III . Conclusões 4.1 - Eixos temáticos Como se observa facilmente, este trabalho deu lugar, com base na perspectiva teórica de análise, ao levantamento de uma temática variada que cerca o medicamento hoje, em nossa sociedade e cultura. É necessário, pois, tentar organizar a referida temática, sob a forma de eixos temáticos agregadores, que permitam a elaboração de propostas de tarefas, no que toca à elaboração de trabalhos científicos que, por sua vez, darão lugar a propostas de atividades de natureza educativa e assistencial a serem desenvolvidas na rede pública de saúde. Nesse sentido, do trabalho como um todo ressaltam os 1) O medicamento e a oposição: artificial x natural. seguintes seis eixos temáticos: 2) O medicamento no contexto de uma relação de co municação. 3) O medicamento como símbolo ambíguo de saúde e doença. 4) O medicamento e a moral: obediência e transgressão; autonomia e heteronomia. 5) O medicamento e o desejo: eficiência e eficácia sim bólica. 6) O medicamento e a relação de consumo. 135 Com estes seis eixos, busca-se uma das sínteses possíveisl da temática associada ao medicamento como objeto da Educação em Saúde Pública. 4.2 - Hipóteses 4.2.1 - Preâmbulo As hipóteses relativas aos seis eixos temáticos constituem, portanto, parte das tarefas acima levantadas. Cada uma destas hipóteses são compostas de duas partes. Na primeira parte, procura-se descrever, genericamente, o conteúdo do eixo temático (utilizando, nesta descrição, freqüentemente, "citações" de trechos do capítulo 111, para indicar que as hipóteses são um trabalho sobre esta "matériaprima"). Tal descrição tem o fito de tornar este conteúdo mais explícito. Na segunda parte, procura-se expressar o eixo em forma de hipótese. As hipóteses têm algumas características que precisam ser destacadas: a) Elas se referem aos usuários. A opção pelo usuário não implica, obviamente, que apenas estes possam ser objeto de hipóteses. As duas outras faces do tripé constituído pelos sujeitos atribuidores de sentido ao medicamento, ou seja, o ponto de vista do social e o ponto de vista do médico podem também, evidentemente, ser objeto de hipóte'les. A opção pelo usuário, aliás, não implica, como fica claro, que não estejam presentes, implicitamente, hipóteses sobre os dois outros "atores". Positivamente, a opção pelo usuário indica que, a nosso ver, ele é hoje, para a Educação em Saúde, em nosso país, numa escala de prioridades, o principal objeto de investimento. 1 Evidentemente, sendo a realidade polissêmica e permitindo, portanto, várias leituras legítimas, outros eixos ou conjunto de eixos são possíveis. 136 b) Elas consideram o usuário de medicamentos como apresentando uma tripla face: b.i - paciente; b.2 - indivíduo; b.3 - consumidor. a usuário de medicamentos é paciente enquanto pertence à categoria dos indivíduos doentes (crônicos ou agudos); o usuário é indivíduo enquanto membro de uma cultura, de uma sociedade; e o usuário é consumidor, enquanto indivíduo inserido numa relação de consumo de mercadorias. Evidentemente, todo usuário de medicamentos possui estas três facetas, em maior ou menor grau. Assim, se algumas hipóteses se referem ao usuário na sua tripla face, outras a ele se referem enquanto portador, em maior ou menor grau, de uma ou outra destas facetas. c) Mesmo dizendo respeito, fundamentalmente, ao usuário, as hipóteses pressupõem que este, na qualidade de portador do ponto de vista do indivíduo vivendo numa dada sociedade, está sempre envolvido com o ponto de vista do social e o dos médicos, em relações de submissão, rebeldia, hegemonia etc. 4.2.2 - Hipóteses 1) a medicamento e a oposição artificial versus natural. No campo da saúde/doença, em nossa cultura, o Homem parece ainda estar vivendo um conflito entre a sua condição de criatura da vida, da natureza e criador de vida, de natureza. Como conseqüência, a relação significante/significado no medicamento2 tem um duplo e conflitante fundamento antropológico na relação de união homem/natureza, como coi 2 Em que uma certa realidade material, funcionando como significante de satíde, pode "imitar" a natureza (por exemplo, cascas de árvore, nos "medicamentos naturais") ou "imitar" a civilização tecnológica (por exemplo, um recipiente de plástico contendo grânulos, nos medicamentos "químicos"). 137 sas feitas de uma mesma matéria-prima, e na relação de distanciamento/dominação/ruptura homem/natureza, em que este homem aparece como Senhor do Corpo, entendido como máquina. Esta problemática tem reflexos no mercado de bens de consumo de saúde (é a oposição "produto natural x produto químico"), expressando a face simbólica de uma competição mercado lógica ou - dentro da visão do ideológico que adotamos, em que infra-estrutura e superestrutura não são compartimentos estanques - a face mercadológica de uma competição no plano do simbólico. Hipótese: O medicamento "químico" é vivido pelos indivíduos/pacientes/consumidores como uma "alteridade", uma "coisa estranha", frente à qual estes desenvolvem uma predisposição positiva ou negativa. Estes "fatores que predispõem" são o reflexo ou reinterpretação, nos indivíduos, da oposição: natural x artificial, presente na cultura. 2) O medicamento e a relação de comunicação. Num contexto de relação de comunicação, usando o me dicamento como símbolo que lhe permite "falar saúde", na linguagem da saúde como ação social (o que é coisa muito distinta de falar, usando palavras como símbolos, sobre a saúde como tema), o paciente é capaz de emitir mensagens de saúde em resposta a mensagens de doença (sintomas) emitidas pelo seu organismo. O médico, neste contexto, figura também como um emis sor de respostas, só que de natureza diferente porque as "questões" que lhe são colocadas provêm da escuta ou ausculta do "outro" (o organismo do paciente). Colocar o problema da saúde/doença em termos de relação de comunicação implica, entre outras, na questão crucial, nos dias de hoje: para quem fala o organismo? Para o seu Ego? E/ou para o gigantesco aparelho tecnológico de escuta, de visão (tomógrafos, a parafernália dos exames de laboratório, ultra-sonografia etc.), que se vem desenvolvendo, historicamente, de maneira exponencial? Isto implica a desqualificação progressiva dos indivíduos comuns como intér 138 pretes ou decodificadores das mensagens de saúde/doença emitidas pelo seu organismo? N a hipertensão, o problema do medicamento, para o indivíduo, considerado na qualidade de consumidor, pode se tornar complicado porque o seu organismo pode não se comportar como um emissor de mensagens (do tipo: "estou doente", "estou sadio", "estou hipertenso", "estou normotenso"), que seja sempre "leal" ou transparente para o Ego que lhe corresponde, tornando problemático, para esse Ego, o exercício da "liberdade de medicar-se", ou seja, de produzir, através do consumo do medicamento, a sua própria saúde como mensagem. Hipótese: O medicamento é vivido pelos indivíduos, consumidores, pacientes, como uma mensagem/resposta de saúde a uma mensagem de doença emitida pelo seu organismo, no contexto de uma relação de comunicação em que figuram, também, o médico e os aparatos tecnológicos de ausculta do orgamsmo. 3) O medicamento como símbolo ambíguo de saúde e doença (ou como objeto bom e mau). A ambigüidade que o medicamento representa para o indivíduo advém do fato de que ele indica, ou significa, ao mesmo tempo, o preenchimento de algo que falta a este indivíduo (ou seja, a saúde perdida e recuperada no medicamento) e o fato mesmo de que algo lhe falta (a doença). Esta ambigüidade do medicamento está também ligada ao fato de ele ser vivido pelo paciente, ao mesmo tempo como cura (ou alívio) e intoxicação. Curioso verificar que, do ponto de vista do social e do ponto de vista médico, esta intoxicação (ou o lado mau do medicamento: o efeito colateral, a contra-indicação) não aparece como intrínseco ao medicamento, mas como uma potencialidade negativa, controlável pelo saber e pela prática médica, como algo que "só émau fora das mãos do médico": este lado mau do medicamento aparece então como extrínseco a ele, como uma espécie de punição da qual o paciente que se automedica, reduzido à condição de "criança arteira", pode ser vítima. 139 Hipótese: O medicamento é vivenciado pelos seus consumidores como significando, ao mesmo tempo, o acesso àsaúde nele concentrada e como testemunho de um estado de doença, ou como manifestação concreta do fato de que a saúde não está onde "deveria" estar, ou seja, no organismo, mas fora dele, no medicamento. Em uma palavra, o medicamento é a saúde fora de lugar. 4) O medicamento e a moral: obediência e transgressão; autonomia e heteronomia. O medicamento aparece, no mundo do paciente, corno um símbolo frágil porque pertencente à ordem dos seres humanos, ordem esta contestável, porque seus membros perderam a característica anterior de representar, no campo da saúde, uma vontade superior, permitindo assim, pelo menos virtualmente, a divergência, já que o terreno do embate situa-se agora totalmente na terra. A hipertensão oferece um exemplo claro do problema moral da obediência x transgressão e da autonomia x heteronomia. Aqui o medicamento pode assumir sentido distinto para o médico e para o paciente. A hipertensão, para o médico, pode ser vista sobretudo como um valor numérico (que é um símbolo ou representante ou expressão, na cultura médica, da hipertensão). Esta se inscreve, para ele, na perspectiva temporal da consulta e no espaço do organismo alheio como suporte de uma pressão. Para o paciente, a hipertensão pode estar sendo repre sentada, simbolizada, expressada, sobretudo, por um sintoma, por uma sensação corporal, que se inscreve na temporalidade do seu dia a dia de paciente e no espaço do seu organismo corno suporte desta sensação. Pontos de vista distintos, portanto, que se refletem em percepções e usos distintos do medicamento, sugerindo, para a Educação em Saúde, a questão de saber se na hipertensão - e alhures a problemática do uso do medicamento pode ser colocada simplesmente em termos de cumprimento ou descumprimento das recomendações médicas. 140 Hipótese: Para o paciente, a problemática da obediência ou transgressão das ordens médicas, no que se refere ao medicamento, deve ser vista no contexto da autonomia e heteronomia, em que se chocam a perspectiva do paciente e do médico frente à saúde e à doença, buscando o paciente utilizar o medicamento como instrumento desta autonomia, ou seja, do controle do seu próprio corpo. 5) O medicamento e o desejo: eficiência e eficácia simbólica (o medicamento como "objeto bom")3. "Tomou Doril, a dor sumiu" é a frase/slogan que resume bem a problemática da eficiência (rapidez de resposta: tomou Doril - ato contínuo - a dor sumiu) e da eficácia (a produção da saúde, o "sumiço" da dor) simbólicas associadas ao consumo do medicamento. No caso da hipertensão, a eficiência e a eficácia simbólica menor do medicamento que controla em comparação com o que cura decorre de sua incapacidade (e da frustração a ela associada) de eliminar, de uma vez por todas, o Ser doente, já que a sua ação se limita ao Estar doente. O medicamento pode ser entendido num contexto "desejante" (em termos da Psicologia), em que o Desejo encontra-se com a Possibilidade - através das magic bullets de que fala Dixon (27) - de rápida, instantânea e magicamente (eficiência) realizar a "mqrte" da dor, do desconforto, e o triunfo da vida, do prazer (eficácia). Hipótese: O medicamento é vivido pelo indivíduo/paciente/consumidor, no contexto do desejo de obtenção da máxima eficiência e eficácia na eliminação da doença (da dor) e na obtenção da saúde (do prazer). 6) O medicamento e a relação de consumo. A problemática da hipertensão serve, desta vez, para ilustrar a questão do consumo de medicamentos associada à questão da necessidade. 3 É claro, pois, que a hipótese 5 exclui a hipótese 3 e vice-versa. 141 Com efeito, pacie!1te crônico deve consumir cronicamente o medicamento. E preciso, portanto, que esta ingestão crônica do medicamento perfaça um sentido para o indivíduo. Posto que o medicamento é uma mercadoria, este sentido pode se expressar sob a forma de necessidade, que a mercadoria medicamento deve satisfazer. Alguns pacientes passam então a viver a hipertensão como uma necessidade e conseqüentemente o uso do medicamento, para o enfrentamento de uma condição - a pressão alta -, transforma-se em uso do medicamento para o enfrentamento de uma situação, ou seja, dos sintomas, ou do que os pacientes crêem ser os sintomas da pressão alta: tonturas, náuseas, enjôos, inchaço, nervosismo. Hipótese: O paciente produz o sentido do medicamento influenciado pela sua condição de portador de sintomas ou sensações, que são "semantizados" pelo sistema social inclusivo (e internalizados pelo paciente) como necessidades. Portanto, o consumidor "necessitado" busca "respostas" sob a forma de mercadorias, como o medicamento que "resolvem" ou consomem estas necessidades. 142 4.3 - Conclusão geral 4.3.1 - O sentido da saúde e a educação em saúde Enquanto prática de intervenção sobre indivíduos e grupos, a Educação em Saúde Pública está, necessariamente, lidando com o sentido da saúde. Ora, este sentido é uma entidade complexa e enquanto tal deve ser tratada, teórica e metodologicamente, pela Educação em Saúde. Dizer que este sentido é uma entidade complexa, equi vale a dizer, pelo menos, que: a) Ele não se dá a conhecer facilmente, pelos indivíduos; b) É necessário dar condições (de clima psicológico, de confiança, de transparência, de identificação) para que os indivíduos revelem o seu sentir e pensar profundos; c) Este sentir e pensar precisam ser analisados de tal forma que dessa análise resultem pontos de vista de categorias de indivíduos (ou pacientes ou consumidores) e não de indivíduos isolados; d) Estes pontos de vista de categorias de indivíduos precisam ser confrontados com os pontos de vista do social e do médico. Lidar com o Sentido da Saúde implica também, sempre, um engajamento ideológico, mesmo que o educador dele não esteja consciente. Assim sendo, sob pena de trair sua vocação maior, ou seja, a luta pela instauração da Saúde como patrimônio do Homem (e não de uma corporação profissional, de um governo" de um sistema social e ideológico) (60), a Educação em Saúde, na qualidade de metaintervençãol, não pode esposar nenhum dos sentidos que emanam dos pontos de vista (da sociedade, do indivíduo e do médico) sobre a saúde, salvo, evidentemente, se estes pontos de vista coincidirem com os seus. 1 Entende-se por "metaintelVenção" o fato de ser a Educação em Saúde a responsável pela dimensão educativa da atividade de saúde como um todo, o que, desde logo, implica na recusa em considerá-Ia como linha auxiliar da intelVenção médica, odontol6gica, de enfermagem, de nutrição etc. 143 4.3.2 - Sentido global e sentido particular Na busca do sentido do medicamento atualmente, em nosso país, pode-se entendê-Io como uma das expressões mais nítidas de um processo de reificação mercadológica/simbolização da saúde, que se traduz por uma hipertrofia da sua dimensão orgânica. Concentradamente, em seu estado mais puro, este processo expressa, no entanto, apenas o ponto de vista do social (representado pelas forças sociais hegemônicas) como instância atribuidora de sentido ao medicamento. O sentido global do medicament02 é na nossa sociedade e na nossa cultura, por~anto, mais do que isto, já que envolve outras instâncias atribuidoras de sentido. Este sentido global é composto pelo ponto de vista do social interagindo com o ponto de vista dos indivíduos/pacientes e com o ponto de vista dos médicos (e/ou demais dispensadores "oficiais e extra -oficiais de assistência à saúde), configurando relações complexas de hegemonia, de alianças, de transgressão, de submissão, de poder, de contrapoder e outras. O sentido global do medicamento é, portanto, uma resultante histórica destas relações. Chamemos a este sentido global: sentido global/global. Ele configura o que acreditamos ser uma verdade genérica, que diz respeito a um social genérico (a ideologia dominante) e a atores genéricos (o médico, o paciente). Esta verdade genérica define, digamos assim, um conjunto A, composto pelo enfoque dialético numa dada conjuntura histórico-social, no tratamento do medicamento como objeto teórico/prático da Educação em Saúde Pública. O presente trabalho representa uma contribuição na tentativa de definir os contornos deste enfoque. Algo que 2 Sentido global não deve ser confundido com sentido exaustivo; com efeito, não se cogitou, absolutamente, neste trabalho, de buscar qualquer tipo de definição exaustiva do medicamento, mas de analisá-Io segundo uma ótica que se acredita pertinente para os propósitos da Educação em Saúde Pública. Nessa medida, o medicamento, enquanto objeto das ciências a ele vinculadas (medicina, farmacologia, bioquímica), só nos interessou na medida em que a ótica adotada o requeriu. 144 poderíamos chamar, utilizando a terminologia de Althusser (2), de "generalidade lU preliminar". Como se trata de um trabalho exploratório, de geração de hipóteses, é necessário, evidentemente, testar o referido enfoque. O teste - em populações representativas de indiví duos/pacientes/consumidores - diz respeito tanto ao enfoque quanto à temática levantada. A testagem deve permitir que esse Conjunto A dê lugar por intermédio de pesquisas particulares de natureza demonstrativa - a subconjuntos a', a"u. e que cada subconjunto deste conjunto maior permita detalhar, tanto quanto possível, cada um dos três grandes atribuidores de sentido ao medicamento: o social, o médico (e/ou outros profissionais de saúde), e o paciente (ou indivíduo ou consumidor), com ênfase neste último, bem como as suas variadas e variáveis inter-relações. As pesquisas particulares implicam, desta forma, o que poderíamos chamar (comparando com o sentido global/global) de sentido global/particular ou, "althusserianamente", "generalidade ill". Ou seja, elas envolvem este sentido global, considerado necessário e inclusivo, mas submetem-no ao necessário teste empírico. As pesquisas particulares - que poderiam ser desenvolvidas considerando o quadro geral dos chamados Projetos de Integração Docente Assistencial (70) - deverão, assim, permitir a retroalimentação do conjunto A, fazendo com que ele possa ir se transformando, progressivamente, num repositório de princípios gerais sobre o Sentido do Medicamento para a Educação em Saúde como teoria/pesquisa e prática. A propósito da relação teoria/pesquisá e prática para a área da Saúde Pública, afirma Candeias (16): "A interação entre pesquisa e prática representa assunto relevante na área de Saúde Pública, razão pela qual a utilização da pesquisa na prática e da prática na pesquisa exige e merece especial atenção por parte dos investigadores e profissionais de saúde, quando se visa alcançar maior produtividade em ambos os setores" (p.H). 145 4.3.3 - Tentativa de reconstrução de uma totalidade Como no presente trabalho precisou-se efetuar um partição analítica da realidade (os "pontos de vista"), é necessário agora tentar reconstruir uma nova totalidade a partir da qual se possa tentar perceber, sob a forma de "insights", o perfil atual da saúde em nosso país. Em uma palavra, é preciso agora tentar construir um espelho para que se possa ver a figura que ele reflete. Obviamente, há vários espelhos possíveis. O presente é apenas um deles. Isto posto, que imagem da saúde hoje, em nosso país, este espelho reflete? Antes de tentar responder é preciso reiterar que esta imagem, em conformidade com o referencial adotado, será sempre a de um sistema de tensões ou contradições. É claro que o que se vai tentar fazer aqui é apenas um esboço ligeiro desse sistema. Nesse sentido, diríamos que o nosso espelho reflete um sistema de tensões ou contradições no qual avulta uma contradição principal: saúde como consumo x saúde como direito. Em nossa sociedade e em nossa cultura a saúde é, hegemonicamente, uma coisa. Esta saúde/coisa, vista sob o ângulo da Semiótica como ciência geral dos processos sociais de significação, pode também ser entendida como um signo de saúde, na medida em que configura uma forma (hegemônica) de representação da idéia de saúde. Esta coisa/signo de saúde, por sua vez, no bojo do processo histórico de reificação das relações sociais, está inserida numa relação de consumo de mercadorias de saúde. Esses processos todos se entrelaçam: para estimular o consumo (que é o objetivo principal), é necessário associar valores a este consumo; um desses valores é a saúde. Para que a saúde seja consumida, ela precisa ser uma coisa (um objeto de consumo); esta coisa/objeto de consumo, porém, 146 dada sua posição - nas sociedades de consumo - de "mandante" na relação de consumo, não pode ser uma coisa qualquer: tem de ser um signo (um representante dá idéia de Saúde), ou seja, algo que mereça ("afinal, é a sua saúde que está em jogo") o investimento que se faz para consumi-Io como mercadoria. O "objeto de consumo", Hepatoviz, precisa ser "a saúde do seu fígado", ou seja, um signo de saúde, para ser objeto de um investimento de consumo. O mesmo acontece com o "objeto (serviço) de consumo" Golden Cross, a "saúde em boa companhia". Deste modo, a saúde aparece, hegemonicamente, não apenas como algo que precisa (necessidade) ser consumido (sem saúde não há vida, a morte sobrevém; é a saúde como reposição das energias ou do próprio estado original de saúde, perdido no caso de doença) mas também como algo que vale a pena (valor) ser consumido (é a saúde como acréscimo, como algo mais, como qualidade de vida). É preciso, neste momento, para esclarecer, ir mais a fundo no que se entende por "sociedade de consumo da saúde", sociedade esta onde a mercadoria saúde comanda. Nesta sociedade. vige, hegemonicamente, a idéia de que a única possibilidade de ter saúde é consumir saúde. Com efeito, em nossa sociedade, quem tem saúde é quem tem Saúde Bradesco. Para nós (na medida em que internalizamos o discurso hegemônico), a questão da saúde fica adstrita, reduzida e presa à idéia reificada (e às práticas correspondentes) de Ter (ou Não Ter) saúde. Aí, o jogo semântico da saúde é jogado em torno, e unicamente em torno, das noções de Estados (individuais e coletivos) de Bem-Estar3 que se adquirem num 3 A respeito dos "estados", na célebre definição de Saúde da OMS, é importante obselVar que o terceiro "bem-estar", o "bem-estar social", implica - - num uso metafórico e reparador e também numa tentativa ingênua de ampliar o escopo da definição de Saúde da noção de "estado" já que se o "estado de bem-estar físico e mental" é algo concreto e até mensurável, o mesmo não ocorre, evidentemente, com a noção de "bem-estar social" que, na qualidade de metáfora (a velha e desgastada metáfora que postula a equivalência entre o corpo humano e o "corpo" social) não tem referente direto. 147 mercado - privado ou estatal - de produtos ou serviços que incorporam, na sua "definição"; a saúde como signo. A saúde "que se tem" naturalmente, geneticamente, torna-se cada vez mais uma exceção, configurando um campo em processo histórico acelerado de estreitamento: é o que o pensamento sanitarista costuma chamar de "medicalização da sociedade". Posto que, axiomaticamente, para a ideologia dominante, a saúde é algo que se (individual e coletivamente) tem ou não tem, não há como fugir a uma definição negativa de saúde como não doença4. Trata-se, no plano da semântica sincrônica, de uma rede conceitual, de um sistema semântico articulado, onde cada uma das unidades semânticas elementares (saúde/ ter/não ter/ dqença/sintomas etc.) só adquire sentido (e este sentido é "saúde como não doença") em função do conjunto. No plano da semântica diacrônica, trata-se de uma longa evolução histórica que foi lentamente esculpindo o contorno atual da noção hegemônica de saúde como objeto de consumo/signo de saúde como não doença, a partir de uma associação de valorações positivas aos atos, pessoas, instrumentos, produtos do fazer humano, capazes de "curar" desvios (ou aquilo que se crê serem desvios, numa dada conjuntura histórica) do funcionamento normal do corpo e do espírito humanos, permitindo que se entenda porque, hoje, a saúde está umbelicamente associada à Medicina. A saúde é (e está) em toda mercadoria (lato sensu) capaz de reverter "mal-estares"( ou mesmo de provocar "bem-estares" não a partir de mal-estares, mas de algo que, provisoriamente, poderíamos chamar de "não estares" ou "estares zero" - saúde como acréscimo). 4 E não doença expandida, ou seja, a infelicidade, a angústia, a feiúra, o parto, o alcoolismo, a euforia, a gula, enfim, tudo a que potencialmente pode ser associado algum componente semântico negativo ou indesejável (o que, obviamente, define um conjunto com uma capacidade infinita de expansão). 148 A conseqüência de tudo isto é que o cidadão acaba se confundindo com o consumidor. Esta confusão é fruto de uma evolução histórica, onde os Direitos desse Cidadão, nascidos da revolução burguesa como superestrutura jurídico-filosófica-ideológica, "baixaram para a terra", se confundindo e se integrando, progressivamente, à materialidade de infraestrutura produtiva, transmutando-se ou secularizando-se em "direitos do consumidor"5. Na sociedade de consumo, todo valor (e a cidadania, como síntese de todos os valores) tem (ou pode vir a ter) a sua expressão ou representação mercadológica. A cidadania é, então, ela mesma, reificada, "coisificada", transformando-se num grande signo, num signo maior (ao qual estão ligados infinitos signos satélites) que é a posse do dinheiro (chame-se ele ouro, cartão de crédito, papel-moeda, ações ao portador, cheque especial etc.), equivalente universal de todos os significantes, que são os bens de consumo, até mesmo os chamados "bens de consumo coletivo"6, como a Saúde Pública ou Coletiva. Dentre os vários objetos/signo, no campo da saúde, destaca-se o medicamento, por suas peculiares características. Uma destas, talvez a mais importante, está vinculada à sua capacidade potencial de concentrar saúde. Esta capacidade potencial é atualizada, em função dos interesses da sociedade de consumo, de modo que, numa ope 5 Com isso, muda-se, radicalmente, o teor e o significado da luta de classes: a luta pela conquista da cidadania confunde-se com a luta pelo aumento do poder aquisitivo, via de mão I1nica para a cidadania. 6 A este respeito, considerar, como muitos o fazem, a Sal1de (e a Educação e o "social" em geral) como um bem de consumo coletivo implica, a nosso ver, num duplo mal-entendido ou erro. Com efeito, a expressão bem de consumo coletivo, na verdade, padece de defeitos lógicos insanáveis já que ou expressa uma tautologia, se se considerar o coletivo quantitativamente como somatória de unidades, pois, nesse sentido, todo consumo é mais ou menos coletivo nas sociedades modernas; ou expressa uma contradição em termos, se se considerar o consumo coletivo como qualitativamente diferente do individual, pois, nesse sentido, não existiria nenhum consumo coletivo possível porque a relação de consumo é, sempre, uma relação individual (que pode envolver um nl1mero variável de indivíduos) de apropriação ou incorporação, por um indivíduo, de um produto ou serviço (mesmo que este serviço seja um metrô ou uma Escola ou um Centro de Sallde). 149 ração complexa e recalcada para o inconsciente social, a saúde, no (e através do) medicamento, é reduzida à sua expressão química que, por sua vez, representa o avanço tecnológico - é a "semiose infinita" de que fala Veron (79 ), na esteira do pensamento pierceano -, o progresso, a Ciência, que permitiu concentrar, numa pequena, acessível e facilmente consumível porção de matéria, a própria essência da vida (ou de seus atriDutos constitutivos: a força, o vigor, a potência, a não-dor etc.). Há, evidentemente - em nossa cultura capitalista planetária - outros tipos de objeto/signo de saúde, como os iogurtes, as margarinas "light" etc., que, diferentemente do medicamento (e também da tomografia computadorizada, do bisturi a laser etc.), não pressupõem a existência prévia da doença (ou da saúde perdida), não aparecendo, portanto, como "saúde por reparação", mas como "saúde por acréscimo". A saúde como consumo - individual e coletivo - nos coloca, a todos, numa armadilha, para se escapar da qual é necessário recolocar o problema de modo radicalmente diferente. A armadilha consiste no fato de que a saúde como consumo implica, necessariamente, em considerá-Ia como resposta a necessidades ou carências "naturais" de saúde, da mesma forma que o alimento é a resposta à carência natural que é a fome ou o frio. Isto torna também "natural" a doença (e a doença expandida). É assim que se costuma pensar: é o efeito ideológico de que fala Veron (79), que consiste em tornar "natural", do "senso comum", uma determinada visão das coisas. Filosófica, ética e politicamente, a saúde não pode ser vista desse modo. Destes pontos de vista (que são os modos mais legítimos de ver a saúde), ela não pode deixar de ser vista como condição primária, normal, do ser humano. Destes pontos de vista, ela jamais pode ser vista como uma ne~sidade (ou satisfação de uma necessidade) setorial ou espeCÍfica como a fome, o frio, a sexualidade, a ignorância original etc. porque isto implicaria em admitir que o frio, a sexualidade, a fome, a ignorância original e a doença são coisas 150 equivalentes, ou seja, todas elas, vicissitudes da condição humana, o que, absolutamente, não é verdade: a doença não é - ou melhor, não deveria ser - uma vicissitude, como a fome, o frio, mas uma exceção. Esta inverdade, então, se mantém historicamente com o propósito maior de consolidar a visão consumista da saúde, que implica no uso de "produtos de saúde" para satisfazer "necessidade naturais" de saúde, e na idéia força associada a este uso, ou seja, a de que ninguém pode viver sem consumir saúde, da mesma forma que ninguém pode viver sem consumir alimentos. É necessário romper com a idéia de que saúde é algo que se tem ou, mais precisamente, se adquire (porque, na e para a sociedade de consumo, ter ou não ter saúde é sinônimo de comprar/não comprar) e mais ainda com a idéia de que a saúde está associada ao consumo progressivo de mercadorias de saúde. Este rompimento permite deslocar o [oeus da saúde, do Consumo (ou do não consumo ou do consumo "alternativo", pois aí permanece-se preso a uma relação de consumo com a saúde, apenas com sinal trocado) para o Direito. É claro que, afirmar que o [oeus da saúde não deve estar no Consumo, na Mercadoria, mas no Direito, não implica confundir, ingenuamente, Direito à Saúde com Direito ao Consumo de Saúde: consultas ou remédios gratuitos ou a baixo custo, democratização do consumo de assistência médica pela diluição dos custos sociais e racionalização da assistência etc. Saúde como Direito implica - evidentemente como meta estratégica - em uma ordem social (e não em uma estrutura produtiva) produtora de saúde, na medida em que viver na ordem social implica num Contrato em que esta Ordem se obriga a prover para todos, indistintamente, as condições de vida, trabalho, lazer, respeito entre os homens, justiça, liberdade, meio ambiente e igualdade de oportunidades. Por isso, ao enunciarmos a saúde como Direito, em contraposição à saúde como Consumo, parece-nos, estamos enunciando os termos de uma contradição antagônica, que 151 no seu devir histórico implica na diluição e, finalmente, no desaparecimento da própria idéia de saúde na medida em que no pleno Estado de Direito ela se transmuta em estado natural do homem como ser social. Em que ponto estamos, considerando esta saúde como Direito como horizonte? Creio que a sensação de estarmos no mesmo lugar, "pa tinando", é uma aparência enganosa. A aparência (enganosa) nos diz que a "luta" é "sempre" vencida pelo "sistema" na medida em que este absorve a contestação (a saúde "natural" ou alternativa ou global), transformando estas categorias potencialmente constestadoras em aliadas ou atributos das mercadorias, reproduzindo, em última análise, um sistema de mercadorias. Mas se atentarmos bem para as coisas veremos que as idéias do "alternativo", do "global", do "natural", mesmo absorvidas, não deixam de emergir do subterrâneo onde estavam presas ou recalcadas para a superfície do social, introduzindo novos atores e personagens, num enredo que já não é ainda que isto se manifeste discretamente - o mesmo enredo. 152