A Filosofia na Formação do Educador

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A FILOSOFIA NA FORMAÇÃO DO EDUCADOR: CONTRIBUIÇÕES PARA UMA
EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA
Irene Mônica Knapp1
Amarildo Luiz Trevisan2
A escola enquanto local de formação está vinculada diretamente a interesses da sociedade que
revelam as concepções de homem e mundo que passam a fundamentar as práticas pedagógicas.O
presente artigo tem como objetivo principal fazer uma leitura reflexivo-crítica da pedagogia e sua
relação com a Filosofia no seu percurso histórico.O conhecimento da história da pedagogia, através
de uma leitura filosófico-hermenêutica, contribui para a compreensão das ações educativas e suas
concepções teóricas presentes hoje a partir de seu processo histórico. Dessa forma, o filosofar,
enquanto forma de investigar e questionar a realidade presente, torna-se necessário em qualquer área
do conhecimento. Na escola, tal postura significa manter um olhar atento e crítico às decisões e
propostas do fazer pedagógico.
Palavras–chave: filosofia-educação-conhecimento.
Considerações introdutórias
A escola hoje, inserida em seu contexto, revela as influências de seu meio e busca, perpassada
por expectativas e conflitos, definir qual sua identidade na realidade histórica em que se encontra.
A leitura interpretativa, de abordagem hermenêutica, das concepções e idéias pedagógicas que
perpassaram os tempos e estão presentes ainda hoje, são uma forma viável de se buscar outras
propostas com o objetivo de superar lacunas e carências que hoje se apresentam na realidade da
maioria das escolas.Situações do cotidiano escolar que se traduzem como indisciplina, desinteresse e
até rebeldia torna clara a necessidade de se rever as práticas pedagógicas hoje existentes.
Diante dessa situação, convém levantar questionamentos sobre o papel da escola e do educador na
formação do ser humano em uma sociedade globalizada que exige visão crítica, discernimento,
autonomia de decisões, capacidade de pesquisar e construir conhecimentos e, principalmente, saber
utilizá-los de forma ética e não apenas com o objetivo de comercializá-los, característica marcante
nos dias de hoje. Tal concepção significa entender a escola como espaço de formação humana e não
apenas de profissionais para o mercado de trabalho.
1
Licenciada em Pedagogia, acadêmica do Curso de Especialização em Gestão Educacional pela Universidade
Federal de Santa Maria/UFSM. ( [email protected] ).
Na pretensão de se ter uma postura reflexiva, crítica e investigadora da realidade e do agir
Prof. Dr. do Programa de Pós-Graduação em Educação e orientador da pesquisa/UFSM
2
humano, a filosofia vem a contribuir no sentido de propor uma leitura atenta, interpretativa das
teorias e práticas que se observa no atual contexto. O campo de atuação da Filosofia sempre esteve
relacionado com a interpretação e reinterpretação do mundo com o intuito de interagir com o meio.
Para Gramsci (1995), todos os homens são filósofos pois filosofar envolve o pensar sobre as coisas e
pensar é próprio do homem, no entanto, somente o pensar e o refletir criticamente e o que poderá
superar o senso comum. Para o autor, Filosofia seria a própria crítica do senso comum, não no
sentido de introduzir o novo, mas sim de “... inovar e tornar crítica uma atividade já existente”.
(Gramsci, 1995, p.18) Dessa forma, para o autor, a filosofia representaria o próprio contexto
histórico de sua época e todas as suas tensões envolvendo interesses diversos entre os grupos
políticos, classes sociais, instituições e entre elas, a escola.
Para Habermas (2000,1989 ), a Filosofia coloca-se como um lugar reservado para a
discussão crítica e o diálogo no sentido de se contruir outros consensos possíveis e válidos para os
problemas que se apresentam. Muitas das questões que permeiam o espaço da escola são
conseqüências de propostas advindas do Estado Moderno que acabou por se revelar nas práticas
pedagógicas. A desenfreada busca pelo crescimento econômico desencadeou uma formação
excessivamente técnica, negligenciando outras dimensões do ser humano. Habermas refere-se ao
projeto da modernidade como algo inacabado e propõe rediscuti-lo, buscar outros fundamentos
necessários que considerem aspectos históricos e sociais importantes para o atual contexto. A teoria
habermasiana propõe, numa perspectiva hermenêutica, reconstruir concepções e teorias válidas sob
outros enfoques, contextualizando-as criticamente e tendo como princípio regulador dessa reflexão e
debate crítico, o diálogo, a comunicação entre as pessoas envolvidas, reafirmando, dessa forma, a
capacidade do ser humano de relacionar-se com os outros e com o mundo colocando em ação o
potencial de uma razão ética e emancipatória.
Filosofia e educação: uma relação necessária para o fazer pedagógico
A filosofia, historicamente, sempre esteve ligada às questões do conhecimento na busca
incessante de compreender o mundo e transformá-lo. Nessa trajetória histórica, as teorias, desde os
2
Prof. Dr. do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado – CE/UFSM e Pesquisador do CNPq.
grandes filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles, na Grécia Antiga, sempre revelaram as
concepções de homem e mundo elaborados em seu contexto. Sendo assim, preocupava-se com a
formação desse homem para o seu convívio na sociedade. Daí, sua estreita ligação com os modelos
de educação e, mais tarde, com o surgimento da Pedagogia enquanto ciência.
O mundo grego sempre foi um ponto de referência na história da humanidade pelas suas
grandes produções teóricas, pelas suas tradições culturais, seus mitos, seus filósofos, como também,
seus modelos de organização política e judiciária, e seus modelos educativos. CAMBI (1999) no seu
livro “História da Pedagogia”, descreve e interpreta a organização da pólis grega e a formação do
cidadão para seu convívio na comunidade. A pólis grega afirma-se como uma cidade- Estado que se
organiza através de suas assembléias e de cargos eletivos, buscando delimitar seu território, sem, no
entanto fechar-se para o comércio exterior.
Considerando que os gregos (Cambi, 1999) foram um povo com grande diversidade cultural
e étnica, a pólis grega,com intensa vida comunitária, tornou-se exemplo de organização política
com princípios democráticos, uma vez que tal diversidade exigia um verdadeiro exercício de
debates argumentativos, onde a palavra tornou-se o meio para as decisões a serem tomadas visando à
vida em comunidade. As leis, normas e valores da pólis grega, de forte caráter espiritual, eram
inspirados pelos deuses que se manifestavam através de seus sacerdotes. Os sacerdotes
representavam os interesses do Estado e, particularmente, de uma classe social. E são novamente, as
histórias mitológicas, as explicações e rituais religiosos que irão justificar e validar a forma de
organização política e social da pólis grega, em todas as suas contradições.
Conforme Cambi (1999), a educação estava intimamente ligada à vida comunitária através
dos jogos e do teatro com temas religiosos mas também políticos. O autor destaca além de Atenas, a
cidade de Esparta, uma vez que seus modelos políticos, sociais e culturais (opostos entre si)
idealizaram modelos de educação que permearam as teorias e debates pedagógicos por muitos
séculos. Esparta foi um modelo de Estado totalitário, de divisões rígidas de classe, fechada na sua
cultura e alheia às descobertas e invenções que aconteciam no mundo. Seu modelo de educação
estava baseado na aceitação e no conformismo desta organização política e social.
Atenas representava uma organização totalmente oposta em todos os sentidos. Palco para
uma vida pública mais aberta, onde idéias e concepções divergentes eram levadas ao debate fazendo
surgir um modelo de governo democrático bastante avançado para a época. Atenas se expandia em
todos os aspectos: no comércio, na população, na cultura e nos modelos educativos. Seu modelo
educativo valorizava o indivíduo e suas capacidades de organização e construção da sociedade. Seus
ideais estão centrados “ na concepção de paidéia, de formação humana livre e nutrida de
experiências diversas, sociais mas também culturais e antropológicas”. (Cambi, 1999, p.82)
É nesse cenário movimentado da pólis ateniense do séc. IV a. C. que a Filosofia surge no
sentido de investigar e interpretar esta nova realidade social e política, econômica e cultural
propondo a formação do homem nesse novo contexto.A Filosofia, enquanto conhecimento racional
busca fundamentar uma sociedade mais científica e menos mitológica, muito criticada pelos novos
grupos sociais. Segundo Cambi (1999), a principal crítica referia-se à necessidade do homem ter a
liberdade de delinear seus próprios objetivos, colocando sob a análise as influências dos mitos e
crenças e exigindo para si uma concepção mais científica da realidade.Nas palavras de Nunes (2000,
p.60) a “ realidade da pólis mudou a temática da filosofia.(…) A questão principal da cidade naquele
momento transmudou-se para a investigação da identidade, sobre a essência e o ser do homem. Este
tema (...) configurou o problema central (…) de todos os filósofos dos séculos IV e III…” . Esta
formação política, ética e estética do homem configurou-se na própria paidéia grega. Nesse
contexto, a Filosofia enquanto investigação criteriosa dos fundamentos da realidade acabou
produzindo uma teoria da educação que justificava as práticas educativas necessárias para a
formação do homem. Dessa forma, a “ paidéia grega encerra a primeira forma sistematizada de uma
filosofia da educação” (Nunes, 2000, p.62). De uma paidéia voltada para os interesses da pólis, de
uma vida comunitária, surge a paidéia sustentada por valores pessoais com modelos de um homem
mais livre, mais universal e mais humano, voltado essencialmente para a atuação política da cidade.
Os primeiros filósofos gregos, preocupavam em descobrir a constituição do universo e da
origem da natureza. Na sua origem, a Filosofia coloca-se numa busca incessante de um saber que
supere o senso comum, a mera opinião definida como doxa, mas, que por sua vez, também não se
constituísse em um novo dogmatismo, como o foi o das doutrinas mitológicas. Percebe-se aqui que a
própria identidade da Filosofia se coloca como questão filosófica, mas que se caracteriza
continuamente, “ como uma área ou campo do conhecimento humano que é capaz de investigar a
realidade a partir das causas fundamentais e primeiras, segundo critérios metodológicos
corroborados sobre uma intencionalidade radical que determina um pensamento resultante de
características próprias de sua natureza especulativa, global e de totalidade” (Nunes,2000, p.58-59).
Segundo Cambi (1999), na perspectiva de teorizar esta educação nasce a Pedagogia numa
dimensão teórica, fundamentada de acordo com os princípios filosóficos. A Pedagogia, que supera
uma cultura local, coloca-se como um saber autônomo, sistemático e universal, trazendo a noção de
paidéia como forma de pesquisa racional e de reflexão sobre os complexos problemas educativos de
cada época. Refletir e investigar sobre as concepções que envolvem a formação humana, tornou-se o
foco principal de qualquer ciência que investiga o homem e sua realidade histórica e, neste contexto,
a Filosofia, ou como se refere Nunes (2000), “a atitude filosófica¨ pode ser colocada como algo em
comum para qualquer área do conhecimento enquanto postura atenta e questionada do agir humano.
A Pedagogia, no contexto temático antropológico da Grécia (sé. V e IV a.C.), conforme
Cambi (1999) e Nunes (2000), enquanto ciência (episteme) busca fundamentar as práticas
educativas elaboradas para fins determinados (poiésis) e elaboram a própria noção de paidéia dessa
época. Pelo pluralismo de idéias, este período traz toda a complexidade que envolve a noção de
paidéia como também da elaboração teórica pedagógica. É um campo aberto para novas idéias,
conflitos teóricos e contradições que se mostram através de representantes ilustres como Sócrates,
Platão e Aristóteles e a polêmica atuação dos sofistas. “Estamos diante da paidéia dos filósofos”, nas
palavras de Cambi (1999, p.88), que trouxeram importantes elaborações teóricas, que perpassaram
os séculos de forma que os conhecimentos elaborados surpreendem hoje pela sua
contemporaneidade. Dessa forma, os filósofos que fundamentaram uma teoria da educação e do agir
ético e moral do homem na sociedade grega colocam-se como filósofos-educadores e suas teorias,
desde esta noção de paidéia até hoje, serviram como base para as reflexões e propostas educativas.
Os sofistas eram mestres e filósofos itinerantes vindos das colônias gregas (Gadotti, 1995). A
paidéia sofista representava-se na técnica da oratória. Defendia o homem dotado de razão como a
¨medida de todas as coisas¨, frase ilustre de Protágoras (484 – 411 a.C.) Tal concepção estendia-se
para a política, onde ela própria tornava-se uma técnica para superar os adversários através de seus
discursos.
Sócrates (470 – 399 a.C., Cambi, 1999) discordava do relativismo ontológico e moral e da
educação técnica desenvolvida através da retórica que os sofistas praticavam. Sócrates defendia a
idéia de que algumas normas e conceitos devem ser universais. Com isso, a paidéia socrática tinha
como reflexão filosófica a formação moral e ética do homem. Para Sócrates, as definições do que é
certo ou errado, não podem ficar sujeitas às leis coercitivas do Estado. O método utilizado por
Sócrates era o do diálogo, que poderia acontecer em qualquer lugar e com qualquer pessoa. Defendia
a idéia de que todos são dotados de razão e, portanto, capazes de chegar ao conhecimento. O filósofo
seria aquele que ajudaria nesse processo. Nas palavras de Cambi (1999, p.88), a “formação humana
é para Sócrates maiêutica (…), o qual desperta, levanta dúvidas, solicita pesquisa, dirige,
problematiza, etc. (…) desse modo se realiza o ‘trazer para fora’ da personalidade de cada indivíduo
que tem como objetivo o ‘conhece-te a ti mesmo’ e a sua realização segundo o princípio da liberdade
e da universalidade.”
A filosofia socrática retoma a íntima ligação entre Filosofia e ação educativa enquanto
pesquisa da realidade, enquanto questionadora entre o pensar e agir ao ser humano. O exercício do
refletir, de perguntar, muito antes do que o dar as respostas, é uma das principais características do
filosofar. Tal postura torna-se necessária e impertinente ao mesmo tempo em qualquer época e lugar,
pois desafia e coloca em dúvida verdades que são impostas coerativamente, com fins estratégicos,
distantes de uma razão emancipatória que busca construir consensos através do diálogo. Gramsci
(1995) refere-se ao “conhece-te a ti mesmo” socrático como a necessidade de nos reconhecer como
produtos de um processo histórico. Para o autor, o filosofar, enquanto interpretação crítica da
realidade contemporânea, necessita passar pelo conhecimento da própria história, suas contradições
com outras concepções de mundo e sob esta ótica, onde a própria filosofia é analisada
reflexivamente, revendo também, suas contribuições para a humanidade.
Platão (428 – 348 a.C. ; Nunes, 2000), frustrado com o sistema político e judiciário da época,
que condenaram à morte seu mestre e amigo Sócrates, acaba refugiando-se em mundo ideal,
afastado das aparências e sensações. Para a filósofo, o verdadeiro conhecimento se dá no mundo das
idéias que se alcança através da Filosofia e, portanto, possível apenas à capacidade intelectual dos
filósofos. Quanto a sua relação com o povo, a filosofia platônica diferencia-se com a filosofia
socrática. Sócrates filosofava com as pessoas em geral não fazendo distinção de classe. A filosofia
de Platão colocava-se como algo destinado a mentes superiores. O conhecimento verdadeiro só
poderia ser alcançado por almas iluminadas e não pelo povo em geral. O filosofar acaba
distanciando-se do cotidiano, colocando-se como uma atividade complexa e difícil para mentes ¨não
iluminadas¨.
Aristóteles (384 – 322 a.C. ; Nunes, 2000), outro grande nome da filosofia grega, foi
discípulo e crítico de Platão. Formou-se na academia de Platão, e anos mais tarde, conforme Cambi
(1999), fundou o Liceu em Atenas. Aristóteles defendia a idéia de que a essência estava nas próprias
coisas. Tal concepção manifestava-se na importância dada por Aristóteles na atuação dos homens na
vida política da sociedade, no sentido de uma ação direta, capaz de organizá-la da melhor forma. Os
princípios filosóficos de Aristóteles influenciaram profundamente outras teorias sobre o homem, a
educação e a sociedade. Defendendo a idéia de que a educação tem a possibilidade de formar o
homem e torná-lo nobre, a filosofia aristotélica fundamentou teorias pedagógicas que deram ênfase a
metodologias de ensino com o objetivo de educar a mente e o corpo.
Foucault (1987), na terceira parte do seu livro sobre ¨Disciplina¨, refere-se à histórica
atenção dedicada ao corpo, ora no sentido de contemplá-lo, ora no sentido de discipliná-lo como
também o de torná-lo dócil e submisso. Aristóteles referia-se à disciplina do corpo e da alma como
forma de educar a si próprio. No entanto, o disciplinamento, a obediência e a submissão do corpo a
outrem, foram utilizados estrategicamente nas mais variadas épocas históricas. Segundo o autor,
observou-se tais posturas em conventos, escolas, quartéis, fábricas, oficinas e hospitais, e que
visavam, nesta formação, tornar o corpo dócil, útil e obediente. O autor denomina tais estratégias
disciplinares como uma “anatomia política”, que exerce uma “mecânica do poder” sobre o corpo dos
outros e que se mostrou, principalmente, no contexto histórico dos séculos XVII e XVIII; percorreu
o tempo e o espaço e ainda hoje guarda muitos resquícios.
Gramsci (1995) critica o dualismo existente nas mais variadas épocas históricas e correntes
filosóficas entre o pensamento popular ( o senso comum ) e o pensamento intelectual dos filósofos.
Para o autor, esta separação precisa ser rompida, buscando resgatar a capacidade reflexiva-crítica do
ser humano, onde a Filosofia coloca-se como um convite à reflexão e na superação do senso comum.
A distância entre alta cultura e baixa cultura observa-se durante o decorrer da história, nos
mais variados contextos. O acesso à educação em níveis mais elevados se deteve, na maior parte do
percurso histórico, às elites. As grandes obras de arte (música, teatro, pinturas, obras literárias...) se
restringiam às classes sociais nobres, que se utilizavam de sua posição social, política e econômica
para justificar o seu direito a esse tipo de cultura. Em outros contextos, o uso restrito e selecionado
de grandes obras de arte demarcou o controle ideológico sobre a população como foi o caso da Igreja
Católica no período medieval (Gadotti, 1995).
Atualmente, a massificação da informação através da mídia traz um outro tipo de cultura.
Grandes nomes e obras de artes encontram-se difundidos, e até, utilizados, em propagandas que
visam estrategicamente, o consumo. Buscam, nesta superficial aproximação com a alta cultura,
iludir o consumidor que se sente incluído neste contexto e não percebe, ou aceita passivamente esta
condição. Por outro lado, a escola se utiliza muito pouco destas situações da vida cotidiana para
debater e refletir criticamente, buscando outros conhecimentos que superem o senso comum do
consumismo e que tragam outros consensos para esta realidade. Os apelos consumistas da indústria
cultural que fazem parte do cotidiano, antes de serem apenas alvo de críticas ou de aceitação passiva,
devem ser vistas como um convite à discussão crítica e argumentação filosófica.As práticas
autoritárias que se apresentam em muitas situações do cotidiano escolar, onde o controle disciplinar
de atitudes e de horários, e a execução de um grande número de tarefas repetitivas, deixam pouco
espaço para que as reflexões filosóficas aconteçam a partir dos mais diversos assuntos e problemas
que permeiam a escola e o mundo fora dela.
A Filosofia se identifica no próprio processo histórico da evolução da razão humana e suas
concepções sobre o mundo. O filosofar se origina na necessidade de se conhecer e de se buscar um
sentido, uma razão sobre as relações entre as pessoas, consigo próprio e com o meio. Segundo Nunes
(2000), a atitude filosófica de especular sobre o homem, as coisas e o mundo revelam a própria
origem da filosofia, que (…) “se iniciou na Grécia antiga e perpassa toda a história do Ocidente até
os nossos dias”. (p.68) Dessa forma, as concepções de homem e de mundo em todo processo
histórico, definem os diferentes paradigmas de conhecimento em seus diferentes contextos. A
expressão paradigma é aqui entendida como um conjunto de princípios e idéias influenciadas pelo
contexto histórico e que dão referência aos mais variados campos do saber.
Conhecimento relaciona-se com a capacidade do ser humano utilizar a sua razão, que
pressupõe um processo de busca e de aprendizagem e que, por sua vez, envolve ações educativas,
com intenções pedagógicas com o objetivo de se chegar a esse conhecimento. O que conhecer, para
que e porque conhecer são questões e decisões que estão articuladas com o contexto histórico de
cada época. Portanto, as ações educativas com a intenção de formar e inserir os sujeitos na
sociedade, sempre buscam ser ... “a expressão do estágio de desenvolvimento da razão do homem no
que concerne às relações que ele estabelece com a natureza, com outros e consigo mesmo”
(Boufleuer, 2002 p.79). Sendo assim, as concepções de homem e de mundo são estabelecidas pelos
diferentes períodos históricos, influenciados pelas suas referências e condicionantes, expressando o
próprio uso da razão no agir humano.
Boufleuer (2002), define três grandes paradigmas sobre o conhecimento e racionalidades que
se verificaram ao longo dos diferentes contextos históricos. O paradigma das essências que traz uma
concepção de mundo estático, já definido, encontra-se nas idéias dos grandes filósofos gregos, no
mundo antigo como também dos princípios educativos cristãos que percorreram todo o período
medieval. O paradigma da subjetividade revela-se no projeto da modernidade impulsionado pelas
grandes descobertas e invenções científicas como também pela expansão do comércio
protagonizado pela classe burguesa que se destacava impulsivamente.É esse o paradigma dos
cientistas, dos técnicos, dos especialistas que acabam por fragmentar os campos do saber na intenção
de torná-los mais eficientes e produtivos. É em decorrência dessa concepção de mundo que hoje a
escola enfrenta problemas como um ensino burocrático, fragmentado que acabou por reproduzir um
conhecimento acrítico, excessivamente informativo e repetitivo.
O paradigma da comunicação busca questionar criticamente o uso excessivo da razão
instrumental e técnica que acabou por acontecer no projeto da modernidade. O paradigma da
comunicação busca resgatar a capacidade de diálogo e de entendimento que o ser humano tem na sua
relação com os outros e com o mundo acerca de seus problemas e possibilidades. A teoria da ação
comunicativa de Habermas, filósofo alemão da Escola de Frankfurt, é hoje um referencial para
novas propostas pedagógicas e para a busca de outros consensos válidos construídos na coletividade
e na dialogicidade.
Considerações finais
Habermas em seu livro “Consciência moral e agir comunicativo” (1989) remete-se à
Filosofia enquanto “guardador de lugar e como intérprete”, referindo-se à possibilidade da própria
filosofia questionar criticamente posturas radicais e extremistas trazidas por outras concepções
filosóficas. Tais debates teriam a pretensão de dialogar com outros saberes válidos e que estão
constantemente sendo renovadas e reconstruídos na relação intersubjetiva dos sujeitos tendo o
mundo da vida como pano de fundo. A Filosofia enquanto lugar garantido para o debate das
diferentes abordagens científicas sem desprender-se da cultura, da ética, do cotidiano das pessoas. A
Filosofia enquanto reflexão crítica de qualquer conhecimento, reconhecendo a importância das
construções históricas, mas sendo continuamente reinterpretadas. Os saberes válidos, na prática
comunicativa entre o mundo da vida e o sistema necessitam ser permeados com discussões sobre a
ética e a estética, sobre os valores e expressões culturais e não apenas pelos saberes científicos
legitimados pelo crescimento econômico e pela máxima produção. Dessa forma, a Filosofia
retomaria seu lugar de conhecimento crítico da realidade na sua totalidade, voltado para o mundo da
vida, com interesses e propostas voltadas para o convívio social e não apenas mercantilistas.
No âmbito escolar convém nos questionar sobre qual a postura filosófica tomada frente aos
conteúdos trabalhados e sua forma de seleção como também que atitudes tomamos para que os
saberes existentes no cotidiano do aluno tenham seu espaço garantido no currículo escolar. Colocar
o fazer pedagógico como uma situação filosófica constante, reflexiva e questionadora é uma via
possível e importante na busca de outros consensos para a ação educativa. É sob esta perspectiva que
a Filosofia, conforme Ghiraldelli (2002), é um dos mais antigos campos do saber mas que não perde
sua atualidade, pois o papel de interpretar e transformar o mundo é um exercício que acontece
continuamente e permeia todos os outros campos do saber. Na Pedagogia, é esse papel investigativo
e reflexivo da Filosofia que precisamos resgatar. Não é uma filosofia enquanto disciplina específica,
técnica, algo característico da escola moderna, mas como um veículo problematizador e crítico das
verdades estabelecidas.
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