memória, identidade e literatura infantil

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MEMÓRIA, IDENTIDADE E LITERATURA INFANTIL: DIRECIONANDO OS
OLHARES PARA A EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Sinara Pollom Zardo1
Soraia Napoleão Freitas2
O presente estudo pretende destacar e aprofundar algumas questões que permeiam a
discussão no cenário educacional, bem como realizar uma inter-relação da tríade memória,
educação inclusiva e literatura infantil, debruçando a reflexão igualmente à questão da
identidade, tanto individual quanto coletiva. Através deste estudo, buscar-se-á justificar a atual
recorrência à memória em suas diferentes manifestações, analisando suas influências e
contribuições no campo educativo, procurando entender os pressupostos que fundamentam a
educação inclusiva e analisando da mesma forma a literatura infantil, enquanto oriunda dos
mitos e da memória coletiva. Surge a necessidade de revermos a literatura, re-interpretarmos
seus registros e escutarmos vozes que até então foram desprezadas na busca das identidades
perdidas para a construção de uma sociedade que valorize a alteridade e parta do princípio do
respeito às diferenças.
Palavras chaves: memória, educação inclusiva, literatura infantil.
A atualidade nos convida, enquanto educadores, a discutir e refletir acerca das relações
humanas e sociais, analisando suas causas e conseqüências por um viés histórico-filosófico
crítico, a fim de re-planejar propostas que sejam condizentes à estruturação de um sistema
educacional que valorize o homem em sua integridade, enquanto agente no processo histórico,
e considere a diversidade na construção de identidades.
Sob este prisma, qualquer ação ou projeto que se refere à mutação de um aspecto que
perante nosso olhar expressa uma ameaça à condição humana, exige um retrocesso histórico
para o melhor entendimento acerca de certos fatores ocorrentes em nosso contexto atual. Neste
sentido, Cambi contribui afirmando que:
1
2
Autora- Acadêmica do Curso de Pedagogia Séries Iniciais/ CE/ UFSM. [email protected]
Professora Doutora do Departamento de Educação Especial /CE/ UFSM. [email protected]
A história é o exercício da memória realizado para compreender o
presente e para nele ler as possibilidades do futuro, mesmo que seja de
um futuro a construir, a escolher, a tornar possível. Mas é justamente a
atividade da memória, a focalização do passado que anima o presente
e o condiciona, como também o reconhecimento de suas
possibilidades sufocadas ou distantes ou interrompidas, e portanto das
expectativas que se projetam do passado-presente para o futuro, que
estabelece o horizonte de sentido de nossa ação, de nossas escolhas
(1999, p. 35).
O nascimento do conceito moderno de história não somente coincide com a época
moderna estimulado pela dúvida acerca da realidade do mundo exterior, como também teve sua
origem na perda de confiança da capacidade dos sentidos humanos revelarem a verdade. Assim,
o problema da objetividade científica deve sua concepção à dificuldade de reconhecer o que era
verdadeiro, influenciado por uma interpretação equivocada da história e uma confusão
filosófica que desencadearam muitas dúvidas, não apenas para a história como também para a
historiografia, desde a poesia e a narração (Hannah Arendt, 1997).
Com a contemporaneidade, a ciência deixa de oferecer as verdades e certezas absolutas,
onde vários indicadores coexistem como verdades. “Convivemos com a fluidez das situações,
com a pluralidade de estilos e a multiplicidade de papéis” (Otero, 2002, p. 19). Surge a
necessidade de revermos a história, re-interpretarmos seus registros e escutarmos vozes que até
então foram desprezadas na busca das identidades- sociais e individuais- perdidas.
Atualmente, esta tem sido uma questão que está ocupando o centro de discussões quanto
tratada a temática da história, seus registros e sua procedência na humanidade. Vários estudos e
tentativas estão apresentando-se como alternativa para romper esta visão centralizadora que a
história revelou até o momento. Deste modo, o termo história abrangerá não só a história
narrada, quer ao modo histórico, quer ao modo de ficção, mas envolverá a história feita e
padecida pelos homens. Segundo Le Goff:
No domínio da história, sob a influência das novas concepções do
tempo histórico, desenvolve-se uma nova forma de historiografia- a
“história da história”- que, de fato, é na maioria das vezes o estudo da
manipulação pela memória coletiva de um fenômeno histórico que só a
história tradicional tinha até então estudado (1996, p. 474).
Para tal interpretação, a narrativa exige uma configuração que esteja relacionada à
experiência temporal. Sob este prisma, faz-se necessário rever a maneira como a temporalidade
foi questionada e conceituada ao longo da historicidade, buscando contemplar os diferentes
contextos e épocas que influenciaram tais posturas. Assim, ao compreender como a
temporalidade foi concebida através dos tempos, surgirão subsídios que auxiliarão na
construção de uma especificação ao conceito de memória, esclarecendo questões que ficaram
obscuras e apagaram identidades.
Segundo Le Goff “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar
identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (1996, p. 476). Sob este prisma, a
memória coletiva não é considerada apenas como uma conquista, mas representa um objeto e
um instrumento de poder. Assim, a atual “crise de identidades” tem na memória os subsídios
que podem auxiliar na sua re-estruturação.
O impacto da globalização sobre a identidade cultural, anexados aos impasses da história
e a fragmentação entre a vivência dos sujeitos no processo histórico- historicidade- e a maneira
como esses processos são registrados- historiografia- caracterizam nossa época como uma fase
de diversas crises e rupturas e justificam a emergência da memória para melhor compreender a
contextualização onde tais rupturas estão presentes.
Hall (2000), afirma que as identidades modernas estão entrando em colapso, pois um
tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades do século XX e esse fato
estaria fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, que antigamente forneciam sólidas localizações como indivíduos sociais.
Segundo o mesmo autor:
Estas transformações também estão mudando nossas identidades pessoais,
abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta
perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamentodescentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural
quanto de si mesmos- constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo
(2000, p. 9).
Neste sentido, a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando
algo que se supõe como estável é desarticulado pela incerteza. A fim de esclarecer a
problemática da identidade, Hall (2000) distingue três concepções de identidade que referem-se
às identidades do sujeito do iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno. De
acordo com seus apontamentos, o sujeito do iluminismo baseava-se em uma concepção da
pessoa humana como indivíduo centrado, racional, unificado, permanecendo essencialmente o
mesmo durante sua existência, sendo que “o centro essencial do eu era a identidade de uma
pessoa” (Hall, 2000, p.11). A noção de sujeito sociológico, refletindo a complexidade do
contexto moderno, defende que o núcleo interior do sujeito não é auto-suficiente, mas precisa
da relação com outras pessoas que sejam mediadoras dos valores e da cultura. Neste sentido “o
sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que
esses mundos oferecem” (Idem). Por sua vez o sujeito pós-moderno é caracterizado como não
possuidor de uma identidade fixa ou permanente, uma vez que esta é definida historicamente;
assim as identidades mudam conforme os diferentes momentos, formadas e representadas pelos
sistemas culturais circundantes.
A contemporaneidade, com seu tempo acelerado, ocasionou a perda de referências e em
conseqüência, o desmantelamento do passado. Assim, o papel do historiador ascende com a
tarefa de lembrar o que foi esquecido, dando à memória um novo significado. Sendo assim, a
memória é considerada como “essencialmente um ato de evocação, isto é, o ato de ‘recuperar
mentalmente a imagem’, portanto, é um ato de representação do real que se dá através de
imagens mentais, pois o passado enquanto tal não volta” (Otero, 2002, p. 23). Como a evocação
constitui a memória, e com esta a história estrutura-se, a fim de reconstituir os traços da
subjetividade e da emoção humana, nos últimos anos, os historiadores voltaram sua
preocupação para a memória dos sentidos, dando relevância à elementos como sons, cheiros
que marcaram as diferentes trajetórias humanas, bem como à história oral. Otero, com
propriedade, revela a importância da história oral, afirmando que ela é capaz de “recuperar essa
reconstituição de ruídos, cheiros e sensibilidades que interferem na construção dos imaginários
e das memórias individuais e coletivas que, nos documentos tradicionais, não são oferecidos ao
pesquisador social e ao historiador com a mesma nitidez (2002: 24).
Sendo que evocar/lembrar consiste na re-elaboração do que realmente aconteceu, ou
ainda, em um restabelecimento de significado que deriva de uma seleção de fatos acontecidos e
da união da fantasia com a realidade; é imprescindível que ocorra a evocação a fim de que as
identidades não sejam perdidas, havendo a relação passado/presente. É essa atitude a
responsável por conservar as peculiaridades tanto da memória individual, quanto da memória
social.
A crescente preocupação com o tema memória, alia-se à necessidade de rever os fatores
ocasionados pela globalização e sua influência sobre a construção das identidades- sejam
sociais ou individuais-, questionando a maneira como a historiografia e a história registram o
passado e as repercussões destes registros na contemporaneidade. Nas palavras de Otero:
(...) a questão da memória está associada a uma nova percepção frente a
possibilidade de compreensão do mundo cotidiano- e ao redor do cotidiano-,
que faz com que indivíduos e grupos sintam a necessidade de
entender significados3, tanto em objetos materiais (concretos e palpáveis)
quanto em objetos imateriais (perceptíveis, sensíveis e identificáveis). Essa
mudança não é apenas comportamental de indivíduos, grupos, instituições,
mas, também, epistemológica. Há uma nova episteme4, um novo paradigma
do conhecimento e do mecanismo de obtenção do conhecimento, do saber
científico (2002, p.16-17).
A memória torna-se portanto uma categoria fundante do fazer história, com seus
trabalhos não lineares, incompletos, mas necessários, ou ainda, a memória possibilita a
intervenção do homem na ordenação dos vestígios e da releitura destes, onde esquecer e
lembrar, entrelaçados em suas vicissitudes, garantem a sobrevivência humana e sadia. A
estruturação e as atividades de auto-organização exercem total influência na organização e
reconstituição dos fenômenos da memória. Neste prisma, o comportamento narrativo, ou ainda,
a narração é de extrema relevância ao ato mnemônico, pela própria função social que a
comunicação exerce, pois a narração, na ausência do acontecimento e do objeto repassam a
informação. Em síntese, a utilização da palavra falada e depois escrita, é uma das possibilidades
fundamentais do armazenamento da nossa memória.
Leroi-Gourhan, citado por Le Goff (1996) distingue três tipos de memória: memória
específica, memória étnica e memória artificial. Quanto à memória específica, esta seria
responsável pela definição e fixação dos comportamentos de espécies animais. A memória
étnica, exerceria a função de assegurar a reprodução dos comportamentos nas sociedades
humanas e por sua vez a memória artificial faz jus a uma memória eletrônica, à reprodução de
atos mecânicos encadeados .
Deste modo, o estudo histórico da memória é necessário para que seja dada a devida
importância às diferentes sociedades. Segundo Le Goff: “O estudo da memória social é um dos
meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a
memória está ora em retraimento, ora em transbordamento” (1996. p. 426).
Nas sociedades sem escrita, detentoras de uma memória étnica, a narrativa- oralizadaera fundamental quanto à organização e estabelecimento das relações sociais. Nestas
sociedades a memória narrativa interessa-se pelos conhecimentos práticos, técnicos e de ordem
profissional. Há pessoas responsáveis por transmitir essa memória dita ideológica- que
descreve os fatos de acordo com certas tradições- e por isso é que se diz que nas sociedades sem
3
4
Grifo do autor.
Idem.
escrita a memória transmitida não é uma memória “palavra por palavra”. Desta forma, Le Goff
enfatiza que “o primeiro domínio onde se cristaliza a memória coletiva dos povos sem escrita é
aquele que dá um fundamento – aparentemente histórico- à existência das etnias ou das
famílias, isto é, dos mitos de origem (1996, p. 428).
Com a invenção do calendário, a expansão das viagens marítimas, o surgimento da vida
urbana e da moeda, segue-se uma tendência à razão, à racionalidade, a exigência por respostas
conclusivas para os problemas e uma sistematização das regras de análise e generalizações.
Certamente esta mudança não ocorreu repentinamente, mas resulta de um longo processo em
que o homem foi tomando consciência do seu estar no mundo. Com a evolução do homem e
suas relações, e por conseguinte das sociedades, os mitos não eram suficientemente
convincentes para explicar os fatos ocorrentes, mas não podendo ser desprezados pela memória
coletiva, precisaram ser registrados.
Com o surgimento da escrita há uma profunda transformação na memória coletiva.
Assim a escrita representou um duplo progresso em relação a duas formas de memória: a
comemoração, celebrando através de um monumento comemorativo e o documento, que
significou o armazenamento de informações que permitia comunicar através do tempo e do
espaço (Le Goff, 1996). Neste sentido, uma maneira de manter os mitos do povo, era
registrá-los para que estes não se perdessem no tempo. Este acontecimento, segundo
Leroi-Gourhan, apud Le Goff, repercutiu da seguinte forma:
Até o aparecimento da imprensa... dificilmente se distingue entre a
transmissão oral e a transmissão escrita. A massa do conhecido está
mergulhada nas práticas orais e nas técnicas; a área culminante do saber,
com um quadro imutável desde a Antiguidade, é fixada no manuscrito para
ser aprendida de cor... Com o impresso... não só o leitor é colocado em
presença de uma memória coletiva enorme, cuja matéria não é mais capaz de
fixar integralmente, mas é freqüentemente colocado em situação de explorar
textos novos. Assiste-se então à exteriorização progressiva da memória
individual; é do exterior que se faz o trabalho de orientação que está escrito
no escrito (1996, p . 457).
Deste modo, a fim de registrar os mitos de sua época, Charles Perrault, encarregou-se de
coletar os contos e as lendas da Idade Média e adaptá-los em contos de fadas. Carvalho (1987)
descreve os contos de fadas como sendo as últimas ramificações da mitologia universal,
advindos da sobrevivência de mitos e dos velhos cultos e rituais da tradição de todos os povos.
Perrault, pertencente à classe burguesa, em alguns contos trata de forma diferenciada o povo e
suas superstições, mas simultaneamente procura moralizar em seus textos literários. Assim, ele
adapta temas populares que chegaram em sua família através da narrativa, da vida doméstica e
de servos, direcionando-os ao público que objetivava agradar: a burguesia. Neste enfoque,
Zilberman referencia:
Recorrendo à cultura como arma para desafiar a tradição que
legitimava o poder da aristocracia, a classe burguesa, através do
pensamento iluminista, submete-se à práticas que a divulgam,
alargando, com isto, o âmbito de circulação do saber e da leitura que a
coloca ao alcance dos olhos; concomitante, porém, ela funda uma
teoria da liberdade e do significado da emancipação, que vem a
superar o momento histórico em que foi formulado em virtude de uma
utilidade para os propósitos imediatos deste grupo (1985, p. 14).
A valorização da escola e da leitura como possibilidade de assunção social para a
burguesia, representa além da difusão do conhecimento a conquista de seu espaço socialmente.
Neste sentido os livros, envoltos por uma política econômica/ideológica, além de possuírem
textos transmissores de regras de bom comportamento social, transmitem uma ideologia de
bom cidadão, passivo e prestativo à sociedade. Inicia-se com a difusão da leitura um processo
de democratização do saber e aos acessos culturais, e a escola torna-se um elemento de
transformação que não pode ser negligenciado. A nova concepção de infância gerou uma maior
unidade na família, e igualmente meios de controlar o desenvolvimento intelectual da criança e
suas emoções. Diante disso, a escola e a literatura assumem tal papel.
A educação, neste sentido, é vista sob uma ótica diferenciada na sociedade moderna,
exercendo um papel de destaque neste novo contexto. Assim atribui-se à educação funções
utópicas como ser responsável pelo sucesso futuro, carregar utopias, regenerar o homem,
reconstruir a convivência social, etc. No âmbito educativo, o modelo de formação preocupa-se
com o problema do método, da prática da experimentação, com a valorização da matemática e
da lógica. As mudanças sociais em decorrência influenciam o indivíduo. Neste sentido, Cambi
faz referência à mudança:
E neste novo sujeito, ao mesmo tempo individualizado e socializado,
veio a mudar radicalmente o imaginário, que se torna mais laico e
mais problemático, mais consciente dos conflitos que atravessam
toda a vida subjetiva, e que se encontra refletido e potencializado,
‘representado’ tanto no romance como no teatro, que recebem do
século XVII um novo impulso, mas até mesmo na literatura infantil,
que cresce neste século e se dirige à formação de uma visão de mundo
específica da infância (1999, p. 281).
Neste novo momento a literatura começava a direcionar-se especificamente ao público
infantil, outrora, as crianças escutavam as mesmas histórias que os adultos, totalmente
desconsideradas do grupo. Fénelon foi um dos primeiros educadores europeus a utilizar as
histórias infantis no contexto educacional. Embora não parta de princípios cientificamente
fundados, ele revela a importância de considerar as especificidades da infância. Cambi,
aludindo-se à concepção educativa de Fénelon, enfatiza que segundo ele:
todo educador deve conhecer e ter constantemente presentes se quiser
tornar eficaz a própria obra: a importância dos chamados “ensinos
indiretos” e a centralidade do jogo e das “histórias” no processo
educativo. Para ele, a infância se caracteriza pela “maciez do
cérebro”, que “faz que tudo nele se imprima facilmente pela
curiosidade”, por um “movimento fácil e contínuo” e por uma
“irrequietude” que deve ser constantemente orientada se se quiser
utilizá-la para fins educativos (1999, p. 297).
Sucessor de Fénelon, quanto ao interesse pelas narrativas fabulísticas que permearam a
França, apresentam-se La Fontaine, com suas fábulas e Charles Perrault com seus contos
fantasiosos. Conforme contribui Cambi (1999) o uso da narrativa era destacado como uma
preparação para a conversação, como também para a aprendizagem de preceitos morais e para a
formação de um gosto literário alinhado com a educação nobilitária.
No século XIX a literatura demonstra-se mais flexível quanto à narrativa moralizante e
busca contemplar aspectos relacionados à ludicidade, fantasia e construção do conhecimento da
criança. No Brasil, nesta época, Monteiro Lobato foi precursor na literatura infantil, buscando
resgatar a cultura nativa, a tradição indígena, a exaltação à natureza brasileira, relacionando-as
às questões sociais. Crítico aos acontecimentos ocorrentes no país, ele trabalha o “presente” em
suas obras dando possibilidades de reflexão acerca de soluções futuras. Cadermatori, evidencia
em poucas palavras a relevância do trabalho de Lobato para a cultura brasileira:
Monteiro Lobato cria, entre nós, uma estética da literatura infantil, sua
obra constituindo-se de um grande padrão ao texto literário destinado
à criança. Sua obra estimula o leitor a ver a realidade através dos
conceitos próprios. Apresenta uma interpretação da realidade
nacional nos seus aspectos social, político, econômico, cultural, mas
deixa, sempre, espaço para a interlocução com o destinatário. A
discordância é prevista (1986, p. 51).
Após Lobato a literatura infantil ascendeu. Já nos anos 60 e 70 multiplicaram-se
instituições e programas voltadas para o fomento da leitura, e em decorrência, da literatura
infantil. Com essa mobilização o Estado começa a apoiar editoras e despender investimentos de
grandes capitais com vistas a proporcionar maior produção e veiculação de livros infantis,
acreditando com esta atitude que a população escolar fosse tornar-se leitora e consumidora de
livros. Assim, aliada ao capitalismo, a indústria cultural passa a investir neste novo recurso e
com isso, as implicações refletem na utilização desta literatura no âmbito social e
principalmente escolar. Zilbermam, aludindo-se acerca deste episódio, constata suas
repercussões:
Talvez, por não pertencer ao ideário de esquerda, que a acusa de
propiciar o escapismo, compensar a alienação motivada pela divisão
do trabalho ou desviar a classe operária de sua finalidade
revolucionária; ou por estar acossada pelo pragmatismo burguês, que
não tolera uma atividade que não resulte em produção e não tenha
aplicação imediata e lucrativa (1990, p. 33).
Assim, as considerações da capacidade imaginativa da criança e de sua fantasia nos
livros produzidos aparecem mascaradas. Um lado, mais doutrinário, expulsou-a de seu
universo, denegrindo seus efeitos; outro, não a refutou, mas comprometeu sua finalidade. A
indústria cultural responsabilizou-se de conferir à literatura um sentido escapista que
proporcionasse ao leitor fuga, ainda que momentânea, da vida cotidiana e rotineira, facilitando
sua acomodação à situação real.
Nesse sentido, a atualidade instiga os educadores a repensar a prática literária, sua
utilização em sala de aula e os objetivos que se aludem a esta prática. Certamente, isso
compromete a formação do professor, seu conhecimento acerca da história da literatura, dos
gêneros literários, como também seu próprio gosto e hábito para a leitura que, evidentemente
contribuirá para que este pesquise livros e propostas de trabalho que sejam adequadas aos
alunos. Resgatar a literatura enquanto forma de arte e expressão pode auxiliar na transformação
do meio escolar, valorizando aspectos que até então apagados pelo conteúdo e pela disciplina,
nem sempre cabíveis na realidade dos educandos. A literatura infantil pode ser o cerne da
construção de uma educação inclusiva, pois operando a partir de sugestões fornecidas pela
fantasia e imaginação, socializa formas que permitem a compreensão dos problemas e
demonstra-se como ponto de partida para o conhecimento real e a adoção de uma atitude que
valorize as diferenças e as particularidades.
Nessa busca pela identidade, a educação apresenta-se como alavanca do processo, não no
sentido de voltar ao passado, o que não pode acontecer, mas no sentido de valorizar as
diferenças humanas e a memória social constituída. A crise na educação, pode-se assim dizer,
guarda a mais estreita conexão com a crise da nossa atitude face ao âmbito do passado. “É a
oportunidade, proporcionada pelo próprio fato da crise- que dilacera fachadas e oblitera
preconceitos-, de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu,
e a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo” (Arendt,
1997, p. 223).
A atual crise resulta do reconhecimento do poder destrutivo destes pressupostos
apontados e da tentativa desesperada de transformar o sistema educacional inteiramente. Nesse
sentido que o estudo da memória é considerado a mola propulsora da educação,
re-estabelecendo os significados, valorizando o passado e apontando aspectos que
redimensionados servirão como base para o planejamento futuro. Construir uma educação
inclusiva, que atenda a todos com iguais condições, requer conhecimento do passado e o
entendimento de que o silêncio por parte das pessoas com necessidades educacionais especiais
e suas famílias não é em vão, mas é fruto de uma sociedade que, desde a Grécia Antiga busca
excluir a diferença.
Emerge a necessidade de que sejam dadas oportunidades para que as pessoas excluídas
do sistema tenham vez e voz para contar sua história, que produzam sua própria narrativa e que
esta mobilize a sociedade e auxilie esta a romper com os padrões de normalidade impostos.
Assim, poderemos melhor compreender, através do conhecimento da memória coletiva e
individual destas pessoas, sua história, suas angústias e promover uma educação capaz de
atender suas necessidades e desenvolver suas potencialidades. Desta forma, valorizando
diferentes identidades, conseguiremos uma educação que de fato seja inclusiva.
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