1. Introdução

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IDENTIDADES SOCIAIS E ASSESSORIA TÉCNICA: AGRICULTORES ASSENTADOS E
ASSENTAMENTO
Roberto José Moreira e Eli Napoleão de Lima
Resumo
Os conteúdos apresentados fazem parte da compreensão dos condicionantes sociais que atuam na
interação entre técnicos e agricultores em assentamentos rurais de reforma agrária. O foco dessa
compreensão visa esclarecer as diferenças entre os saberes técnicos agropecuários e os saberes
cotidianos dos agricultores assentados. Tendo como tema geral natureza, ciência e saberes, em uma
abordagem de identidades sociais, os autores procuram demonstrar o agricultor assentado, quando
fala em natureza, fala das leis da natureza, como as leis da vida, conforme vistas pela cultura a qual
ele pertence. Na análise dos condicionantes da identidade social e da visão de mundo dos
assentados é reconhecida a especificidade da forma social dos assentamentos, visualizada por as
noções de complexidade restrita, para captar as relações internas e locais, e ampla, para ressaltar a
presença de instituições externas, nacionais e globais.
Palavras-chaves:
identidade social, reforma agrária, assessoria técnica, agricultor assentado; assentamento.
SOCIAL IDENTITIES AND TECHNICAL ADVISORY: SETTLED FAMILY FARMERS
AND SETTLEMENT
Abstract
The arguments and facts presented by authors are part of the social conditioning acting on the
interaction between technicians and familly farmers in agrarian reform settlements. The objective
of this compreensive demonstration is to elucidate the differences among culture and point of view
of agricultural technicians and settled farmers. Having as a general framework nature, science and
knowing,in a social identities approach, the authors aims to demonstrate that when settled
agricultural farmer talks about nature he talks about natural laws, as defined life laws defined by is
own culture. The analysis of social conditioning of agrarian reform settled farmes recognizes the
settlements social form specificities. These specificities is viewed by the notions of restrict
complexity, applied to internal and local relations, and ample, to point aut the influences of global,
nacional and external institutions. The social identities is viewed as beeing complexes, multiples,
openned and reflexive.
Key Words:
social identity, agrarian reform, technical advisory, settled family famers, settlement
IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
IDENTIDADES SOCIAIS E ASSESSORIA TÉCNICA: AGRICULTORES ASSENTADOS E
ASSENTAMENTO1
Roberto José Moreira2 e Eli Napoleão de Lima3
1. INTRODUÇÃO
Os conteúdos apresentados fazem parte da compreensão dos condicionantes sociais que atuam na
interação entre técnicos e agricultores em assentamentos rurais de reforma agrária. 4 O foco dessa
compreensão visa esclarecer as diferenças entre os saberes técnicos agropecuários e os saberes
cotidianos dos agricultores assentados. Tendo como tema geral natureza, ciência e saberes, em uma
abordagem de identidades sociais, os autores procuram demonstrar o agricultor assentado, quando
fala em natureza, fala das leis da natureza, como as leis da vida, conforme vistas pela cultura a qual
ele pertence. Na análise dos condicionantes da identidade social e da visão de mundo dos
assentados é reconhecida a especificidade da forma social dos assentamentos. Em outro texto,
identidade social e assessoria técnica: técnico agropecuário, 5 que na lógica discursiva é anterior a
este, os autores apresentam uma visão compreensiva para a análise de identidades sociais bem
como uma visão histórica da formação dos técnicos na realidade brasileira. Quando o técnico fala
em natureza ela fala sobre as leis naturais, conforme vistas pela ciência. Ambas as análises buscam
esclarecer que estes condicionantes sócio-históricos condicionam a prática da assessoria técnica,
seus sucessos e fracassos. As distintas visões de mundo dificultam a comunicação entre técnicos e
agricultores.
O texto foi escrito como instrumento de uma pedagogia reflexiva, que pudesse orientar de um dos
módulos do curso de atualização para os técnicos agrícolas da ATES. Esperamos que a abordagem
do tema a partir da compreensão das identidades sociais contemporâneas permita entender lugar
social - espaço social de valores, propriedade, relações e reconhecimento – de construção e de ação
das identidades aqui abordadas que trataremos como uma ambiência social complexa.
Ressaltaremos que na socialização do agricultor assentado a natureza assume outra amplitude.
Abarca o conjunto da vida do assentado e das relações sociais do assentamento, destacando a visão
1
Texto de apoio ao Curso de Atualização para os técnicos da ATES (Assessoria Técnica, Ambiental e
Social). Convênio CPDA/REDES – NEAD/INCRA. Março, 2005.
2
Agrônomo, PhD em Economia Cornell University. Professor Associado II, UFRRJ CPDA. Bolsista do
CNPq/MCT.
3
Historiadora, Mestre em Desenvolvimento Agrícola e Doutora em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade, Programa CPDA. UFRRJ. Professora Associada I, UFRRJ.
4
No contexto do curso de atualização dirigidos aos técnicos da Assessoria Técnica Social e Ambiental
(ATES) estes conteúdos foram apresentados em dois textos: Natureza, ciência e saberes I: Identidade social e
técnico agropecuário e Natureza, ciência e saberes II: Agricultores assentados e assentamentos.
CPDA/REDES – NEAD/INCRA. (2005), aqui renomeados para reconhecer a colaboração da co-autora na
forma e conteudos agora apresentados.
5
Também inscrito para apresentação neste XLV Congresso da Sober.
2
IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
de mundo e a socialização do agricultor. Nesse contexto as leis da natureza tendem a serem vistas
como as leis da vida conforme entendidas pela cultura que socializou os assentados, as ações
sociais, e produtivas, deveriam considerar as leis da vida.
A estrutura deste texto será dividida em três itens. O primeiro é o desta pequena introdução. No
item 2, a identidade social do agricultor assentado, destacaremos os condicionantes sociais da
identidade dos agricultores assentados procurando compreende-la em sua especificidade e no item
3. a identidade complexa do assentamento, tem por objetivo refletir sobre as complexidades restrita
e ampla do assentamento, bem como as especificidades da forma social assentamento, destacando
as redes de poderes que constroem essa identidade.
2. A identidade social do agricultor assentado
Vamos agora refletir sobre as especificidades do agricultor assentado.
A análise dos processos de socialização primária e de socialização secundária dos agricultores
assentados e o grau escolarização por eles vividos (alfabetização e ensino propedêutico do primeiro
grau, segundo grau, propedêutico e profissionalizantes e mesmo ensino superior universitário)
podem nos demonstrar que a maioria teve uma história incorporada por processos vividos fora dos
bancos escolares. Suas visões de mundo, de sociedade e de profissão, foram construídas nesses
processos.
O que seria então esta socialização primária e secundária vivida e apreendida na escola da vida?
Quais os saberes e práticas e modos de pensar compõem a cultura popular que esses agricultores
incorporaram? Como lidam com suas vidas? Como educam seus filhos? Como se relacionam com
os outros? E, quais os elementos que levam em conta quando decidem quais técnicas agropecuárias
vão utilizar?
Examinemos algumas dessas características.
A identidade agricultor nos remete a um campo amplo de identidades sociais no Brasil. A
generalidade dessa palavra une, por exemplo, numa mesma categoria o agricultor-fazendeiro, o
agricultor-empresário, o agricultor-sitiante, o agricultor-familiar, o agricultor-ruralista, o
agricultor-agroindustrial, o agricultor-colono e o agricultor-assentado.
De outro lado podemos nos perguntar o que é ser agricultor hoje? É a mesma coisa que foi no
passado, ou será no futuro? Quando falamos em agricultor, falamos do indivíduo ou da família?
Teriam os diferentes agricultores os mesmo objetivos ao praticarem a agricultura? O que os une e
os diferencia?
Mesmo a categoria agricultor-assentado pode ser vista como uma categoria complexa e
diferenciada, tanto em termos regionais, origem dos assentados, trajetórias de luta de acesso a terra,
bem como pelos diferentes saberes e valores incorporados nas pessoas e famílias dos assentados.
3
IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
Quais as diferenciações sociais que são relevantes em suas vidas? A econômica? As redes
familiares? As redes religiosas? As redes políticas? Partidárias, dos movimentos sociais,
governamentais, institucionais?
Cumpre tentar localizar sumariamente elementos da história objetivada das relações social
apontando as relações de poder que conformam os espaços sociais dos setores subalternos no
campo, bem como a história interiorizada nas mentalidades, na cultura brasileira que faz como que
vejamos os agricultores familiares, assentados ou não, de uma determinada forma, bem como faz
com que esses setores se vejam também dessa forma.
A constituição do trabalho livre no Brasil esteve associada às transformações que se operaram na
dinâmica das revoluções burguesas na Europa e nos desdobramentos da revolução industrial. Estes
desdobramentos, no século XIX, se expressaram no Brasil pela a imigração da Corte Portuguesa, a
Abertura dos Portos, a Independência, o I e o II Império. Nesse século há uma relativa
autonomização do baronato frente ao poder do antido Estado Imperial. A expansão da acumulação
cafeeira escravista e seu fortalecimento frente a antigos núcleos de acumulação colonial, da cana e
do ouro, consolida a hegemonia da nova oligarquia cafeeira do "oeste" paulista. Na reordenação
das elites, estão, em oposição, os interesses associados à expansão econômica do café no oeste
paulista, e suas necessidades de força de trabalho "livre", e os interesses associados às antigas
oligarquias do nordeste, mineira e da zona velha do café, proprietárias de escravos. O tráfico
negreiro é extinto em 1850 e a própria escravidão em 1888.
A sujeição do trabalho livre passa a requerer o controle efetivo sobre a terra, elemento básico para
evitar a dispersão da força de trabalho dos núcleos de acumulação, ou seja para evitar que
população liberta da escravidão tivesse acesso livre às terras. Sob esse aspecto, não há divergências
ou oposição de interesses entre as oligarquias brasileiras do período. A queda do instituto das
sesmarias e do morgadio, as de direito de uso das terras e transmissão das terras dentro das famílias
oligárquicas na primeira metade do século XIX, processa-se com a Lei de Terras, em 1850, que
garantindo os direitos anteriores, agora como propriedades privadas da oligarquia. As oligarquias,
além de proprietárias de escravos, passam, com essa Lei, a garantir a propriedade da terra como
domínio particular e privado. Este processo não se dá sem lutas internas por domínios, que não
afetam o sentido geral da lei. No início da República Velha e com o fortalecimento do
"coronelismo" no contexto da política dos governadores, como aponta Martins (1983:45-50), as
terras devolutas passam ao controle dos estados provocando mais um momento de acirramento das
disputas entre os coronéis pelo controle das terras.
A Lei de Terras institui o acesso a terra por meio de compra e venda no mercado. Aos não
proprietários, o acesso a terra (privada ou devoluta) vai requerer uma acumulação prévia em
dinheiro. Este requisito passa a ser um dos elementos básicos do processo de sujeição do trabalho
agrícola às atividade produtivas da grande propriedade. Vários autores vão apontar que a Lei de
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IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
Terras, ao reconhecer a sesmarias existentes como propriedade privada e ao instituir a compra
como única forma de acesso às terras devolutas do Estado, marca o momento originário do
mercado de terras no Brasil. É, também, nesse contexto que se experimentam políticas
imigracionistas para atrair os fluxos populacionais de emigração européia. Naquele momento há
um debate político sobre as vantagens da "colônia de povoamento", que define historicamente os
"colonos do sul" como proprietários familiares, e da "colônia de exploração", que consolida o
"colono-parceiro" do café no interior da grande exploração.
Na impossibilidade de realização daquela acumulação prévia de dinheiro, o escravo liberto, o
imigrante europeu e o campesinato tradicional, que se constituiu ainda na ordem escravista, vão se
tornar as figuras sociais originárias do mercado de trabalho rural livre. Constituem a força de
trabalho disponível à organização econômica da grande plantação, no período republicano, no pós
1989.
A Lei de Terras, a gradualidade da abolição e a política imigracionista podem ser vistas como
expressão do confronto de interesses das oligarquias. Do ponto de vista do confronto destas
oligarquias e os trabalhadores, estas políticas expressaram, no entanto, um objetivo comum:
garantir a ordem econômica, os interesses centrais das oligarquias regionais e impedir a
desestruturação econômica e social, herdada o período anterior. Esse é um dos sentidos do lema
positivista ordem e progresso, que marca o período republicano.
Estas transformações, no topo da estrutura social, não configuram nenhuma transformação
significativa da ordem social. Vão ter efeitos profundos sobre a natureza elitista da democracia e da
sociedade brasileira e nas dificuldades de implementação de uma significativa reforma agrária
dentro da ordem republicana.
A Lei de Terras abre, também, a possibilidade de constituição do pequeno produtor familiar
proprietário, e não elimina a possibilidade de, nas margens dessa ordem, se reproduzir a situação
de posseiro, que, no entanto, não têm peso significativo na ordem econômica e política do período.
Poderíamos dizer que essa situação econômica, social, política e cultura subalterna do campesinato
tradicional brasileiro no fim do século XIX compõem a história objetivada que define o espaço de
reprodução social das condições objetivas do campesinato tradicional brasileiro.6 Cumpre ressaltar
ainda que associada a essa ordem objetivada há uma história internalizada que vai compor a visão
de mundo, os valores e os saberes, bem como os modelos de ação desse campesinato. Estamos
usando a categoria campesinato tradicional para nos referimos às diversas figuras sociais
regionalizadas, conhecidas e representadas como o “caipira”, “caiçara”, “tabaréu”, “caboclo”,
“sitiante”, “agregado”, “morador de favor”, “colonos do sul”, como são conhecidas em regiões
diferentes do país. Tais representações sociais e seus significados estão carregados de valores
6
Para uma compreensão de espaço social (econômico e cultural) de reprodução e a diversidade de formas
sociais da agricultura familiar ver Agricultura familiar. Processos sociais e competividade de Roberto J.
Moreira (Rio de Janeiro; Mauad, 1999), em especial parte II.
5
IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
culturais e ideológicos da cultura dominante e se confundem em alguns casos com o produtor
familiar proprietário.
Seriam os nossos agricultores assentados herdeiros desse modo de ser e de pensar? Estariam as suas
visões de mundo e seus modos de agir e ser, seus costumes, associados de alguma forma a essa
herança?
Para destacar o que tenho denominado de ideologia de subsistência e examiná-la como nucleadora
da história incorporada nas mentalidades do campesinato tradicional brasileiro, gostaria de enfocar
duas relações hegemônicas de trabalho rural que vigoraram em fins do século XIX e na primeira
metade do século XX: a parceria do trabalhador familiar residente nas plantações dos latifúndios
em suas expressões na relação de morada da cana no nordeste brasileiro e de colonato do café no
“oeste paulista”.
Já destaquei que do ponto de vista das classes subalternas, a ordem republicana dos fins do século
XIX que conforma a história social no campo brasileiro do século XX é a ordem do autoritarismo.
É a ordem da repressão e sujeição da força de trabalho livre à estrutura econômica e social herdada
do escravismo. Essa seria a história objetivada que sedimentou o padrão de relações de trabalho
que vai vigorar, na primeira metade dos séc. XX e que entra em crise, nos anos 1950, com as lutas
por reforma agrária.
A ideologia do trabalho, ou seja o conjunto de idéias que faz crer no progresso e na ascensão
social por meio do trabalho, parece ter vigorado no “oeste paulista” e esteve associada à atração
das imigrações internacionais do século XIX. A sujeição do trabalho livre, principalmente
estrangeiro, às fazendas de café e ao latifúndio foi sedimentada pela ideologia da mobilidade por
meio do trabalho. Esta ideologia conformaria, no campo das idéias e das aspirações, o caminho do
progresso das classes trabalhadoras.
O caminho apontado por essa ideologia é o seguinte: por meio do trabalho na fazenda de café (após
o pagamento das dívidas contraídas na viagem de seu país de origem e após ter acumulado
dinheiro próprio para a compra de terras) o colono se tornaria autônomo. Compraria terras, viraria
agricultor familiar proprietário e depois um pequeno patrão. Essa ideologia atenderia as aspirações
dos imigrantes estrangeiros, expropriados de sua condição camponesa, em seu país de origem.
No nordeste açucareiro, a abolição dos escravos não desestrutura a fixação da força de trabalho nas
plantações de cana. De um lado, porque a crise açucareira é anterior à abolição e muitos escravos já
tinham sido vendidos ao sul. E, de outro, porque já havia se dado uma substituição de escravos por
antigos moradores agregados livres já na ordem escravista e porque boa parte dos escravos libertos
permaneceu como trabalhadores residentes nessas plantações. Esta situação do parceiro-morador,
no contexto da crise e da decadência da economia nordestina pode estar associada à conformação
originária de uma ideologia de subsistência, também associada à morada de favor. Nessa ideologia
construída na ordem escravocrata e destinada a orientar as relações sociais com os trabalhadores
6
IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
não escravos, a morada era uma concessão do senhor das terras, sua manutenção dependia única e
exclusivamente da vontade soberana desse senhor. Os moradores, trabalhadores familiares
residentes, passavam a dever favores aos donos da terra, pagando com trabalho, produtos, serviços
diversos e, principalmente, com lealdade ao patrão e seus interesses.
Cumpre ressaltar que se esta diferenciação fizer algum sentido apesar das semelhanças tecnoeconômicas do colono-parceiro do café e do morador-parceiro da cana de açucar, os aparatos
cultural-ideológicos que vão sedimentar estas relações são distintos. No caso paulista, este aparato
estaria associado a uma ideologia do progresso, associada ao dinamismo do café e às aspirações
dos imigrantes, mesmo que a grande maioria dos colonos do café e seus descendentes não
consigam ter acesso a terra própria. No caso nordestino, a ideologia de subsistência, estaria
associada à estagnação da região açucareira e às aspirações de antigos moradores e ex-escravos,
indicaria como caminho do futuro apenas a paciência, o conformismo e a expectativa de novos e
melhores favores das elites, ou dos governantes.
Cumpre destacar ainda que a vivências histórica dos colonos do sul do Brasil, nos núcleos de
colonização do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e mesmo no Espírito Santo, indicariam
caminhos distintos dos acima relatados. Desde sua origem no século XIX esses núcleos
constituíram-se como produtores familiares autônomos proprietários, onde a ideologia do trabalho
era vivida como expectativa e caminho de progresso social para a família e seus filhos. O direito à
terra de trabalho não era favor e nem esteve fortemente associada a dividas contraída com os
senhores das terras. Se alguma diferença houver nos diferentes processos históricos, aqui apenas
apontados, uma história incorporada de direito à terra de trabalho poderia ter gerado diferentes
mentalidades que poderiam explicar a própria origem combativa do MST nos anos de 1980.
Essas considerações sobre as diferenças ideológicas regionais originárias trazem à tona a
importância das análises sócio-culturais específicas das distintas agriculturas familiares regionais,
bem como reconhecer especificidades culturais entre os agricultores familiares assentados e os
próprios assentamentos.
Queremos destacar que, no geral, o tratamento da questão camponesa, ou mais propriamente, da
agricultura familiar no Brasil parece estar envolvida e obscurecida pelo substrato cultural da
ideologia de subsistência. A confirmação desta hipótese necessitaria de análises específicas das
ideologias subjacentes ao programas de reforma agrária, de assentamentos, de desenvolvimento
rural integrado e, dos mais recentes, de desenvolvimento sustentável e de tecnologias alternativas.
A agricultura familiar na cultura brasileira está associada às noções de pequena propriedade,
pequena produção e de laços familiares que - compondo uma unidade produtiva e social - almeja,
objetiva, luta e produz visando sua reprodução social da família. As abordagens da
multifuncionalidade e
pluriatividade da agricultura familiar aborda uma série de temas
relacionados à identidade do agricultor assentado como agricultor familiar, que não trataremos
7
IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
aqui. Cumpre destacar, no entanto, que a forma assentamento é diferenciada das outras formas de
organização local dos agricultores familiares, inclusive da formas coloniais tradicionais. Este
destaque visa ressaltar a importância de se considerar e compreender as dinâmicas sociais e nas
redes de sociabilidade interna ao assentamento, também complexas e co-determinadas em redes
locais e não-locais.
Na mentalidade das elites políticas e sociais, regra geral, a noção de reprodução social é concebida
ideologicamente como reprodução da subsistência familiar, mas associada à morada de favor e não
como progresso social que estaria associada à ideologia do trabalho. Essa noção de subsistência
significaria a busca da manutenção da família e das condições de produção, que hoje, no contexto
das questões ambientalistas, passam a ser interpretadas como o uso dos recursos naturais de forma
sustentável.
Essa mentalidade não associa a pequena agricultura familiar com a idéia de progresso social, de
melhoria das condições de vida, bem como, da possibilidade de reprodução econômica ampliada
desses setores subalternos. A nosso ver essa ideologia está presente na ordem social dominante dos
de 1990 e no início do século XXI e tende a localizar as políticas governamentais para esses setores
como políticas sociais e não como políticas democratizantes de progresso econômico e social para
os setores subalternos, em uma palavra mais ampla, de cidadania.
A modernização tecnológica da agricultura do pós-segunda Guerra Mundial, dos anos 1946 ao
início dos anos 1980, se caracterizou pelo duplo processo social de expulsão da população
trabalhadora transformando-se em assalariados ou desempregados rurais ou urbanos.
De um lado, a ruptura do padrão de organização da produção anterior expulsa os moradores –
colonos em São Paulo e moradores no Nordeste – das grandes e médias unidades de produção,
reduzindo de importância das formas de organização sedimentadas na posse temporária da terra
(parcerias, pequenos arrendamentos e cessão de lotes de terra à produção para consumo próprio).
De outro lado, o processo de concentração e centralização de capital é acompanhado por um
processo de concentração da terra com três efeitos sobre a pequena propriedade e produção
familiar: (1) a perda da propriedade familiar pela impossibilidade de reproduzirem-se enquanto
proprietários; (2) a tecnificação da pequena produção subordinada à agroindústria, com liberação de
força de trabalho familiar que emigra; e (3) a queda do excedente de valor retido pelo produtor
familiar –após a reposição dos custos de materiais, força de trabalho de terceiros e juros –
inviabiliza a reprodução família, forçando a redução do tamanho da família pela migração seletiva
de seus membros.
Esses processos intensificam as migrações rural-urbana e rural-rural, colocando os migrantes em
situação de reduzido, se não nulo, poder de barganha na definição de suas condições futuras de
reprodução econômica e social. De uma forma ou de outra os atuais sem-terra ou seus pais e avós
sofreram as pressões e tensões desses processos. Essa é a razão pela qual daremos destaques a esse
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IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
período, conhecido na literatura como modernização tecnológica socialmente conservadora ou
ainda como o período da Revolução Verde.
A partir dos anos 1950 e após a crise do início dos anos 1960 que levou ao Golpe Militar de 1964,
delineia-se um novo padrão de organização da produção agrícola. A bibliografia vai referir-se a ele
de diversas formas. Destacamos algumas palavras chaves para darmos uma idéia dessas mudanças:
acumulação agroindustrial, complexos agroindustriais, cadeias agroindustriais, maquinação e
quimificação do campo, industrialização ou tratorização do campo, proletarização do trabalho no
campo, ampliação dos bóias-frias, favelização das periferias das cidades, migração rural-urbana,
desaparecimento do campesinato, crédito rural subsidiado.
As políticas formuladas pelas elites do Golpe Militar e pelos governantes nos anos 1970
conformaram os processos acima referidos. Nesses processos a grande propriedade (da plantação e
do latifúndio exportador) é estimulada com farto crédito subsidiado com juros negativos a se
estruturar como empresa capitalista. Utilizando a força de trabalho assalariada, temporária e
permanente, tende a eliminar os moradores parceiros de seu interior. As médias e, principalmente,
as pequenas propriedades autônomas (o campesinato tradicional autônomo e o minifúndio
produtores de alimentos para mercado interno) são estimuladas a integrarem-se ao dinamismo das
agroindústrias e das formas cooperativas empresariais e a se tecnificarem.
No caso da produção agrícola organizada sob a forma do trabalho familiar (de pequenos
proprietários ou posseiros), a capacidade de competição do produtor direto vai depender
fundamentalmente do mercado de terra (funcionamento ou constituição), do mercado de insumos
agrícolas, do mercado financeiro e do mercado dos produtos e a capacidade de consumo, do
mercado de bens de consumo a que têm acesso.
Nessa situação, esses mercados podem vir, em seus limites, funcionar de uma forma que elimina a
possibilidade desse pequeno produtor reter, de fato, a renda da terra e a taxa de lucro vigente na
atividade onde realiza seu trabalho. Essa forma de organização de produção tende a funcionar, por
sua posição nesses mercados, com renda da terra nula e lucro zero. O que sobra após o acerto de
contas de compras e vendas só dá para garantir a subsistência da família, quando têm sucesso. Não
é apenas uma questão de ignorância ou incompetência. O pequeno patrimônio produtivo nesses
mercados imperfeitos tem pequeno poder de competição e, regra geral, tende à impossibilidade
econômica.
Se pensarmos em termos históricos, podemos dizer que os agricultores familiares ganharam
autonomia frente aos antigos proprietários de terra e antigos comerciantes, mas integram-se em
mercados e complexos agroindustriais em condições subalternas. Ao passarem a depender cada vez
mais dos mercados entram, de um lado, em uma competição desigual em mercados dominados
pelas grandes empresas, grandes produtores e grandes compradores e, de outro, ao tecnificarem-se,
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IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
tendem a se integram economicamente à lógica da agroindústria, formando o conjunto de
agricultores integrados.
Ao nível mais concreto das relações entre o processamento agroindustrial e a produção agrícola
familiar definem-se situações que se caracterizam por estar o núcleo de poder dos diferentes
complexos em suas esferas industriais, ou ainda econômico-financeira, sem visibilidade local, às
vezes nem nacional.
No geral, as agroindústrias atuam como um oligopsônio (poucos grandes compradores e muitos
vendedores pequenos) onde a competição pela matéria-prima agrícola dificilmente se realiza pela
competição por melhores preços pagos aos produtores vendedores. As condições diferenciadas dos
contratos de compra e venda buscam fortalecer os vínculos entre fornecedor de matéria prima, o
agricultor familiar integrado, e a agroindústria compradora.
O contrato de compra e venda tende a se generalizar nas relações entre os pequenos produtores
familiares e a agroindústria processadora. As formas mais usuais de dominação, ou seja, do maior
poder da agroindústria, dão-se: (a) através do fornecimento (gratuito ou não) de assistência técnica
que assume um duplo sentido ao vincular o produtor a uma determinada empresa, de um lado, e ao
exigir e incentivar o uso de insumos modernos, de outro; (b) através do fornecimento de crédito ao
produtor, a empresa garante, de um lado, o compromisso de venda para saldar as dívidas e, de
outro, a reprodução das condições de reprodução do capital constante da pequena produção e,
conseqüentemente, sua tecnologia; (c) pela fixação do preço do produto, que é estabelecido, regra
geral, sem intervenção dos sindicatos dos produtores diretos, prevalecendo os interesses das
empresas e os interesses hegemônicos mais amplos configurados na atuação do Estado; (d) pelas
condições ligadas à “classificação” do produto, (que implicam em diferentes preços) e pelas
medidas de pagamento (peso, volume etc). Esse processo tem cada vez mais sido conduzido pelas
empresas agroindustriais.
A antiga sujeição do trabalho familiar dos parceiros moradores no colonato do café e na morada
da cana como que são substituídos pela sujeição indireta do trabalho familiar ao mercado e ao
capital agroindustrial, sem ganhos significativos em seu poder de competição. Essa sujeição
indireta define o grau de exploração a que estão submetidos e só pode ser explicada ou entendida se
reconhecermos que o grande e o pequeno patrimônio tem poderes diferentes nos mercados.
Na conjuntura dos anos 1980 e 1990, oriundas de demandas sociais dos sem-terras e com os
processos políticos das ocupações de terra, ampliam-se os assentamentos de reforma agrária.
Esperamos ter destacado que as noções de agricultura familiar e de assentamentos rurais
pressupõem processos sociais distintos.
Resumindo o argumento.
A primeira noção refere-se a formas sociais já constituídas, como aquelas assemelhadas ao
campesinato tradicional, acima referenciadas. Essas formas já estão integradas e sujeitas à lógica
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IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
Feagri/UNICAMP, 2009
competitiva desta integração, seja no interior dos complexos agroindustriais seja nos mercados
agrícolas. As redes de relações e as redes de poderes, mesmo que assimétricas, das instituições
sociais nas quais os agricultores familiares estão envolvidos são produtos históricos de longo prazo.
A segunda noção, de assentamentos rurais, está associada ao processo social e político de acesso à
terra e de constituição de novas formas sociais de organização produtiva e de integração social, os
assentamentos. A noção de assentamentos rurais está tradicionalmente associada aos processos
políticos de reforma agrária, colonização e de reassentamento de populações (p. ex. motivados por
construções de hidroelétricas e demarcação de terras indígenas...). Tais processos pressupõem uma
ação reguladora e conformadora do Estado, portanto uma política específica.
Na atualidade, no Brasil, o movimento dos sem-terra imprime uma nova característica e instituições
especificas de execução, como é o caso da própria história do Incra, do Projeto Lumiar e agora da
ATES. O Estado é chamado a legitimar e reconhecer (ou a deslegitimar e punir) as ocupações de
terra indo, portanto, a reboque dos movimentos sociais (ou dos interesses ruralistas da elite
dominante).
Vista como identidade complexa, a identidade do agricultor-assentado só poderá ser entendida nas
relações sociais complexas que a compõem. Introduzir essa reflexão dando destaque aos valores
que fundam o sentido de vida, de natureza e suas visões de mundo era um dos nossos objetivos. Do
lado da historia incorporada, o que fizemos foi levantar alguns condicionantes históricos e
políticos que poderiam estar presentes tanto na mentalidade das elites brasileiras quanto nas
mentalidades das diferentes formas sociais da agricultura familiar brasileiras. Essas visões do que
seria o mundo dos agricultores familiares e os seus lugares subalternos no todo social indicariam
tanto como a elite lidaria com eles, bem como eles lidariam com suas próprias vidas. Do lado
história objetivada, procuramos identificar os movimentos das estruturas sociais procurando
localizar o espaço subalterno e de pouco poder competitivo que conformam os espaços sociais da
agricultura familiar. Procuramos também distinguir as formas conformadas historicamente como
agricultores familiares, já articuladas nos mercados, nas sociabilidades cotidianas de suas regiões,
mesmo que em condições subalternas, daquelas que estão sendo constituídas pelos processos
recentes de formação dos assentamentos. Aqui, a grosso modo, parece que tudo está por ser
constituído. No entanto os espaços sociais de integração regionais, econômicos e políticos, e
mesmo culturais são os mesmos espaços historicamente subalternos vividos pelos agricultores
familiares. Alguns estudos recentes já visualizam algumas regiões
com densidade de
assentamentos. Identificando impactos econômicos, sociais e políticos no entorno destas regiões.
Cumpre ainda reconhecer que, apesar de sujeitos à lógica competitiva dos mercados imperfeitos, a
unidade familiar, seja nas formas tradicionais da agricultura familiar seja nas formas assentadas não
é apenas uma unidade de produção e nem é também uma unidade empresarial, que se orienta pela
maximização dos lucros.
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Como apontam vários analistas a lógica mais importante é a lógica social da reprodução dos laços
familiares, a educação dos filhos, submetendo assim as decisões econômicas aos valores e
necessidades familiares e não a uma suposta melhoria de produtividade e competitividade. O jeito
de identificar-se como pequeno em muito de suas falas reflete o reconhecimento de seu pouco
poder competitivo e do lugar subalterno que ocupa na hierarquia social. O ser pequeno está
associado a vivências de altos riscos, de incerteza e de impossibilidades vividas por avós, pais e por
ele próprio. Certamente não é a lógica empresarial do lucro e da produtividade e nem a lógica da
racionalidade científica que determina suas decisões.
3. A identidade complexa do assentamento
Pensamos que um assentamento, como fenômeno social presente, no espaço e no tempo, pode ser
visualizado como uma representação social de uma comunidade duas ordens de complexidade, que
denominamos de restrita, para captar as relações internas e locais, e ampla, para ressaltar a
presença de das instituições externas, nacionais e globais. Apesar dessa separação analítica não é
possível a identidade do assentamento, por exemplo, é um assentamento das famílias assentadas e
do Incra recebendo, portanto influências dos valores das pessoas assentadas e dos valores e
interesses governamentais. A identidade assentamento seria assim o resultado da expressão de
interesses das famílias assentadas e do governo, mas não só. Por exemplo, há disputas de
influências religiosas de diferentes igrejas e cultos, bem como práticas de benzedeiras (os). Há
disputas entre diferentes instituições da sociedade civil, tanto de diferentes organizações dos semterra, sindicatos, ongs, universidades. Poderíamos ir assim listando as influências do mercado, dos
agentes políticos partidários, de lideranças municipais e dos técnicos, educadores, agentes de saúde,
etc. Todos esses atores sociais estão presentes (ou ausentes) nas relações que se estabelecem entre
as diversas famílias assentadas e suas organizações associativas, seja de representação do
assentamento, seja em associações de comércio e produção. Ou seja, cada família, toma suas
decisões em relação à educação, saúde e lazer, suas prioridades de consumo e trabalho, e suas
atividades produtivas dentro desse emaranhado de relações sociais e dentro dos sistemas de
hierarquias estabelecido no interior da própria família.
Cumpre esclarecer que o sentido imprimido o termo assentamentos depende de quem o usa. Por
exemplo, para os movimentos que fazem luta pela terra, um assentamento é sinônimo de terra
conquistada. Do ponto de vista do Estado, o termo indica uma área de terra destinada a um
conjunto de famílias sem-terra como forma de solucionar um problema fundiário. Para os ruralistas
vai significar outra coisa, algo como terra perdida ou invadida. Para os assentados o assentamento
vai se constituir como um lugar de vida.
Na complexidade restrita, a identidade da comunidade assentamento é representada como um
ambiente social, onde a vivência humana é construída na confluência entre a vida no ecossistema
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do assentamento e nas diferentes parcelas individuais, bem como nos espaços coletivos. Essas
vivências refletem experiências particulares aos sentidos dos corpos e mentes, podendo mesmo
fazer distinguir núcleos dentro dos assentamentos maiores e mesmo dar sentido a diferentes
associações de assentados. Algumas famílias podem estar mais próximas da escola, da igreja, da
estrada, bem como podem estar mais próximas do técnico, do pastor ou padre, do pessoal do Incra,
dos políticos locais, ou ainda de seus vizinhos. Apesar disso, a própria natureza da constituição do
assentamento (a propriedade jurídica anterior da área, os equipamentos anteriores, a ocupação, o
acampamento, a desapropriação e a distribuição dos lotes e a construção de casas e início das
plantações e criações) coloca todos, pelo menos até a emancipação do assentamento, como uma
mesma comunidade, independente mente das possíveis diferenças que destacamos acima.
Na elaboração aqui apresentada a ambiência social constitui-se como uma cultura e uma identidade,
que poderíamos denominar assentada. As ambiências das comunidades assentadas conteriam,
assim, visões de mundo, saberes e lógicas de ações presentes nas pessoas e nas instituições que
atuam no local. A força e os poderes sociais dessas visões de mundo, saberes e lógicas de ações
orientam as relações sociais, econômicas e políticas cotidianas das pessoas destas comunidades. A
construção social do mundo do assentado, ou seja, dos microcosmos daquelas comunidades poderia
ser visto assim, como composto de ordenações sociais simbólicas, imaginárias e lingüísticas que
dariam sentido à vida das pessoas e aos espaços e entes do território ecossistêmico. De um lado,
pensar nesse sentido da vida sem pensar nas crenças religiosas das pessoas que vivem nesse lugar
seria não compreender, pela simplificação da complexidade do real, o mundo cultural dos
assentados. De outro, considerar o assentamento como uma comunidade já consolidada, significa
desconhecer as diferentes origens e valores das famílias assentadas, muitas das quais só se
conheceram no tempo recente do acampamento, da ocupação, ou do próprio assentamento. O
tempo da convivência, ou seja, o tempo do assentamento e do assentado naquele assentamento,
poderá definir os hábitos e os comportamentos já reconhecidos como bons e ruins pelos assentados.
Na fase de implantação é possível que o conhecimento mútuo seja ainda muito restrito,
principalmente se não existiam laços anteriores entre os que participaram da ocupação, dos
acampamentos, ou mesmo entre os que foram selecionados pelo Incra.
Apesar das possíveis diferenças sociais e trajetórias distintas anteriores entre os atuais assentados há
uma identidade política prévia que os aglutina. A identidade de ser sem-terra, que passa a
estabelecer os possíveis direitos de acesso à terra de trabalho e à produção de sua subsistência de
forma autônoma. Esse processo social e político é de longa duração, retoma às capitanias
hereditárias, às sesmarias, à Lei de Terra de 1850, ao trabalho escravo e a não-realização de grandes
transformações na estrutura agrária brasileira após a abolição, que já apontamos em outro momento
e que não trataremos aqui. O que queremos retomar são os processos sociais mais abrangentes
vividos pela sociedade brasileira e no nosso mundo rural que transformaram muitos brasileiros em
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sem-terra logo após a segunda guerra mundial e na grande modernização autoritária da revolução
verde. Cunhamos esta situação como autoritária para caracterizar a dominação política sob a ordem
militar de 1964 até meados dos anos 1980. São esses processos que foram vividos pelos avós, pais e
mesmo pelos atuais assentados, que anteriormente perderam seus vínculos com a terra. Foram
desapropriados de suas condições de vida anteriores.
A modernização tecnológica da agricultura do pós-segunda Guerra Mundial, dos anos 1946 ao
início dos anos 1980, se caracterizou pelo duplo processo social de expulsão da população
trabalhadora transformando-se em assalariados ou desempregados rurais ou urbanos. De um lado, a
ruptura do padrão de organização da produção anterior expulsa os parceiros moradores – a exemplo
dos colonos em São Paulo e moradores no Nordeste – das grandes e médias unidades de produção,
reduzindo de importância das formas de organização sedimentadas na posse temporária da terra
(parcerias, pequenos arrendamentos e cessão de lotes de terra à produção para consumo próprio).
De outro lado, o processo de concentração e centralização de capital é acompanhado por um
processo de concentração da terra com três efeitos sobre a pequena propriedade e produção
familiar, provocando migrações: (1) a perda da propriedade familiar pela impossibilidade de
reproduzirem-se enquanto pequenos proprietários, onde toda a família emigra; (2) a tecnificação da
pequena produção subordinada e integrada à agroindústria, com liberação de parte de força de
trabalho familiar que emigra; e (3) a queda do excedente de valor retido pelo produtor familiar –
após a reposição dos custos de materiais, força de trabalho de terceiros e juros – inviabiliza a
reprodução família, forçando a redução do tamanho da família pela migração seletiva de seus
membros em busca de novos empregos e mesmo de novas formas de integração social como o
trabalho na construção civil e no comércio, bem como, para as mulheres, como empregadas
domésticas.
A história de vidas dessas famílias certamente ampliaria em muitos esses relatos e essas lutas, que
de uma forma outra está presente nos sentimentos e valores dos assentados.
Esses processos intensificam as migrações rural-urbana e rural-rural, colocando os migrantes em
situação de reduzido, se não nulo, poder de barganha na definição de suas condições futuras de
reprodução econômica e social. De uma forma ou de outra os atuais sem-terra ou seus pais e avós
sofreram as pressões e tensões desses processos. Essa é a razão pela qual daremos destaques a esse
período, conhecido na literatura como modernização tecnológica socialmente conservadora ou
ainda como o período da Revolução Verde.
A partir dos anos 1950 e após a crise do início dos anos 1960 que levou ao Golpe Militar de 1964,
delineia-se um novo padrão de organização da produção agrícola. A bibliografia vai referir-se a ele
de diversas formas. Algumas palavras chaves presentes nesses estudos nos dão uma idéia dessas
mudanças: acumulação agroindustrial, complexos agroindustriais, cadeias agroindustriais,
maquinação e quimificação do campo, industrialização ou tratorização do campo, proletarização do
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trabalho no campo, ampliação dos bóias-frias, favelização das periferias das cidades, migração
rural-urbana, desaparecimento do campesinato, crédito rural subsidiado. Sob a hegemonia das
políticas formuladas pelas elites promotoras do Golpe Militar e dos governos dos anos 1970
instauraram-se os processos acima referidos. Nesses processos a grande propriedade, da plantação e
do latifúndio exportadores, é estimulada, com farto crédito subsidiado com juros negativos, a se
estruturar como empresa capitalista, a modernizar sua tecnologia, a utilizar força de trabalho
assalariada, temporária e permanente, repondo o fantasma do trabalho escravo contemporâneo. As
médias e pequenas propriedades autônomas, o campesinato tradicional autônomo e o minifúndio,
são estimulados a integrarem-se ao mercado e ao dinamismo das agroindústrias e das formas
cooperativas empresariais, parte deles também mudando seus processos produtivos.
No caso da produção agrícola organizada sob a forma do trabalho familiar do proprietário da terra
(os pequenos proprietários, com titulação e os posseiros, sem titulação), o sucesso e o fracasso vão
depender fundamentalmente de seu poder de competição e das possibilidades dos mercados em que
atua. No ambiente mercantil desses produtores o mercados mais importantes são:
a) mercado de terra (funcionamento ou constituição) [os processos de compra e vendas de
terras e os processos de transmissão da propriedade das terras, direitos de posses estão aqui
incluídos];
b) mercado de insumos e equipamentos agrícolas [o acesso a máquinas, equipamentos,
fertilizantes, inseticidas fungicidas, enxada, enfim todos os recursos materiais necessários à
produção que não são produzidos pelo próprio produtor estão aqui incluídos];
c) mercado financeiro [o acesso a dinheiro de empréstimo, seja para custeio (pagamentos de
insumos, força de trabalho e serviços de terceiros) ou investimento em bens de capitais e
mesmo compra de terras, seja para o próprio consumo familiar (saúde, educação, alimentos,
roupas, eletrodomésticos, lazer etc.) Lembrar aqui que a venda da produção agrícola, que
traz dinheiro ao produtor, é sazonal. O consumo familiar é diário, e os outros gastos de
custeio e investimento são anteriores à colheita e à venda da produção.] ;
d) mercado dos produtos (agrícolas e não propriamente agrícolas, como artesanatos); e,
e) mercado de trabalho [tanto relativo ao pagamento de serviços de outros que não sejam da
família, quanto de possíveis empregos urbanos ou rurais para membros da família, cujos
salários e recebimentos passam a serem necessários e fundamentais para a reprodução
social, inclui-se aqui as aposentadorias.].
Podemos dizer que sua inserção nesses diferentes mercados define o nível de mercantilização de
sua vida, ou seja, de sua reprodução social. Tal nível representa o quanto ele depende dos
mercados, lembrando que parte de sua vida pode ser produção para auto-consumo, seja produtivo
(sementes, adubos, etc., para uso próprio) seja familiar (cereais, carnes, verduras, frutas, etc.,
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IV Jornada de Estudos sobre Assentamentos Rurais
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consumidos pela família). Pode-se também dizer que quando maior é o grau de especialização em
um só produto (monocultura), maior é a dependência ao mercado e ao dinheiro.
Sem pretendermos apresentar teorias a respeito das diferentes formas competitivas nesses mercados
só queremos destacar que os poderes de competição nesses mercados são desiguais. São mercados
imperfeitos, muitos diferentes da crença ideológica de que frente aos mercados somos todos iguais
e de que atuamos em mercados perfeitos.
Enquanto produtores os agricultores familiares, assentados ou não, representam pequenos
patrimônios produtivos com baixo poder de competição, enquanto consumidores são pequenos
consumidores. Essas posições subalternas nos mercados explicam parte dos baixos preços recebidos
por seus produtos, e os altos preços pagos por insumos e equipamentos, bem como as altas taxas de
juros e custos bancários pagos por esses produtores-consumidores, exceto quanto eles se tornam
beneficiários de políticas específicas, como parece ser o caso atual do Pronaf.
Nessa ambiência mercantil é difícil ou quase impossível que o agricultor retenha algo assemelhado
à renda da terra e ao lucro. Sua renda liquida, após o desconto de seus custos produtivos mal
corresponde a um salário anual de algumas categorias urbanas de baixa renda, ou seja, corresponde
a um salário de subsistência, como advoga a ideologia de subsistência que anteriormente
destacamos. Nesse contexto podemos dizer que apesar de produtores independentes, eles
encontram-se sujeito à uma taxa de exploração social assemelhada aos assalariados urbanos e
rurais.
Se pensarmos em termos históricos, pode-se dizer que os agricultores familiares vão ganhando
autonomia frente aos antigos proprietários de terra e antigos comerciantes. Ao passarem a depender
cada vez mais dos mercados entram, de um lado, em uma competição desigual em mercados
dominados pelas grandes empresas, grandes produtores e grandes compradores e, de outro, são
integrados economicamente à lógica da agroindústria em condições subalternas.
Só para dar um exemplo da complexidade da sujeição mercantil à qual se tornam submetidos,
tomemos o contrato de compra e venda que utilizado pelas agroindústrias em várias situações. Os
complexos agroindústrias atuam como um oligopsônio (um pequeno número de grandes
compradores – as agroindústrias da região – e um grande números de pequenos vendedores – os
fornecedores de matéria prima –). A competição entre as agroindústrias pela matéria-prima
agrícola, quando não é o caso de existir uma só agroindústria compradora, dificilmente se realiza
pela competição por melhores preços pagos aos fornecedores. São as condições diferenciadas dos
contratos de compra e venda que buscam fortalecer os vínculos entre fornecedor de matéria prima e
uma determinada agroindústria compradora, estabelecendo os compromissos entre fornecedor e
agroindústria. As regras do contrato são estabelecidas pela agroindústria e faz parte da estratégia
competitiva daquela agroindústria frente às outras agroindústrias.
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Nos contratos de compra e venda entre os pequenos produtores familiares e a agroindústria
processadora, as formas mais usuais de dominação, sujeição ou integração dão-se:
(a) através do fornecimento (gratuito ou não) de assistência técnica que assume um duplo
sentido ao vincular o produtor a uma determinada empresa, de um lado, e ao exigir e
incentivar o uso de insumos modernos, de outro;
(b) através do fornecimento de crédito ao produtor, a empresa garante, de um lado, o
compromisso de venda para saldar as dívidas e, de outro, a reprodução das condições de
reprodução do capital constante da pequena produção e, conseqüentemente, sua tecnologia;
(c) pela fixação do preço do produto, que é estabelecido, regra geral, sem intervenção dos
sindicatos dos produtores diretos, prevalecendo os interesses das empresas e os interesses
hegemônicos mais amplos configurados na atuação do Estado;
(d) pelas condições ligadas à “classificação” do produto, (que implicam em diferentes preços)
e pelas medidas de pagamento (peso, volume etc). Esse processo tem cada vez mais sido
conduzido pelas empresas agroindustriais.
A sujeição do trabalho familiar residente do colonato do café e da morada da cana são
historicamente substituídos pela sujeição indireta do trabalho familiar ao mercado e ao capital
agroindustrial, sem ganhos significativos ao poder de competição de seus herdeiros históricos, os
atuais agricultores familiares e as formas assentadas. É tal subordinação que estamos aqui
denominando de sujeição mercantil das formas contemporâneas da agricultura familiar.
Cumpre-no reter aqui que na ambiência social na qual se dará a assessoria técnica aos agricultores
assentados estarão presentes (de formas diferenciadas segundo o assentamentos, a região etc), esses
condicionantes de mercados, incluindo os acessos a eles. É nesse ambiente social que o agricultor
familiar aciona seus saberes produtivos e organizacionais, para produzir e para ter e reproduzir
socialmente uma família, e dar conta dos problemas da coletividade que é a unidade assentamento.
Não daria para considerar essas instâncias como separadas.
A incompreensão dessa complexidade, que une nas decisões familiares os problemas de sociais e
culturais da família com os problemas econômicos da unidade de produção, tem levado a
equívocos na compreensão dos processos. Um delas é considerar e afirmar, que esses atores sociais
não têm lógica ou racionalidade. Esta crença na ignorância e na falta de racionalidade dos setores
subalternos da agricultura brasileira deram legitimidade das políticas intervencionistas da extensão
rural e na legitimação de uma ideologia de subsistência. O que se ensinava nas escolas superiores
de agricultura é que a missão do agrônomo era levar o conhecimento técnico e da administração
racional para o agricultor e da economista doméstica era levar o conhecimento da administração
racional da casa e da família para a mulher do agricultor.
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Um dos desafios postos pela atual política de ATES dirigida aos assentamentos propõe a
construção conjunta de conhecimentos, visando uma sustentabilidade não só econômica, mas
também social e ambiental.
Cumpre notar, no entanto, que apesar de historicamente recentes, os assentamentos são complexos
sociais, onde não atuam apenas os técnicos agropecuários e os agricultores familiares, que não
visam apenas produção. Cada assentamento, passando ou não por processos anteriores de lutas em
acampamentos e ocupações, com processos de desapropriações longos ou curtos, pacíficos ou
conflituosos, constituiu-se com a presença de órgãos e técnicos governamentais – e suas redes de
poderes –, de movimentos organizados de sem terra e de sindicatos de trabalhadores rurais, de
núcleos religiosos, de lideranças as mais diversas, podendo ainda incluir outras redes sociais de
importância seja aos níveis educacionais, de saúde, de comércio e políticas.
Em que sentido a noção de sustentabilidade vai, na prática, garantir e promover o progresso social
em um sentido amplo ou apenas repetir o passado visando apenas a subsistência ainda é incerto. O
resultado futuro não está dado e vai depender dos recursos destinados à execução dessas políticas,
bem como da luta constante dos atores sociais locais e nacionais em favor dos setores assentados,
inclusive dos próprios técnicos e assentados e suas organizações.
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