CLIO História – Textos e Documentos Revolução Francesa: ela inventou nossos sonhos “Os homens nascem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser fundadas a não ser na utilidade comum”. Pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a Assembléia Constituinte estabelece os direitos básicos dos franceses: igualdade perante a lei e a obrigação do Estado de defender os direitos “naturais” dos cidadãos, como a liberdade e a propriedade. A modernidade chega definitivamente à vida social. Desde a madrugada de 14 de julho de 1789, uma terça-feira, pelo menos 8 mil parisienses irados estavam reunidos na esplanada dos Inválidos. Eles queriam armas para enfrentar os soldados que, acreditavam, o rei Luís XVI estava mandando de Versalhes. O administrador não sabia o que fazer. A multidão, então, arrombou os portões e se apoderou de 40 mil fuzis e doze canhões. Mas e a pólvora para eles? Estava na formidável fortaleza da Bastilha, transformada em depósito e prisão. Para lá correram todos, em busca de munição. Quem teria, naquele momento, pensado em se apoderar daquela fortaleza inexpugnável? Pois antes do anoitecer a fortaleza caiu e com ela veio abaixo todo o Antigo Regime, representado na figura do rei e em sua corte de aristocratas inúteis. A multidão que cercou a Bastilha era muito maior que os 8 mil reunidos de madrugada na praça dos Inválidos. Mas, conforme cuidadoso recenseamento feito depois pela Assembléia Nacional, os "vencedores da Bastilha" foram não mais que oitocentos, registrados e cadastrados, com nome, endereço e profissão. Em dois dias, construíram-se 50 mil lanças para a milícia “Quando um povo é obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lha arrebataram, ou tem ele o direito de retoma-la ou não tinham o direito de subtraí-la.” Jean-Jacques Rousseau, filósofo francês, 1712-1778 Números Em 1789, a população da França alcança 25 milhões de habitantes, sendo 20 milhões de camponeses. A nobreza constitui 1,5% da população total. Paris conta com 500 000 habitantes, dos quais 110 000 são indigentes. Assim, pode-se saber, com segurança, que entre eles estavam alguns raros burgueses (três industriais, quatro comerciantes, um cervejeiro), muitos pequenos produtores independentes, artesãos, oficiais de corporação, militares em profusão. Um terço, pelo menos, era de assalariados da manufatura e da construção. O mais jovem tinha 8 anos. Uma única mulher, uma lavadeira, impedira com sua presença que a queda da Bastilha entrasse para a História como uma aventura vivida apenas pelos homens. A multidão estava inquieta desde o dia 12, quando a demissão do ministro das Finanças, Jacques Necker, foi recebida como prenúncio de que o pão se tornaria mais raro e mais caro. Foi formada uma milícia cidadã para defender a cidade, cujo objetivo era também defender os burgueses proprietários contra os ataques do rei e contra as ameaças das classes julgadas perigosas — os trabalhadores e os miseráveis. De saída, a milícia alistou 48 mil voluntários. Como não havia armas, ordenou-se a construção de lanças — e 50 mil ficaram prontas em dois dias. As reuniões sucediam-se, e havia sempre alguém propondo o recurso à força. "As armas, às armas, cidadãos", era o que mais se ouvia nos comícios. No Palais-Royal, espécie de território livre onde tudo se podia dizer, Camila Desmoulins, orador gago que empolgava como ninguém a multidão inquieta, tentava ordenar o caos. Por sua sugestão, adotou-se o verde com emblema. A multidão desfilou pelas ruas, praticamente engoliu as tropas que tentaram detê-la. As barreiras que simbolizavam a cobrança de impostos foram destruídas; suspeitos de serem açambarcadores (entre estes o convento de Saint-Lazare) foram atacados. Assim, a multidão que na manhã do dia 14 correu para a Bastilha não tinha quem a enfrentasse, a não ser a obstinação do administrador da fortaleza, De Launay, que recusou todos os apelos (inclusive de quatro comissões enviadas pela Prefeitura) para que entregasse a munição. O primeiro disparo aconteceu por volta de 13 horas. Os mais valentes romperam as correntes da ponte levadiça, que caiu. O pátio da administração foi CLIO História – Textos e Documentos invadido, mas ali os revoltosos ficaram expostos. “Nobres, vós sois o flagelo da sociedade, como sois também o inimigo da Pátria. Vossos exemplos e vossa moral levaram os costumes a um grau de corrupção nunca antes atingido. Para satisfazer, não vossas paixões, mas vossas fantasias, vós os transgredistes ao ponto de vos permitir comportamentos cujo preço é o cadafalso.” Panfleto anônimo, igual a milhares de outros em circulação, acusando a nobreza de corrupção, amoralidade, decadência. Os sans-culottes são os novos personagens da cena política. Sem os “culottes” e os perfumes dos nobres, eles são os amigos da Revolução: humildes artesãos, empregados pobres do “fauborg”, usam a lança, o sabre e o fuzil para livrar a Revolução dos seus inimigos e exigir a verdadeira igualdade entre os cidadãos. Números No início da Revolução, a posse útil da terra na França estava assim distribuída: 45%, camponeses; 20%, burguesia; 35%, nobreza e clero. Porém, em razão dos direitos feudais, a aristocracia detém a propriedade senhorial de 97% sobre todas as terras. A Bastilha não era um inferno; a vida dos presos era bem boa Às 15:30h chegou um reforço providencial: o chefe da lavanderia da rainha Maria Antonieta, um certo Hulin, reunira 36 granadeiros, 21 fuzileiros, 400 cidadãos armados e alguns canhões e comandou o primeiro ataque organizado à fortaleza. De Launay ainda pensou em atear fogo ao depósito de pólvora e mandar tudo pelos ares. Foi impedido por seus próprios soldados, que preferiram capitular e passar para o lado da Revolução. Os invasores então entraram de uma vez, desarmaram os soldados, saquearam tudo, apoderaram-se da pólvora e libertaram os prisioneiros. Estes eram apenas sete: quatro falsários, dois loucos e um filho de família rica que desonrara seu nome. Definitivamente, a Bastilha não era o inferno criado pela imaginação popular, onde se jogavam os inimigos do rei para morrer em meio a terríveis sofrimentos. Na verdade, quem podia pagar contava ali com uma vida bem razoável, com direito a boa comida, bebida e até criados. Uma prévia do que viria a ser a violência revolucionária foi encenada com o pobre De Launay. Na praça da Prefeitura ele foi agredido, recebeu um golpe de baioneta, um tiro e teve a cabeça cortada, porque a multidão queria vê-la. Contra todos os prognósticos, o movimento começava a andar fora dos trilhos. Apenas dois anos antes, em 1787, o pavio da mais clássica das revoluções burguesas, a Revolução Francesa, fora aceso por mãos nobres. Em outros tempos, tudo não passaria de um levante palaciano; no final do século XVIII, porém, a rebelião da nobreza foi o sinal esperado por outro protagonista poderoso, a burguesia, para subir ao palco da História. O período inicial da Revolução Francesa, que vai de 1787 a 1791, é a crônica desse esforço da burguesia para passar à frente dos atores antigos. As finanças reais estavam combalidas há muito tempo, mas nos dez anos anteriores haviam chegado à beira da bancarrota porque o governo francês empenhou-se em ajudar os Estados Unidos na luta pela independência. O governo estava falido. Então, pensou em taxar clero e nobreza O relatório financeiro de março de 1788 mostrava que as despesas somavam 629 milhões de libras, mas a receita alcançava apenas 503 milhões. Só os juros da dívida pública, ampliada pela guerra, devoravam 318 milhões de libras. Mais da metade dos gastos, que se agravavam ainda com a necessidade de abastecer o luxo da nobreza, na corte, com supérfluos de toda ordem. O governo precisava aumentar sua receita, mas sabia que não era possível lançar nenhum novo imposto sobre a massa da população, já exaurida. Pensou, então, em acabar com os privilégios do clero e da nobreza, que não pagavam nenhum imposto, embora fossem grandes proprietários. A França tinha então pouco mais de 25 milhões de habitantes, dos quais 80 por cento eram camponeses. Os 20 por cento restantes amontoavam-se precariamente em povoações que mal chegavam aos 2 mil habitantes. Paris, com 650 mil, era uma exceção — e uma das maiores cidades do mundo. Todas as outras eram modestas, pelos padrões modernos Lyon tinha 135 mil habitantes; Marselha, 90 mil; Bordéus, 84 mil; Nantes, 57 mil. Essa sociedade estava dividida em estados, a forma feudal de estratificação social, em que cada classe tinha seus estatutos, privilégios, obrigações e CLIO História – Textos e Documentos Brasil É enforcado no Rio de Janeiro, a 21 de abril de 1789, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Único condenado à morte entre os participantes da Inconfidência Mineira, revolta contra a dominação portuguesa, fortemente influenciada pelas idéias francesas, pelas “luzes” do século XVIII. modo de vida definidos legalmente. O Primeiro Estado era formado pelo clero, mais ou menos 1 por cento da população. Estava dividido em clero superior, formado pelos bispos, arcebispos e cardeais, tinha vida faustosa, como a nobreza, e possuía cerca de 20 por cento de todas as terras do país. O baixo clero, ao contrário, embora partilhasse dos privilégios do seu estado (por exemplo, não pagar impostos), era formado por padres muitas vezes tão pobres quanto seus paroquianos. O Segundo Estado era formado pela nobreza, dividida em nobreza de espada, tradicional e orgulhosa de linhagens que remontavam muitas vezes à alta Idade Média, e nobreza togada, formada por plebeus enriquecidos, que compraram títulos de nobreza, e seus descendentes. Compreendia 2 por cento da população, algo entre 250 e 400 mil pessoas. Apropriava-se de um terço de todas as rendas do país e tinha o monopólio dos mais altos cargos do Judiciário, da burocracia, do clero e do Exército. Os burgueses tinham dinheiro e sonhavam conquistar o poder Mais de 40 000 “Cahiers de doléances” foram escritos na campanha eleitoral para os Estados Gerais, como todo tipo de reivindicações, como esta: “Que o Terceiro Estado seja representado nos Estados Gerais por deputados escolhidos por sua ordem”. O Terceiro Estado compreendia, formalmente, todo o restante da população, mas sua facção mais destacada era a burguesia, uma classe economicamente poderosa. Apesar de participar do poder, mediante a compra de cargos e títulos, seus negócios eram tolhidos pela existência de aduanas internas e pedágios, que impediam e oneravam a circulação de mercadorias dentro do país. Ressentia-se, ainda, da existência de companhias comerciais monopolistas, controladas pelo Estado, que dificultavam sua participação no comércio externo, de um lado; e de outro havia as limitações corporativas à liberdade de trabalho que impediam a livre contratação de trabalhadores. As camadas inferiores do terceiro estado eram formadas pela plebe das cidades, um conjunto de artesãos, operários, pequenos comerciantes e pequenos empresários. Eram os sans-culottes, que teriam, mais tarde, um papel decisivo na Revolução, da qual seriam, segundo o historiador inglês Eric Hobsbawn, "a principal força de choque". Ao seu lado acumulava-se, principalmente em Paris, uma formidável e explosiva massa de miseráveis. Os camponeses formavam a classe mais numerosa e eram a base da sociedade francesa. A pobreza, entre eles, era generalizada, atingindo níveis dramáticos. O historiador Georges Lefebvre calcula que 10 por cento deles mendigavam, durante o ano todo, de propriedade em propriedade. Eram oprimidos, ainda, por mais de trezentas obrigações feudais que tolhiam completamente sua liberdade. Na metade do século XVIII, reforçou-se o direito exclusivo da nobreza aos altos cargos da administração e do Exército. A restrição pareceu intolerável ao Terceiro Estado —e foi um erro fatal cometido pelo rei Luís XVI. A nobreza quis convocar os Estados Gerais. Suicidou-se Essa combinação de miséria popular e conflito entre os privilégios aristocráticos e os interesses da burguesia tornou-se explosiva quando combinada com a crise financeira da monarquia. Em 1787, o rei tentou criar um imposto a ser pago pela nobreza, que reagiu bravamente a esse ataque a seus privilégios. Foi convocada uma Assembléia de Notáveis, formado por representantes da aristocracia e do clero, os dois primeiros estados que desfrutavam as mesmas prerrogativas, e CLIO História – Textos e Documentos “Primeiramente um cavalo deve ser escovado dez vezes com a almofaça de ferro e somente então podeis vós limpá-lo com a escova macia. Terei de escovar-vos com violência, e quem sabe se chegarei jamais à escova macia.” De um proprietário de terras russo a seus servos, em 1780. ela decidiu que só a nação inteira, representada nos Estados Gerais, poderia criar novos impostos. O rei fez de tudo para revogar a decisão — prendeu parlamentares, exilou outros tantos — em vão. A rebelião cresceu e a nobreza ameaçada tornou-se porta-voz de uma nação que já não tolerava o poder real absoluto. Em julho de 1788, isolado e pressionado de todos os lados, o governo capitulou e aceitou convocar os Estados Gerais para 1º de maio de 1789. Para infelicidade de Luís XVI, os debates e a exigência de mudanças já tinham ido tão longe que, inadvertida-mente, ele próprio levou o movimento reformista a um novo andamento ao convocar os Estados Gerais. Os deputados deviam ser eleitos em assembléias distritais, em todas as regiões da França; assim, a crise econômica, que desencadeou a crise política, passou a ser discutida por toda a nação em uma campanha eleitoral cujo tom era a denúncia do absolutismo. Formou-se então o Partido Nacional, uma frente contra a monarquia absolutista, que desejava implantar na França um regime monárquico à moda inglesa, regulado por uma Constituição. Sua organização foi eficaz, e seu comitê central, a Sociedade dos Trinta, reuniu-se desde outubro de 1788 em Paris, congregando homens unidos pela mesma vontade de mudança, como o abade Emmanuel-Joseph Sieyès; Georges-Jacques Danton; marquês de La Fayette; François VI, duque de La Rochefoucauld; Marie-Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet; Jacques-Pierre Brissot de Waiville; Adrien-JeanFrançois Duport; e Honoré-Gabriel Rigueti, conde de Mirabeau. Com a Assembléia Nacional, o poder começou a trocar de mãos Educação pública O Marquês de Condorcet defende na Assembléia seu projeto de “uma escola universal, para meninos e meninas, leiga e gratuita, capaz de respeitar a liberdade individual e estimular os talentos”. No dia 5 de maio de 1789, em sessão solene com a presença do rei, foram abertos os Estados Gerais. Na sala de cerimônias, em Versalhes — o palácio que Luís XIV, o avô de Luís XVI, também chamado Rei Sol, construíra fora de Paris —, o clero e a nobreza ocuparam seus lugares, à direita e à esquerda do rei. Para enfatizar a posição subalterna do Terceiro Estado, seus representantes foram amontoados em banquetas, separados das ordens privilegiadas por uma barreira. Luís XVI advertiu contra o "desejo exagerado de inovação". Inutilmente; abria-se ali o cenário do segundo ato do drama revolucionário. Um novo tema logo somou-se ao debate: os critérios de votação. Havia uma tendência clara de rejeição da forma tradicional de votação, como a adotada até a última vez que os Estados Gerais foram convocados, em 1614: um voto para cada estado. A nobreza e o clero insistiam no critério antigo que favorecia sua posição. O terceiro estado — que representava 95 por cento da nação — exigiu por sua vez o voto por cabeça, que daria posição de destaque à massa da orquestra política. Era o impasse: a nobreza e o clero queriam uma assembléia com poderes limitados, enquanto a burguesia queria transformá-la em Assembléia Nacional para escrever uma Constituição e impor limites ao poder do rei. Assim, decidiu tocar música própria e transformou os Estados Gerais em Assembléia Nacional, em 15 de junho de 1789, para a qual convocou solene-mente os deputados dos estados privilegiados. Era a rebelião aberta contra a autoridade real. O círculo íntimo dos colaboradores do rei aconselhou-o a tornar medidas de força, mas dividia-se quanto ao que fazer em seguida. 0 ministro Jacques Necker, um reformista da corte, recomendava algumas concessões para atrair a Assembléia Nacional. CLIO História – Textos e Documentos A burguesia tomou o poder em Paris. E os soldados aderiram Composto por Rouget de Lisle em abril de 1792, o hino dos marselheses tornou-se rapidamente o hino da Revolução. No outro extremo, o irmão do rei, que seria rei ele próprio com o nome de Carlos X, um "duro" apoiado pela rainha Maria Antonieta, defendia pura e simplesmente o restabelecimento do Antigo Regime. Temeroso de uma guerra civil de conseqüências imprevisíveis, o governo tergiversou e, sem fechar oficialmente a Assembléia, criou obstáculos para sua reunião. A sala das sessões foi fechada a pretexto de reformas. Os parlamentares refugiaram-se no salão do jogo de péia (uma espécie de squash) e juraram manterem-se reunidos até darem uma Constituição à França. O repto estava lançado, e começava a surtir efeito: 150 padres e três bispos uniram-se a eles. Luís XVI tentou, por sua vez, restaurar sua autoridade e cercado de tropas, cassou todas as prerrogativas da Assembléia. Mas esta não se submeteu e, num clímax heróico, Mirabeau recebeu o marquês de Brézé (enviado por Luís XVI para impor sua vontade), deixando claro o ânimo de seus companheiros: "Se está aqui para nos fazer sair, deve pedir ordens para usar a força, pois só deixaremos nossos postos pela força das baionetas”. A decisão da Assembléia de manter-se reunida até escrever uma Constituição espelhava o ânimo da própria nação. Apenas dois dias depois da bravata real, a burguesia parisiense erigiu uma autoridade cidadã em Paris, tomando o poder municipal à revelia do rei. Uma milícia burguesa foi formada (chamada mais tarde de Guarda Nacional, sob o comando de La Fayette), enquanto os soldados do rei desertavam de forma crescente, unindo-se aos rebeldes e colocando-se ao serviço da Assembléia Nacional. Em Versalhes, uma facção da nobreza abandonou o rei e seus pares e uniu-se à Assembléia. No dia 27, o rei teve de ceder: por ordem sua, todos os estados privilegiados juntaram-se à Assembléia que, agora, estava completa e podia executar a peça que a França queria ouvir. Em 7 de julho, a Assembléia se proclamou Constituinte. A conspiração contra a liberdade, porém, prosseguia. Luís XVI mandou cercar Paris e Versalhes com dez regimentos comandados pelo marechal François-Marie de Broglie, um brutamontes, capaz de massacrar sem remorsos à primeira ordem. O rei demitiu o ministério de Necker. E tudo veio abaixo A Constituição do Ano I A primeira Constituição da República avança no sentido da democratização política (sufrágio universal masculino) e de uma igualdade social mais efetiva, estabelecendo o bem comum como objetivo da sociedade e destinando os recursos públicos, prioritariamente, ao atendimento dos cidadãos mais pobres. No dia 11 de julho, Necker e os ministros que o apoiavam foram demitidos, e formou-se um governo de revanche, cuja estrela era justamente de Broglie. Aceso o estopim, a explosão tomou-se inevitável. A intransigência real ruiu junto com a Bastilha assaltada pela plebe. Vencido, Luís XVI dispensou as tropas, demitiu o ministério da revanche no dia 16 e chamou Necker para reorganizar o governo. Depois foi para Paris, acompanhado apenas por quatro pessoas e escoltado pela guarda militar burguesa de Versalhes. Na prefeitura, o rei não teve saída a não ser receber, das mãos do prefeito, o distintivo tricolor da Assembléia, símbolo de sua submissão à vontade do povo em armas. A queda da Bastilha foi o sinal para a revolução municipal na França, que fez repetir em todo país o que acontecera em Paris: as cidades instalaram novas autoridades, seguindo o modelo da capital. Ao mesmo tempo, a insurreição camponesa acentuouse. O "Grande Medo", de julho e agosto de 1789, varreu na prática os privilégios feudais que a Assembléia vacilava em CLIO História – Textos e Documentos O Diretório e a religião “A religião romana será sempre inimiga irreconciliável da República”. Era o que diziam os “Diretores” a Bonaparte na Itália, recomendando-lhe “destruir, se possível, o centro de unidade da Igreja romana”. “Chegou a hora da igualdade passar a foice por todas as cabeças. Portanto, legisladores, vamos colocar o terror na ordem do dia!” Robespierre, 5/9/1793 em discurso à Convenção, Números Nos onze meses de atividade da ditadura jacobina, pelo menos 300 mil pessoas foram levadas aos tribunais da Revolução. Destas, 17 mil foram guilhotinadas e 25 mil executadas sumariamente, na grande maioria rebeldes ligados à contra-revolução na Vendéia e no vale do Rhône. abolir. Combinada com a revolução municipal, a insurreição camponesa teve um efeito arrasador. 0 historiador inglês Eric J. Hobsbawm diz que "ao cabo de três semanas, desde 14 de julho, a estrutura social do feudalismo francês e a máquina estatal da monarquia francesa jaziam em pedaços". Durante dois anos, de 1789 a 1791, a revolução foi comandada pela ala mais moderada da burguesia, os girondinos. Seu domínio baseava-se, primeiro, no esforço para conter a radicalização popular e, depois, na tentativa de estabelecer uma compromisso com o rei e a aristocracia. Após a queda da Bastilha, em algumas regiões, principalmente na Alsácia, a burguesia cooperou sem reservas com a aristocracia na repressão aos levantes camponeses. Nasceu, enfim, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão Quanto ao rei, depois de 14 de julho discutiu-se qual seria o poder legislativo que a Constituição lhe reservaria. Depois de muitos debates, a Assembléia Constituinte decidiu, em 11 de setembro, dar ao monarca o direito de vetar pura e simplesmente as leis votadas no Legislativo. Os direitos feudais foram formalmente abolidos em 4 de agosto de 1789, mas só no ano seguinte foi decretado o fim da nobreza hereditária. O programa político e social da burguesia foi solenemente registrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, redigida por La Fayette e adotada em 26 de agosto de 1789. Finalmente, a burguesia impôs também um respeito irrestrito à propriedade privada. Aprovou uma lei que proibia a formação de sindicatos de trabalhadores e as greves. Restringiu severamente a participação popular, ao fixar na Constituição de setembro de 1791 as categorias de "cidadãos ativos" (os proprietários), que tinham plenos direitos políticos, e os "cidadãos passivos", sem direito de voto. A secularização do Estado completou a obra da burguesia. Parte fundamental da reforma política e administrativa, a separação entre a Igreja e o Estado traçou uma linha precisa de demarcação entre as jurisdições dessas duas instituições A Igreja (e a religião em geral) ficou limitada à administração do reino dos céus. O mundo dos homens, por seu lado, tornou-se claramente atribuição dos próprios homens, de seus interesses e conflitos. A fonte principal da soberania política desceu dos céus para a terra, e a base do direito divino, que legitimava o poder absoluto do rei, já não servia mais nem para garantir os privilégios ao clero Em 2 de novembro de 1789 seus bens foram colocados à venda, em março de 1790, o próprio clero regular foi suprimido. sendo reorganizado em julho com a promulgação da Constituição Civil do Clero. Com isso, a Igreja da França tornou-se nacional, afastando-se do papa. A Constituição adotada em 1791 consagrou o domínio da burguesia moderada. Os jacobinos radicalizaram e as cabeças nobres começam a rolar A nobreza fora derrotada em larga medida, mas o impasse provocado pela insatisfação popular e peia conspiração contrarevolucionaria era visível. A multidão radicalizada liderada por uma facção revoluciona-ria da burguesia — os jacobinos — exigia a punição aos contra-revolucionários que agiam sob a proteção do rei o fim da monarquia e a implantação da república. Subiam ao comando do movimento os radicais Maximilien-François-Marie-Isadore de Robespierre e GeorgesJacques Danton CLIO História – Textos e Documentos Brasil Irrompe, na Bahia, um movimento de revolta contra o domínio português. É a Revolta dos alfaiates, liberal, republicana, ligada à maçonaria, que, com apoio de negros e mulatos, pede “liberdade”, “igualdade”, “trabalho livre” etc. Na primeira fase da Revolução Francesa, a velha ordem do Ancien Régime foi fortemente abalada, e inauguram-se as primeiras instituições da ordem burguesa. Havia, porém, muitas forças e heranças do passado a serem destruídas. Essa tarefa histórica de destruição escapou das mãos da burguesa funcionando até mesmo contra os interesses dela, a segunda fase ao drama revolucionário, atingindo o auge no chamado Terror, trouxe ao primeiro plano da cena atores muito mais radicais, vindos das camadas mais baixas da sociedade Sem eles a Revolução naufragaria. Desde abril de 1792, os regimes absolutistas e aristocráticos da Europa Ocidental e Central se coligaram para derrotar a Revolução. Reunidos na Declaração de Pillnitz, Áustria e Prússia capitanearam a aliança contra-revolucionária. Luís XVI via a guerra com simpatia porque sabia que os exércitos dos absolutistas vinham em seu favor, e que era aparentemente inevitável a derrota do exército francês, mal-equipado e desorganizado. Essa derrota lhe permitiria reconquistar o comando nacional. Os deputados favoráveis à guerra eram os girondinos, que agiam contra o rei mas favoreciam os desejos econômicos da grande burguesia mercantil. Os generais faziam corpo mole e o inimigo ameaçava as fronteiras “A Revolução provavelmente teria ocorrido sem os filósofos. Mas ele provavelmente constituíram a diferença entre um simples colapso de um velho regime e a sua substituição rápida e efetiva por um novo.” Eric J. inglês Hobsbawm, 1917-, historiador Para estes grandes mercadores, os fornecimentos aos exércitos eram sempre uma fonte considerável de lucro e ao mesmo tempo era bom tentar derrotar a contra-revolução que vinha de fora das fronteiras, para manter o fervor patriótico e o comando político sobre a multidão ameaçadora. A previsível derrota francesa se tez sentir logo nos primeiros combates, que levaram os exércitos prussiano e austríaco a ameaçar rapidamente as fronteiras nacionais. Instaurou-se uma verdadeira crise. A pátria estava em perigo, e os deputados mais radicais, como Robespierre, não vacilaram em denunciar a traição do rei e a negligência dos generais e oficiais aristocratas. Ficava claro que as massas populares, cada vez mais presentes no cenário político, precisavam ser mobilizadas para a guerra. As tensões sociais se aguçavam. A inflação, dificultando a vida dos pobres, exigia planos radicais, como o proposto em maio de 1792, de condenar à morte os açambarcadores e especuladores de gêneros. Um fantasma passou a rondar a tranqüilidade da burguesia: a proposta de uma "lei agrária" que visava a dividir as propriedades. A Gironda queria voluntários para a guerra, mas os voluntários do povo parisiense, os sans-culottes, queriam que os ricos pagassem mais impostos e taxas para o esforço bélico. Queriam, também, sob a influência da Montanha, a execução de um igualitarismo um tanto difuso, em que todos os que desfrutassem de privilégios fossem identificados como "inimigos do povo" e em seguida como "inimigos da pátria", e, nesse turbilhão, fossem punidos por uma justiça revolucionária que vinha das ruas ao som dos gritos dos militantes mais inflamados. O calor do mês de julho em Paris cresceu no dia 25, quando chegou o ultimato do duque prussiano de Brunswick. A frente das tropas absolutistas estrangeiras, ele ameaçava levar Paris à "ruína total", caso Luís XVI e sua família fossem molestados, e condenava à morte os cidadãos franceses que ousassem defender a capital ou o país. Na agitação reinante, o ultimato foi contraproducente: ao invés de medo, provocou uma arregimentação jamais vista de voluntários. CLIO História – Textos e Documentos Ao som da Marselhesa, toda a família real foi aprisionada Personagens BABEUF, Gr. (1760-97) - Jacobino, rador de Marat, defendeu a reforma baseada na propriedade coletiva da preso na Conspiração dos Iguais, em foi julgado e executado em 1797. admisocial terra; 1796, BARRAS (1755-1829) – Deputado na Convenção, conspirou contra Robespierre; como membro do Diretório, em 1796, teve grande participação na ascensão militar e política de Napoleão Bonaparte. BONAPARTE (1769-1821) - Depois do jacobinismo inicial, enquadra-se na reação thermidoriana: no comando do Exército da Itália, faz carreira brilhante e rápida, tornando-se o general-chave do 18 Brumário de 1799. BRISSOT (1754-93) - Um dos líderes girondinos na Assembléia Legislativa e na Convenção: partidário das ações de guerra; executado no Terror. 1793. CARNOT (1753-1823) – Deputado na Assembléia Legislativa e na Convenção, membro do Comitê de Salvação Pública, abandona e conspira contra Robespierre, atua no Diretório e participa da ascensão de Bonaparte. DANTON (1759-94) - Advogado, um dos fundadores do Clube dos Cordellers, participa da Comuna insurrecional de 1792 e é eleito para a Convenção; "indulgente", adversário de Robespierre, é executado em 1794. DESMOULINS (1760-94) - Jornalista e orador, do grupo cordelier, teve grande participação no início da Revolução; crítico do Terror de Robespierre, defendendo as posições dos "indulgentes", é executado em' 1794. FOUCHÉ (1759-1820) – Jacobino, convencional, chefe da repressão aos realistas de Lyon, é preso em 1795 e anistiado por influência de Barras; como Ministro da Polícia, conspira para o 18 de Brumário de 1799. FOUQUIER-TINVILLE (1746-95) O grande promotor público do Tribunal Revolucionário; após 69 Thermidor, é preso e executado em 1795. HÉBERT (1757-94) - Jornalista, cordelier, porta-voz dos "sans-culottes" no seu Père Duchêsne, critica o Terror de Robespierre por ser moderado; é executado em 1794, junto com os Raivosos. HOCHE (1768-1797) - Jovem e brilhante O comando político dessa arregimentação passou para a Comuna de Paris, organização representativa municipal da cidade, fortemente influenciada pelos radicais. Dispostos 3 destruir os "traidores" da pátria, os membros da Comuna e seus adeptos sans-culottes atacaram o palácio das Tulherias, prendendo o rei e sua família, com o apoio discreto da Guarda Nacional, na noite de 9 de agosto de 1792. A monarquia estava destruída na prática, e o fervor revolucionário dos sans-culottes parisienses misturou-se ao de um grupo de voluntários vindos de Marselha e da Bretanha, tangidos peio cântico arrebatador da Marselhesa, hino composto por Rouget de Lisle capaz de galvanizar a multidão aos gritos de "Às armas, cidadãos". A Marselhesa tornou-se o hino oficial da França: mas naquele momento o seu cântico despertou o medo na grande burguesia da Assembléia e em seus seguidores. Destruída a monarquia, e enquanto não se processava uma nova direção política na Assembléia, a sans-culotterie e os "marselheses'' tomaram conta do panorama parisiense. Na verdade, outros li-deres se destacavam no cenário, mais ligados à pequena burguesia dos artesanatos e pequenos negócios. Como Marat, o redator de 0 Amigo do Povo, que durante os três primeiros anos da Revolução inflamou Paris com sua pregação de liberdade e igualdade, e logo após as façanhas de 10 de agosto estimulou a criação do Comitê de Vigilância da Comuna de Paris O Comitê era assistido politicamente por Billaud-Varennes e Collot d'Herbois, que se destacariam posteriormente como ativos membros do poder jacobino radical. Na manhã de 29 de agosto, começou a caça aos "inimigos da Revolução", que se contavam aos milhares, pois a arbitrariedade do poder revolucionário, diluída no meio da multidão parisiense, não via limites para a escolha dos traidores de momento: podiam ser tanto os agentes da aristocracia quanto os clérigos desavisados, tanto os nobres renitentes e contra-revolucionários quanto os cidadãos que não tomassem posição clara a favor da Revolução. A Convenção derruba a monarquia e instala o poder republicano Presos em grande quantidade, uma vasta gama de suspeitos lotava as prisões. Durante quatro dias, a partir de 2 de setembro, grupos exaltados de revolucionários, na sua maioria da sans-culotterie, invadiram as celas, com a aparente complacência do recém-nomeado ministro da Justiça, o jacobino Danton. As primeiras vítimas dos chamados "massacres de setembro" foram os padres: já na tarde do dia 2, 24 que estavam presos na abadia de Saint-Germain-des-Près foram arrastados para a rua e abatidos a golpes de sabre. 0 ódio anticlerical estendeu a violência ao convento do Carmo, onde foram organizados julgamentos sumários, Foram mortas cerca de 1 300 pessoas em quatro dias. Esse “primeiro Terror” teve uma importante conseqüência política. Destituindo o rei em 10 de agosto, a Assembléia havia convocado eleições para um novo organismo político, a Convenção republicana. Aterrorizados com o clima de perseguições, os realistas e os adeptos da moderação constitucional fugiram das urnas. Instalada em 20 de setembro a Convenção resultante das eleições apresentou uma esmagadora maioria de militantes da burguesia revolucionaria. Estava instalada a República, e o fervor revolucionário levou até a criar um novo calendário para ser aplicado no Ano 1 da CLIO História – Textos e Documentos general, pacificou a Vendéia e comandou o Exército do Mosela; morreu no front como fervoroso defensor da República, mas descrente dos dirigentes políticos. LA FAYETTE (1757-1834) - Herói da guerra de independência dos EUA, defensor da monarquia constitucional, emigra após a prisão do Rei e só volta à França e à vida política com o Consulado. MARAT (1743-93) - Médico, jornalista, publica O Amigo do Povo; eleito à Convenção pelos "sans-culottes", defende a revolução social e condena a guerra; é assassinado por Charlotte Corday, em 1793. MIRABEAU (1749-91) - Membro da nobreza provincial, é eleito pelo Terceiro Estado para os Estados Gerais; figura central da Constituinte, defensor da Monarquia constitucional. NECKER (1732-04) - Banqueiro, ministro de Luís XVI, muito popular por causa do seu programa de reformas econômicofinanceiros; retira-se da vida pública logo no começo da Revolução. ROBESPIERRE (1758-94) - Advogado, deputado na Constituinte e depois eleito para a Convenção; fundador do Clube dos jacobinos, dominou o Comitê da Salvação Pública e impôs o Terror, do qual acabou vítima em 1794. ROLAND, Madame (1754-93) - Seu salão, em Paris, era um círculo das "luzes", onde se liam e discutiam Rousseau, Voltaire e os enciclopedistas; suas fortes ligações com os Girondinos levaram-se à prisão e à morte, em 1793. ROUX (1752-94) - O "padre vermelho", expulso do Clube dos Cordeliers, é acusado por Robespierre de incitar o povo contra a Convenção; preso, suicida-se, isolando e enfraquecendo ainda mais os Raivosos. SAINT-JUST (1767-94) - O mais jovem convencional, teórico e partidário da política do Terror de Robespierre no Comitê da Salvação Pública, com ele foi preso e guilhotinado no 9 do Thermidor de 1794. SIEYÈS (1748-36) - Depois de publicar 0 que é o Terceiro Estado? foi eleito para a Constituinte e para a Convenção; no Diretório, conspirou para o golpe do 18 Brumário, sendo Cônsul por algum tempo. VERGNIAUD (1753-93) - Advogado, deputado na Assembléia Legislativa e na Convenção. foi um dos principais chefes girondinos, defendendo o federalismo e o poder constituído contra as Comunas; preso e executado em 1793. nova era. Os girondinos da grande burguesia tinham a bancada majoritária da Convenção e pretendiam limitar o radicalismo revolucionário emergente. Para isso os deputados da Gironda, ricos, elegantes e de boa oratória, procuravam dirigir o ardor da Revolução para a política externa. Um sonho realizado: derrotar as tropas prussianas da reação Seu líder, Jacques-Pierre Brissot de Warville, repetia sem parar que o novo regime não podia se limitar a França, e sim levar sua mensagem a toda a humanidade. Influenciados pela retórica brilhante de seu teórico, o advogado Pierre-Victurnien Vergniaud, e inspirados por sua musa, Madame Jeanne-Marie Roland de La Platiere, os deputados da Gironda fizeram aprovar uma petição em dezembro de 1792. "A Convenção Nacional declara, em nome da nação francesa, que outorgará fraternidade e ajuda a quantos povos queiram recobrar sua liberdade". Percebiam assim o caráter universalizante do fenômeno revolucionário e ganharam com isso, para a França, a adesão de burgueses e intelectuais ilustrados de inúmeros países. Essa política deu certo diante da ameaça externa: no dia mesmo da instalação da Convenção, 20 de setembro, as tropas francesas recem-recrutadas, fervorosamente revolucionarias, viraram a situação militar Aos gritos de "Viva a Nação", derrotaram os prussianos na batalha de Vaimy. O gênio do grande escrito' alemão Johann Wolfgang Goethe o fez perceber, sobre essa batalha "Neste lugar e neste dia começa uma nova era na História do mundo”. Sucessivas vitórias levaram a expulsão das tropas absolutistas ao território francês, e as torças revolucionárias ocuparam os Países Baixos austríacos, os territórios da margem esquerda do Reno bem como a Sardenha. Ocuparam também o condado de Nice e a Sabóia, onde, espontaneamente, os simpatizantes da Revolução estimularam a maioria dos habitantes saboianos a pedir para serem anexados à França. Entusiasmada, a Convenção estabeleceu a estratégia de levar o território francês às suas "fronteiras naturais", até o Reno, os Alpes e os Pirineus. A reação não se fez esperar: a Inglaterra aliou-se aos absolutistas, e formou-se no inicio de 1793 uma imensa coalizão de forças anti-França: além dos ingleses, austríacos e prussianos, também a Rússia, Portugal, Espanha e muitos Estados ale-mães e italianos entraram na guerra. Pela primeira vez todo um país mobilizou-se para a guerra A maioria girondina na Convenção percebeu a necessidade de mobilizar o povo para a guerra. O recrutamento em 1793 atingiu níveis nunca vistos. Como diz o historiador Eric Hobsbawm, "a jovem República francesa descobriu ou inventou a guerra total: a total mobilização dos recursos de uma nação através do recrutamento, do racionamento e de uma economia de guerra rigidamente controlada, e da virtual abolição, em casa e no exterior, da distinção entre soldados e civis". Ora, a maioria do povo, os sans-culottes, se entusiasmava com a pregação jacobina de que a mobilização total só daria resultados se acompanhada da punição aos traidores, aristocratas clérigos, privilegiados e suspeitos de vacilação diante do inimigo, à testa dos quais se encontrava o rei. Robespierre capitaneava a pregação pelo extermínio definitivo dos inimigos internos: à frente da sans-culotterie exaltada, CLIO História – Textos e Documentos Glossário Antigo Regime: ordem social e políticoinstitucional vigente até a Revolução, monarquia absoluta, sociedade estamental e direitos feudais. Assembléia Legislativa (out. 91/agosto 92): substituiu a Assembléia Nacional Constituinte de 1789; era o órgão do Poder Legislativo na Constituição de 1791. Assembléia Nacional Constituinte (jul. 89/set. 91): aprovou a primeira Constituição, de 1791: resultou da revolta dos deputados do Terceiro Estado contra os Estados Gerais. "Assignat": bônus e depois papel-moeda emitido peio Estado, com base nos bens do clero, nacionalizados; sua contínua desvalorização levou-o à extinção em 1796. Bastilha: velha fortaleza da monarquia, odiada peia população parisiense por ser usada como prisão e por ter sido sempre a grande barreira entre o "faubourg St. Antoine" e área central da cidade. 18 Brumário (9 de novembro): data do golpe de Estado que, no final de 1799, encerrou a Revolução; seu personagem principal foi o general Napoleão Bonaparte, que derrubou o Diretório e estabeleceu o Consulado. "Cahiers de Doléances": cadernos onde os eleitores de 1789 foram orientados a registrar todas as suas reivindicações, a serem apresentadas aos Estados Gerais por seus representantes. Cidadãos ativos: cidadãos com direito de voto, porque podem pagar um imposto equivalente ao valor de três dias de trabalho. (Constit. 1791) Cidadãos passivos: cidadãos que não têm direito de voto. Comuna: na tradição medieval, é a municipalidade, o governo autônomo de uma cidade. Comuna insurrecional: organização político-militar criada pela população de Paris no começo da Revolução para fortalecer e conduzir a participação popular ("sans-culottes") no processo revolucionário. Constituição Civil do Clero: aprovada em 1790, reformula profundamente as relações Igreja-Estado, liquidando os antigos privilégios do clero e tornando-o uma instância da burocracia oficial. incendiando a opinião com os panfletos de Marat e os discursos de Saint-Just e Camille Desmoulins, contando com a adesão de Danton, os jacobinos isolaram politicamente a Gironda e levaram Luís XVI à guilhotina em 21 de janeiro de 1793. Tendo a guilhotina como símbolo ameaçador e a mobilização popular como base, os jacobinos dominaram a política francesa de 1793 a 1794. Paris jamais viveu tal movimentação do povo humilde, organizado em seu cotidiano e vivendo uma vertiginosa sucessão de novos líderes, heróis e até mesmo deuses, como a deusa Razão. Os girondinos praticamente desapareceram de cena, acusados de traidores, 29 dos chefes da Gironda, entre os quais Brissot e Vergniaud, foram encarcerados em 2 de junho de 1793, e logo depois guilhotinados. Passava a reinar absoluto o poder jacobino. Entre fevereiro e agosto, a Convenção decretou a mobilização de 300 mil homens para a guerra, culminando com o recruta-mento obrigatório de todos os solteiros entre 18 e 25 anos Ao mesmo tempo, até setembro, de 300 a 500 mil pessoas foram presas como suspeitas. A estrutura política do regime era baseada em "comitês" escolhidos pela Convenção O assassinato de Marat incendeia corações. Instala-se o Terror O mais importante era o Comitê de Salvação Pública, dominado por Danton e Robespierre, que, cuidava do exército e da segurança do Estado. Nele destacou-se também o general Nicolas-Marguerite Carnot logo depois ministro da Guerra, que se revelou um grande organizador de um "exército de massa". Com ele, em setembro de 1793, os ingleses foram derrotados em Hondschoote e diminuíram a pressão no litoral Derrotando os austríacos em Wattnigies, os republicanos fizeram recuar a coalizão inimiga para leste Ao mesmo tempo, a Queda dos girondinos levou a uma série de levantes nas províncias francesas contra o governo revolucionário, dos quais o mais notório foi a rebelião camponesa da Vendéia. A pressão dos inimigos internos cresceu mais ainda a partir de julho de 1793, quando uma jovem provinciana adepta da Gironda, Charlotte Corday, assassinou Marat. A indignação popular com o crime contra "o amigo do povo" aumentou ainda mais a mobilização dos sans-culottes, que colaboravam diariamente com os julgamentos sumários de "traidores". No ritmo incessante da guilhotina, o Terror chegou a executar mais de 17 mil pessoas, se incluirmos as execuções sumárias e as mortes na prisão, a cifra chega a mais de 35 mil vitimas. O entusiasmo popular com os julgamentos e execuções, a tranqüila assistência das senhoras "tricoteiras" aos golpes fatais da guilhotina na Place de la Concorde têm uma raiz mais profunda: pela primeira vez na História, as massas populares tinham vez e presença no cenário político, Pela primeira vez, mesmo contrariando os interesses da burguesia, um governo se preocupava em taxar os ricos e tabelar os preços. Na vertigem dos fatos de 1793, Robespierre se tornara o senhor absoluto do todo-poderoso Comitê de Salvação Pública. Ele encarnara a imagem do igualitarismo radical da fase do Terror, com as leis sociais ali produzidas. Robespierre assume o comando com delirante pregação radical Mas era representante, acima de tudo, da pequena burguesia parisiense, que aspirava também a um dia ser burguesa. Não CLIO História – Textos e Documentos Convenção (set. 92/out.95): assembléia de deputados que dirige a República logo após sua instituição. entre setembro de 1792 e outubro de 95, eleita por sufrágio universal. Comitê da Salvação Pública: criado em abril de 1793, foi o órgão central do governo revolucionário, durante o Terror. "Cordeliers": fundado em 1790, tornou-se um clube político muito próximo das posições dos "sans-culottes" e teve destacada atuação nas jornadas revolucionárias de 1792 e 93. Corvéia: um dos mais antigos direitos feudais, consistindo em um certo número de dias de trabalho que os camponeses deviam aos senhores. Diretório: o órgão do Poder Executivo na Constituição do Ano III, entre 1795 e 99. Direitos naturais: direitos que os iluministas do século XVIII atribuíam à natureza humana, portanto naturais e imprescritíveis; entre tais direitos, apontavam-se a liberdade, a igualdade e a propriedade. Estados Gerais: a assembléia dos representantes das "ordens" no Antigo Regime; com o Absolutismo, perdeu quase todo seu poder. Federação: expressão que identifica e define a nova organização do país depois da abolição do Antigo Regime, caracterizada pela liberdade e soberania da Nação e autonomia dos departamentos que a compõem. Federalistas: expressão usada para apontar e acusar os Girondinos que defendiam a supremacia da Convenção, enquanto assembléia dos representantes eleitos em todo país, sobre o poder crescente das comunas, principalmente a Comuna de Paris. "Feuillants": rompendo com os Jacobinos, os monarquistas constitucionais, liderados por La Fayette e Barnave, fundam novo clube, que não resiste, porém, às jornadas revolucionárias de 1792. Girondinos: grupo de deputados convencionais, liderados por representantes da região da Gironda, partidários da Revolução e da República, mas com posições bem mais moderadas do que os Jacobinos, especialmente quanto ao papel das massas populares no movimento revolucionário. Governo revolucionário: a estrutura montada entre 1792 e 94, no período da revolução democrática, centrada no Comitê da Salvação Pública, no Tribunal Revolucionário e nos comitês revolucionários das comunas. Grande Terror: período de maior radicalização da política jacobina do Terror (10 de junho a 27 de julho de 1794). podia portanto permitir que os ideais de "liberdade, igualdade e fraternidade" chegassem, nas mãos dos sans-culottes mais pobres, despossuídos, operários, a pôr em xeque a propriedade privada. O aprofundamento do igualitarismo popular e revolucionário chegava assim ao seu limite. Por isso mesmo, na primavera de 1794, o jacobinismo reinante começou a se distanciar do movimento popular: parte do exército revolucionário foi licenciada, a Comuna de Paris depurada e 39 das seções parisienses, que exerciam a democracia direta dos sans-culottes, foram dissolvidas. Ao mesmo tempo, reforçou-se uma extrema centralização do comando político. Dentro dele, instalou-se uma feroz disputa de liderança que o clima de perseguições tornou mortal — e dela emergiu Robespierre como líder absoluto, depois de mandar á guilhotina todos os seus rivais. Reinando solitário e absoluto, Robespierre resolveu em 10 de junho levar ao extremo seu ímpeto punitivo. Apresentou um decreto criando um novo Tribunal Revolucionário, em que não havia nem testemunhas nem defensores, e que só podia decidir pela absolvição ou pela morte A burguesia girondina sobrevivente, até então na defensiva, reagiu Aliando-se aos deputados do "pântano", facção burguesa que se mantinha oportunisticamente na sombra, conspirou contra Robespierre, aproveitando o clima reinante de insegurança em face da guilhotina e o fato de que ele, exausto e com a saúde abalada, ausentou-se durante algum tempo das seções. Em 26 de julho, Robespierre discursava, tentando justificar mais uma lista de "traidores", quando os adversários exigiram que ele fosse preso, por atacar frontalmente a Convenção. É preciso garantir a propriedade do rico e a existência do pobre Seus partidários ainda tentaram uma resistência a partir do Hôtel de Ville, sede da Comuna de Paris. Foram rapidamente vencidos, sem luta praticamente, e os vencedores encontraram um Robespierre surpreso e com dificuldades de liderar seus homens. Baleado no queixo, um disparo feito por ele mesmo, o jacobino foi preso, humilhado e condenado à guilhotina Assim, no dia 9 de Termidor (27 de julho de 1794), com sua morte terminou a República jacobina. A partir dessa data, ou do Termidor, até novembro de 1799, a burguesia retomou o controle da Revolução, eliminado o igualitarismo democrático. A base teórico-ideológica da reação foi dada pelo deputado Boissy d'Anglas, em 23 de junho de 1795. Para ele, tratava-se então de "garantir enfim a propriedade do rico, a existência do pobre, o usufruto do homem industrioso e a segurança de todos". Tendo a propriedade privada como fundamento da ordem social, ele instava os deputados a se defenderem "com coragem dos princípios ilusórios de uma democracia absoluta é de uma igualdade sem limites... Devemos ser governados pelos melhores.... ora, não achareis semelhantes homens senão entre os que, possuindo uma propriedade, estão apegados, ao pais que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva, e que devem a essa propriedade e à abastança que ela dá a educação que os tornou adequados..." Uma nova Constituição, em 1795 estabeleceu um poder executivo composto de cinco membros, o Diretório, escolhido por um legislativo formado pelo Conselho dos Anciãos. Na direção da reação termidoriana, destacava-se o abade Sieyès, que já tivera grande importância no inicio da Revolução Sentindo a caminhada da política para a direita, os realistas e aristocratas tentaram revertê-la completamente, voltando ao CLIO História – Textos e Documentos Jacobinos: clube político fundado em 1789, reunindo os "patriotas" da burguesia e da nobreza, que formam, logo depois, a Sociedade dos Amigos da Constituição; o progressivo radicalismo dos seus partidários leva à cisão política, com a saída do grupo dos "Feuillants". "Iguais": grupo liderado por Babeuf, herdeiro das idéias de Marat, fortemente ligado aos "sans-culottes", e que lutava por uma igualdade social radical. "Incroyables" e "Merveilheuses": homens e mulheres da burguesia conservadora, partidários do Thermidor, que procuram mostrar, através de uma moda extravagante e atitudes arrogantes, seu reacionarismo político. Lei do Máximo: lei de 29/9/1793 que fixa limites para os preços e salários, aprovada sob pressão popular pela Convenção. "Lettres de cachet": instrumento pelo qual o Rei, no Antigo Regime, podia mandar prender alguém, sigilosamente, sem julgamento. Montanheses: deputados jacobinos radicais, que ocupavam as cadeiras mais altas da Convenção, e que defendiam a aliança com a "sans-culotterie". Notáveis: proprietários, homens de negócios, altos funcionários civis e militares, membros do clero constitucional, enfim, burgueses de prestígio, são os eleitores dos deputados pela Constituição do Ano III; a Constituição do Ano VIII, mesmo adotando novamente o sufrágio universal, manteve, na prática, os critérios da notabilidade na composição das lisas eleitorais. Pântano (ou Planície): a maioria dos deputados da Convenção, centristas, oportunistas, que apoiaram ora a Gironda, ora os jacobinos, e participaram diretamente da reação thermidoriana. "Paz de Campoformio": tratado assinado com a Áustria em outubro de 1797, pelo qual os austríacos mantinham a região de Veneza e reconheciam a ocupação francesa da Lombardia e de toda a região da margem esquerda do Reno, inclusive a Bélgica, grande vitória político-militar-diplomática de Napoleão Bonaparte. Realistas: partidários do restabelecimento pleno da monarquia absoluta e do Antigo Regime, em geral membros da Aristocracia e do Alto Clero. "Sans-culottes": a população pobre dos "faubourgs" de Paris e das outras grandes cidades; foram a grande força popular da Revolução. Secções: entre maio de 1790 e final de 1795, Paris foi dividida em 48 secções, para permitir à população realizar assembléias Ancien Régime. Mas suas duas tentativas de golpe, em 1795 e 1797, foram abortadas. Não deixa de ser significativo que no combate aos seus golpes tenha tido papel essencial um jovem oficial, decisivo, dai em diante, na consolidação do poder burguês: Napoleão Bonaparte. E o poder militar foi chamado para pôr ordem na confusão Apos algumas vitórias de Napoleão na guerra na Itália, o Diretório conseguiu uma paz provisória com as forças absolutistas estrangeiras em Campoformio (outubro de 1797). Mas a economia estava arruinada, e a eliminação dos decretos jacobinos e do congelamento de preços levou a inflação a uma verdadeira catástrofe monetária. Diante disso, os jacobinos tentaram uma contra-ofensiva em 1798, ganhando as eleições para o Conselho. Mas também já era tarde demais para o movimento popular, cuja ala radical tinha sido destruída durante a derrota da Conjura dos Iguais em 1796, revolta de caráter igualitário e precursora do socialismo, liderada por Gracchus Babeuf. Os jacobinos que ganharam a eleição de 1798, mais moderados, não tinham também qualquer alternativa a propor para o estado calamitoso em que se encontrava a França: crise econômica, portos e caminhos destruídos, serviço público desorganizado, indústrias arruinadas. A burguesia do Diretório, e particularmente Sieyès e Roger Ducos, chamaram o poder militar para pôr ordem na casa. E não se tratava de um chefe militar qualquer. Forjado nas dramáticas contradições da Revolução, marcado por uma carreira meteórica no primeiro exército revolucionário de massas da era moderna, o general Napoleão Bonaparte foi escolhido para "salvar" a França Em 18 de Bromarei (9 de novembro) de 1799, ele chefiou o golpe de Estado que encerrou a Revolução, com a criação do regime do Consulado. E a partir daí consolidou o poder e as instituições modernas da burguesia do capitalismo. R. Maranhão / J. C. Ruy Revista Superinteressante Fonte básica: A Revolução Francesa. Albert Soboul. Difel, São Paulo Uma nova felicidade "A felicidade é uma idéia nova na Europa", afirmou em 1793 Louis-Antoine-Léon de Saint-Just, um dos líderes radicais da Revolução Francesa. Não quer dizer que antes todos fossem infelizes, mas simplesmente que surgira uma idéia nova de felicidade, ligada ao bem comum — o homem seria feliz numa sociedade justa. Em outro momento. Saint-Just disse que a maneira antiga de fazer a guerra já não servia, porque convinha aos reis: agora seria preciso inventar uma estratégia nova, adequada a homens livres. A arte da guerra, para as monarquias do século XVIII, consistia entre outras coisas em evitar batalhas. 0 maior general do tempo foi o rei da Prússia, Frederico, o Grande, que tendo exércitos pequenos fazia suas tropas marcharem muito, a ponto de vencer o inimigo numa jogada de xeque-mate, e não pela batalha frontal, um triunfo da inteligência, da estratégia, e não da força bruta. Mas esse tipo de guerra servia quando a luta armada se praticava entre reis que eram primos, generais que eram parentes ou amigos, e por isso mesmo podiam ser galantes no campo de batalha. Num CLIO História – Textos e Documentos locais e encaminhar suas reivindicações; foram os comitês revolucionários dessas secções que levaram à formação da Comuna insurrecional. Terror: período em que o governo revolucionário exerceu plenos poderes, entre o final de 1792 e meados de 1794, instalando a violência política contra todos os suspeitos de serem contra-revolucionários. 9 de Thermidor (27/7/1794): marca a derrubada do governo revolucionário e a reação da burguesia no sentido de dar novos rumos ao processo revolucionário. combate do começo do século, o general francês gritou ao inimigo: "Senhores ingleses, atirem primeiro!", e assim lhes deu, de presente, a primeira fila de seu exército. As guerras da Revolução não foram assim cavalheirescas. Quando invadiu a França em 1792, para restaurar o poder absoluto do rei, o duque de Brunswick ameaçou não deixar pedra sobre pedra em Paris, se tocassem num fio de cabelo de Luís XVI. Os "soldados descalços" que defendiam a República sabiam que sua guerra não era galante como a dos nobres, mas que arriscavam a própria pele: se o inimigo vencesse não teria piedade para com eles. Isto dava à guerra um enorme ímpeto popular. As guerras revolucionárias foram românticas, nesse sentido, feitas por gente que acreditava numa causa e se entusiasmava por ela. E preciso lembrar que a Revolução, e depois o Império, se inspirou muito na Antigüidade Clássica, especialmente em Roma e Esparta, que eram os dois grandes exemplos históricos de um regime mais voltado para a causa pública do que para o egoísmo individual. Basta citar David, pintor que foi deputado à Convenção, votou pela execução de Luis XVI, foi amigo de Robespierre e Napoleão: no seu quadro Brutus, de 1789, vemos o governante romano, melancólico, exibindo uma dor profunda. Ele acaba de ordenar a execução dos próprios filhos, que traíram Roma querendo restaurar a monarquia. No fundo da tela, as mulheres choram. Mas Brutus também sofre, só que sabe que a causa da pátria está acima dos sentimentos individuais É essa a grande lição que Roma dá aos revolucionários: o bem comum é mais importante que as vantagens pessoais, é belo e digno lutar e morrer pela pátria. Por causa dessas referências à Antigüidade, o filósofo alemão Karl Marx até afirmou, no Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, que a Revolução Francesa criou uma sociedade inteiramente nova pensando que estava restaurando a República romana Marx exagerou. Os revolucionários admiravam muito Roma, mas a maioria deles sabia, como Saint-Just, que o mundo havia mudado. Esta, aliás, é a grande diferença entre a Revolução Francesa e as duas revoluções inglesas do século XVII. O que Marx diz vale para estas últimas: os ingleses, em 1640 e em 1688, mudaram sua sociedade pensando que defendiam contra reis "inovadores" a velha e justa ordem de coisas. "Inovações", no inglês da época, era termo pejorativo, que se relacionava com governantes católicos ou que se supunham tais, e católico, naquele tempo e lugar, significava absolutista como Luis XVI, supersticioso e repressor como a Inquisição. Os protestantes que executaram Carlos I em 1649, e depuseram seu filho Jaime II em 1688, inspiravam-se muito na Bíblia, especialmente no Velho Testamento. Um pregador dos anos 1640, Arise Evans, chegou à conclusão, lendo a Bíblia, de que devia ser derrubado o presidente do Parlamento, porque se chamava Lenthall, e Sansão havia derrubado o umbral (em inglês, lintel) do templo dos idólatras filisteus. E Cromwell, um dos líderes mais tolerantes da Revolução, se isolou meditando, espera de uma inspiração divina para decidir se o rei Carlos devia ou não ser julgado e condenado por traição ao povo inglês. Nada disso ocorreu na Revolução da França — diferente de todas as que houve antes. Ela foi leiga; pode ter tido seus ídolos proclamou uma religião (a do Ser Supremo), mas o pensamento que nela triunfou foi o do século das luzes: crítico em face da superstição, e mesmo da religião, defendendo a tolerância a todos os cultos e também aos ateus. Foi a primeira revolução que se orgulhou de ser nova, querendo mudar o mundo. Lutou pela causa ia Humanidade e não mais pela liberdade de um povo só (como inglesa, que defendia os direito do inglês nato a sua liberdade). Por isso, pela primeira vez na História, uma revolução política e social foi exportada — as CLIO História – Textos e Documentos guerras revolucionárias não foram, pelo menos de começo, imperialistas, mas libertadoras. Cada pais em que entraram os exércitos franceses vitoriosos ganhou, de presente, a liberdade, a República. A felicidade, com efeito, tornou-se uma idéia nova na Europa. O Iluminismo como inspiração Ainda se podiam ouvir os ecos da batalha e a balbúrdia alegre da multidão que tomou a Bastilha, quando, no mesmo 14 de julho de 1789, a Assembléia decidiu que os franceses deveriam preparar uma declaração que assegurasse os seus direitos. Elaborada e votada em 26 de agosto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi uma manifestação positiva, no campo jurídico, de homens livres que afirmavam englobar todos os súditos de um Estado, sem exceções. Legislando pela primeira vez que "os homens nascem iguais", a Declaração evidencia seu caráter ativo, que não decorre de alguma concessão de poderes humanos ou celestiais, ao afirmar no preâmbulo: "Os representantes do povo francês (...) resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem". A Declaração de 1789 é mais abrangente do que qualquer texto anterior, pois tem uma intenção de universalidade que permitiu ao historiador francês Jules Michelet defini-la como "o credo da idade nova". Conceituando a liberdade como o direito de fazer tudo aquilo que não prejudica a outrem, ela se estende com clareza, pela primeira vez na História, sobre o direito de manifestação: "Todo cidadão pode falar, escrever e imprimir livremente, respondendo pelo abuso dessa liberdade, nos termos da lei". No quadro da recusa da Revolução Francesa em admitir o poder da Igreja, dá essa definição perene: "Ninguém pode ser perseguido por suas opiniões, mesmo as religiosas". A Declaração de 1789 expressa nitidamente seu vínculo com a burguesia revolucionária que a engendrou. Fica claro ali o direito "inviolável e sagrado'' da propriedade. A Declaração é fruto de uma elaboração filosófica e ideológica do século XVIII, o Iluminismo, que marcou fundo a evolução do conhecimento humano e forneceu os fundamentos para todo o processo revolucionário ocidental. Nos séculos XV e XVII, com a Renascença, a Europa Ocidental produzira pensadores que se opunham aos dogmas estáticos da Igreja Católica de então. A ciência e a observação empírica em Galileu, a lógica e a dúvida em Descartes, a dessacralização da política em Maquiavel, entre muitos outros inovadores, tendiam a derrotar a fé como forma dominante de conhecimento. O século XVII se encerra com o legado científico de lsaac Newton, que exclui o sobrenatural do reino deste mundo, e com o pensamento político de John Locke, que iguala todos os homens pelo direito à vida, à liberdade e a propriedade. Mas é no início do século XVIII que a França apresenta ao mundo Voltaire, literato, crítico da ciência e, como os iluministas, filósofo. Os iluministas chamavam a si próprios filósofos e Voltaire foi o primeiro deles, batalhando com audácia e extrema ironia contra a obscuridade dos dogmas e da religião, a favor das luzes da Razão. Seu livro Cartas filosóficas, publicado em 1734 na França, o levaria preso à Bastilha (que freqüentou várias vezes), e faria, como suas inúmeras outras obras, sua fama de maior dos iluministas, aquele que levaria também seus conhecimentos aos poderosos da Europa. Na trilha de Voltaire, os filósofos Diderot e D'Alembert resolveram, em 1747, fazer uma enciclopédia ou Dicionário racional das ciências, das artes e dos ofícios, a conhecida Enciclopédia, que nos seus dezessete volumes publicados até CLIO História – Textos e Documentos 1772 tinha a pretensão de abarcar todo o conhecimento humano científico e racional. Naturalmente, convidaram Voltaire para seu principal colaborador; importante também foi Montesquieu, defendendo que todo país deveria ser governado por leis escritas, e não por homens, e que tais leis deveriam, numa Constituição, equilibrar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A Enciclopédia tornou-se o aglutinador e principal veículo dos pensadores que se afinaram com a "filosofia das luzes", ou seja, com a idéia de que a Razão (a partir daí escrita com R maiúsculo) se liberta da religião, dos preconceitos e obstáculos ao desenvolvimento intelectual. Condorcet e Condillac escreveram ali sobre Filosofia; Quesnay e Turgot sobre Economia; Holbach, sobre Química. Mas escreveu também na Enciclopédia Jean-Jacques Rousseau, que marcaria época com seu O contrato social, em que propôs a democracia e o sufrágio universal, como forma de eliminar a indesejável e histórica desigualdade entre os homens. Os filósofos iluministas forneceram a substância teórica e ideológica para a revolução burguesa. Mas, ao dar universalidade a seus pensamentos, avançaram, como a Declaração que se baseou neles, muito além dos interesses burgueses, marcando a História contemporânea com sua modernidade.