Discurso do Desembargador Milson Coutinho ( 05/11/2008 )

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DISCURSO DO DESEMBARGADOR MILSON COUTINHO, EM 04 DE OUTUBRO
DE 2008, POR OCASIÃO DOS 195 ANOS DE INSTALAÇÃO DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO MARANHÃO
Senhoras e Senhores,
Cento e noventa e cinco anos de vida institucional! Quase dois séculos!
Falta um lustro para que este terceiro tribunal judiciário de segunda instância mais
antigo do Brasil complete seu glorioso bicentenário. Duzentos anos, uma grande
efeméride, permeada de altos e baixos, com o destaque histórico de que a Corte
mais serviu sem ser servida e mais julgou sem ser julgada. Não obstante, por
ordem do poder supremo do Imperador, ora foi independente, pra sinuosa e dúctil.
Duas centúrias são, todavia, mera gota d´água no oceano da longa e tormentosa
trajetória do Judiciário neste planeta azul, se levadas em conta a origem e a
evolução da humanidade, equação até hoje não resolvida por sucessivas gerações
de gênios da paleontologia, antropologia, história, arqueologia e ciências afins.
O que se sabe, a partir do surgimento dos primeiros caracteres que evoluíram para
a escrita, na palavra abalizada do jurisconsulto Caio Mário da Silva Pereira, é que
onde estiver a sociedade humana estará o Direito. Ubi societas, ibi jus. Diz-nos o
festejado escritor que “em todo tempo, e tão longe quanto o investigador mergulhe
no passado, onde quer que se encontre um agrupamento social, onde quer que os
homens coexistam, seja na célula menor que a família, seja na unidade tribal, seja
na sociedade estatal ainda em estado rudimentar, estará presente o fenômeno
jurídico”. E assim foi, e assim é, onde estiver a justiça também estará o juiz – ubi
jus, ubi judex.
Não comporta, porém, para a brevidade desta fala, o levantamento da história da
Justiça, a partir do homo sapiens, tarefa para milhares de páginas e ampla
nominata de autores.
Falo é que, só no reinado dos príncipes da Espanha ao tempo dos Felipes, que
governaram Portugal anexado à Coroa Ibérica, é que foi criado o primeiro Tribunal
da Relação da Bahia, em 1609. O segundo foi o Tribunal da Relação do Rio de
Janeiro, instituído pelo rei português D. José I, em 1750, e o terceiro o Tribunal da
Relação do Maranhão, instituído pelo príncipe Regente D. João, por Carta Régia
de 23.8.1811, Regimento de 13.5.1812 e instalação em São Luís neste glorioso 4
de novembro, no distante ano de 1813. A Relação foi inaugurada no prédio do
Senado da Câmara, prefeitura atual, com 7 desembargadores, entre os quais o
bisavô do poeta maranhense Raimundo Correia, o doutor de leis José da Mota de
Azevedo Correia. São Luís, naquele ano, contava 18 mil habitantes, 2 mil brancos
e o restante negros, índios e mulatos, mas já era a maior potência econômica do
Norte do Brasil.
O Tribunal, no Império, sofreu abalos sísmico-políticos até por questões ridículas, a
exemplo da crise e do pedido de demissão de seu primeiro presidente Antonio
Rodrigues Veloso, pelo fato de haver o governador Paulo da Silva Gama proibido o
desembargador de se ajoelhar, na Igreja da Sé, em cadeiras genuflexórias com
almofadas, em frente ao altar-mor.
No governo maranhense do Marquês de Sapucaí, em razão da Revolta da
“Setembrada” de 1831, os membros do tribunal foram todos demitidos, por
determinação dos rebeldes brasileiros, contra a presença de magistrados lusitanos
na Corte maranhense.
Em 1876 o desembargador Pontes Visgueiro, nascido em Alagoas, matou e
esquartejou em São Luís sua amante Mariquinha e respondeu a processo perante
o Tribunal da Corte, sendo condenado à prisão perpétua.
Proclamada a República em 1889, a Relação foi dissolvida, exonerados seus
integrantes e nomeados somente juízes ligados politicamente ao credo
republicano. Com a ponta da espada de Floriano Peixoto na garganta do Supremo,
a Corte amarelou e negou o HC impetrado por Rui Barbosa em favor de presos
políticos, em 1893.
Vitoriosa a Revolução de 1930, a Junta Governativa chefiada por Reis Perdigão
dissolveu o Tribunal e criou um esquisito “Tribunal Revolucionário”, com seus
integrantes denominados “Delegados da Revolução”. O ato foi logo revogado, por
ordem de Vargas.
Perseguições inomináveis ocorreram durante o período ditatorial de Floriano e
Getúlio, vindo a repetir-se no regime do golpe de 1964, com aposentadoria forçada
e disponibilidade de magistrados, acusados de subversivos e ímprobos. Pior ainda:
juízes e tribunal, a serviço dos oligarcas Benedito Leite, Urbano Santos e do
Vitorinismo violentaram as constituições e judicializaram o partidarismo jacobino.
Prevaleceu o terror do linguajar de arrieiro e da retórica de trapiche.
Em uma avaliação crítica isenta, força é convir que esta Casa, nos seus 195 anos,
nem sempre julgou com serenidade. Na monarquia, a forca só serviu para executar
negros e mulatos.
No Império e na República Velha, lamentavelmente, a política partidária invadiu os
cancelos da Justiça, e todo e qualquer magistrado, sem pedido de demissão,
poderia ser deputado, governador ou senador, e isto foi altamente negativo para o
exercício da imparcialidade do juiz, em questões eleitorais.
As regras eram insolências e descomposturas entre essas autoridades, disputas
de poder umas contra as outras, prisões e excomunhões arbitrárias e humilhantes
de desembargadores d´El-Rei, e, para maior gravame, a usurpação da jurisdição
por parte de juízes de terra, leigos e corruptos, eleitos para mandato trienal, pela
Câmara Municipal.
Quando governaram o Maranhão D. Francisco Manuel da Câmara, Dom José
Tomás de Meneses e finalmente o vice-almirante Paulo Gama, mais três
desembargadores foram presos e degredados para selvas inóspitas do Maranhão,
infestadas de índios assassinos, cascavéis, onças e malária, fatos que obrigaram o
príncipe regente, Dom João, a abrir devassas, em 1811, demitir governadores e
decidir-se pela instituição de um Tribunal que pusesse fim àquelas praticas
infames da política de campanário.
Em meados de 1813 desembarcaram no Maranhão cinco desembargadores
enviados pelo trono, já no Rio de Janeiro, para que se instalasse, como de fato
ocorreu, o Tribunal da Relação do Maranhão, com jurisdição plena do Ceará ao
Amazonas, isto é, metade do território do Brasil atual.
Juraram e tomaram posse, naquela manhã de sol equatorial e de ventos gerais, o
chanceler Antonio Rodrigues Veloso de Oliveira, nosso primeiro presidente e seus
colegas Lourenço de Arroxelas Vieira Malheiros, José da Mota de Azevedo
Correia, João Xavier Cardoso e João Francisco Leal. Os dois restantes, João da
Costa e Joaquim de Castro foram empossados em 1814.
Os desembargadores que tomaram assento nas poltronas desta Corte, de 1813 a
1893, foram homens de alto saber jurídico, a maioria independentes e isentos,
outros nem tanto, e cito, aqui, por amostragem, estes nomes: Veloso de Oliveira,
escritor, deputado às Cortes de Lisboa e à Câmara do Império; José da Mota
Azevedo, membro da Casa da Suplicação, latinista e canonista de primeira plana;
Francisco de Paula Duarte, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e que aqui
se casou e foi pai do ministro Viriato Bandeira Duarte e avô do jurista Belfort
Duarte; Manoel Inácio de Lacerda, Barão de Pirapama, senador do Império;
Joaquim Vieira da Silva, maranhense, deputado, ministro e senador do Império; D.
Francisco Baltazar da Silveira, ministro do Supremo Tribunal de Justiça e promotor
da Coroa que acusou o homicida desembargador Pontes Visgueiro; Francisco
Gonçalves de Campos, paraense, Visconde de Jary; José Pereira da Graça,
Ministro do Supremo, Barão de Aracati, avô materno do escritor maranhense
Graça Aranha; José Ascenso da Costa Ferreira e Joaquim da Costa Barradas,
maranhenses, ministros do Supremo Tribunal Imperial; Albino José Barbosa de
Oliveira, grande jurista, tio de Rui Barbosa. Estes, no Império. Na República, a
plêiade registra renomados jurisconsultos maranhenses e de outros estados.
Assim, de 1813 a este dias são passados estes históricos 195 anos. O Tribunal
mudou de nome a partir da proclamação da República, nesta ordem:
A Carta Federal de 1891, que substitui a Constituição Imperial de 1824, previu a
criação nos estados-membros, de Cortes denominadas SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA. A do Maranhão, depois de várias tentativas de instalação, afinal
inaugurou sua atividade em 27 de agosto de 1893.
Aplaudido e contestado, em virtude dos ranços do regime imperial abolido, e das
novas idéias republicanas, seguiu sua caminhada processando e julgando as
ações de sua competência originária e os recursos de lei, até o ano de 1934,
quando foi extinto pela Constituição democrática promulgada naquele ano. Foram
criadas as Cortes de Apelação que substituíram os extintos STJs. Sobrevindo o
golpe de estado de 1937, Vargas, novamente dirigente solitário da nação
brasileira, outorgou ao Brasil uma Constituição ditatorial, redigida pelo jurista
Francisco Campos, gênio de nossas letras jurídicas, inteiramente a serviço da
força. Por ditames daquela Carta da Ditadura, extinguiram-se as Cortes de
Apelação de criaram-se os Tribunais de Apelação.
O Tribunal de Apelação maranhense alcançou o ano de 1946, quando nova
Constituição democrática alterou a ordem jurídica nacional, recriou o Supremo e a
Justiça Federal de 1ª instância e, nos Estados, instituiu os Tribunais de Justiça,
que vêm até os nossos dias.
Resumidamente, o Tribunal de Justiça do Maranhão, implantado em 1813, após o
rompimento de crises políticas, revoluções, golpes de estado e outras turbulências,
conseguiu sobreviver a tudo isso e já escreveu a sua própria história recamada de
altos e baixos, pontos dignos de louvor e notas isoladas condenáveis, como sóe
acontecer com tudo que diz respeito ao falível gênero humano.
Verdade seja dita, porém, que seus atos negativos e sua conduta positiva, pesa
esta última em favor da Corte maranhense.
A Carta Cidadã de 1988, com todos os seus defeitos, conferiu ao Judiciário a sua
autonomia política, administrativa e financeira. Os avanços são visíveis. O juiz é o
livre intérprete do Direito, e nunca o alter-ego das paixões político-partidárias de
quem quer que seja.
Disse, em São Luís, certa vez, o ministro Carlos Veloso, em palestra na FIEMA,
que o Século XIX foi o do aristocrático Legislativo Imperial, que tudo podia e tudo
mandava; que o Século XX foi o do Executivo, tirano e despótico, dono dos demais
poderes; e que o Século XXI, que se inicia, será o século de afirmação do Poder
Judiciário, a última trincheira dos excluídos, a porta derradeira dos sedentos de
Justiça.
Senhoras e Senhores, afirmo com a força da minha inabalável convicção
democrática, e com fé inquebrantável nos postulados da verdadeira justiça, que
em um Estado Democrático de Direito, a Lei Suprema é a rainha de todos os reis,
e nos seus sagrados mandamentos é que se guardam os intocáveis cânones da
soberania nacional e das liberdades públicas, no silêncio de suas palavras
escritas, onde se contêm as supremas normas de comando constitucional.
E o magistrado é o intérprete que vive, pensa, pulsa, enxerga, fala, sentencia e
executa o mandamento da Lei Magna, com a força isenta do seu caráter, seu alto
saber jurídico e a irrenunciável obrigação de distribuir justiça sem reticências ou
nódoas aos seus próprios semelhantes.
No Século XVII, um ouvidor do crime da Bahia ordenou a prisão do advogado e
poeta Gregório de Matos, acusado da simulação de roubo de sua própria escrava.
O fato, porém, era outro: um coronel libidinoso, senhor de terras e engenhos,
mandou seu fâmulo seqüestrar a bonita mulata do poeta, seguramente para fins de
lascívia. O juiz, amigo e protegido do coronel, mandou soltar o escravo ladrão e
prender o advogado, que era a vítima.
Vivia-se a época da depravada miscigenação da primitiva sociedade brasileira,
permissiva, aristocrática, alcoviteira, escravocrata, frandesca e frascária. Esse
pecadilho, porém, foi benéfico. Tanto que o Brasil é, hoje, a mais bela e fraterna
democracia de 190 milhões de brancos, negros, mulatos, mestiços e cafusos,
indissoluvelmente mesclados pelo DNA de três lindas raças!
Por esse tempo assume o cargo de juiz do crime, no Tribunal da Bahia, o
desembargador Belchior da Cunha Brochado, e para este o poeta Gregório de
Matos ajuizou um habeas-corpus, onde narrou o fato e concluiu a petição com este
soneto epigramático:
Senhor doutor, muito bem-vindo seja
A esta mofina e mísera cidade.
Sua justiça, agora, a equidade
E letras a todos cause inveja.
Seja bem-vindo, porque veja,
O maior disparate e iniqüidade
Que se tem feito em uma e outra cidade,
Desde que há tribunais e quem os reja.
Quem me há de suceder nestas montanhas,
Com um juiz de leis tão pouco visto,
Como previsto em tramas e maranhas?
É ministro de império meio e misto
Tão Pilatos no corpo e nas entranhas.
Que solta a Barrarás e prende a Cristo.
Fez-se justiça. O poeta foi solto e a poesia jurídica esmagou a brutalidade da
injustiça.
Deixamos, aqui, estas reflexões. Senhores, quando a Justiça se ajoelha, as
ditaduras de esquerda ou de direita matam o Estado Democrático de Direito e
sepultam as liberdades civis da humanidade.
Ponto é salientar que o nosso livro Ouvidores-Gerais e Juízes de Fora (1612-1812)
seria lançado hoje. Como já dito, o Senhor Presidente Raimundo Cutrim adquiriu a
pequena edição e fez-la distribuir a todos os tribunais da República e à
magistratura do Maranhão inteiro.
Em gesto litúrgico simplesmente simbólico, autografamos três exemplares
destinados aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, entrega que fazemos
agora a cada uma dessas augustas autoridades presentes a este evento magno.
Finalizando, afirmamos que é hora de pensar e repensar a Justiça no Século XXI,
tarefa para esta e as novas gerações deste Excelso Pretório, a fim de que se
cumpra a profecia do ministro Carlos Veloso. É verdade que é muito bom o
desempenho da maioria do judiciário maranhense, mas não basta. Busquemos
todos o nível da própria excelência, na rápida e sábia solução dos conflitos
humanos. E isto não é favor, senão obrigação imprescritível da honrada classe dos
magistrados do Maranhão.
Disse o padre Antonio Vieira que quanto maior for a escuridão da noite, melhor
poderemos contemplar o brilho das estrelas.
Voltemos, então, nossa vista para o céu, quando certos autos nos empurram para
o labirinto das trevas e da dúvida.
As janelas são os olhos do Supremo Juiz e Criador. E quem julga com a
Constituição e as leis, e sob a inspiração divina, não comete injustiça contra o
semelhante.
Muito obrigado.
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