sinônimo de ratificação, visto que não possuem o mesmo efeito jurídico. A assinatura é apenas uma concordância prévia, que não vincula as partes, o que somente irá acontecer com a ratificação do Tratado Internacional e sua entrada em vigor no território nacional. Porém, a assinatura não impede a realização de reservas ou eventuais mudanças no texto com a reabertura da fase de negociações, antes de sua entrada em vigor, ou, após sua vigência, por meio de emendas. O Tratado será assinado pelo Presidente da República ou pelo plenipotenciário. Após a assinatura, normalmente, o plenipotenciário irá realizar uma exposição de motivos, direcionada ao Presidente da República, informando-o da assinatura do Tratado Internacional e explicando sua relevância e importância jurídica frente ao ordenamento nacional. Diante disso, o Presidente poderá elaborar uma mensagem ao Congresso Nacional (ato discricionário), também com uma exposição de motivos, requerendo o exame do texto produzido e, ainda, fazendo sugestões acerca do trâmite de aprovação. A terceira fase é de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49, inc. I, da CF), que irá analisar o Tratado Internacional que, provavelmente, será incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro. Quando o Tratado Internacional chega ao Congresso Nacional, passa a existir um projeto de Decreto Legislativo, que possui um Deputado Federal como relator. O referido projeto passará por todas as comissões temáticas, sendo a última delas a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Em seguida, irá para o Plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional (primeiro na Câmara dos Deputados e depois no Senado Federal), nas quais será analisada a constitucionalidade do Tratado. Caso o projeto seja aprovado nas duas Casas, ou seja, se determinarem que o Tratado Internacional pode incorporar-se ao ordenamento jurídico brasileiro, passa a existir o Decreto Legislativo, assinado pelo Presidente do Senado. Importante ressaltar que na votação de assuntos de competência exclusiva do Congresso Nacional, ou seja, para que este Decreto Legislativo seja aprovado, o quórum é de maioria simples, em turno único. Porém, para ser instaurada a Seção, deve-se observar a maioria absoluta. Mariana Dias da Costa do Amaral 193 Em casos excepcionais, o quórum para aprovação poderá ser por maioria qualificada, nos termos do § 3º do art. 5º da CF, como ocorreu com a Convenção de Nova Iorque sobre Pessoas com Deficiência, tendo em vista a solicitação do Presidente da República. Destaca-se, ainda, que para matéria de Tratados Internacionais não há “vacatio legis”, passando a vigorar a partir do momento em que foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro. Para alguns doutrinadores, a competência prevista no art. 49, inc. I, da CF se traduz na ratificação do Tratado, bastando o Decreto Legislativo para tanto, não havendo necessidade do chamado Decreto de Promulgação realizado pelo Presidente da República. Ocorre que para outros autores existe outra fase na qual reaparece a figura do Presidente, com o Decreto de Promulgação ou Decreto Complementar, após o Decreto Legislativo. Para eles, o Decreto de Promulgação faz, juntamente com o Decreto Legislativo, a ratificação dos Tratados Internacionais. Apesar de alguns entendimentos em sentido contrário, é certo que o Decreto de Promulgação se faz necessário para a devida ratificação de um Tratado, confirmando o interesse do país em incorporá-lo do Direito Interno e determinando, perante o plano internacional, o seu desejo em obrigar-se por suas normas. A fase quatro trata da publicação para que seja permitida a utilização deste diploma legal no Brasil. Na fase cinco, o Brasil irá informar os demais pactuantes de que o Tratado Internacional foi ratificado, incorporado e já pode ser utilizado como Lei no plano nacional. Para tanto, na hipótese de Tratados bilaterais, para Paulo Henrique Gonçalves Portela, a entrada em vigor no plano internacional irá depender de que as partes ratifiquem o ato e troquem informações entre si. Essa troca pode se dar pela notificação da ratificação ou pela troca dos instrumentos de ratificação. Dessa forma, a entrada em vigor do Tratado pode ocorrer no dia em que foi realizada a última notificação, no momento da troca dos instrumentos de ratificação ou em data posterior se o texto do acordo prever um prazo para que comece a gerar efeitos jurídicos (PORTELA, 2013, p. 117-118). No caso dos Tratados multilaterais, ainda segundo ensinamentos do mencionado autor: Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno 194 (...) existe a figura do depositário, que é um Estado ou organização internacional que receberá e guardará os instrumentos de ratificação e que informará as partes que assinaram o Tratado a respeito, impedindo uma longa e custosa distribuição desses documentos ao redor do mundo. (...) a prática internacional criou a exigência de que o acordo multilateral necessite apenas de um número mínimo de ratificações para entrar em vigor. Tal número é estabelecido na própria negociação e é consagrado no próprio texto do tratado, variando, portanto, entre os atos internacionais. Atingido esse número, o tratado fica apto a gerar efeitos jurídicos, mas apenas para os entes que já o ratificaram, passando a valer para os demais Estados apenas na medida em que estes o ratifiquem (PORTELA, 2013, p. 118). Diante disso, o Tratado multilateral entrará em vigor quando realizada a última ratificação exigida ou em outra data, caso o texto do Tratado assim preveja, para começar a gerar efeitos. Já no plano interno, um Tratado Internacional entre em vigor no momento da ratificação. Temos, por fim, a fase seis na qual é realizado o registro do Tratado Internacional na Secretaria de uma Organização Internacional. Por exemplo, se o Tratado foi celebrado no âmbito da OMC ou da ONU, ele irá para registro nas respectivas Secretarias. Portanto, conforme entendimento de Francisco Rezek, nas relações internacionais, é inconcebível que uma norma jurídica seja imposta ao Estado soberano à sua revelia, de forma que o Direito das Gentes é o acervo normativo que tenha se formado com o seu consentimento (REZEK, 2008, p.78). 5. Convenção de nova iorque de pessoas com deficiência A Convenção de Nova Iorque de Pessoas com Deficiência foi celebrada no âmbito da ONU em 2007, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 186/08 e depois promulgada pelo Decreto 6.949/09. O objetivo desta Convenção é o de promover, proteger e assegurar o exercício pleno dos Direitos Humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade. Os Direitos Humanos existem para equiparar as condições entre fortes e fracos dentro da sociedade. À época da incorporação da mencionada Convenção, o Presidente da República elaborou uma mensagem ao Congresso, sugerindo que o Decreto fosse Mariana Dias da Costa do Amaral 195 aprovado nos moldes do § 3º do art. 5º da CF, com o objetivo de que se equiparasse à Emenda Constitucional. Ocorre que não existe previsão regimental específica no Congresso para realizar tal votação. Dessa forma, foi utilizado o itinerário normal para aprovação dos Tratados Internacionais, mas com a votação por maioria qualificada, não maioria simples. Em geral, os Tratados Internacionais são interpretados na pirâmide hierárquica das normas como Lei Ordinária, pois o quórum de aprovação é maioria simples. Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos aprovados por maioria simples, por sua vez, são entendidos pelo Supremo Tribunal Federal como normas supralegais, estando acima das Leis e abaixo da CF, tendo em vista que possuem materialidade constitucional, ou seja, não possuem aparência de norma constitucional, mas matéria constitucional. Segundo entendimento de Antônio Augusto Cançado Trindade, que possui tese no sentido mais pragmático, os § § 1º e 2º do art. 5º da CF já garantem a incorporação imediata dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, visto sua materialidade constitucional, entendendo o § 3º como mera burocracia. Para ele, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos não podem equivaler a Emendas Constitucionais, mas, por terem matéria constitucional, podem ser imediatamente aplicados, bastando a assinatura do Brasil (informação verbal)2. Portanto, assiste razão a doutrina a qual entende que, tratando-se de Tratado Internacional de Direitos Humanos, a sua incorporação ao direito positivo é imediata, conforme o disposto nos § § 1º e 2º do art. 5º da CF, tendo em vista a sua identidade com os direitos fundamentais e sua materialidade constitucional. Importante ressaltar que o Direitos dos Homens são direitos naturais, que representam uma evolução histórica no plano filosófico e religioso e estão em um plano transcendental, dependendo da prática e dos costumes para serem aplicados. Os Direitos Fundamentais são a positivação dos Direitos dos Homens e se encontram nas Constituições Nacionais. E os Direitos Humanos são Direitos Fundamentais internacionalizados. Acrescido a isso, com o advento da Emenda Constitucional 45 e, assim, do § 3º do art. 5º da CF, o qual determina que: “os tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às Informação fornecida em aula de Direito Internacional Público, na Faculdade de Direito Damásio de Jesus, pelo Professor George Augusto Niaradi, em Setembro de 2013. 2 Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno 196 emendas constitucionais”, surgiu a possibilidade dos mencionados Tratados possuírem, também, formalidade constitucional. Segundo entendimento de Francisco Rezek: Pode haver dúvida preliminar sobre a questão de saber se determinado tratado configura realmente essa hipótese temática, mas se tal for o caso o Congresso seguramente adotará o rito previsto no terceiro parágrafo, de modo que, se aprovado, o tratado se qualifique para ter estatura constitucional desde sua promulgação – que pressupõe, como em qualquer outro caso, a ratificação brasileira e a entrada em vigor no plano internacional (REZEK, 2008, p. 102-103). Assim, a Convenção de Nova Iorque de Pessoas com Deficiência é o primeiro e único diploma internacional sobre Direitos Humanos aprovado pelo Congresso Nacional, com força de Emenda à Constituição Federal, ou seja, é material e formalmente constitucional. 6. Monismo e Dualismo Monismo vem da palavra grega que significa célula única. Assim, para o Monismo, tanto o ordenamento jurídico internacional, quanto o ordenamento jurídico interno, nascem de uma mesma célula, de uma mesma fonte, existindo uma unicidade do Direito. O Monismo tem como fundamento a existência de apenas uma ordem jurídica, com normas internacionais e internas, interdependentes entre si. Por esta teoria, as normas internacionais podem ter eficácia condicionada com o Direito Interno, e a aplicação das normas nacionais pode exigir que essas não contrariem os preceitos de Direito das Gentes aos quais o Estado se encontra vinculado (PORTELA, 2013, p. 60 e 61). Deste modo, a escola Monista se divide em: primazia do Direito Internacional e primazia do Direito Interno. Segundo o Monismo Internacionalista, o ordenamento jurídico é uno e o Direito Internacional é a ordem hierarquicamente superior, da qual derivaria e a qual estaria subordinado o Direito Positivo Interno de cada Estado. O Monismo Nacionalista, por sua vez, tem como fundamento a superioridade da soberania dos Estados, de forma que o ordenamento interno é hierarquicamente superior ao internacional, prevalecendo as normas internas frente às internacionais. Os monistas internacionalistas verificam a impossibilidade de que um Estado soberano tenha sobrevivido ou possa sobreviver em uma situação de indiferença frente ao conjunto de normas e princípios que compõem o Direito Internacional. Já os monistas com primazia no Direito Interno destacam especial importância à soberania de cada Mariana Dias da Costa do Amaral 197 Estado e à descentralização da sociedade internacional, propendendo ao culto da constituição (REZEK, 2008, p. 5). Contrária à escola Monista, existe a escola Dualista, que entende que há dois ordenamentos jurídicos distintos e totalmente independentes, o interno e o externo, cujas normas, teoricamente, não poderiam ser conflitantes. Por isso, na escola Dualista, sempre há o processo de ratificação, ou seja, o Tratado Internacional terá de se adaptar às normas nacionais, não se operando em qualquer Estado desde que esse tenha promovido sua introdução no plano interno. Para o Dualismo, o Direito Internacional regulamente a convivência entre os Estados, enquanto o Direito Interno disciplina as relações entre os indivíduos e entre esses e o Estado soberano. Para os autores dualistas, consoante ensinamentos de Francisco Rezek: (...) o direito internacional e o direito interno de cada Estados são sistemas rigorosamente independentes e distintos, de tal modo que a validade jurídica de um norma interna não se condiciona à sua sintonia com a ordem internacional. A Constituição Federal não responde se o Brasil adota o Dualismo ou o Monismo, contudo, há uma discussão doutrinária a respeito. Pode-se falar em um Dualismo Moderado, no qual, segundo Paulo Henrique Gonçalves Portela (2013, p. 60), a incorporação dos Tratados ao ordenamento interno se dá por meio de procedimento específico, distinto do processo legislativo comum, que normalmente inclui apenas a aprovação do Congresso Nacional e a ratificação do Chefe do Estado. Acontece que, se se seguir o entendimento de Cançado Trindade, a escola adotada é a Monista com primazia no Direito Internacional, uma vez que os § § 1º e 2º do art. 5º da CF garantem a incorporação imediata dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, tendo em vista sua materialidade constitucional (informação verbal)3. É possível se considerar, ainda, a existência de um Monismo com primazia no Direito Interno, uma vez que o Tratado Internacional deve passar por um processo de incorporação no qual o projeto de Decreto Legislativo passa por todas as comissões temáticas, tem sua constitucionalidade analisada pelas duas Casas do Congresso Nacional e, ao final, ser ratificado pelo Presidente da República por meio do Decreto de Promulgação, verificando-se a superioridade da norma interna. Informação fornecida em aula de Direito Internacional Público, na Faculdade de Direito Damásio de Jesus, pelo Professor George Augusto Niaradi, em Setembro de 2013. 3 Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno 198 Valério Mazzuoli traz à tona, ainda, o Monismo Internacional Dialógico, que se mostra a opção mais adequada, ou seja, quando se tratar de Direitos Humanos devese considerar a possibilidade de um diálogo entre o cenário internacional e o cenário interno, de modo a escolher a melhor norma a ser aplicada no caso concreto. Percebe-se que mesmo quando houver autorização para aplicação de uma norma interna considerada mais benéfica, ainda prevalecerá a norma internacional, uma vez que a norma interna somente será utilizada quando houver concessão da norma internacional que lhe é superior, porém de forma mais flexível, diferentemente do que prega a teoria Monista Internacional clássica (MAZZUOLI, 2009). Segundo o mencionado autor: Frise-se que essa “autorização” presente nas normas internacionais de direitos humanos para que se aplique a norma mais favorável (que pode ser a norma interna ou a própria norma internacional, em homenagem ao “princípio internacional pro homine”) encontra-se em certos dispositivos desses tratados que nominamos de vasos comunicantes (ou “cláusulas de diálogo”, “cláusulas dialógicas”, ou ainda “cláusulas de retroalimentação”), responsáveis por interligar a ordem jurídica internacional com a ordem interna, retirando a possibilidade de antinomias entre um ordenamento e outro em quaisquer casos, e fazendo com que tais ordenamentos (o internacional e o interno) “dialoguem” e intentem resolver qual norma deve prevalecer no caso concreto (ou, até mesmo, se as duas prevalecerão concomitantemente no caso concreto) quando presente uma situação de conflito normativo (MAZZUOLI, 2009). 7. Convenção 158 da OIT Consoante disposição do art. 7º, inc. I, da CF: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”. A Convenção 158 da OIT foi assinada em Genebra em 1982 e disciplina acerca do término do contrato de trabalho por iniciativa do empregador. A mencionada Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 68/92 (votado por maioria simples) e depois promulgada pelo Decreto 1.855/96, ingressando no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda em 1996, foi ajuizada uma ADIN pela CNI, questionando a constitucionalidade da incorporação da Convenção 158 da OIT, sob o argumento de Mariana Dias da Costa do Amaral 199 que o art. 7º, inc. I, da CF dispõe sobre a necessidade de regulamentação por meio de Lei Complementar, mas o Decreto Legislativo foi aprovado por maioria simples, como é aprovada uma Lei Ordinária. Em seguida, o STF concedeu liminar à CNI, determinando a não aplicação da Convenção até a decisão definitiva. Ocorre que, sete meses depois, sobreveio o Decreto de Denúncia 2.100/96, ficando estabelecido o prazo de um ano da manutenção da vigência da Convenção 158 da OIT, ou seja, até 30/11/97 os efeitos tinham de ser mantidos, devendo ser aplicada. Com isso, o STF declarou extinta a referida ADIN, tendo em vista a perda de seu objeto. Nesse cenário, foi proposta a ADIN pela CUT e CGT, alegando a inconstitucionalidade do Decreto de Denúncia expedido de forma discricionária pelo Presidente da República à época. Argumentaram que este ato fere o processo legislativo e a divisão do Poderes, visto que o Poder Executivo não pode revogar Lei mediante Decreto. Até o momento não há decisão relativa a essa ADIN. Insta consignar, primeiramente, que qualquer Convenção da OIT promove uma combinação entre paz e direitos sociais para os trabalhadores, visto que a OIT é a única Organização Internacional com uma repartição tripartite, participando os Estados, empregadores e trabalhadores. Assim, quando tratamos de uma norma de Direito do Trabalho, estamos diante de uma norma de Direito Humano, possuindo aplicabilidade imediata. Como já dito, por força dos § § 1º e 2º do art. 5º da CF, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos possuem materialidade constitucional e identidade com os direitos fundamentais. Com o acréscimo do § 3º, no referido artigo, pela Emenda Constitucional 45, caso fossem votados nestes moldes, passariam a ser material e formalmente constitucionais, equiparando-se à Emendas Constitucionais. Como a Convenção da 158 da OIT é Tratado Internacional de Direito Humanos, mas votado por maioria simples, consoante entendimento do STF, trata-se de norma supralegal, e não mera Lei Ordinária. Ademais, entendendo ser adequada a teoria Monista Internacional Dialógica, é certo que os sistemas interno e internacional formam um único sistema, havendo uma unicidade do Direito, de modo que um completa o outro. Incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico interno 200 Por isso, é evidente que a Convenção 158 da OIT possui aplicabilidade imediata e plena eficácia, independentemente da regulamentação que necessita o art. 7º, inc. I, da CF. Havendo posterior promulgação de Lei Complementar, que regulamente o supramencionado inciso, aplicar-se-á ao caso concreto a norma mais benéfica, conforme flexibilização trazida pela teoria Monista Dialógica. Por fim, não se pode deixar de mencionar que a denúncia realizada não possui eficácia, o que valida o Decreto de Promulgação que ratificou a Convenção. Isso porque, não houve prévia “autorização” do Poder Legislativo para realização do ato de denúncia, que não pode ser realizado de forme discricionária pelo Presidente da República. 8. Referências Bibliográficas MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Internacional Público & Direito Internacional Privado. São Paulo: Ed. Atlas, 2007. NIARADI, George Augusto. Coleção Exames da OAB – Direto ao Ponto – 1ª fase – Volume 10: Direito Internacional. Rio de Janeiro: Ed. Academia, 2010. PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 5ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2013. REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. 11ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008. 9. Webgrafia MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Monismo Internacionalista Dialógico. Disponível em http://www.lfg.com.br. Acesso em: 06 de abril de 2009. 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