A MÍDIA COMO ESTATUTO PEDAGÓGICO BEAL, Mariza1 Das salas de aula do ensino fundamental aos meios universitários, em todos os lugares em que, de alguma forma, cidadãos/as brasileiros/as estejam participando do processo de produzir e socializar o conhecimento sobre a Língua Portuguesa, percorre uma saudável inquietação quanto à urgência de reestruturar conteúdos, renovar métodos de ensino repensar objetivos educacionais. Para repensarmos essas questões é primordial termos claro as diferentes perspectivas de ensino e concepções de linguagem que, segundo Geraldi (2001), podem ser agrupadas em três possibilidades: a) a linguagem como expressão do pensamento; b) a linguagem como instrumento de comunicação; e, por fim, c) a linguagem como forma de interação. A primeira concepção (tradicional) é basicamente a que sustenta todo movimento de ensino tradicional de língua/linguagem. Se concebermos a linguagem como expressão do pensamento, diz Geraldi (2001), “somos levados a afirmações – correntes- de que pessoas que não conseguem se expressar não pensam”.(p. 41). ). Neste caso, aquilo se entende por “expressão” seria construído no interior da mente, sendo sua exteriorização apenas uma tradução. É possível, portanto, dizer que esta idéia de língua guarda fortes relações com uma perspectiva cognitivista/psicogenética. Essa concepção estruturalista acredita que a linguagem é própria do ser humano, algo congênito, que é formulada pelos indivíduos de modo autônomo e consciente e que suas significações estão presentes na consciência dos mesmos, nos pensamentos dos indivíduos. Portanto, a linguagem, se encarada assim, acaba sendo tomada como algo fixo, imutável e, portanto, algo que só pode ser expresso. A concepção estruturalista se embasa na teoria gramatical, já que prima pelo domínio de regras e nomenclaturas, ou seja, o/a aluno/a precisaria, para esta concepção, conhecer, ter posse da gramática para, só assim, “saber falar e escrever a língua portuguesa”. Este argumento é bastante questionável, pois de acordo com o que diz Possenti (1996), “[...] se pode falar e escrever numa língua sem saber nada “ sobre”ela, por um lado, e que, por outro lado, é perfeitamente possível saber muito “sobre” uma língua sem saber uma frase nessa língua em 1 Pedagoga, Pós-Graduanda do curso de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira da Faculdade União Panamericana de Ensino-UNIPAN. Contato: [email protected] situações reais.”(p.54). Penso que é possível dizer que, quem tem propriedade gramatical, na maioria das vezes não consegue escrever um texto fluente, coerente, por outro lado, quem tem domínio discursivo, sabe empregar adequadamente em sua escrita os elementos de coerência e também as regras e as exceções da gramática, pois o falante tem conhecimento de sua língua materna, portanto não cometerá tantos “erros”, tendo em vista que a estrutura da língua é de conhecimento até mesmo de uma criança de três anos. Por fim, há a concepção de linguagem que toma a língua como forma de interação, isto é, que entende que a linguagem não é neutra, imparcial, muito menos objetiva. É que para Geraldi, [...] mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como lugar de interação humana. Por meio dela, o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria levar a cabo, a não ser falando; com ela, o falante age sobre o ouvinte, construindo compromissos e vínculos que não pré-existem à fala. (2001, p. 41) Desse modo, é possível dizer que o discurso é produto de múltiplas relações sociais, já que, para concepção interacionista, o caráter de convencionalidade dos signos é considerado fundamental. Assim, ao invés da memorização de regras e nomenclaturas, a concepção interacionista vai exigir um trabalho de reflexão sobre a língua, implementado através de atividades de análise lingüística que, ao contrário dos costumeiros exercícios gramaticais, não apresentam um fim em si mesmas, o objetivo maior é o desenvolvimento das habilidades discursivas. ''A língua é concebida como uma forma de interação [...] entre alunos, entre professores e alunos, entre alunos e outras culturas e, principalmente, entre os alunos e a língua enquanto discurso'' (PISCIOTTA, 2001, p. 97). Entendo que a gramática tem sido o objeto de ensino de Língua Portuguesa e não a língua na sua forma enunciativa. Refletindo sobre o ensino (im)posto nas escolas é possível verificar como a prática vem sendo a de promover um ensino de língua, descontextualizado, mecânico, altamente conteudista, baseado apenas numa lógica de classificação, ordenação e nomeação da estrutura da língua. E esses posicionamentos talvez só serão deslocados quando os/as educadores/as tiverem maior discernimento das concepções de língua, como já fiz menção anteriormente, pressuponho que será uma tarefa difícil, por isso que senti a necessidade de estar escrevendo ainda sobre as concepções. A Lingüística moderna tem visto e tem mostrado a língua dentro de uma complexidade extraordinária e é justamente essa complexidade que nos vai abrir uma porta para outra visão do ensino de língua. As breves idéias aqui apresentadas são, portanto, um material para a reflexão sobre a língua e sobre as políticas de seu ensino. Além disso, são um convite às investigações, à reflexão coletiva e ao estímulo a uma crítica dos conteúdos e estratégias de trabalho com a linguagem em sala de aula. Mídia: instância de subjetivação A mídia vem, em nossa época, se constituindo em uma importante instância de subjetivação do nosso ser/estar no mundo, a partir do momento em que estabelece regras de comportamento, seduzindo-nos a viver/experienciar certas normas, padrões, que vão desde a maneira como nos relacionamos com o nosso corpo até a forma como enxergamos os outros e o mundo, o que, em muitos casos, reafirma preconceitos e estereótipos. Dentre muitos preconceitos fabricados e difundidos pela mídia, há um que me intriga bastante, que é preconceito lingüístico, e que tem a ver com a maneira como as pessoas enxergam o que é linguagem “correta”, norma “culta” da língua, variedades lingüísticas, “erro” lingüístico e assim por diante. Nesse sentido, a mídia vem formando as pessoas a partir de certas representações que ela cria e veicula como verdadeiras, de modo que, muito freqüentemente, somos levados/as a perceber o mundo pelo olhar dos meios midiáticos. Além, evidentemente, de uma representação de língua correta difundida pela mídia, outros preconceitos acabam, também, sendo reafirmados no momento que ganham o universo midiático. Um exercício interessante, portanto, é analisar qual a função dos personagens negros nas novelas, por exemplo, os quais são tratados ainda como na época da escravatura, pois são sempre os serviçais, nunca os patrões. A homossexualidade é outro exemplo, já que ela é retratada, ainda, com sarcasmo em quase todos os programas humorísticos da TV. Num programa que tem audiência significativa nos domingos à tarde, na Rede Globo de televisão, intitulado Domingão do Faustão, o apresentador não se cansa de fazer “chacota” com as pessoas gordas (que passam nas videocassetadas), reforçando um dos grandes preconceitos em nossa cultura, que é em relação à obesidade. Todos esses grupos que trafegam “à margem” (inclusive quem não fala a variedade padrão da língua) daquilo que é considerado padrão, normal, correto, acabam ganhando as páginas das revistas e jornais ou as telas de TV e, sobre eles, são construídas certas representações veiculadas como “verdade”. Em confluência com essa minha preocupação, faço uso da fala de Fischer (1997), que problematiza dizendo que: [...] poderíamos dizer que a mídia, em nossa época, estaria funcionado como um lugar privilegiado de superposição de “verdades”, um lugar por excelência de produção, circulação e veiculação de enunciados de múltiplas fontes, sejam eles criados a partir de outras formações, sejam eles gerados nos próprios meios. (FISCHER, 1997, p.65). Enfatizo, porém, que não estou aqui sendo “apocalíptica” em relação à mídia, mas apenas busco instigar quem me lê a repensar, desconstruir uma certa postura ingênua que muitos têm diante dos elementos que circulam nos meios de comunicação. Acredito que vale lembrar que a mídia mais presente no cotidiano das pessoas em geral é a TV, a qual alterou até mesmo as relações familiares, pois as pessoas passam maior tempo com a “telinha”. Estima-se que as crianças, por exemplo, dedicam a metade do seu tempo à televisão (ou Internet, no caso das crianças que têm acesso). Alguns questionamentos são importantes diante destes dados, visto que a mídia, a toda hora, nos interpela ao seu mundo, portanto, é importante a escola não abrir mão de discutir com os alunos a linguagem da mídia e os modos de subjetivação que ela articula. Sabemos que os veículos de comunicação, através de sua linguagem, têm força para construir/destruir personalidades, produtos, enfim, tudo o que for de interesse público, já que a mídia acaba criando efeitos de “verdades” em função daquilo que veicula. Diante dessas considerações sobre a mídia é que passo a analisar algumas representações que se tem de Linguagem/Língua, em sites da Internet, na tentativa de mostrar como esses sites constroem e veiculam certas noções do que vem a ser “erro” lingüístico, norma lingüística, falar “correto” e por aí vai. Já que a mídia tem força de subjetivação, já que ela forma, produz sujeitos, penso ser importante pensar como os meios de comunicação discursam a língua e a linguagem, ou seja, penso ser fundamental entender qual “a língua da mídia”. Breve exercício de análise Neste momento, farei uma análise referente a algumas páginas da Internet, que é uma mídia muita utilizada por pessoas de todas as idades. Busquei identificar qual concepção de língua/linguagem está sendo veiculada nestes sites, bem como quais representações de língua “correta”, “errada” são fabricadas e veiculadas por eles. Como discuti anteriormente, nenhum discurso é neutro, objetivo, imparcial e , reforço essa idéia atentando para os discursos de “verdades absolutas”, usadas pela mídia, que ensina como ser/estar no mundo. A mesma invade todos os lares, todos os ambientes, porém, não nos atentamos, muitas vezes, para como somos interpelado/as, conformados/as pelos discursos midiáticos. É justamente para questionar sobre isso faço esta discussão. O que evidenciei na minha busca foi à excessiva idéia, que está posta nesses sites que analisei, de língua “correta”, de saber falar o português, ter domínio gramatical. Um desses exemplos foi constatado em uma página (Anexo 1) que comenta sobre um “maravilhoso produto”, trata-se do Dicionário Houaiss de Verbos da Língua Portuguesa, que traz informações para “você” aprender a conjugar os verbos. Verbos da primeira, da segunda e da terceira conjugação, verbos abundantes, verbos de duplo particípio – no início era o verbo, e depois? Depois restaram as dúvidas. Para a professora Vera Rodrigues, autora deste dicionário, professora com mais de 30 anos de experiência no ensino médio e de pós-graduação, conjugar corretamente os verbos é um dos maiores desafios da nossa língua.” (grifo meu) Embora o enunciado seja sintético, ele possibilita várias análises. Começo pela concepção de língua presente no mesmo, isto é, extremamente estruturalista, que vê a língua como algo morto, independente das pessoas que a falam. Outra questão indispensável concerne ao mito mencionado por Bagno (2003), de que “o Português é muito difícil” (p. 35), ou seja, se conjugar corretamente os verbos é um desafio da nossa língua (parte também do pressuposto de que outras línguas são menos complicadas) isso é decorrente de alguma dificuldade, senão não seria desafio. O que me preocupa ainda mais, é que a defensora desta idéia seja uma profissional tão “experiente” na área. Acho pertinente mencionar, ainda, o slogan do produto: “o Dicionário Houaiss de Verbos se constitui numa obra de referência duradoura e indispensável”. Ou seja, a “língua é estática, não muda”, portanto poderá “sempre” consultar a obra sem medo de errar! A página principal de um outro site, o “Nossa Língua”, de Cláudio Moreno, (Anexo 2) traz dicas de como fazer “consultas gramaticais” que é mais um dos comandos paragramaticais. Segundo o referido site, é possível tirar todas as dúvidas: “Pergunte ao Doutor”, “Lições de Gramática”, “Como se escreve?”. “Afinal, qual é o correto: “Meu problema é os olhos" ou "Meu problema são os olhos"? "Tudo é vaidades" ou "Tudo são vaidades?” É verdade: o mundo das palavras é um campo vasto, mas pode ser facilmente trilhado por aqueles estimulados pela curiosidade e pela vontade de conhecer sua própria língua. O nosso objetivo é oferecer a você alguns "atalhos" para conquistar este mundo. Para isso, a Minigramática apresenta uma série de normas cultas do bem escrever e do bem falar. Através da Minigramática você poderá conhecer as Classes Gramaticais, os Termos da Oração, e alguns fenômenos da linguagem, como a Concordância, a Regência Verbal, a Colocação Pronominal, entre muitos outros. Esperamos contar com o seu entusiasmo sempre maior pela língua portuguesa. (grifo meu) Abordagem essa do site Minigramática (Anexo 3). É incrível! Será mesmo que é desta forma que se aguça alguém a ter entusiasmo em conhecer mais a Língua Portuguesa? Para conhecer as formas do “bem” falar? Desde quando tenho de ser conhecedor/a da gramática para expressar-me com desenvoltura, fazer-se entender? O “bem” falar, então, restringe-se ao domínio da gramática? Se o “bem falar” articula-se à norma culta, como falam, neste caso, as pessoas que não priorizam ou não falam a mesma? Faço questão de me posicionar de forma muito peculiar, no que se refere ao conceito de “bem” falar e escrever, já que pra mim esta idéia está associado à gramática normativa. Pois bem, declaro que nunca aprendi gramática e acredito que não por incompetência, mas talvez por não ver importância no aprendizado da mesma. Nem por isso tenho dificuldade de interagir discursivamente, me fazer interlocutora de outro/a. Meu entusiasmo pela Língua Portuguesa, ao reverso do que diz o enunciado, é pelo intento de evidenciar que o domínio discursivo é muito mais eficiente que o domínio gramatical. O mais intrigante é que os discursos que primam pelo ensino da gramática estão em todos os lugares, ou seja, em qualquer veículo de comunicação, ganhando status de verdade, pela estratégia de convencimento, pelas figuras de linguagem, pelas técnicas argumentativas. Sempre no sentido de incitar a quem vê/ouve/navega/lê a se unificar a tal proposição, caso contrário, existe a possibilidade do sujeito não ser aceito socialmente. Prosseguindo com a análise das páginas da Internet, encontrei mais uma “pérola” (Anexo 4). Trata-se do comentário referente a um professor, consultor, e colunista que apresenta um novo livro. Dessa vez, Sérgio Nogueira Duarte reúne 22 colunas (publicadas aos domingos no Jornal do Brasil), no segundo volume de Língua viva. Diz o enunciado que: “Um dos grandes méritos de Sérgio, pioneiro no trabalho de "estudar" a língua portuguesa em veículos de mídia, é mostrar que falar e escrever corretamente não é um bicho-de-sete-cabeças”. (grifo meu).Afirma ainda que: A intensa participação dos leitores — mais de cem correspondências por semana — é fundamental para a construção de suas colunas. Depois de 30 anos de carreira, o professor está feliz com o sucesso, confirmado também pela permanência do primeiro Língua viva por dois meses na lista dos mais vendidos ano passado. Sérgio saboreia mais essa prova de que cresce a preocupação com a comunicação eficiente. "As empresas e os profissionais estão percebendo que podem perder bons negócios por causa de um texto incompreensível”.Para ele, é preciso escrever corretamente, mas também com clareza e concisão. Língua viva II é um excelente guia para a comunicação no dia-a-dia. Reafirma-se o mito de que o português é muito difícil, que as pessoas têm muitas dúvidas, mais uma vez a confusão entre língua/linguagem e gramática, visto que o Língua viva aborda questões extremamente gramaticais. Pois veja o que diz sobre o livro Língua Viva: “fala dos hífens —“é difícil mesmo” —, dos homônimos, de regência verbal etc. Tudo com bom humor e recursos populares; entre seus exemplos prediletos estão as transmissões esportivas e suas expressões engraçadas e instrutivas, como "completamente impedido", "praticamente meio gol", entre outras.” Quando fala que o texto dever ser claro, conciso (mas o livro aborda questões gramaticais) torna-se paradoxal, visto que quando tratei das concepções de linguagem, trouxe a contribuição embasada na concepção interacionista que ao invés da memorização de regras e nomenclaturas, vai exigir um trabalho de reflexão sobre a língua que, ao contrário dos costumeiros exercícios gramaticais, não apresenta um fim em si mesmas, o objetivo maior é o desenvolvimento das habilidades discursivas. ''A língua é concebida como uma forma de interação” como diz Pisciotta, (2001, p. 97). Considerações Finais Qual o problema da mídia trazer os conceitos de língua, beleza e atitude padrão como os únicos legítimos? Por que não existe nenhuma legitimidade, as relações de poder é que determinam o que é ou não verdadeiro. Os resultados são esses que estou apresentando neste momento. O que pretendo dizer com isso, nada mais é que a Língua Portuguesa parece estar restrita à gramática normativa no universo cibernético. Mesmo a internet sendo um exemplo da dinamicidade da língua. Em vários sites é explicita a “falsa” idéia de preocupação em ensinar as pessoas escreverem, lerem e falarem corretamente, por isso trazem dicas gramaticais. Digo falso, por entender que a concepção de linguagem que possibilita domínio discursivo afirma que o mesmo não decorre de domínio gramatical. E o “falar corretamente” articulado à variedade culta, deixa vazar a noção que as demais variedades são errôneas. Percebo que ainda tem de se discursar muito sobre as múltiplas possibilidades que nos oferece a língua enquanto discurso. Referências BAGNO, Marcos. Preconceito Lingüístico: o que é, como se faz. 27ª ed. São Paulo: Loyola, 2003. FISCHER, Rosa Maria Bueno. O estatuto pedagógico da mídia: questões de análise. In: Educação & Realidade. V.2, n.2, jul./dez. 1997, p. 59-79. GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2001. PISCIOTTA, Harumi. Análise Lingüística: do uso para a reflexão. In: BRITO, Eliana Vianna (Org.). PCNs de Língua Portuguesa: a prática em sala de aula .São Paulo: DP&A, 2001. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar a gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 1996. SECRETARIA de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. 2 ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.