a questão agrária na grande imprensa

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A QUESTÃO AGRÁRIA NA GRANDE IMPRENSA
Netília dos Anjos1
Universidade Federal do Pará
RESUMO
Como a questão agrária é apresentada pela grande imprensa? Analisando o léxico, a
ironia, os tipos de citação e seus mecanismos (p.ex., aspas e verbos introdutores de opiniões),
vimos que tais estratégias polifônicas permitem tanto o distanciamento como a interpretação das
declarações dos entrevistados pela imprensa, que se mostrou desfavorável ao MST e aos
trabalhadores rurais. Enfatizando a violência, a questão agrária é tornada uma questão de guerra.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste estudo2 foi investigar como a questão agrária é apresentada pela grande
imprensa no Brasil. Vários fatores justificam a importância do tema, tais como a crescente
atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pela realização de reforma
agrária; a elevada taxa de concentração de terra e de renda no país e a participação dos meios de
comunicação na difusão de conhecimento e produção de representações sociais, através do poder
de selecionar, nomear, interpretar e dar sua versão para os acontecimentos do mundo social.
Partimos da idéia de não-neutralidade dos meios de comunicação no trato da informação,
embora a imparcialidade continue sendo um dos grandes mitos do jornalismo, como se repórteres
e editores estivessem imunes à sua própria subjetividade e como se a empresa (jornalística) não
tivesse interesses (do financeiro e político ao poder de influenciar).
A história do desenvolvimento brasileiro é marcada pelo protecionismo e incentivo à
formação de grandes propriedades, à concentração da terra em detrimento ao sistema de pequenas
propriedades e à agricultura familiar. A reforma agrária se apresenta como uma possibilidade de
1
Jornalista, mestre em Lingüística pela Universidade Federal de Pernambuco e professora visitante do Departamento
de Comunicação Social da Universidade Federal do Pará.
2
Parte de dissertação de mestrado realizada no Mestrado em Lingüística da Universidade Federal de Pernambuco.
1
alteração não só do sistema fundiário do país, mas também da sua configuração
econômico-social. Os meios de comunicação, por sua vez, desempenham um papel relevante
nesse cenário, por se constituírem em espaço onde forças sociais se manifestam, onde se dão
embates pela construção de sentidos e pela formação de opinião.
Dessa forma, este estudo se propôs a evidenciar como a grande imprensa constrói o tema
questão agrária em seus noticiários. Como são (re)produzidas no interior do discurso
jornalístico as “vozes” de autoridades, de entidades e de instituições envolvidas com
trabalhadores e proprietários rurais? Que marcas lingüístico-discursivas podem ser observadas no
discurso jornalístico que evidenciem opiniões da imprensa sobre a questão agrária brasileira?
Quais os efeitos de sentido - decorrentes dessa polifonia - mais visíveis nos textos publicados?
Acreditamos que as marcas de heterogeneidade dos textos revelam a interpretação e a atividade
criativa dos que fazem jornalismo sobre a língua e o discurso. Dentre as formas de
heterogeneidade ou polifonia interessam-nos especialmente as formas de citação (discurso direto,
indireto, misto e narrativizado); os verbos introdutores de opiniões; as aspas e a ironia, bem como
o léxico e a forma como são denominados pela imprensa trabalhadores e proprietários rurais.
Se, por um lado, as estratégias de polifonia evidenciam a atividade interpretativa dos
vários órgãos de imprensa como instâncias enunciadoras, por outro reafirmam o caráter
heterogêneo da linguagem, sobre cujos sentidos os falantes (ou enunciadores) não detêm controle
absoluto, em sua produção discursiva. Os sentidos colocados em cena pelas marcas de
heterogeneidade (seja ela mostrada ou constitutiva, nos termos de Authier, 1981; Authier-Revuz,
1982) necessitam, contudo, da participação do leitor para serem instaurados na recepção. Dessa
forma, registra-se a participação, em forma de atividade criativa (como propõe Possenti,1993;
1994), dos usuários da língua na instauração de sentidos, tanto no momento da produção quanto
da recepção textual-discursiva. Como bem lembra Possenti (1993:58), locutor e ouvinte
(interlocutores) são trabalhadores da língua.
No estudo, partimos de duas hipóteses. A primeira é a de que as estratégias de introdução
de declarações presentes na redação jornalística permitem tanto a interpretação e o
distanciamento da imprensa sobre o dito como a idéia de verossimilhança sobre as afirmações
feitas. Acreditamos também que a imprensa desempenha um papel duplo na abordagem da
questão agrária. Ao mesmo tempo que cumpre a “função social” do jornalismo ao publicar
2
matérias sobre o assunto, participa, em boa medida, da manutenção do sistema dominante no
país, com sua estrutura política, econômica e social, pela maneira como apresenta sua abordagem.
Daí, a nossa segunda hipótese é a de que os textos jornalísticos sobre a questão agrária são mais
desfavoráveis aos trabalhadores e ao MST que aos proprietários rurais, tanto pela maneira como
suas declarações são introduzidas, como pela forma como são denominados.
O universo de estudo abrangeu os jornais Folha de S. Paulo (FSP), O Estado de S.
Paulo (OESP), O Globo e Jornal do Brasil (JB), e ainda as revistas Veja e Isto É, conjunto que
consideramos representar a grande imprensa brasileira. A fim de envolver diversos aspectos da
questão agrária, como o aspecto político, a violência física e a impunidade no campo, e, ainda, a
atuação do MST e dos trabalhadores rurais na luta pela terra, a amostra abrangeu 770 textos
informativos (maioria) e opinativos, publicados em quatro períodos diferentes entre 1994 e 1996:
a) 01/07 a 31/12/1994: período da campanha eleitoral à Presidência da República - (130 textos);
b) 10 a 16/08/1995: despejo de trabalhadores rurais da Fazenda Santa Elina, em Corumbiara
(RO), em que aconteceram, oficialmente, 13 mortes - (87 textos);
c) 28 e 29/09/1995: posse de Francisco Graziano na presidência do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), onde permaneceu por dois meses. Graziano foi o
segundo presidente do INCRA no governo Fernando Henrique Cardoso, num espaço de nove
meses incompletos - (73 textos);
d)19 a 25/04/1996: operação da Polícia Militar do Pará de “desobstrução” da Rodovia PA-150,
em Eldorado do Carajás (PA). Segundo estatística oficial, 19 pessoas morreram - (480 textos).
O corpus de análise, entretanto, restringiu-se ao primeiro período (a). Envolvendo seis
meses consecutivos, o objetivo foi obter uma visão mais ampla de como o assunto é tratado pela
grande imprensa. Os textos analisados envolvem aspectos da questão agrária relacionados à
disputa pela propriedade da terra. Dos 130 textos desse período, 127 são informativos (97,7%) e 3
(três) são opinativos (2,3%), de acordo com categorização proposta por Melo (1994:63-66).
3
A linguagem: instância constitutiva de sentido
O uso da linguagem no jornalismo não é só referencial aos fatos que reporta, é também
constitutivo deles. A imprensa, por sua vez, ao dizer que busca uma redação objetiva e imparcial
se apresenta como neutra, quando se sabe que tal operação não é possível. Na verdade, os
discursos que são retomados dos entrevistados são aceitos ou rejeitados na produção jornalística,
embora as marcas que evidenciem a aceitação ou rejeição possam ser mais ou menos explícitas
no texto e na sua edição.
A concepção de transparência da linguagem e do discurso relatado - e, portanto, da
produção jornalística - pode ser vista, por exemplo, no manual de redação de O Estado de S.
Paulo (1990:18), nas instruções gerais no. 20: “faça textos imparciais e objetivos. Não exponha
opiniões, mas fatos, para que o leitor tire deles as próprias conclusões”. Nas instruções gerais no.
21 (1990:18), há um lembrete de que “o jornal expõe diariamente suas opiniões nos editoriais,
dispensando comentários no material noticioso”. Por aí se vê que o jornal reduz a manifestação
de opiniões na produção jornalística à expressão de comentários e à redação de editoriais e a
nenhuma outra maneira do fazer jornalístico - como a seleção do dito e a forma das citações -,
encarando a linguagem, a língua e seus sentidos como transparentes.
O conceito de polifonia, visto primeiramente por Bakhtin (1975) ao analisar os romances
de Dostoievski, foi desenvolvido a partir dele por vários outros autores, por exemplo, Koch
(1992:58), para quem a polifonia pode ser vista como a presença de vozes no texto, que falam de
perspectivas com as quais o locutor pode se identificar ou não. Os textos jornalísticos tidos como
informativos costumam trazer outras vozes além da do veículo emissor, evidenciando algumas
das estratégias de polifonia da produção jornalística. Embora as declarações dos entrevistados
possibilitem essa polifonia, introduzem com ela também intertextos e discursos pertencentes a
outros textos e discursos, que são trabalhados na instância de produção jornalística, de onde se
pode apresentar o discurso jornalístico (da grande imprensa) sobre a questão agrária brasileira.
Pinto (1994:18-19) vê o conceito de polifonia (no plano da heterogeneidade mostrada)
como necessário para explicar um certo número de fatos discursivos de um ponto de vista
enunciativo, como “(...) os discursos direto, indireto e indireto livre, (...) o uso de aspas, tipologia
especial e de outras formas de marcação de expressões, (...) a ironia e a imitação de outros textos
(captação, paródia, pastiche)”. Acrescentamos à relação o uso do verbo no futuro do pretérito do
4
indicativo, onde o locutor não só pode atribuir a outrem a responsabilidade pelo que é dito
(Cunha, 1991:17), como também duvidar da veracidade de seu conteúdo. Mesmo sem prova, a
informação não deixa de ser dada
A citação de fala e citação de conteúdo - ou discurso direto e indireto - é parte estruturante
dos textos jornalísticos da atualidade, seja na imprensa, na televisão ou no rádio. As declarações
podem ser vistas como intertextos, isto é, a materialidade de outros textos/discursos no interior do
discurso jornalístico, que se vale dessa estratégia para se apresentar como verdadeiro. Nesse
sentido, é bastante ilustrativa a afirmação de Bakhtin (1990:144) sobre a citação, como “o
discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas, ao mesmo tempo, um discurso sobre
o discurso, uma enunciação sobre a enunciação”.
Evidentemente, os discursos direto ou indireto não são as únicas formas de introdução de
declarações dos entrevistados nos textos jornalísticos - bastante ricos -, mas são as mais comuns.
Cunha (1995), p. ex., já identificou a ocorrência de pelo menos nove tipos de discurso relatado na
fala e na escrita (jornalística ou não), entre os quais, o discurso narrativizado, bastante freqüente
na imprensa, em que a informação apresentada sofre uma qualificação por parte do enunciador.
No ex. 1, de O Globo, temos um exemplo de discurso narrativizado, em que o jornal atribui aos
ruralistas o gesto benevolente de doar suas fazendas para fins de reforma agrária. As fazendas, no
entanto, eram propriedade do Estado, sobre as quais os ruralistas não possuíam título de
propriedade, podendo ser considerados grandes posseiros. Contudo, com o verbo doar, os
ruralistas deixam de ser considerados irregulares para posarem ao lado da reforma agrária. Na
verdade, eles não doaram as fazendas, mas sim, propuseram não oferecer obstáculos ao seu
repasse caso tivessem prioridade na indenização das benfeitorias nelas realizadas.
Ex.1: Ruralistas doam fazendas. (título)
Operações desse tipo, ao lado da escolha do conteúdo, do léxico, dos verbos introdutores
de opiniões (no discurso relatado), da ironia e das aspas, são capazes de mostrar a posição do
locutor-enunciador a respeito do assunto apresentado. É o que diz Maingueneau (1989:91) a
respeito das aspas. Para ele, colocar entre aspas significa manter os termos à distância, numa
operação em que o locutor faz uma imagem do seu leitor e mostra também uma imagem de si
5
mesmo, da posição que ocupa com as aspas. Elas constituiriam, assim, um sinal construído para
ser decifrado por um destinatário. Essa operação de distanciamento pode exercer várias funções,
como diferenciação, vulgarização, ênfase etc (cf. Authier, 1981; Authier-Revuz, 1982). É o que
vemos no ex. 2, da Folha de S. Paulo, em que o uso das aspas (excluídos sociais) e da seleção
lexical (CUT dos indigentes e dos desempregados) evidencia a ironia presente em todo o texto,
por parte do jornal, contra a nova entidade e seus filiados. A ironia, conforme Brait (1996), opera
em duas vias e também depende do destinatário para ser instaurada..
Ex. 2:
Os sem-terra, sem-teto, sem-saúde e mais uma série de organizações possuem agora uma espécie
de “holding” (controladora) que congrega entidades de marginalizados de todo o país.
A “holding” atende pelo nome de CMP (Central de Movimentos Populares). Foi criada no fim do
ano passado e já filiou 30 entidades, que representam os chamados “excluídos sociais”.
A CMP é uma espécie de CUT dos indigentes e dos desempregados. O domínio político, a
exemplo da CUT, também é do PT. (...)
(FSP, 03/07/1994)
Mas qual o nível de alteração que o discurso direto ou indireto propicia na reprodução das
declarações dos entrevistados? A distinção padrão entre as duas formas de citação trata a forma
direta como a mais fiel, porque representaria as palavras do outro tais como ele as disse, enquanto
na citação indireta haveria a manutenção do conteúdo semântico da declaração do entrevistado,
mas sob a forma apresentada pelo jornalista-locutor. Na verdade, o discurso direto é um modo de
apresentar uma citação e não uma garantia de objetividade, como bem observa Maingueneau
(1986:87): “O discurso relatado [citação] não tem existência senão através do discurso citante,
que constrói como ele entende um simulacro da situação de enunciação citada”. Além disso,
Paulillo (1993:38-41) observa que os verbos introdutores de citações agem sobre o dizer,
enquanto as construções adverbiais (do tipo de acordo com...) agiriam sobre o dito.
O uso do discurso direto é limitado pela imprensa, que recomenda evitá-lo, reservando-o
para declarações “realmente importantes”. Tanto nos textos quanto na entrevista tipo
pergunta-resposta, o relato do entrevistado costuma receber um “tratamento”, quando são
eliminadas as hesitações, as repetições e outras marcas da oralidade. Algumas são mantidas
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quando há interesse em caracterizar (diríamos, negativamente) o entrevistado. Já no discurso
indireto, como observa Bakhtin (1990:159), a análise do conteúdo relatado é sua característica
básica, isto é, as próprias condições de elaboração do estilo indireto propiciam uma interpretação
sobre o que será relatado. Portanto, é possível postular que não há reprodução ipsis verbis de
declarações de terceiros, muito menos na imprensa.
Marcuschi (1981:7-11), ao estudar a ação dos verbos nos relatos envolvendo o discurso
do poder e o discurso de populares, observou que no primeiro caso os verbos mais usados são
aqueles considerados argumentativamente positivos e fortes (como afirmar e declarar) e, no
segundo, os verbos de característica estigmatizada (como contar e lembrar). Marcuschi
(1981:18-19) propõe ainda uma classificação dos verbos, pela função, em sete classes, das quais
citamos apenas as que julgamos mais pertinentes no momento:
1. Verbos indicadores de posições oficiais e afirmações positivas: declarar, afirmar, comunicar,
anunciar, informar, confirmar, assegurar;
2. Verbos indicadores de força no argumento: frisar, ressaltar, acentuar, enfatizar, destacar,
garantir;
3. Verbos indicadores de provisoriedade no argumento: achar, julgar, acreditar, pensar, imaginar;
4. Verbos indicadores de retomadas opositivas, organizadores dos aspectos conflituosos:
comentar, reiterar, reafirmar, negar, discordar, temer, admitir, apartear, revidar, retrucar,
responder, indagar, defender, reconhecer, reconsiderar, reagir;
5. Verbos interpretativos do caráter ilocutivo do discurso referido: aconselhar, criticar, advertir,
enaltecer, elogiar, prometer, condenar, censurar, desaprovar, incentivar, sugerir, exortar.
O DISCURSO JORNALÍSTICO SOBRE A QUESTÃO AGRÁRIA
Como já mencionamos anteriormente, os textos jornalísticos se referem a fatos do mundo
e são resultados de processos de interpretação e construção de sentidos, em que se encontra
sempre presente a heterogeneidade constitutiva ou mostrada. A citação de fala no texto
jornalístico, portanto, torna-se uma eficiente estratégia de sugerir a enunciação jornalística como
verdadeira.
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Como se apresenta, então, o discurso jornalístico sobre a questão agrária brasileira? Nos
textos analisados, a imprensa apresenta uma certa uniformidade enunciativa, desfavorável ao pólo
dos trabalhadores, com algumas poucas exceções. Estas dizem respeito aos articulistas de jornais
que, em textos assinados, criticaram a concentração de renda, o latifúndio improdutivo, uma
reforma agrária tímida por falta de vontade política dos governos. Entretanto, isso pode ser visto
como uma estratégia por parte da imprensa, para se dizer pluralista, dando voz a todas as facções
da sociedade mesmo que discordem do ponto de vista do jornal, como se propõe a Folha, em seu
manual de 1994. Dos quatro jornais analisados, o que se mostrou menos desfavorável ao
candidato do PT no período pré-eleitoral e à ação dos trabalhadores rurais foi o Jornal do Brasil.
De acordo com a nossa primeira hipótese, aceitamos as formas de citação (em discurso
direto, indireto e outras mais) não como garantia de objetividade ou fidelidade absoluta ao dito
pelo entrevistado, mas apenas como formas diferentes de apresentar as declarações. A
comparação de alguns fragmentos de discurso direto em títulos, subtítulos ou legendas retirados
de outras citações em discurso direto do corpo do texto (mas diferentes entre si, na forma)
ilustram essa posição.
Por outro lado, as informações apresentadas em forma de citações têm o poder de serem
atribuídas a outros enunciadores (entrevistados), pertencentes a instâncias enunciativas que não
aquelas da empresa jornalística. Ao mesmo tempo, a produção jornalística desempenha o papel e
o poder de interpretar o conteúdo apresentado, não só quanto à seleção do dito, mas também
quanto à sua forma. O ex. 3 é uma amostra da escassez de citações para introduzir as declarações
dos proprietários rurais, às quais o jornal aderiu, tomando-as como certas e apresentando-as sem
distanciamento, como se pode notar nas expressões grifadas.
Ex. 3:
O conflito fundiário no Pontal do Paranapanema (...) apresenta lances de violência sem
precedentes. A intermitente ação do MST, que nos últimos anos promoveu dezenas de invasões
de propriedades, está se tornando cada vez mais violenta.(...)Os fazendeiros estão em pânico. (...)
O medo entre os fazendeiros é tão grande, que muitos preferem não se identificar quando falam a
respeito dos conflitos fundiários no Pontal do Paranapanema. Cansados das invasões, os
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proprietários dizem que a única solução é fazer acordo com o Estado para que se use as terras
para assentamentos. (OESP, 17/07/1994)
Grande imprensa: menos favorável aos trabalhadores e realçando a violência
A segunda hipótese deste estudo previa ser a grande imprensa mais desfavorável aos
trabalhadores que aos proprietários rurais. Vejamos como. O estudo dos verbos introdutores de
opiniões realizado por Marcuschi (1981) sobre o discurso do poder e o discurso de populares, na
imprensa confirmou-se aplicável também na abordagem da questão agrária. Constatamos, por
exemplo, que as declarações de trabalhadores ou representantes do MST são, via de regra,
apresentadas com verbos considerados estigmatizados, no dizer de Marcuschi, ou fracos, como
contar e lembrar, além de dizer, que, embora tido como neutro, nas circunstâncias em que
aparece soa enfraquecido. Contudo, quando as declarações se referem à disposição de invasão por
parte do MST e dos trabalhadores, essa orientação muda e eles são apresentados no ataque, e os
verbos - por exemplo, afirmar, acusar e garantir (cf. ex. 5) - reforçam esse sentido.
É o que se observa, por exemplo, nas notas e notícias da FSP, em que os trabalhadores
costumam ser apresentados querendo ou pedindo, e não exigindo ou reivindicando, estando,
portanto, em desvantagem em relação a seus opositores, que afirmam com maior freqüência. No
exemplo 4, o uso de exigir ou reivindicar ao invés de querer fortaleceria o discurso do MST,
conferindo-lhe autoridade, o que já não ocorre na maneira como é efetivamente apresentado.
Ex. 4:
Segundo o MST, os 120 acampados querem que o ministro cumpra a promessa de solucionar em
30 dias a situação dos ocupantes de terras no Rio Grande do Sul. (...)
Sostisso [superintendente regional adjunto do INCRA] afirmou que os sem-terra em vigília
querem apenas apressar essa legalização.
Com isso, podemos observar já aqui uma tendência da imprensa em realçar o aspecto
violento que envolve a questão agrária. A partir de outros mecanismos lingüístico-discursivos,
como a referência aos trabalhadores e ao MST, podemos sugerir que ao realçar esse aspecto
violento nas ações do movimento, a imprensa não só o apresenta negativamente como também
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associa a questão agrária ao discurso da guerra. Em alguns textos, a referência ao discurso da
guerra é explícita (p. ex., a série de reportagens A Guerra da Terra, de O Estado); em outros,
pode ser recuperada por meio de algumas expressões (como batalha, tiroteio, bomba, campo de
refugiados, sobreviventes), como ilustra o ex. 5. A própria expressão acampamento assinala essa
proximidade entre os dois campos discursivos.
Ex. 5:
Estão armados até os dentes, fazem vigília em trincheiras 24 horas por dia e, garantem, só saem
de lá mortos. É uma guerra anunciada. (...)
Até lá, armados nas trincheiras, eles estão prontos para a guerra. (JB, 04/09/1994)
Já as declarações das autoridades costumam ser fortalecidas (por exemplo, com os verbos
afirmar, garantir e informar), enquanto as de proprietários rurais são apresentadas com certa
oscilação, mas de maneira bem mais positiva que aquelas dos trabalhadores. A forma
diferenciada com que a imprensa interpreta e age sobre as declarações, portanto, é uma das
marcas que evidencia as relações de poder envolvendo a produção jornalística e a dos
entrevistados, que variam diante de trabalhadores, proprietários e autoridades. Os dois últimos,
nos termos de van Dijk (1994), teriam maior acesso e controle da produção jornalística.
A disputa pela construção de um sentido dominante
Observamos também que há diferenças na forma como proprietários e trabalhadores são
referidos na imprensa. Os primeiros são, muitas vezes, apenas grandes posseiros, mas essa
situação não costuma ser questionada nos textos informativos, onde são denominados como
proprietários, fazendeiros, donos ou pecuaristas. As poucas exceções - com o uso de
latifundiário, de sentido negativo - ocorreram em artigos ou colunas, assinados, em que a
responsabilidade das informações recai sobre o autor dos textos e não diretamente sobre o
veículo. Quanto aos trabalhadores, são referidos mais freqüentemente como trabalhadores
sem-terra ou simplesmente sem-terra, vindo em seguida as denominações posseiros, colonos e
raras vezes agricultores ou lavradores.
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A imprensa, como se pode observar, executa com relação aos principais atores da questão
agrária um processo de renomeação: embora tenham as características próprias de suas categorias,
na produção jornalística todos se tornam trabalhadores rurais sem-terra ou proprietários. Um
outro exemplo inclui o MST, cujo nome por extenso, grafado originalmente sem hífen, aparece na
imprensa com hífen. A expressão famílias de com-terra, encontrada numa reportagem da revista
Veja, ilustra tanto o processo de renomeação quanto a ironia negativa por vezes expressa contra o
MST e seus seguidores. O sentido negativo na referência aos trabalhadores, contudo, aparece
principalmente na expressão invasor (e no verbo invadir), associada a todas as formas anteriores
já mencionadas. Há textos em que os trabalhadores são tratados somente como invasores (como
em O Estado, por exemplo), ignorando-lhe sua condição de trabalhador, seja qual for sua
especialidade.
Ao trazer a denominação do MST grafado com hífen, a imprensa se nega também a
reconhecer aquela do próprio MST, que o apresenta sem hífen. Por se tratar de um nome próprio,
deveria ser aceito como tal. Seria o discurso jornalístico tentando impor a sua versão como a
correta, ao desconhecer aquela com a qual “discorda”. O mesmo podemos observar com relação
às expressões invasor/invadir, ocupante/ocupar. Enquanto os trabalhadores usam a segunda
dupla, a imprensa recorre, preferencialmente, à primeira. Trabalhadores e imprensa não ignoram a
disputa que travam a respeito dessas classificações, como podemos ver, por exemplo, na
reportagem Olhai as Foices dos Pobres da Terra, publicada por Veja em 1o. de junho de 1994,
em que a revista cita e depois recusa (por meio da expressão entre parênteses e aspeada) a
definição do MST sobre si mesmo.
Ex. 6:
É um movimento camponês como nunca houve no país. Não possui líderes conhecidos, como
Francisco Julião das Ligas do pré-64. Vive longe dos sindicatos rurais e, nascido em comunidades
da Igreja, afastou-se dela para invadir (eles preferem dizer “ocupar”) fazendas. (Veja, 01/06/1994)
A questão envolve relações de poder entre os segmentos da sociedade e a disputa
semântica entre os significados de invadir e ocupar é apenas um exemplo do embate pela
produção de sentidos que se trava no espaço dos meios de comunicação. Em Ferreira
11
(1986:963,1214), temos como um dos significados de invadir, “entrar à força ou hostilmente em;
ocupar à força; conquistar”, e de ocupar, “invadir, conquistar”. Esses significados do dicionário
poderiam levar a concluir que haveria pouca diferença entre as duas expressões. Contudo, pelo
que notamos no corpus, ao usar invadir, a imprensa parece se referir às duas primeiras definições,
que possibilitam uma avaliação negativa sobre o MST, colocado no terreno do uso da força e da
ilegalidade. Já o MST, ao usar ocupar, refere-se, possivelmente, a conquistar (e não invadir) e
dessa forma, tenta estabelecer a sua definição como legítima e positiva.
A nosso ver, Bourdieu (1989:11-12) resume a questão: “as diferentes classes e frações de
classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo
social mais conforma aos seus interesses (...) por meio da luta travada pelos especialistas da
produção simbólica (produtores a tempo inteiro) e na qual está em jogo o monopólio da violência
simbólica legítima (...) do poder de impor (...) instrumentos de conhecimento e de expressão
(taxinomias) arbitrários - embora ignorados como tais - da realidade social”.
Ao lado dessas definições, um exemplo de Veja envolvendo seleção lexical também é
ilustrativo da atribuição negativa que se faz aos trabalhadores. Neste caso, a atribuição do verbo
berrar - próprio de um animal, o boi - a um ser humano, ao invés de gritar, provoca esse sentido.
Não se trata de uma questão de adequação ou correção no uso do léxico (e dos verbos), mas que
efeitos de sentido determinado uso (palavra) provoca.
Ex. 7:
Se percebem um movimento estranho, os seguranças de plantão berram. Os outros acordam e,
foices em punho, saem dos barracos. (Veja, 01/06/1994)
A partir desse tipo de atribuição negativa e da possibilidade de enquadramento da fala dos
trabalhadores no discurso de populares (conforme categorias propostas por Marcuschi), podemos
observar um movimento de desqualificação do discurso dos trabalhadores, no confronto popular
x erudito, e, por extensão, língua dominante x língua dominada (popular). É válido lembrar que a
análise aqui realizada não se dá sobre os discursos de cada categoria incluída na questão agrária,
mas sim, da análise do discurso da grande imprensa sobre a questão agrária. Mesmo assim,
julgamos
pertinente
retomar
Bourdieu
(1990:186)
12
a
respeito
da
discussão
língua
dominante/língua dominada, quando ele observa que "aquilo que é chamado de 'língua popular'
são modos de falar que, do ponto de vista da língua dominante, aparecem como naturais,
selvagens, bárbaros, vulgares". A grande imprensa parece tentar uma pertinência dos
trabalhadores a essa categoria, onde se enquadrariam também as situações de invasão, de pressão
e de violência física envolvendo o MST.
Questão agrária: aspectos mais abordados pela grande imprensa
Quais os aspectos da questão agrária mais abordados pela imprensa? De acordo com o
corpus selecionado, são as invasões de terras pelos trabalhadores, liderados (ou não) pelo MST, e
as providências adotadas pela justiça com relação a algum caso. A violência contra os
trabalhadores rurais, seja praticada pela polícia ou por “seguranças” das fazendas em conflito, não
foi a questão mais abordada, mas se trata, com certeza, da que recebe maior cobertura em jornais
e revistas. Os eventos de Corumbiara e Eldorado do Carajás são exemplos disso.
Quanto ao conteúdo, as questões estruturais foram poucas vezes abordadas, e, quando isso
se deu, o foi de forma superficial. Uma das exceções ocorreu num texto de Veja, por ocasião do
conflito em Eldorado do Carajás. Constatamos também que a imprensa costuma apresentar como
causa dos conflitos no campo não a concentração da terra como latifúndio improdutivo (“reserva
de valor”, na preferência de alguns) ou ausência de reforma agrária, mas a alta impunidade dos
crimes praticados no campo (o que, na nossa opinião, é um argumento insuficiente).
Se, quando iniciamos este estudo, a questão agrária já era um assunto freqüente na
imprensa, com a intensificação da ação do MST pelo Brasil essa presença tornou-se ainda maior,
quase diária, despertando as mais variadas reações, como se pode notar a partir das cartas dos
leitores publicadas (mesmo com todos os limites que elas apresentam). Embora com parcialidade
nas abordagens, a imprensa tem respondido à pressão da atuação de trabalhadores e suas
entidades com a publicação de textos.
Contudo, jornais e revistas se identificam com determinados setores da sociedade e
também em vista desses interesses apresentam sua produção discursiva, cuja parcialidade vem
escamoteada na falsa pluralidade de idéias, com os vários lados da questão, já que, como
procurou evidenciar este estudo, a forma como as declarações dos entrevistados são introduzidas,
p. ex., já revela a posição do veículo a respeito do assunto, ao enfraquecer ou fortalecer a fala
13
citada. Isto porque a produção jornalística refere-se a fatos do mundo, mas é também constitutiva
deles, embora negue, como podemos ver na afirmação: o jornalista não constrói foguetes, escreve
simplesmente sobre eles3.
Cada meio tem sua peculiaridade, mas acreditamos que os resultados podem ser
estendidos aos noticiários das rádios e televisões do país. Lembramos ainda que a análise
centrou-se sobre um elo da produção de sentido (o do emissor), mas seria de interesse investigar
também como se dá a produção de sentido pelo público leitor, considerando a sua atividade
criativa sobre a língua e o discurso. Tentamos, ao longo destas páginas, desenvolver um estudo
lingüístico-discursivo que se conciliasse com uma preocupação social. Esperamos ter feito
alguma contribuição nesse sentido.
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