A Causa do Desejo e suas Errâncias.

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Prelúdio 1
A causa do desejo e suas errâncias
Eliane Z. Schermann
O tema do nosso próximo Encontro Nacional versa sobre a causa do desejo e sua errâncias. Se a
filosofia em Spinoza define o desejo como “a própria essência do homem”, a psicanálise aborda o desejo
como algo velado que se desvela na experiência da intencionalidade inconsciente. Esse tema é vasto e, se
assim podemos dizer, devido à sua causa, o desejo vagueia em busca de um objeto de satisfação que, no
entanto e paradoxalmente, está na própria causa. Daí usarmos o termo “errância”.
Para abordar inicialmente o tema, recorremos à clássica expressão freudiana “Wo Es War, Soll Ich
Werden” traduzida por Lacan em “Onde o Isso era, deve o objeto advir”. Com esta expressão, Freud
implica o “âmago do ser” no campo do Isso, por ele descrito como o “reservatório das pulsões”.
Esse tema escolhido para o nosso próximo Encontro Nacional nos leva a considerar o objeto, não
apenas implicado na demanda, sempre demanda de amor que se articula nos ditos, mas implicado no
próprio desejo. O âmago do ser, lugar onde o objeto funciona como causa, se manifesta na metonímia do
desejo relançando suas variações ficcionais a partir do encontro com uma fixidez, “fixão” sintomática
balizada pela fantasia, dita por Lacan, de fundamental. Ao sujeito resta se deixar conduzir pelo que a ele
se furta e do qual não pode escapar: o objeto da pulsão[1]. Este objeto é causa inefável e, ao mesmo
tempo, fixidez, melhor dizendo, “fixão/ficção” instigante da metonímia do desejo.
O que se precipita de um desejo é correlato ao que resta do encontro da deriva da pulsão com um
“escolho”. Neste ponto a causa se impõe ao desejo como um imponderável, um indizível. Enfim, deste
lugar o desejo pode se traduzir em um dizer sobre a verdade inconsciente.
O pensamento inconsciente regido por uma lei de associação por simultaneidade[2], ou seja, pelo
automatismo de repetição, segue as leis do deslocamento e de condensação da linguagem inconsciente.
Na regularidade da lei prevalece a repetição de traços de memória do pensamento inconsciente
submetidos ao princípio de continuidade/descontinuidade. Contudo, a noção de repetição não se esgota no
automatismo da repetição; vai além dela e alcança uma suspensão da associação.
Apenas a partir dos anos 20, Freud descobre que, para além da repetição dos representantes da
representação (termo freudiano equivalente ao significante, segundo Lacan), algo se revelava
abruptamente por ser incondicional e atuante às cegas. Constata então que o irrepresentável, condição de
toda representação, é o que convoca o desejo a se manifestar e a se precipitar em um além do prazer. O
que essa outra vertente da repetição reitera é o incondicional da pulsão - Zwang. Não se trata mais apenas
de um deciframento da repetição das representações inconscientes, mas sim, da insistência das cifras da
repetição das contingências irrompendo do movimento e circuito pulsional.
A descoberta freudiana comprova o que Lacan afirma: “o inconsciente trabalha sem pensar, nem
calcular, nem tampouco julgar, e que, ainda assim, o fruto está aí: um saber que se trata apenas de
decifrar, já que ele consiste num ciframento”[3].
Teremos que avançar muitos aspectos da teoria e da experiência do inconsciente para falarmos da causa
do desejo e suas errâncias. O curso do desejo faz o sujeito retornar às origens, a um lugar ignorado. O
enigma desperta o desejo em direção à procura de um certo “saber possível” sobre as causas. Insistente, a
causa nada mais é do que aquilo que faz o sujeito gozar na medida em que o inconsciente a determina.
Assim como Édipo é convocado pelo enigma sobre sua origem frente à Esfinge, “decifra-me ou te
devoro”, o homem tem o dever ético de decidir entre o deciframento ou a morte. Desta “escolha forçada”,
na qual o sujeito sempre perde algo qualquer que seja sua escolha, o sujeito pode se precipitar em algo
novo. Se o deciframento sugere algo já perdido que insiste para ser “re-encontrado”, a cifra desta
insistência visa produzir sentido e significância. Por outro lado, aquilo do qual o sujeito se furta (por ser
perda) nada mais é do que a cifra de seu gozo repetitivo.
Ao tentar se furtar aos desígnios dos oráculos, o personagem central da tragédia de Sófocles, Édipo Rei,
nos dá um exemplo da defesa do desejo presente em todo neurótico: “nada quer saber d’isso”. A tragédia
da existência desse trágico herói comprova ter sido ele convocado pelo próprio “destino” a responder “aos
desígnios dos deuses[4]” com uma “escolha forçada”. Fugindo de seu destino, ele acaba por se constatar
na “obediência” a uma Lei que o compelia e o convocava a agir para desvelar o sentido de sua existência.
Ao mesmo tempo, a Lei nele determinava uma interdição: a de gozar da mãe, sempre proibida. A
castração por ele encarnada na cegueira, como castigo pelo desejo incestuoso, representa o preço pago por
todo falante por padecer da linguagem e por ser desejante.
Regulado por uma Lei que mantém inter-dito o “gozo incestuoso”, o que prevalece no neurótico é um
“nada saberás”, ou seja, o desejo inconsciente e recalcado. Contudo, deste lugar vazio de significação,
uma insistência insidiosa porta ao corpo sexuado um traço distintivo e singular: o traço unário. Este traço
é pura insistência que, por uma cifra de repetição, evoca o que no desejo e no sexo é repetida perda.
Traduz a repetição de um “não há”, ou seja, “não há relação sexual”, não há encontro com “a carametade”. Há uma defasagem entre o que é visado pelo desejo e o que é encontrado. Neste “entre” a causa
se produz e precipita o sujeito em ato a partir de sua divisão.
09/05/2013
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