Comentando Balint Sobre o que motiva os alunos a procurarem a disciplina, o Rafael sintetizou muito bem, procuramos como ele “um espaço onde pudesse ouvir e ser ouvido quanto às experiências médicas, obter respostas a perguntas “ousadas” e nunca respondidas”. Cursamos a disciplina enquanto estamos nas enfermarias, após a saída da M6 na clínica geral e a entrada nas especialidades. Dentre os muitos aprendizados implícitos desta época, gostaria de destacar o da hierarquia. A hierarquia médica staff – residente – interno – M6/7, óbvia e declarada. As hierarquias não bem definidas, mas muitas vezes percebidas em discriminações entre especialidades e profissões, (ex: quem nunca viu nenhum médico torcendo o nariz para uma enfermeira ou um médico de CTI que esnoba o trabalho “improdutivo” dos médicos de ambulatório, são clichês, claro, mas dizem algo sobre o imaginário da classe). Citando o Balint, aprendemos cedo a hierarquia entre as doenças: as doenças são agrupadas em um tipo de ordem hierárquica grosseiramente correspondente à gravidade das alterações anatômicas que podem ser demonstradas ou presumidas nelas. O prestígio está em diagnosticar um adenocarcinoma, jamais em desvendar que uma dor semelhante e inapetência deve-se a um luto. A hierarquia desdobra-se nos pacientes: não apenas às doenças se aplica esse tipo de ordem mas também aos pacientes, por assim dizer, presos a elas. Os pacientes cujas queixas possam ser acompanhadas de alterações anatômicas ou fisiológicas demonstráveis ou presumíveis têm lugar de destaque nessa escala hierárquica, sendo que os neuróticos ocupam os lugares deixados vagos depois de que todas as demais doenças tenham sido classificadas. No começo de nossa experiência clínica, temos tempo de sobra para conversar com os pacientes, freqüentemente na enfermaria só nós o fazemos, afinal, é o trabalho “menos importante” delegado aos que estão no mais baixo patamar da hierarquia. Muitas vezes, frente a sintomas obscuros e mutáveis perguntamos a algum professor especialista “será que essa queixa não pode ser funcional?” A resposta sempre é, “pode ser, mas antes sempre devemos descartar as causas orgânicas, mais sérias”. Balint nos mostra que essa é uma verdade parcial que reflete mais nossa falha de treinamento. Os clínicos gerais tem sido treinados em hospitais por especialistas. Os especialistas sabem como curar doenças que pertençam a seu campo especial, se elas forem curáveis, e conhecem também as limitações de suas especialidades; mas, no que diz respeito à personalidade total do paciente, eles têm contato bem menor com ela, sendo que se pode mesmo suspeitar que não conhecem nada a respeito. Quando migramos da M6 para a M7 percebemos isso mais nitidamente:na clínica, todos os sintomas são autorizados, nas especialidades, só os de determinado sistema são dignos de preocupação. Balint parte da tese de que construção da doença passa pela atuação do médico, como ele acolhe a queixa do paciente. algumas das pessoas que, por uma razão ou por outra, acham difícil lidar com os problemas de suas vidas, apelam para o recurso de adoecer. Se o médico tem oportunidade de vê-los nas primeiras fases de seu tornar-se doente, isto é, antes que se acomodem numa doença definitivamente "organizada", ele pode observar que esses pacientes, por assim dizer, oferecem ou propõem várias doenças, e que eles precisam continuar oferecendo novas doenças até que entre o médico e o paciente possa ser alcançado um acordo, que resulte na aceitação por ambos de uma das doenças como bem fundamentada Na clínica médica, em relação ao arsenal terapêutico, a droga mais freqüentemente utilizada era o próprio médico. No entanto ainda não existe nenhum tipo de farmacologia a respeito de tão importante substância Em relação ao aprendizado de “fazer-se remédio” admite-se que a experiência e o senso comum ajudarão ao médico a adquirir a habilidade necessária para receitar-se a si mesmo. “Senso comum”, ou “bom senso” são expressões que disfarçam mal uma falta de diretriz. Afinal, não é raro que a relação entre o paciente e seu médico seja tensa, incomoda, e mesmo desagradável. Esses e outros efeitos colaterais do remédio “médico” não muito claros a princípio, nos inquietam, nos desconfortam e por eles chegamos à disciplina. Na última conversa com a prof Alicia ela nos falou da tensão estruturante da clínica médica “doença x doente”. Essa tensão polarizada para a doença leva aos problemas tão discutidos. Quebrada em duas vertentes, numa medicina “romantizada” e outra “séria ou real” também nos é de pouca utilidade, uma vez que a maioria deseja tornar-se um médico, sujeito na maioria das vezes à situação vigente, precária e apressada dos tempos atuais. Portanto, ao meu ver, a diretriz de nossa disciplina ao buscar a ferramenta da Literatura para nossas discussões (e devaneios) tem sido a melhora de nossa formação médica. Nossa proposta é uma formação mais abrangente mais capaz de lidar com os desafios que nossos pacientes nos oferecem. Lígia Lorandi Ferreira Carneiro