Velocidade das pedras de granizo Hailstone speed Submetido ao Caderno Brasileiro de Ensino de Física Fernando Lang da Silveira Instituto de Física -UFRGS [email protected] RESUMO. A propósito de uma severa chuva de granizo em 21/10/2015 no RS recebemos o questionamento de um repórter sobre o valor da velocidade com a qual as pedras chegaram ao solo. Nossa resposta a este questionamento baseou-se no modelo que aqui apresentamos. PALAVRAS-CHAVE: força de arrasto, queda no ar, velocidade terminal, granizo. ABSTRACT. After a severe hailstorm I was inquired by a newspaper reporter wanting to know the speed with which the hailstones arrived at the ground. To answer this question it was first necessary to develop the model described in this paper. KEYWORDS: drag force, falling in the air, terminal velocity, hail. 1. INTRODUÇÃO No dia 21 de outubro de 2015 houve uma severa chuva de granizo no interior do Rio Grande do Sul, especialmente na Região Central e no Vale do Rio Pardo1. Em alguns locais caíram pedras com tamanho de um ovo de galinha ou até maiores. Automóveis atingidos tiveram os parabrisas vazados e importantes amassamentos na lataria. Inúmeras telhas de cimento-amianto ou de fibrocimento foram perfuradas. No dia seguinte um repórter do Diário de Santa Maria fez contato conosco querendo saber com que velocidade as pedras de granizo chegaram ao solo2. O objetivo deste trabalho é fazer uma estimativa do valor da velocidade, da energia cinética com a qual objetos cadentes como as pedras de granizo chegam ao solo, bem como do deslocamento vertical mínimo para que velocidade terminal seja atingida. 2. AÇÕES DO FLUIDO QUE RESISTE AO MOVIMENTO DO CORPO CADENTE Quando um corpo se movimenta em relação a um fluido, ele sofre uma força de arrasto viscoso (viscous drag force) e uma força de arrasto inercial (inertial drag force). O número de Reynolds (Re) é um número adimensional, calculado pela razão da força de arrasto inercial (proporcional ao quadrado da velocidade do corpo em relação ao 1 - http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2015/10/chuva-forte-e-granizo-provocam-estragosem-cidades-do-interior-do-rs.html (acessado em 13/11/2015). 2 - Velocidade das pedras de granizo ao chegarem ao solo! http://www.if.ufrgs.br/cref/? area=questions&id=1352 (acessado em 13/11/2015). fluido) pela força de arrasto viscoso (proporcional à velocidade em relação ao fluido) [1], como segue: Re = ρ F .v . L , μF (1) onde v é o módulo da velocidade do corpo em relação ao fluido, L é a dimensão característica do corpo (comprimento que em ordem de grandeza especifique o tamanho do corpo), ρF é a densidade do fluido e μF é o coeficiente de viscosidade do fluido. A uma temperatura de 20oC e a uma pressão de 1,0 atm, a densidade e o coeficiente de viscosidade do ar são respectivamente iguais a 1,2 kg/m3 e 2,0x10-5 kg/ m.s. Se considerarmos corpos com a dimensão característica da ordem de 1,0 cm, isto é, 1,0x10-2 m e com uma velocidade da ordem de 1,0 m/s, o número de Reynolds resulta em 103, indicando que a força de arrasto inercial é várias ordens de grandeza maior do que a força de arrasto viscoso. Ou seja, para objetos como as pedras de granizo, com velocidades baixas em relação ao ar, a resistência oferecida pelo fluido é preponderantemente inercial. Cabe destacar que quanto maior for o tamanho do objeto que se move através do ar, tanto menor será o valor da sua velocidade para que o número de Reynolds resulte grande, e assim, para que os efeitos que a força de arrasto viscoso produz sobre ele sejam muito menores que aqueles produzidos pela força de arrasto inercial. “Ou seja, a “resistência proporcional à velocidade”, tão popular nos livros de Física Básica, não tem nenhuma importância (...) para qualquer objeto razoavelmente grande movendo-se no ar” [2], como é o caso de corpos como as pedras de granizo que caíram em outubro de 2015 no RS. 3. VELOCIDADE TERMINAL DE UM CORPO CADENTE ATRAVÉS DO AR Consideremos o caso particular de um corpo, com dimensão da ordem de centímetro ou mais, caindo no ar. A intensidade da força que resiste à queda, a força de arrasto (inercial), é dada por FArrasto = C ρF A v 2 , 2 (2) onde ρF é a densidade do fluido (que no caso em pauta é o ar), C é um coeficiente adimensional que depende da forma do corpo3 e A é a área da seção do corpo perpendicular à direção do movimento em relação ao fluido. Um corpo caindo através do ar atinge sua velocidade terminal vT quando a resultante das forças sobre o corpo se tornar nula. Desprezando-se o empuxo estático exercido pelo ar no corpo, a condição para que a velocidade terminal ocorra é que a força da gravidade tenha a mesma intensidade da força de arrasto do ar, portanto M g= C 2 ρ F A vT , 2 (3) onde M é a massa do corpo e g é o valor da aceleração de queda livre. 3 - A rigor, o coeficiente C também depende do número de Reynolds. Se o número de Reynolds se situa entre 103 e 105 o coeficiente C é aproximadamente constante [2]. Representando por ρC a densidade do material do corpo, e por V o seu volume, tem-se que , e assim, a equação (3) pode ser reescrita como ρC V g = C 2 ρ F A vT . 2 (4) De (4) obtém-se que o valor da velocidade terminal é vT = 2 ρC V g . C ρF A (5) Considerando que o corpo cadente é granizo, com forma aproximadamente esférica, temos de acordo com [3] que o coeficiente de arrasto C é dado por 2 5,83 . C = 0 ,6 1 + R e (6) Admitindo-se que a velocidade terminal seja na ordem de 101 m/s, o número de Reynolds resulta em aproximadamente 104, levando a (7) C ≅ 0,70 . Como para uma esfera a razão V sobre A é quatro terços do seu raio R, a velocidade terminal dada na equação (5) pode neste caso ser reescrita como: vT ≅ 2 ρC 4 Rg , 0,7 ρ F 3 (8) ou ainda, vT ≅ 3,8 ρC Rg . ρF (9) Considerando que a densidade do granizo ρC é aproximadamente 9,1x102 kg/m3 e que a densidade do ar ρF em condições normais de pressão e temperatura vale cerca de 1,2 kg/m3, a expressão para o valor da velocidade terminal, para R em m, resulta em vT ≅ 1,7 × 10 2 R m/s. (10) Algumas pedras de granizo mostradas em fotografias nas reportagens que documentaram a chuva do dia 21/10/2015 no RS chegavam a ter diâmetro com cerca de 6,0 cm como se pode ver na figura1. Figura 1 – Foto de um exemplar do granizo tirada em 21/10/2015 no RS. Assim, pela equação (10), obtemos neste caso uma velocidade terminal com valor aproximado de 29 m/s ou cerca de 110 km/h. O valor da velocidade das pedras em relação ao solo desconsidera a ocorrência de ventos fortes no momento da queda pois a equação (10) estima a velocidade em relação ao ar e não em relação ao solo. 4. ENERGIA CINÉTICA MÁXIMA DO CORPO CADENTE Quando o corpo que cai atinge a velocidade terminal vT, sua energia cinética K em relação ao fluido alcança seu valor máximo: K máx = M . vT2 . 2 (11) Lembrando que M = ρC .V = ρC .4πR3/3 e substituindo a velocidade terminal calculada em (10), obtém-se para a energia cinética máxima da pedra de granizo K máx ≅ 5,5 × 10 7 R 4 joules, (12) onde R é raio da pedra em metros. Desta forma a energia cinética máxima de uma pedra de granizo com raio de 3,0 cm resulta em cerca de 45 J. Os danos causados por uma pedra de granizo ao colidir com algum objeto dependem, não exclusivamente, da energia cinética máxima que a pedra tem no momento da colisão e esta, de acordo com (12), cresce com a quarta potência do raio da pedra. Daí entende-se que uma pedra pequena, com tamanho de uma ervilha (0,3 cm de raio), tenha um poder de danificar muito menor (sua energia cinética é dez mil vezes menor) do que as pedras registradas em 21/10/2015. A maior pedra já medida atingiu cerca de 20 cm de diâmetro4, portanto adquirindo uma velocidade terminal de 190 km/h e uma energia cinética cerca de cem vezes a energia cinética das pedras caídas no RS. 5. VELOCIDADE E DESLOCAMENTO DO CORPO CADENTE O modelo de queda com força de arrasto proporcional ao quadrado da velocidade e coeficiente de arrasto constante permite obter para a velocidade v em função do tempo t a expressão e tτ − e − tτ v = vT t − t τ τ e + e , (13) onde τ = vT / g é intervalo de tempo para que um corpo que caísse em queda livre atingisse uma velocidade com o mesmo valor da velocidade terminal vT. O deslocamento vertical y percorrido, desde o repouso, pelo corpo cadente é obtido como e t τ + e− t τ y = 2 Y ln 2 , (14) onde Y = vT2/2g é o deslocamento que um corpo caso que caísse em queda livre, a partir do repouso, percorreria para atingir uma velocidade como o mesmo valor da velocidade terminal vT. No Apêndice as deduções das expressões (13) e (14) são apresentadas. A figura 2 apresenta os gráficos da velocidade v e do deslocamento y dados pelas expressões (13) e (14). A unidade de medida do tempo neste gráfico é τ, a unidade de medida da velocidade é vT e a unidade de medida do deslocamento é Y. As duas curvas são as representações gráficas das expressões (10.A) e (19.A) encontradas no Apêndice. 4 - https://en.wikipedia.org/wiki/Hail (acessado em 13/11/2015). Figura 2 – Gráficos da velocidade e do deslocamento do corpo cadente. Os gráficos da figura 2 também indicam que em t= 2,0τ o corpo cadente já se movimenta com uma velocidade que difere muito pouco do valor da velocidade terminal (atinge 96% do valor da velocidade terminal). E neste instante o seu deslocamento vertical y(2,0τ) é cerca de 2,5Y. Em face desses resultados é lícito concluir que a pedra de granizo com 3,0 cm de raio, que tem uma velocidade terminal de aproximadamente 29 m/s, praticamente atinge esta velocidade depois de cair cerca de 2,0τ = 5,9 s. A queda nestes 5,9 s resulta ser de apenas 2,5Y=2,5x292/(2x9,8)= 107 m. Para a maior pedra de granizo já registrada o deslocamento vertical necessário para que atinja a velocidade terminal é de aproximadamente 370 m. A formação do granizo5 acontece em altitudes entre 3 km e 6 km e o crescimento das pedras se dá pelo fato de que elas são sustentadas ou arremetidas para cima por fortes correntes ascendentes de ar cujas velocidades podem atingir o valor de 180 km/h. Quando as correntes ascendentes não são mais suficientes para sustentar as pedras, elas se precipitam. Conforme os cálculos apresentados nos parágrafos anteriores, certamente uma queda com extensão de quilômetro ou maior é mais do que suficiente para que a velocidade terminal seja atingida. 5 - https://en.wikipedia.org/wiki/Hail#Factors_favoring_hail (acessado em 13/11/2015). 6. CONCLUSÃO Nas disciplinas de Física Geral de ensino médio, e mesmo de ensino superior, a teorização sobre o movimento de queda praticamente se reduz à queda livre. Pouco ou nada se discute sobre quedas com resistência do ar e nos cursos mais avançados de Mecânica, trata-se usualmente apenas o movimento de queda com força de arrasto proporcional à velocidade, modelo este que é completamente irreal para corpos cadentes como os que vemos no nosso cotidiano. Para responder ao questionamento do repórter sobre o granizo que se abateu no RS, tivemos que ultrapassar em muito a teorização canônica sobre o movimento de queda. Consideramos o problema interessante e os resultados atingidos nas diversas seções do artigo podem facilmente ser repassados para outras situações, inclusive algumas usuais nas disciplinas de laboratório do primeiro semestre de um curso superior. Lá por exemplo encontramos esferas de aço, com diâmetro da ordem de centímetro, em suposto movimento de queda livre. Mesmo diante de uma queda de um ou dois metros, alunos mais críticos frequentemente nos perguntam se realmente podemos desprezar o arrasto do ar (recorrentemente chamado de forma imprópria “atrito com o ar”). A forma de encaminhar uma resposta a estes alunos começa por se estimar a velocidade terminal daquela esfera. É fácil pela expressão (9) estimar que o valor da velocidade terminal para uma esfera de aço (ρC= 7,8x103 kg/m3) com 1,0 cm de raio é cerca de 50 m/s. Uma queda de aproximadamente 2,0 m de altura leva a esfera atingir uma velocidade de cerca de 6,0 m/s, portanto cerca de um oitavo do valor da velocidade terminal. Como a força de arrasto cresce com o quadrado da velocidade, no final desta queda de 2,0 m o valor da força de arrasto é setenta vezes menor do que o peso da esfera. Portanto, se pudermos tolerar uma aproximação inferior a uma parte em setenta no nosso “experimento de queda livre”, de fato podemos considerá-lo como queda livre. Uma pergunta recorrente diz respeito aos valores de velocidades que paraquedistas em “queda livre”, isto é, com o paraquedas fechado, atingem. A expressão (5), considerando que a aerodinâmica do paraquedista leva a C≈1, nos permite estimar velocidades terminais para orientações diversas do corpo em relação ao movimento do ar, entre 50 m/s e 100 m/s nas proximidades do solo (onde a densidade do ar é 1,2 kg/ m3). Em ar rarefeito de grande altitude, a velocidade pode ser muito maior, inclusive supersônica [4]. Agradecimentos. Agradeço às professoras Eliane Veit (IF-UFRGS), Maria Cristina Varriale (IM-UFRGS) e ao professor Rolando Axt (IF-UFRGS) a leitura crítica e as muitas sugestões que permitiram o aprimoramento deste artigo. REFERÊNCIAS [1] Batchelor, G. K. An introduction to fluid dynamics. Cambridge: Cambridge University Press (2002). [2] Aguiar, C.E. e Rubini, G. A aerodinâmica da bola de futebol. Revista Brasileira de Ensino de Física 26, 297 (2004). (http://www.scielo.br/pdf/rbef/v26n4/a03v26n4.pdf - acessado em 13/11/2015) [3] Böhm, H. P. A general equation for the terminal fall speed of solid hydrometeors. American Metereological Society, v. 46, n. 15: 2419-2417 (1989). (http://journals.ametsoc.org/doi/pdf/10.1175/15200469%281989%29046<2419%3AAGEFTT>2.0.CO%3B2 - acessado em 27/11/2015 ) [4] Silveira, F.L. A física no salto de Felix Baumgartner. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 37, n. 2, 2306 (2015). (http://www.scielo.br/pdf/rbef/v37n2/0102-4744rbef-37-02-2306.pdf - acessado em 13/11/2015) Apêndice O objetivo deste apêndice é apresentar as deduções das expressões (13) e (14) usadas no texto principal. A Segunda Lei de Newton aplicada ao corpo cadente no ar, sofrendo força de arrasto proporcional ao quadrado da velocidade v leva a M d C v = M g − ρ F A v2 , dt 2 donde obtemos que vT2 satisfaz a condição: C M g= ρ F A vT2 . 2 (1.A) (2.A) Sendo τ =vT /g o intervalo de tempo para que, em queda livre, um corpo que parte do repouso atinja uma velocidade com o mesmo valor da velocidade terminal vT , então a equação (1.A) pode ser reescrita como vT2 − v 2 d v= . dt vT τ (3.A) A definição de novas variáveis: v, ≡ v t , e t ≡ vT τ (4.A) nos permite reescrever (3.A) como d , v = 1 − v,2 , , dt (5.A) donde ∫ dv , = 1 − v,2 ∫ dt , , (6.A) e, portanto, 1 v, − 1 ln , = − t , + C1 , 2 v + 1 ou ainda (7.A) , v, − 1 , = C 2 e − 2t . v + 1 (8.A) onde C2 é uma constante. Como v,,(0) = 0 então C2 = -1 e portanto, para um objeto inicialmente em repouso, tem-se: , 1 − e − 2t , v = − 2t , 1+ e , et − e − t v = , t, e + e , (9.A) , − t, , (10.A) isto é: t − τt e −e τ v = vT t t − τ τ e + e , (11.A) que é a equação (13) da parte principal do artigo. Esta pode ainda ser reescrita sob a forma ( τ). v = vT tanh t (12.A) Para determinar o deslocamento vertical y(t) do corpo cadente reescreve-se (12.A) como ( ) d y = vT tanh t τ dt (13.A) Representando por Y, o deslocamento que um corpo percorreria em queda livre a partir do repouso, no início da queda, até atingir uma velocidade com valor igual ao da velocidade terminal vT, isto é, durante o tempo τ, tem-se que g τ 2 vT τ , Y= = 2 2 (14.A) e definindo uma nova variável t, ≡ t τ (15.A) reescreve-se (13.A) como d , y = 2 tanh t , , , dt (16.A) ∫ dy = ∫ (17.A) , 2 tanh t , dt , , y , = 2 ln ( cosh t , ) + C . (18.A) Como y‘ (0) = 0 então y , = 2 ln cosh t , , isto é, ( ) t y = 2Y ln cosh τ (19.A) , t − τt τ e + e y = 2Y ln 2 (20.A) , que é a equação (14) da parte principal do artigo. (21.A)