FOUCAULT E A ANÁLISE PSICANALÍTICA DO FEMININO Taciano Luiz Coimbra Domingues Mariana Rosa Cavalli Domingues Lins - SP 2009 FOUCAULT E A ANÁLISE PSICANALÍTICA DO FEMININO RESUMO Este trabalho é fruto de pesquisa bibliográfica sobre a teoria do biopoder de Foucault e sua relação com a teoria psicanalítica desenvolvida por Freud sobre a feminilidade. Foucault escreveu textos importantes sobre a história da sexualidade e sobre o controle dos corpos dentro de um jogo de verdades que se torna ferramenta de poder. A sexualidade feminina ao longo da história foi marcada por estas influencias sócio-históricas, o que gerou diversas manifestações, como por exemplo, a histeria da época de Freud. A psicanálise estudou as influências das normas sociais na formação do sintoma histérico e com isso libertou as mulheres no chamado biopoder. Mas Foucault acusa a psicanálise de ter mantido a estrutura familiar burguesa e a posição da mulher como mãe e dona de casa como o modelo geral de saúde. Palavras Chaves: Biopoder. Feminilidade. Psicanálise. INTRODUÇÃO As mulheres ao longo da história exerceram papéis muitas vezes inferiorizados, discriminação no trabalho, na vida política e social; e foram foco de uma série de teorizações para justificar as diferenças sociais advindas das diferenças sexuais. A psicanálise foi uma das teorias que procurou explicar o feminino a partir da constituição física da mulher/menina e para isso desenvolveu temas como: a falta de pênis como base pra uma inveja constitucional; a passividade como característica essencial, muitas vezes questionada por Freud, mas mantida em diversos momentos de sua obra (FREUD, 1905, 1931 etc.). Freud esteve atrelado à cultura de sua época e acabou criando um campo discursivo em que a mulher saudável era aquela que cuidava da casa e dos filhos mantendo a feminilidade. Desta forma, Freud esteve ligado ao adestramento e normatização dos costumes através do discurso da saúde. Porém, Freud também contribuiu para o rompimento com estas concepções conservadoras e taxativas. Ao estudar a histeria, pode dar novo olhar sobre as mulheres, por considerar a repressão da sexualidade como o ponto principal por trás desta patologia. Também estabeleceu a bissexualidade no ser humano e a ausência de gênero sexual no inconsciente. Ao fazer estas análises ele passou a considerar as formas de controle da sexualidade como perigosas. Freud nunca chegou a propor uma nova maneira de se chegar a uma plenitude de saúde ou felicidade, e isso é o que permite que sua obra seja respeitada por foucaultianos, mas ainda vale a acusação e o questionamento de Foucault: teria Freud contribuído para uma maior vigilância da sexualidade de forma geral? Vigilância que procura descrever, conhecer, interpretar, amortecer o ser humano a partir de sua sexualidade? E ainda: o estudo psicanalítico do feminino seria mais um campo discursivo contribuindo para o Biopoder na produção de diferenciação de gênero? Para responder a esta pergunta este trabalho pretende articular o conceito de biopoder desenvolvido por Foucault em “História da sexualidade” (1988, 2001) tendo como foco principal a história da mulher e a feminilidade, buscando a compreensão de um corpo atravessado por poderes e saberes enquanto elemento fundamental no processo de subjetivação do ser humano. 1 DESENVOLVIMENTO O Biopoder Foucault desenvolveu uma série de estudos relacionados ao controle sobre o corpo através da disciplina, manifestada nos exames médicos, psicológicos; no estudo dos jogos de poder dentro das escolas, das instituições militares e prisionais; assim como nos estudos sobre as instituições que cuidam da loucura. Em “Vigiar e Punir” (1975/1996) desenvolveu a constituição dos mecanismos de poder/saber por meio da prática punitiva/penal e da utilização de fórmulas genéricas de dominação, de cunho disciplinar e de vigilância (SILVEIRA, 2003). Em “História da Loucura” (1961/1978) fala sobre a história da doença mental e de como ela foi tratada ao longo do tempo, passando, é claro, por uma detalhada descrição das instituições responsáveis por guardar e posteriormente cuidar ou curar as pessoas mentalmente doentes. Foucault desenvolveu o conceito de biopoder, em seu livro “História da Sexualidade, vol. I – A Vontade de Saber” (1988), no qual descreveu os mecanismos de cuidado com o corpo, vigilância e punição como mecanismo envolvido na cultura da sexualidade. Em “História da sexualidade, Vol. III – O Cuidado de si” (1985) realizou um trabalho histórico sobre os costumes sociais e as normas morais relacionadas à sexualidade na Grécia Antiga. Para falar de biopoder o Foucault (1988) se volta para momentos históricos em o poder interferia claramente sobre a vida: a morte. Por muito tempo um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito sobre a vida e a morte. Os soberanos por garantir a vida incluindo proteção e sustento, também podiam retirá-la com a condenação a morte. Era um direito soberano considerado assimétrico por Foucault (1988), pois explicitava o direito à vida, exercendo seu direito de matar: causar a morte ou deixar viver. Este é o chamado “direito de gládio”. Quem detinha o poder fazia exigências na organização da vida das pessoas. Aquele que não as cumpria acabava sendo punido com perdas das mais diversas até a perda da vida. Pela cultura e pela política, e em nome da existência de todos, 2 populações inteiras foram levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Mesmo, e principalmente após o séc. XIX, poder matar para viver significava prova de força (como possuir bombas e armas). Se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é por que o poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população. (FOUCAULT, 1988, p. 129). Nos governos atuais poucos morrem por condenação já que os governos assumiram a função de defender a vida, mas muitos morrem nas guerras. Em ambos os casos os cidadãos são mortos legitimamente frente a um perigo biológico para os outros. O poder sobre a vida a partir do séc. XVII tomou 2 formas: a primeira apareceu no corpo, como uma máquina, um animal em adestramento, no qual a docilidade é um aspecto cultivado, na qual o crescimento econômico exige disciplinas: anatomia política do corpo humano; A segunda maneira de percebermos o poder sobre a vida aparece na metade do séc. XVIII: o corpo como representante da espécie, um corpo transpassado pela mecânica de ser vivo pregando a saúde e a longevidade. A velha potência da morte em que simboliza o poder soberano é agora cuidadosamente recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. (FOUCAULT, 1988, p. 131) Através do desenvolvimento das escolas, políticas públicas, habitações, higiene etc. Abre-se a era de um biopoder, no qual o: exército, escolas, regulamentos governamentais das riquezas, populações e ofícios fazem parte. Este controle sobre a vida acaba pode materializar-se como um biopoder. Foucault (1988) afirma que o biopoder serviu ao capitalismo por inserção controlada dos corpos no aparelho de produção. O capitalismo exige também reforço, utilidade e docilidade. Foram utilizados métodos de poder capazes de majorar as forças da vida em geral, sem por isso torná-las mais difíceis de sujeitar. As técnicas de biopoder foram usadas em diversas instituições. Operam como fator de desagregação e ajustamento da força dos homens à acumulação do capital. Outro exemplo seria a articulação de crescimento dos grupos humanos à expansão 3 das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e procedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento. O crescimento da produção, a queda da mortalidade, o clima de desenvolvimento e a euforia de viver passam a ser preocupações constantes. O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: uma animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão. (FOUCAULT, 1988, p. 134) “A lei sempre se refere ao gládio” (FOUCAULT, 1988, p.135). Apesar de o poder não condenar à morte, desde a era Moderna ele qualifica, mede, hierarquiza e se utiliza de outros recursos para dominar a vida, utilizando do poder jurídico para a manutenção de diversos aparelhos reguladores. A sociedade normatizadora como efeito de sociedade tecnológica ficou totalmente centralizada na vida. O biopoder tornou-se local político ao lado das disciplinas: adestramente, vigilância, exames psicológicos e médicos, sonhos, condutas individuais e da espécie. O controle político sobre a vida também se dá através da regulação das populações na qual se vê os governos atuarem direta ou indiretamente incitando ou freando a reprodução e ditando uma moralidade que lhe convém (FOUCAULT, 1988). O Biopoder e a História da Sexualidade Corpo e alma, portanto, são interpenetrados de história e articulados através de diferentes contextos discursivos, os elementos co-construtores de múltiplos focos de subjetivação, de forma que se torna imprescindível associa-los ao processo de edificação da própria identidade histórica do indivíduo. (SILVEIRA, 2003, p.3) O corpo longe se ser um espaço privado do ser, longe de representar o lugar da essência do indivíduo, é perpassado e constituído nas relações com seu tempo e espaço, com sua cultura feita de jogos de verdades. É desta forma que o Poder alcança a vida, através de posicionamentos discursivos historicamente construídos. Em contrapartida a alma não é mais dissociada do corpo, e sim criada diretamente sobre o corpo, função dos interesses políticos sobre ele concentrados. 4 “A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política: a alma, prisão do corpo” (FOUCAULT, In SILVEIRA, 2003, p. 4). A alma e o corpo existem como uma produção sócio-histórico-cultural através de discursos de saberes/poderes. Nesta perspectiva o poder sobre a vida toma diferentes aspectos de acordo com a realidade sócio-histórica penetrando no corpo e na alma. Uma faceta importante do biopoder na modernidade é a manutenção da saúde, perfeição dos corpos e tudo que lhes diz respeito assim como as atividades sexuais: Desconfiança face aos prazeres insistência sobre os efeito de seu abuso para o corpo e para a alma, valorização do casamento e das obrigações conjugais, desafeição com relação as significações espirituais atribuídas ao amor pelos rapazes: existe no pensamentos filósofos e dos médicos, no decorrer dos dois primeiros séculos, toda uma severidade da qual testemunham os textos de Éfeso ou de Marco Aurélio. (FOUCAULT, 2001, p. 45) Foucault (2001) deixa claro neste trecho que a partir do séc. II d.C. houve uma inquietação e um apelo aos cuidados como o corpo, consigo mesmo, um controle que limita o prazer sexual ao casamento e a procriação. Foucault cita “A Econômica” de Xenofonte, a “República” ou “As Leis” de Platão e a “Política” e “Ética a Nicômaco” de Aristóteles. Estes textos inscrevem a reflexão sobre as relações conjugais num quadro amplo: a cidade, as leis, e os costumes. Uma das máximas defendidas nesta época era a de que o casamento dignificava o homem grego, tornava-o honrado, cidadão, moderado e justo. Baseados nos textos estóicos dos dois primeiros séculos o modelo do casamento era considerado natural visto que oficializa o encontro de um macho com uma fêmea culminando na criação saudável dos filhos. Era considerada a base da comunidade social, oferecia proteção mútua e ordenava os prazeres sexuais. Musonios (FOUCAULT, 2001) descreveu a reprodução como fator secundário no casamento no qual o desejo de companheirismo, afeto e cumplicidade eram mais importantes. Já Hierócles, precedido por Platão afirmava que o homem é um ser conjugal. Porém a igualdade entre os sexos mesmo no contrato matrimonial não era existente. É difícil verificar a máxima de que as relações sexuais não ocorreriam fora do casamento. Desde os relatos de Sêneca, Díon de Prusa, Marco Aurélio e Epicteto os casos de relação sexual anterior ao laço matrimonial são citadas, inclusive na descrição da prostituição. 5 Musonius Rufo (1879) condena toda relação extraconjugal corroborando com o que aparece no tratado sobre os “Aphrodisia”, que está conservada em Stobée, que trata as relações extraconjugais como a criação da vida devassa: onde a falta de controle sobre si leva à perseguição de prazeres vergonhosos. Foucault cita Musonius (Reliquiae): “A Conjugalidade é para a atividade sexual a condição de seu exercício legítimo” (MUSONIUS apud FOUCAULT, 1988, p. 169). Este autor dá um passo além ao recriminar o sexo entre dois solteiros que se realiza anterior ou fora dos laços matrimoniais, pois a pessoa se emporcalha e “como os porcos, obtém prazer com própria sujeira” (MUSONIUS apud FOUCAULT, 1988, p. 63-64.). Não é que considerasse o ato sexual um mal, o problema está no desregramento da forma natural e racional do casar. A traição no casamento era considerada prejudicial para ambos, caracterizando devassidão e falta de controle. O adultério era considerado condenável juridicamente e moralmente a titulo de injustiça que era feita a um homem, aquele que foi traído. O homem casado poderia ter relações extraconjugais. A esposa deveria responder com pudor delicadeza e compreensão aos erros do marido. Em Plutarco as mulheres eram incentivadas a perdoar ou fechar os olhos ao marido (FOUCAULT, 1988). Diversos conselhos eram direcionados às esposas para que não se aproximassem da devassidão. Acreditava-se que se a mulher souber de seu prazer o homem se arrependeria e que buscar prazer intenso com a esposa seria reduzi-la à condição de adultera. Defendia-se que o sexo tem o fim da procriação e que os homens e mulheres não devem gozar das volúpias deste ato. A relação que tem como finalidade o prazer é injusta e contrária à lei segundo Musonius e também encontrada nos neopitagóricos (FOUCAULT, 2001). Uma atenção especial é voltada aos comportamentos sexuais da esposa. A mulher deve manter o pudor e a austeridade até mesmo nos atos de carinho e prazer que não se caracterizam como ato em si. Em Heródoto fica claro que o pudor não deve cair com o vestido que ele despe. Em Plutarco ficou explícita a mesma idéia já que mesmo no escuro a mulher deveria ser diferenciada da amante por sua discrição. Plutarco prossegue e dá orientações diretas sob estas condutas quando aponta que a mulher não deveria tomar a iniciativa nas relações sexuais, pois isso demonstraria atrevimento e a aproximaria da cortesã, porém também não deve 6 reclamar das investidas do marido, o que soaria como arrogância (FOUCAULT, 2001). As relações sexuais também eram consideradas ferramentas para a edificação do vínculo conjugal, pois é ótimo remédio para brigas e se não forem mal utilizadas (à serviço das paixões enebriantes de Dionísio) poderiam se revelar a verdadeira tarefa de Afrodite: A tarefa de Afrodite (ergon Aphrodites) não está na simples relação e conjugação do corpo (sunousia meixis): ela está no sentido de amizade (philophsosune) na necessidade (pothos), nas relações (homilia) e no comércio (sunetheia) recíprocos. A relação sexual na vida conjugal, deve servir como instrumento para a formação e o desenvolvimento de relações afetivas simétricas reversíveis, “Afrodite”, diz Plutarco, “é a artesã que cria a concórdia e a amizade (homophrosunes kai philas demiourgos) entre os homens e mulheres, pois através de seus corpos e sob o efeito do prazer ela liga e funde ao mesmo tempo as almas. (FOUCAULT, 2001, p. 183) No cristianismo, a fidelidade relaciona-se com a salvação e a honra do homem junto da mulher, vale lembrar que também neste caso as orientações quanto ao ato sexual também foram rígida e detalhadamente orientadas quanto a posições sexuais permitidas, quantidade de relações entre o casal e outros. Especificamente a mulher foi subjugada pelo cristianismo nas representações cristãs da união conjugal a mulher era sempre mostrada virada, com o dorso no chão, deveria deixar o homem laborar seu fértil sulco. O prazer era proibido e a inversão desta posição sexual também poderia perverter a ordem no mundo (ROUDINESCO, 2003). A sociedade patriarcal foi sustentada pela igreja e o feminino foi considerado dentro desta instituição como algo perigoso, descontrolado maligno o que se verificou terrivelmente na cassa as bruxas na Idade Média. Não só a igreja, mas outros teóricos também apresentaram as mulheres como força destrutiva e da natureza como Thomas Hobbes (em Leviatã séc. XVI)I e Rousseau (ROUDINESCO, 2003). A partir destes relatos, percebe-se que as condutas sexuais eram estabelecidas e norteadas por padrões estabelecidos socialmente. Nestas normas o biopoder se desenvolve. Quando o casamento e a traição são considerados condutas morais o biopoder aparece com clareza; quando a forma de prazer sexual dentro do casamento é descrita como um ideal a ser seguido também (FOUCAULT, 2001). 7 As normas culturais de moralidade aqui apresentadas mostram a atuação do biopoder atuando na forma com que as pessoas vivem; por meio de estabelecimento do certo e do errado. Estas máximas muitas vezes não foram escritas por ninguém não há um responsável por isso, porém todos sofrem influência destes mecanismos e podem agir para sua manutenção (SILVEIRA, 2003). É uma lei sem sujeito responsável tal como o inconsciente freudiano não possui sujeito. A sexualidade da mulher desde a Grécia Antiga foi marcada por diferenças em relação aos homens: submissas, sem direito a voz ou prazer, elas também eram a imagem da loucura e da histeria. Desde esta época, a histeria foi associada à feminilidade, pois a maioria dos casos ocorriam em mulheres. A explicação era que o útero podia navegar pelo corpo da mulher causando ataques convulsivos, febres e outras alterações. A demora para engravidar ou a viuvez eram considerados motivos para se deflagrar a histeria. Assim, as mulheres pareciam desafiar o biopoder por serem incontroláveis e prontas a entrarem em surto histérico a qualquer momento (BIRMAN, 2001). Houve civilizações nas quais as mulheres foram consideradas superiores, nas quais detinham o poder sobre sua sexualidade – reprodução e filhos. Este biopoder feminino não perdurou nas sociedades modernas, que produziram um “ethos” caseiro no qual a imagem de mãe e da dona de casa foram os únicos possíveis para as mulheres. As diferenças entre os sexos seriam então construções discursivas? Jogos de verdade? A tentativa de Freud em encontrar uma justificativa anatômica para esta diferença seria um novo argumento para uma determinação de gênero inexistente? Se para Foucault o que há são campos discursivos e jogos de verdade, a feminilidade não passaria de mais uma construção discursiva e Freud mais uma vez passível de crítica como normatizador buscando adequação e predeterminação da saúde e de moralidade. Sendo assim, o próprio discurso feminista faz parte de um biopoder, no qual as mulheres devem agir de maneira independente, tal como um homem. Algumas no exagero de sua função pregam a inimizade e ou o abandono de todas as relações afetivas com homens. Na produção de verdades o biopoder constrói condutas e as vigia. Lembrando que é a própria pessoa que realiza esta vigia. 8 Biopoder, atualidade e psicanálise O biopoder como mecanismo de controle da vida em todas as suas manifestações interfere no dia-dia das diferentes culturas humanas. A sexualidade como parte integrante da vida é um dos aspectos mais visados do biopoder. Desde as primeiras civilizações a sexualidade vem sendo demarcada e vigiada, porém hoje, este controle se dá de forma exagerada. Nunca o sexo foi tão estudado, codificado, medicalizado, exibido, avaliado, periciado (...) as prosaicas descrições das diversas práticas sexuais florescem em lugar e no espaço de um discurso sobre o sexo, rebelde ou íntimo. (ROUDINESCO, 2003, p. 9) É o que se vê nas bancas de revistas, programas televisivos e nas conversas informais e científicas de hoje em dia. O sexo se tornou um produto com garantia de venda e público. A psicanálise fez parte desta história, pois contribuiu para analisar a sexualidade na busca de interpretações sobre a vida e a chamada personalidade. A sexualidade ficou legitimada apenas dentro da família na era moderna, porém a pósmodernidade inaugurou formas socialmente aceitas de sua manifestação antes do casamento e independente de compromisso matrimonial. Sexualidade que saiu de um mundo privado para uma exposição nunca vista anteriormente (ROUDINESCO, 2003) A exibição não exclui a repressão e não é por que se fale e se mostre muito o sexo que não haja repressão (ROUDINESCO, 2003). As formas de controle da sexualidade, ao contrário do que muitos pensam, não são apenas os mecanismos repressivos e impeditivos como proibições e censuras; os mecanismos de controle atuam principalmente na construção de condutas, nos novos comportamentos que são gerados (SILVEIRA, 2003). Assim, é comum ver adolescentes terem vergonha de dizer que nunca beijaram alguém – precisam beijar! Também é comum não admitirem gostarem de uma pessoa. Se antes a prisão era o casamento como negócio familiar, depois como a tirania do amor, hoje é preciso gozar e aproveitar a vida! São jogos de poderes que atravessam o corpo e a alma. A psicanálise, segundo Foucault (1996), se aproxima do cristianismo através do dispositivo confessional, em que passa a considerar e a tratar o desejo como realidade obscura e portadora das verdades encobertas do ser humano. Busca 9 através da atividade sexual um protótipo para as relações gerais do sujeito. Este modelo nasceu de uma época em que a sociedade era muito repressora e aplicava os dispositivos do controle com toda a magnitude. Foucault baliza a sexualidade como um jogo de oscilação entre: desejo, ato e prazer. Na era cristã o desejo é o foco de atenção e tido como algo negativo e que precisaria ser eliminado. Hoje reina o ato (SILVEIRA, 2003), pois se deseja ou não, se tem prazer ou não o que importa é a concretização do ato sexual. Prazer e desejo são falados e enaltecidos e até descritos publicamente, porém o ato muitas vezes sem reflexão ou sentimento é o que mais aparece. É comum as pessoas conversarem sobre a quantidade de vezes que se relacionaram, ou quantas vezes atingiram um orgasmo, mesmo que isso seja com qualquer desconhecido. Se estas pessoas se livraram do discurso da família e do sentimentalismo, e encontraram outro: aproveite a vida! A psicanálise foi acusada de normatizadora (FOUCAULT, 1996) por haver mantido o modelo familiar burguês nuclear como o centro de sua teoria como é manifestado na teoria do Complexo de Édipo. Mesmo assim, não foi considerada uma teoria conservadora, pois falava abertamente de sexualidade, da homossexualidade e lidava quase que sem preconceitos com todos os assuntos. Por isso Foucault afirma que mesmo mantendo um modelo burguês Freud pôde emancipar o sexo das coerções corporais e penais colocadas por instituições. Porém, estas normas sociais foram internalizadas na constituição do superego do sujeito neurótico recalcado. A psicanálise também agiu como mecanismo de rompimento ao biopoder ao iniciar a noção de bissexualidade original no ser humano libertando o corpo de um determinismo anatômico já considerado impossível. A noção de inconsciente sem sexo também ajudou na superação da determinação fisiológica e anatômica do sexo. Longe de fazer de uma mulher um “homem invertido” ou “falhado”, Freud afirma que a anatomia é tão somente o ponto de partida de uma nova articulação da diferença sexual que condena todos os homens e mulheres a se confrontarem com uma idealização ou uma desvalorização do outro, sem nunca alcançar uma completude real. (ROUDINESCO, 2003, p. 131) As feministas atentas a estas características se dividiam: criticaram o movimento, por falar da inveja do pênis e da castração feminina, mas viam nas psicanalistas uma possibilidade de ideal de carreira para uma mulher. E reconheciam na figura de Freud um estudioso que estava construindo uma teoria 10 inovadora. Freud não defendia um desenvolvimento social da mulher tal como Simone de Beauvoir em “O segundo sexo” escrito em 1949, mas Freud elaborou a teoria do desenvolvimento da sexualidade a partir da diferença sexual, marcada pelas fases da libido e pelo convívio familiar. O desenvolvimento através das fases da libido é algo criticado por Foucault por prever uma fórmula comum a todos e que teria uma finalidade sexual na heterossexualidade. Quanto às determinações familiares Foucault teme ser este um modelo limitado que não poderia ser generalizado pela estrutura familiar burguesa (SILVEIRA, 2003). Outra crítica importante à obra de Freud é o fato de relacionar quase que invariavelmente a feminilidade com a maternidade (ROUDINESCO, 2003). Para a psicanálise de Freud a mulher teria como parte constitucional e elementar a maternidade, só encontraria o desenvolvimento normal após ser mãe, com risco de perder sua saúde mental se isso não acontecesse. Birman (2001) leva em conta o fato de Freud ter contribuído no rompimento do biopoder ao escrever sobre as mulheres, porém admite que a maternidade para Freud era inseparável da feminilidade o que limitou muito a obra freudiana. Autores como Melanie Klein e Winnicott colocaram a figura materna como essencial e a priorizaram na saúde familiar e do desenvolvimento dos bebês. A figura do pai tornou-se quase apagada nestes autores que defendiam a família, mas tornaram a mãe sua principal base. Lacan vai contribuir com um novo item no jogo discursivo familiar: o pai como lei. Os rumos que a teoria psicanalítica tomou são diversos e seria necessário trabalho intenso para desenvolver esta análise. Porém é interessante notar que todo trabalho científico pretende trazer novas afirmações e contribuições ao debate. Estas descobertas pressupõem que há uma verdade existente a espera de um descobridor. Foucault acredita em produção de verdades e não em descobertas. É difícil para o mundo acadêmico e científico encarar esta assertiva, pois todas as afirmações científicas passam a ser consideradas criação ou construção. Muitos dos cientistas modernos encaram esta idéia com naturalidade e estão dispostos a mudar paradigmas e não se apegar a eles (KUHN, In SILVEIRA, 2003). A psicanálise tem dificuldades neste processo, pois as teorias do mestre são respeitadas como dogmáticas por alguns psicanalistas, e outros ainda vasculham sua obra na expectativa de encontrar algo que ainda não foi lido. 11 CONCLUSÃO Tendo percorrido alguns conceitos de Foucault sobre a sexualidade perpassada pelo biopoder o estudo da feminilidade se torna mais rico e até mesmo questionável, pois um trabalho sobre a sexualidade feminina na obra de Freud corre o risco de contribuir para a manutenção de um biopoder que defende a diferença entre os sexos pautada na diferença anatômica. Por outro lado identificar os dispositivos do biopoder na obra de Freud considerando corpo e alma interpenetrados e perpassados por discurso construído historicamente pode proporcionar uma análise mais crítica sobre a teoria psicanalítica como movimento teórico e histórico-cultural. O que é a feminilidade? O que é considerado feminino hoje em dia? As novas versões de mulheres trabalhando fora de casa, tendo poder sobre a reprodução e a sustentação das famílias e até mesmo mulheres que almejam serem donas de casa mostram como o panorama se ampliou e como torna-se complicado buscar uma explicação teórica seja psicanalítica ou não. Foucault nos alerta quanto à ciência psicológica pode ser inocente e quase ingênua em suas teorizações e proporciona ferramentas críticas na elaboração de estudos de gênero tais como os da sexualidade feminina. 12 FOUCAULT AND THE ANALYSIS OF WOMEN PSYCHOANALYTIC ABSTRACT This work is the result of research literature on the theory of Foucault's biopower and its relationship to psychoanalytic theory developed by Freud about femininity. Foucault wrote important texts about the history of sexuality and the control of bodies within a game of truth that becomes a power tool. Female sexuality throughout history has been marked by these socio-historical influences, which led to various protests, such as the hysteria of Freud. Psychoanalysis has studied the influence of social norms in the formation of the hysterical symptom and thus liberated women in the so called biopower. But Foucault accuses psychoanalysis has maintained the bourgeois family structure and position of woman as mother and housewife as the general model of health. Keywords: Biopower. Femininity. Psychoanalysis 13 REFERÊNCIAS BIRMAN, J.. Gramáticas do erotismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FOUCAULT, M. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978. FOUCAULT, M. História da Sexualidade Vol. 1 – A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FOUCAULT, M. História da Sexualidade Vol. 2 – O Cuidado de Si. Rio de Janeiro: Graal: 2001. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. FREUD, S. Três Ensaios sobre a Sexualidade Infantil (1905). In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. FREUD, S. Sexualidade feminina (1931). In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 14 ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor: 2003. SILVEIRA, F., FURLAN, R. Corpo e Alma em Foucault: Postulados para Uma Metodologia da Psicologia. Revista Psicologia USP vol.14 no.3 São Paulo, 2003 15