relatorio prof alberto

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Universidade Federal de Santa Catarina
Disciplina: Estagio Curricular
Professor: Alberto Groisman
Graduanda: Carolina Juppe Schmidt
RESUMO DE APRESENTAÇAO
Titulo: Narrativas sobre experiências de travestis junto ao sistema de saúde na cidade de
Florianopolis
ORIENTADORA: Profª. Drª.Sônia Weidner Maluf
Este problema de pesquisa surgiu a partir de algumas reflexões minhas a respeito do Sistema
Único de Saúde (SUS) e das diferentes parcelas da população que fazem uso dos seus serviços.
Há sete anos trabalho como técnica em enfermagem na Prefeitura Municipal de Florianópolis e
tenho percebido algumas barreiras que ainda persistem no imaginário de alguns profissionais e
também de gestores do setor de saúde no que diz respeito a diferentes concepções de saúde e
doença e as diversas opções terapêuticas escolhidas pelos usuários do SUS.
Os estudos antropológicos de saúde e doença têm demonstrado que o modelo biomédico
adotado pelas estratégias de saúde usadas não só pelos governos, mas também pela iniciativa
privada tem certo viés racionalista e objetivista que desconsidera as dimensões sociais e culturais
da doença, a cosmologia do sujeito doente e como este constrói e significa o seu processo de
doença e cura (LANGDON; 1995) (MALUF; 2002). A postura adotada pelas ciências médicas
também ignora o fato de o paciente buscar a cura em qualquer outro espaço que não seja
necessariamente o consultório médico, como se a medicalização da doença fosse a única forma
de tratamento. Bem, além de minha própria experiência com pessoas doentes, existe vasta
literatura sobre as mais diferentes formas de “interação medicamentosa” usada nos itinerários
terapêuticos destes pacientes, que não colocam necessariamente a biomedicina em primeiro
lugar, mas muitas vezes como tratamento complementar (LANGDON; 1995) (MALUF; 2007)
ou secundário, seja por opção ou falta de dinheiro.
Este trabalho visa contribuir para os estudos de gênero e saúde, buscando conhecer a forma
como os travestis de Florianópolis significam seus processos de doença e como tem acesso a
tratamentos terapêuticos. Este trabalho se propõe também a problematizar o tipo de atendimento
de saúde que é oferecido a esta parcela da população e a necessidade ou não de políticas
especificas de saúde para esta população.
O interesse neste tema surgiu quando, ao cursar uma disciplina sobre antropologia de gênero,
lembrei-me de um fato acontecido há alguns anos atrás, quando ainda era estudante em um curso
técnico de enfermagem. Ao chegar ao hospital para mais um dia de estágio curricular, soube que
havia internado um paciente no isolamento e que seria eu a responsável por ele naquele dia. O
isolamento é um quarto existente nos hospitais para uso de pacientes com doenças contagiosas,
queimaduras extensas ou tétano, o que exige uma série de cuidados por parte dos profissionais de
saúde. Então, fui me informar com a equipe de enfermagem sobre o que iria “enfrentar” naquele
dia, e qual foi a minha surpresa quando me disseram que era apenas um curativo extenso.
Perguntei então o porquê do isolamento, não havia mais leitos vagos? A resposta foi uma
situação que eu jamais imaginaria vivenciar:
não soubesse? É um traveco minha filha! Coloco silicone liquido nas
coxa e no pé, vê se pode, disse que mulher tem que ter pé redondinho! Aí
minha filha, inflamo e teve que abri tudo. Ta lá com dois rasgo nas coxa.
Só que nós botamos ele na masculina (ala) e as mulheres do outros
pacientes começaram a reclamar porque ele usa camisola transparente e
calcinha vermelha! Aí, como não dava pra botar na feminina né, botamo
no isolamento. Não tinha o que fazer.
Ela havia se submetido a um implante de silicone caseiro. Neste “implantes” uma
pessoa que pode ser uma amiga ou as chamadas “bombadeiras” injeta silicone industrial
liquido na parte do corpo que a pessoa deseja modificar. Mas este procedimento pode
acarretar uma serie de problemas, desde o silicone escorrer dentro do músculo e
deformá-lo até mesmo uma rejeição infecciosa. Mas não foi o evento biológico que me
chamou a atenção, e sim as reações dos internos e dos profissionais do hospital ao
lidarem com o fato de terem uma travesti, uma pessoa que porta os dois sexos,
necessitando atendimento em uma instituição que não prevê este tipo de situação.
Não existe uma única definição do que é ser uma travesti. Usarei aqui a definição
dada por Anna Paula Vencato em seu trabalho sobre performance e corporalidade com
drag quens em Florianópolis. Segundo Vencato,
ao invés de praticar cross-dressing com intuito de excitar-se / preparar-se
para a prática sexual, o/a travesti busca realizar uma construção corporal
que o aproxime a um corpo feminino, contudo, não quer tornar-se uma
mulher “de verdade”, ou seja, não deseja extirpar seu falo. Geralmente
passa por vários processos de construção corporal em direção ao feminino
(coloca silicone, faz depilação, cirurgias plásticas, etc.), sendo esses
processos mais ou menos rudimentares dependendo, principalmente do
poder aquisitivo das travestis.1(2002:15)
Esta definição usada por Vencato explica o problema pelo qual passaram à paciente e a
equipe do hospital. A paciente, fisiologicamente, perante os olhos da biomedicina, era o paciente,
pois possuía um falo. Mas seu corpo e sua postura mostravam uma jovem e bela moça.
A maioria dos estudos etnográficos sobre travestis têm apontado para a idéia de que travesti é
convergência de dois sexos, é uma pessoa que modifica seu corpo para portar os dois sexos e é o
seu corpo que a define e personifica. A fala do referido profissional demonstra claramente o
despreparo das ciências médicas em lidar com subjetividade e a diversidade de sujeitos existente
na nossa sociedade. As instituições e os profissionais de saúde desconhecem quase que
totalmente a multiplicidade de sujeitos transgêneros2, e as travestis ocupam, quase sempre,
apenas o lugar marginal da prostituição no imaginário destas pessoas.
Porém, estas sujeitas quase invisíveis existem e seguem suas vidas. Muitas trabalham em
empregos comuns (nem todas se prostituem, embora a meu ver a prostituição também possa ser
um emprego comum), são artistas (VENCATO, 2002), chefes de família, mães/pais
(CARDOSO, 2005) que precisam de atendimento médico para seus filhos, senhoras idosas
(SIQUEIRA, 2004) que tomam vacina da gripe. De acordo com Menéndez,
“os conjuntos sociais vão construindo um perfil epidemiológico
integrado; porém é preciso ressaltar que as representações e práticas
relativas a cada um dos padecimentos e a suas características clinicas e
Por cross-dressing Vencato entende tratar-se de “manifestações de transvestitismo,ou seja, enquanto
apropriação de roupas e signos femininos por sujeitos de que socialmente se esperava que usassem/se
apropriassem de signos masculinos.”(2002:09)
1
2
Uso o termo aqui para definir de modo geral, travestis, transexuais, transformistas, drags e andrógenos
sendo eles ou não homossexuais, bissexuais ou heterossexuais.
epidemiológicas, não aparecem como algo estruturado, senão que
emergem reativamente ante as situações especificas”.
Os estudos epidemiológicos são em sua maioria de caráter quantitativo trabalhando com
“amostras populacionais probabilísticas” (SEVALHO & CASTIEL: 1998) onde a preocupação
maior está em normatizar as respostas para um maior controle dos resultados. O uso de
questionários do tipo survey (geralmente usados em estudos epidemiológicos) dão margem a
uma série de mal entendidos por não problematizarem a origem e a forma de obtenção destes
dados. Geralmente são perguntas com respostas fechadas que não oferecem alternativas
subjetivas de respostas (VITORIA, KNAUTH & HASSEN, 2000) o que faz com que no caso
dos sujeitos deste trabalho, estes só são contabilizados - na maioria dos casos - em pesquisas
epidemiológicas de doenças sexualmente transmissíveis. Portanto, faz-se necessário identificar
através de uma pesquisa qualitativa as necessidades destas travestis, para assim esboçar qual o
tipo de atendimento em saúde deveria ser-lhes ofertado.
Parece quase muito claro que as dificuldades enfrentadas pelas travestis na busca pelo
atendimento a saúde é um problema que não está nelas, e sim nos profissionais que as recebem
nos serviços de saúde. Então por que não voltar o foco da pesquisa para estes profissionais? Por
dois motivos: 1) por que os fatos percebidos por mim não são percebida por esses sujeitos da
mesma forma, portanto, penso que suas narrativas não seriam tão ricas quanto penso serem as
das travestis e, 2) como sou profissional de saúde nesta cidade há alguns anos, penso que seria
mais produtivo se houvesse certo distanciamento, um estranhamento em relação ao meu objeto
para evitar que meu olhar já domesticado como profissional de saúde desvie meu olhar de
pesquisadora, privilegiando algumas questões em detrimento das que busco encontrar.
O primeiro contato com as travestis se dará através da ADEH (Associação das Travestis da
Grande Florianópolis). Para os objetivos desta pesquisa faz-se necessário o uso de métodos de
natureza qualitativa, pois, “pelo fato de trabalhar em profundidade possibilita que se compreenda
a forma de vida das pessoas” (VITORIA, KNAUTH & HASSEN, 2000: 39) e do ponto de vista
do nativo como sujeito reflexivo (CASTRO, 2002) não apenas através de suas respostas, mas
também do comportamento não verbal dos sujeitos da entrevista e da relação entre pesquisador e
pesquisado.
A coleta de dados será feita através de entrevistas semidirigidas e/ou abertas com as travestis
que concordarem em participar da pesquisa, bem como o uso de gravador – quando permitido
pelas entrevistadas, caderno de campo e se possível, conversas informais - conversas profundas -
que muitas vezes são muito produtivas (MALUF, 2002). O roteiro das entrevista/conversas será
focado nas narrativas das histórias sobre vivencia terapêutica das entrevistadas.
RELATO DE CAMPO
Como até agora realizei somente uma entrevista, não tenho a analise de dados completa. Mas a
fala da minha primeira entrevistada já me rendeu resposta a muitas das questões propostas no
projeto, então, acredito ser interessante relatá-las.
Depois de três tentativas frustradas (uma por e-mail e duas em pessoa), consegui conversar
com uma integrante da ADEH. Não foi bem uma entrevista, pois eu estava explicando o que iria
fazer e pedindo sua colaboração e das demais pessoas interessadas.
Mas a conversa começou com o pé esquerdo. Primeiro por que eu cometi a burrice de dizer
que queria entrevistar OS travestis ao invés de AS travestis. A resposta de dela foi categórica: “a
academia já deveria estar cansada de saber que é AS travestis”, e começou a falar
enfurecidamente mas sem explicar muito, sobre algo que ela denomina “cafetinagem acadêmica”
e que eu achei muito interessante e pretendo explorar esta opinião nas entrevistas. Mas o que ela
disse já foi bastante esclarecedor em relação ao uso do feminino.
Como era a primeira conversa não pude usar o gravador, não havia clima, mas fiz minhas
anotações no diário de campo. Infelizmente não consegui me lembrar de tudo por que ela falava
sem parar fumando um cigarro atrás do outro. Ela estava em pé, próxima a janela, eu, sentada em
uma cadeira quase de frente para ela. Ouvi tudo quase sem falar nada, como se tivesse levando
uma bronca por ter feito algo imperdoável. E realmente foi. Na voz de dela, ouvi toda a
frustração de uma pessoa que não é reconhecida por sua opção de vida e que me pareceu cansada
de figurar em tantas pesquisas acadêmicas que não dão em nada. Ela mencionou rapidamente,
quase falando para si mesma, uma “idiota” de uma estudante de jornalismo (que queria
entrevista-la e ela negou), e “essa gente (da academia) acha que travesti é tudo burra”.
Ela também foi clara e direta quanto ao fato não responder nem permitir que o nome da
ADEH fosse relacionado a qualquer pesquisa relacionada a prostituição e DSTs, por que segundo
ela, é só sobre isso que a academia quer falar, e isso só contribui para reafirmar a idéia de que
travesti é prostituta. Se fosse para falar de saúde em geral, das necessidades das travestis em
serviços de saúde como, por exemplo, atendimento para as que usam hormônio e automedicação,
tudo bem. Mas nada de prostituição. Senti muita revolta e magoa dela em relação a academia.
Bem, apesar de ter sido uma conversa fulminante, rendeu bastante material para escrever. O
principal problema segundo ela é a automedicação, pois elas não se sentem a vontade para
procurar os serviços públicos e comunitários de saúde, pois sentem que não são bem recebidas.
Mencionei que gostaria de saber sobre todos os serviços de saúde usados por elas, inclusive os
privados e etc. Ela concordou e combinamos que eu iria enviar uma copia do meu projeto para
que ela pudesse ler e opinar e que ela iria falar com outra três meninas e convidá-las para que nos
encontrássemos todas juntas no sábado dia 28/11, à tarde porque “de manha ou a noite nem
pensar minha filha, todas trabalham a noite e dormem de manha.”.
Falou que iria selecionar as meninas para eu entrevistar, por que queria que eu falasse com
quem me dissesse a verdade, e não com outras que só iram falar mal do SUS e fazer de vitimas.
Ela acha que em parte, o preconceito parte da postura adotada por algumas travestis, de usarem
“roupas indecentes e terem modos extravagantes em lugares onde deveriam ser discretas”.
E finalmente, a confusão deste relato reflete a aura do nosso primeiro encontro: bastante
atribulado e em tom hora de acusação, hora de desabafo. Mas fiquei muito satisfeita e feliz por
que no final, quando estava mais calma, ela me aceitou e concordou em me ajudar.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Florianópolis. Trabalho de Conclusão de Curso – Ciências Sociais/UFSC. Florianopolis
2005. Orientadora: Prof. Dr. Mirian P. Grossi.
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LANGDON, J. E. A doença como experiência: a construção da doença e seu desafio
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______.
Corpo
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corporalidade
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______. Abordagens antropológicas da saúde. Palestra do Curso de Pós-Graduação
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SIQUEIRA, M. S. Sou senhora: um estudo sobre travestis na velhice. Dissertação de
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VENCATO, A. P. “FERVENDO COM AS DRAGS”: corporalidade e performance de
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PPGAS/UFSC. Florianópolis, 2002. Orientadora: Prof. Dr. Sonia W. Maluf.
VITORIA, C. G., KNAUTH, D. R., HASSEN, M. N. A. Pesquisa Qualitativa em
Saúde: Uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial. 2000.
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