NEUROCIRURGIA DAS DESORDENS PSIQUIÁTRICAS Dr. Osvaldo Vilela Filho A primeira psicocirurgia fisiologicamente fundamentada (lobotomia pré-frontal) foi realizada em seres humanos por Egas Moniz (eminente neurologista português) e Almeida Lima (jovem neurocirurgião português) em 1936. Naquela época, não havia, realmente, nenhuma droga eficaz para o tratamento de uma diversidade de doenças psiquiátricas; de fato, a primeira droga antipsicótica, a clorpromazina, só foi disponibilizada no mercado nos anos 1950, precisamente 20 anos após a primeira psicocirurgia, em 1956. Muito provavelmente foi a associação desse último fato aos excelentes resultados inicialmente reportados com o tratamento cirúrgico (melhora significativa em cerca de 70% dos pacientes) a responsável pela larga aceitação e realização de milhares de lobotomias em todo o mundo, sobretudo nos anos 1940 e 1950. Em 1949, Egas Moniz foi agraciado com o Prêmio Nobel de Medicina, “pela descoberta do valor terapêutico da leucotomia pré-frontal em certas psicoses”. Não obstante a melhora significativa observada, complicações também ocorreram, em especial um índice de mortalidade de 6% e a síndrome póslobotomia, caracterizada por apatia, euforia, emissão de palavras obscenas, comportamento inadequado e incapacidade de julgamento, presente em cerca de 1,5% dos casos. Tais complicações levaram à procura de procedimentos igualmente efetivos, mas com uma menor ou mais aceitável morbidade. Assim, surgiram cirurgias cada vez mais restritas, o que foi grandemente facilitado pela introdução da técnica estereotáxica para a cirurgia em seres humanos em 1947 por Spiegel e Wycis. A técnica estereotáxica, utilizando do princípio cartesiano, permite que estruturas milimétricas no interior do cérebro sejam atingidas através de um pequeno orifício realizado na abóbada craniana. Assim, os anos 1960 assistiram ao nascimento de uma gama de novas cirurgias destinadas ao tratamento das doenças psiquiátricas, todas elas utilizando a técnica estereotáxica, quais sejam: capsulotomia anterior (Talairach, 1949; Leksell, 1952), hipotalamotomia posteromedial (Sano, 1962), amigdalotomia (Narabayashi, 1963), tratotomia subcaudata (Knight, 1965), cingulotomia anterior (Ballantine, 1965) e leucotomia límbica (tratotomia subcaudata + cingulotomia anterior; Kelly, 1972). O índice de sucesso com esses procedimentos é bastante satisfatório (70%, em média) e a morbidade, bastante baixa: mortalidade inferior a 1% (na verdade, próxima de 0%), sérias complicações sensitivo-motoras ou cognitivas de 0,45% e incidência de epilepsia também inferior a 1%. Para se ter uma ideia da adequação desses resultados, basta compará-los aos obtidos com as cirurgias neurológicas destinadas, por exemplo, ao tratamento dos tumores e aneurismas intracranianos, as quais apresentam, em geral, incidência de complicações maior, inclusive aquelas de natureza cognitiva. Vieram, então, os anos 1970, anos de indescritível tumulto para a psicocirurgia. Países democratas, sobretudo os Estados Unidos e o Japão, vivenciaram uma grande agitação estimulada por provocadores que acenavam com a bandeira de que a psicocirurgia poderia ser utilizada para “pacificar a minoria e as mulheres e levar a um controle social opressivo” e que, por essas razões, deveria ser extinta. A existência de casos notórios, como o de Rosemary Kennedy, irmã do então presidente Kennedy, que apresentou pronunciadas sequelas decorrentes de uma lobotomia, e de filmes como De Repente no Último Verão, estrelado pela então ainda bastante jovem Elizabeth Taylor, versando sobre os efeitos nefastos, embora infrequentes, das lobotomias indubitavelmente em muito contribuíram para a causa dos adversários da psicocirurgia. Tão grande foi a pressão política que muitos psiquiatras e neurocirurgiões relutaram em ser envolvidos. Bastante curiosa e ilógica é a sequência cronológica dos fatos: o movimento antipsicocirurgia, que, se tivesse sido iniciado nos anos 1940, 1950 e até 1960, seria, até certo ponto, compreensível, só surgiu nos anos 1970, quando a incidência de complicações das psicocirurgias realizadas pela técnica estereotáxica, como já mencionado, era mínima! Ainda mais: nos Estados Unidos, em 1974, o congresso criou o Comitê Nacional para a Proteção de Seres Humanos de Pesquisa Biomédica e Comportamental, ao qual foi dada a incumbência de investigar a fundo as psicocirurgias. Cumpre salientar que muitos membros do comitê eram contrários a essa modalidade cirúrgica. Em 1976, todavia, foi publicado o relatório final dessa comissão na revista Science (Culliton BJ. Psychosurgery: National Commission issues surprisingly favorable report. News and Comment. Science. 1976;194:299-301), favorecendo a prática da psicocirurgia atual. Em entrevista, o chefe da comissão teria dito: “Olhamos os dados e eles não corroboram nossos preconceitos. Eu, por exemplo, jamais esperei sair deste estudo a favor da psicocirurgia. Mas nós verificamos que pessoas muito doentes foram beneficiadas... A psicocirurgia não deve ser banida”. Tais anos vergonhosos, felizmente, passaram, mas, mesmo em seu auge, serviços de ilibada reputação nos Estados Unidos, como o de Ballantine Jr, em Boston (Massachussets General Hospital, Harvard University), e diversos outros na Europa, sobretudo na Inglaterra, Suécia e Espanha, persistiram na realização da psicocirurgia nos casos clinicamente intratáveis. Cumpre assinalar alguns conceitos plenamente aceitos por toda a comunidade neurocirúrgica mundial: 1. Dizia-se que a neurocirurgia tratava de cérebros estruturalmente doentes, enquanto a psicocirurgia, não mais que uma modalidade neurocirúrgica, tratava de cérebros estruturalmente sadios. Trata-se esta de uma grande inverdade. Vejamos alguns exemplos. Nas distonias e no tremor essencial, classificados no grupo das desordens do movimento, indicações relativamente frequentes de cirurgia, o cérebro é estruturalmente normal. Esse é também o caso de certas formas de dor crônica e de algumas modalidades de epilepsia generalizada. Mesmo na doença de Parkinson, na qual anormalidades estruturais cerebrais são há longo tempo reconhecidas (degeneração de células da substância negra compacta, locus ceruleus e núcleo dorsal do vago, dentre outras estruturas), os alvos focos de cirurgia (tálamo, globo pálido interno, núcleo subtalâmico e, mais recentemente, também o núcleo pedunculopontino) são também estruturalmente normais. Anormalidades bioquímicas, contudo, estão frequentemente presentes tanto nas doenças neurológicas como psiquiátricas. 2. As neurocirurgias das desordens psiquiátricas não podem mais ser consideradas nem empíricas nem experimentais. Elas estão hoje muito bem embasadas em um conhecimento profundo dos circuitos neurais e em achados dos exames de neuroimagem funcional (ressonância magnética funcional, tomografia por emissão de pósitrons e tomografia computadorizada por emissão de fóton único). Sua eficácia também está plenamente documentada por um enorme número de autores espalhados por todo o mundo. Talvez uma das publicações de maior importância quanto a esse pormenor seja o livro Neurosurgery for Mental Disorder, publicado por um grupo de trabalho composto por psiquiatras ingleses do Royal College of Psychiatrists, em 2000. Dentre as doenças psiquiátricas com clara indicação cirúrgica, quando indubitavelmente refratárias ao tratamento conservador, podem-se citar: o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), a síndrome de Tourette, a depressão maior e a agressividade (hetero e autoagressividade) associada à esquizofrenia ou à oligofrenia herética. 3. A denominação “psicocirurgia”, que pode sugerir uma cirurgia da “mente”, o que é uma inverdade (opera-se o cérebro e não a mente!) e já tão estigmatizada, deve ser abandonada em favor de uma outra denominação: “neurocirurgia das desordens psiquiátricas”, conforme decidido pelo Psychiatric Surgery Committee da World Society for Stereotactic and Functional Neurosurgery, em Shanghai, em 11 de março de 2011. 4. Cerca de 20% da população mundial apresenta alguma desordem psiquiátrica. Dentre as mais frequentes encontram-se a depressão maior (monopolar) e o TOC. Entre 10 e 20% dos pacientes com essas duas doenças são refratários ao tratamento conservador otimizado por psiquiatras experientes em tratá-las. O que fazer com esses pacientes? Deixá-los sucumbir com essas terríveis doenças, causas que são de enorme sofrimento para seus portadores e familiares, quando a cirurgia pode melhorar substancialmente sua qualidade de vida, às custas de um baixíssimo risco, de fato significativamente menor que de uma grande variedade de outras neurocirurgias? Devemos deixar que pacientes deprimidos suicidem-se, que os portadores de TOC passem toda uma vida, que poderia ser produtiva, realizando seus intermináveis rituais, e que os pacientes agressivos continuem se automutilando ou agredindo até mortalmente outrem, tudo por causa dos estigmas e preconceitos inadequadamente dispensados à neurocirurgia moderna das desordens psiquiátricas, tão diferente das lobotomias que deflagraram esses mesmos estigmas e preconceitos? Afinal, onde estão os direitos humanos? Onde estão os direitos do paciente de querer ser tratado? E, finalmente, onde está o direito e dever conferido ao médico de oferecer ao paciente o melhor tratamento disponível, desde que não experimental? Nos anos 1980, uma técnica cirúrgica denominada “estimulação cerebral profunda”, que lançava mão da técnica estereotáxica, já utilizada para o tratamento de certas modalidades de dor crônica, passou a ser empregada para o tratamento da doença de Parkinson e outras desordens do movimento. Essa é, hoje, a técnica de eleição para tratar essas doenças. Em 1999, ela passou a ser utilizada para o tratamento do TOC e da síndrome de Tourette e, em 2005, para o tratamento da depressão e da agressividade. A grande vantagem dessa técnica é sua completa reversibilidade, visto que nenhuma lesão é infligida ao cérebro. Muito atraente e mostrando resultados bastante promissores, essa técnica, sim, pode ser ainda considerada experimental no que se refere ao tratamento das doenças psiquiátricas. Com certeza, contudo, à semelhança do que ocorreu com a cirurgia das desordens do movimento, sobretudo nos países desenvolvidos, nos próximos anos ela acabará por substituir as neurocirurgias psiquiátricas atuais, nas quais, utilizando-se a técnica estereotáxica, lesões em alvos bem restritos são realizadas por termocoagulação com radiofrequência ou via radiocirurgia. Tão importante quanto a análise técnica da neurocirurgia das desordens psiquiátricas é sua análise ética. Por muitos anos, o tratamento cirúrgico das desordens psiquiátricas foi regulamentado pelo artigo 8o da resolução número 1.408, de 1994, do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicado no Diário Oficial da União (DOU) de 14 de junho de 1994 (Seção I, página 8548), que é transcrita a seguir: “A psicocirurgia e outros tratamentos invasivos e irreversíveis para transtornos mentais somente serão realizados em um paciente na medida em que este tenha dado seu consentimento esclarecido, e um corpo de profissionais externos, solicitado ao Conselho Regional de Medicina, estiver convencido de que houve genuinamente um consentimento esclarecido e de que o tratamento é o que melhor atende às necessidades de saúde do usuário”. Após 6 anos, presumivelmente refletindo uma maior compreensão por parte dos nossos pares dos grandes avanços da cirurgia psiquiátrica moderna, a resolução supracitada foi substituída pela de número 1.598, do CFM, publicada no DOU de 18 de agosto de 2000, que normatiza o atendimento médico a pacientes portadores de transtorno mental. De grande relevância são os artigos 1o, 6o e 21 dessa última resolução, a seguir são transcritos: Art. 1º – É dever do médico assegurar a cada paciente psiquiátrico seu direito de usufruir dos melhores meios diagnósticos cientificamente reconhecidos e dos recursos profiláticos, terapêuticos e de reabilitação mais adequados para sua situação clínica. Art. 6º – Nenhum tratamento deve ser administrado a paciente psiquiátrico sem o seu consentimento esclarecido, salvo quando as condições clínicas não permitirem a obtenção desse consentimento, e em situações de emergência, caracterizadas e justificadas em prontuário, para evitar danos imediatos ou iminentes ao paciente ou a outras pessoas. Parágrafo único – Na impossibilidade de obter-se o consentimento esclarecido do paciente, e ressalvadas as condições previstas no caput deste artigo, devese buscar o consentimento de um responsável legal. Art. 21 – Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Pelo exposto, pode-se inferir que a resolução 1.598 revoga as resoluções anteriores (tal inferência pode ser confirmada em ofício – ofício CFM número 3.243/2003 – encaminhado ao Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás – Cremego – pelo então presidente do CFM, Edson de Oliveira Andrade, mediante consulta prévia – ofício Cremego 442/2003) e que, no caso de portadores de doenças psiquiátricas graves, refratárias ao tratamento conservador otimizado, conforme atestado em documento escrito pelo psiquiatra assistente, sendo a doença a causa de significativo prejuízo para o paciente, a cirurgia pode ser indicada e realizada para tal fim, bastando obterse o termo de consentimento informado do paciente ou, quando impossível (por exemplo, em caso de paciente com retardo mental pronunciado), de seu responsável legal. Afinal, nada mais lógico! Não obstante, parecendo ainda persistirem dúvidas quanto à legislação vigente (por exemplo, conforme o artigo 21 da resolução 1.598 de agosto de 2000, revogam-se as disposições em contrário, embora não seja feita menção específica às resoluções 1.407 e 1.408 do CFM), o conselho criou uma nova comissão para estudar profundamente a questão. O trabalho dessa comissão resultou na resolução 1.952 do CFM de 11 de junho de 2010, publicada no DOU em 7 de julho de 2010, seção I, página 133. A nova resolução ratifica a 1.598 de 2000 e oficialmente revoga as resoluções 1.407 e 1.408, de 1994, como pode-se observar nos artigos que se seguem da resolução 1.952 de 2010: Art. 1º – Adotar as diretrizes para um modelo de assistência integral em saúde mental no Brasil, da Associação Brasileira de Psiquiatria, aprovada em 15 de agosto de 2008, como instrumento norteador das políticas de saúde mental no país. Art. 2º – Revogar a Resolução CFM nº 1.407, de 8 de junho de 1994, que adota os princípios para a proteção de pessoas acometidas de transtorno mental e para a melhoria da assistência à saúde mental, e a Resolução CFM nº 1.408, de 8 de junho de 1994, que dispõe acerca das responsabilidades do diretor técnico, diretor clínico e dos médicos assistentes no tocante à garantia de que, nos estabelecimentos que prestam assistência médica, os pacientes com transtorno mental sejam tratados com o devido respeito à dignidade da pessoa humana. Art. 3º – Revogar o 1º considerando, o § 3º do artigos 15 e os artigos 17 e 18 da Resolução CFM nº 1.598 de 9 de agosto de 2000, que normatiza o atendimento médico a pacientes portadores de transtorno mental. Art. 4º – Esta resolução entra em vigor na data de sua aprovação. Finalmente, não mais há razões para quaisquer outras dúvidas!