A carta de Judas

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Cartas Católicas
As Epístolas do Novo Testamento se dividem em duas classes: as paulinas e
as católicas. É um grupo de sete escritos do Novo Testamento que tem este título
muito antigo: Cartas Católicas. A partir do século IV, esta designação genérica foi
reservada para as sete Cartas canónicas: Tiago, 1.ª e 2.ª de Pedro, 1.ª, 2.ª e 3.ª de
João e Judas.
Estas cartas são chamadas católicas ou gerais porque os destinatários das
mesmas não estão especificados como são nas cartas de Paulo, vejamos:
. Tiago se dirige “... às doze tribos que se encontram na Dispersão..." (Tg 1.1).
Pedro escreve “... aos eleitos que são forasteiros da Dispersão, no Ponto,
Galácia, Capadócia, Ásia, e Bitínia..." (l Pe 1.1); e logo "...aos que obtiveram fé
igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo..." (2 Pe 1.1).
João se dirige aos que puderam ter "...comunhão conosco..." (l Jo 1.3); logo
depois, "...à senhora eleita [a igreja] e aos seus filhos..." (2 Jo 1.1); e também "...ao
amado Gaio..." (3 Jo 1.1).
Judas, por sua parte, escreve "...aos chamados, amados em Deus Pai, e
guardados em Jesus Cristo..." (Jd 1.1).
Como se vê, exceto a pequena saudação dirigida a Gaio, todas as outras são
dirigidas, não a uma igreja ou pessoa em particular, mas, sim, à igreja em geral.
“Católico” significa universal, e tal deve ser a origem do nome destas Cartas:
eram dirigidas a toda a Igreja, e não a comunidades ou pessoas concretas.
Portanto, não há necessidade de relacionar os ensinamentos com
circunstâncias específicas ou particulares, posto que se aplicam em muitos lugares e
tempos.
O que estas Cartas têm de comum é a temática:
1. Cuidados a ter com os falsos mestres: 2 Pe 2,1-3.10-22; 2 Pe 3,3-4.16-17; 1 Jo
2,18-23.26; 1 Jo 4,1-6; 2 Jo 7-11; Jd 4-19.
2. Necessidade de guardar a integridade da fé: Tg 2,14-26; Tg 3,13; Tg 4,3-12;
Tg 5,7-11; 1 Pe 2,11-12.13-17; 1 Pe 4,1-4; 2 Pe 3,1-7.14-18; 1 Jo 2,18-29; 1 Jo 4,16; 2 Jo 7-11.
3. Exortação à fidelidade na perseguição: Tg 1,2-4.12; Tg 4,7; 1 Pe 1,6-7; 1 Pe
2,11-17; 1 Pe 3,13-17; 1 Pe 4,12-19; 1 Pe 5,6-10; 1 Jo 2,24-28.
4. Proximidade do fim dos tempos: Tg 5,3.7-9; 1 Pe 1,5; 1 Pe 4,7; 2 Pe 3,3-4.8-10;
1 Jo 2,18-19; Jd 18.
Os perigos denunciados por Tiago, por exemplo – hipocrisia, falta de
caridade, língua solta, paixões, presunção e avareza – são comuns em todos os
tempos e lugares. Sempre há os mesmos perigos; espera-se a mesma paciência.
O apóstolo João é chamado o apóstolo do amor. Esta designação se explica
bem quando lemos l João 4. Ali, em poucos versículos (vv.7-21) se encontra a
palavra "amor", ou alguma inflexão do verbo amar, quase duas vezes por versículo.
Assim que, podemos acertadamente caracterizar a João como o apóstolo do amor; a
Paulo como o apóstolo da fé; a Pedro, o apóstolo da esperança. Naturalmente, são
características gerais, pois ninguém pode ser cristão sem a experiência tríplice
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dessas virtudes. Porém, aproveitando a caracterização, diríamos que Tiago é o
escritor que trata da vida cristã; uma espécie de síntese das virtudes referidas.
CARTA DE SÃO TIAGO
A FÉ É PRÁTICA DA JUSTIÇA
A Carta de Tiago é um escrito de caráter sapiencial, isto é, mostra a
sabedoria do discernimento cristão diante das situações. Dirige-se a todas as
comunidades cristãs, simbolizadas pelas «doze tribos» do novo povo de Deus. O
autor se apresenta como Tiago, o irmão do Senhor (cf. Mc 6,3), que dirigiu a igreja
de Jerusalém (cf. At 15,13) e morreu mártir no ano 62. Diversas razões, porém,
fazem pensar que o verdadeiro autor da carta é judeu de origem grega do final do
século I, e que escreveu a carta entre os anos 80 e 100.
Esta carta é mensagem tipicamente cristã, como os Evangelhos; reduz toda
a Lei judaica ao mandamento do amor ao próximo (1,25; 2,8.12). Pode-se dizer
que é explicação das exigências desse mandamento em diversas circunstâncias:
igualdade cristã (2,1-4), preferência pelos pobres (2,5-7), amor ativo (2,14-17).
Esse amor exclui a exploração, e nesta carta encontramos a mais violenta
passagem do Novo Testamento contra os ricos (5,1-6). A fé aqui é vista como
dinamismo que produz ação e que só é madura quando se expressa em atos
concretos (2,20-26); é fé que rejeita qualquer espiritualidade ou religiosidade
individualista e intimista (1,26-27). Da mesma forma, a verdadeira sabedoria se
expressa pela conduta (3,13-16).
Tiago rejeita a consagrada separação entre «dimensão vertical» e
«dimensão horizontal» da vida cristã: «do mesmo modo que o corpo sem o espírito
é cadáver, assim também a fé: sem as obras é cadáver» (2,26). E são estas as obras
citadas no contexto: dar de comer ao faminto e vestir o nu (2,15-16; cf. Mt 25,3536).
1. 1,1: A expressão «doze tribos» mostra que os cristãos formam a Igreja, o
povo da nova Aliança. Eles estão espalhados em meio aos pagãos que, em
geral, são hostis. A carta procura animá-los e sustentá-los no testemunho.
2. 2-4: O cristão se alegra, não por ter provações, mas porque elas o ajudam a
descobrir o sentido e o valor do testemunho de sua fidelidade a Deus e a
Jesus Cristo. A provação abala o entusiasmo infantil, romântico e
descompromissado, fazendo o cristão perceber que a fé é compromisso que
exige sérias transformações na pessoa e no contexto social em que ela vive.
3. 5-8: A sabedoria é o exercício do discernimento, a capacidade de perceber o
que é mais importante fazer dentro das situações.
4. 9-11: A comunidade cristã é formada de pobres e ricos convertidos. Os
pobres devem orgulhar-se de sua condição modesta, que os deixa em
melhores condições para compreender o Evangelho (cf. Mt 5,3; 11,25-27).
Ao entrar na comunidade, os ricos perdem seu «status» social e prestígio
junto aos outros ricos, pois abrem mão de suas riquezas para dividir seus
bens com os pobres (cf. Lc 18,18-30; At 4,32-35).
5. 12-15: Para Tiago, é blasfêmia dizer que Deus tenta o homem, pois Deus não
quer levar ninguém a cometer pecado. A tentação nasce dentro do próprio
homem, continuamente fascinado pelo desejo de auto-suficiência, que lhe
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promete poder, riqueza e prazeres. Levado à prática, esse desejo contraria o
projeto de vida de Deus na história e por isso se torna pecado, acarretando
todas as formas de morte.
6. 16-18: Deus é autor apenas do bem e daquilo que leva ao bem. Jamais
conduzirá alguém à morte, pois o seu projeto é dar vida, e vida em plenitude.
O supremo bem realizado por Deus é gerar os homens para a vida nova,
comunicada pelo Evangelho (= Palavra da verdade).
7. 19-25: Tiago chama a atenção para a essência da vida cristã: ouvir a palavra
do Evangelho e colocá-la em prática. A fé não se resume em afirmações que
podem ser ouvidas e decoradas; ela é compromisso que leva a tomar atitudes
concretas e cheias de consequências. Centrado no mandamento do amor, o
Evangelho é a lei da liberdade, pois o amor não se restringe a exigir a
obediência a uma lista de obrigações; ele é comportamento criativo, que sabe
dar resposta libertadora e construtiva em qualquer situação.
8. 26-27: Temos aqui um dos pontos centrais do Novo Testamento: o culto que
se pede aos cristãos não se resume em cerimônias ou em saber fórmulas de
cor. O verdadeiro culto é a entrega de si mesmo a Deus para viver a justiça na
prática: não difamar o próximo (língua); socorrer e defender os pobres e
marginalizados (órfão e viúva) não comprometer-se com a estrutura injusta
da sociedade (corrupção do mundo).
9. 2,1-4: O favoritismo, que faz diferença entre as pessoas, opõe-se à fé no
Senhor Jesus Cristo. De fato, para o cristão existe uma só glória: é a glória do
Senhor. Os vv. 2-4 apresentam exemplo concreto do favoritismo que deforma
a comunidade cristã.
10. 5-13: Deus prefere os pobres e, portanto, essa é a única preferência que se
justifica na sociedade humana. A dignidade dos pobres repousa no fato de
que eles são ricos na fé e herdeiros do Reino (cf. Mt 5,3; 11,25-27). Os ricos
são indignos porque difamam o nome, isto é, a própria pessoa de Jesus (cf. At
9,5) oprimindo, perseguindo e distorcendo a justiça contra aqueles que se
comprometem com o projeto de Deus. O favoritismo em prol dos ricos não se
concilia com a fé cristã, porque se choca com o mais importante dos
mandamentos. Segundo o contexto, próximo, aqui, significa o pobre e
oprimido. Qualquer tipo de favoritismo em favor do rico não é simplesmente
desobediência a um dos pontos da lei de Deus, mas à lei inteira, que se
resume no amor ao pobre. O cristão se rege pelo Evangelho, que tem como
centro o mandamento do amor (= lei da liberdade, cf. nota em 1,19-25). E
este mandamento se realiza na prática da misericórdia, concretizada na
preferência pelos pobres e marginalizados, tornando-se a matéria única do
julgamento (cf. Mt 25,31-46).
11. 14-26: O único meio de salvação é a fé, a adesão a Jesus Cristo. Essa fé,
porém, não é coisa teórica ou mero sentimento interior; é o compromisso que
se manifesta concretamente em atos e fatos visíveis (cf. Mt 7,21). Tiago toma
dois exemplos do Antigo Testamento, que podem ser comparados com Hb
11,31 e, principalmente, com Rm 4 e Gl 3. Aparentemente, Tiago e Paulo
tiram conclusões opostas, ao usar o mesmo exemplo. Notemos, porém: Paulo
diz que Abraão se tornou justo por meio da fé, e não mediante a prática da
Lei. Tiago diz mais: a fé que justificou Abraão é uma realidade que se traduz
na prática de atos concretos. Ao falar de prática da Lei, Paulo afirma que
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nenhuma observância de regras pode levar à salvação, e que a fé é o princípio
de toda a vida cristã. Tiago, por sua vez, salienta que a fé se traduz no amor,
e este realiza atos concretos. Paulo diz a mesma coisa: «a fé age por meio do
amor» (Gl 5,6).
12. 3,1-12: Retoma-se aqui o tema já acenado em 1,19. A riqueza de particulares
deste texto faz com que ele possa ser definido como o «código da disciplina
da língua». A linguagem é um dos meios mais importantes para a
comunicação entre os homens; mas é meio ambíguo: pode construir e pode
destruir. Para Tiago, a palavra que o cristão dirige ao próximo deve ser
coerente com a palavra que dirige a Deus.
13. 13-18: Muitas pessoas se apresentam como «aquelas que sabem tudo». A
sabedoria verdadeira, porém, não é a cultura teórica que se aprende em livros,
mas é a experiência da vida que se manifesta no discernimento que leva a um
comportamento justo e pacífico. Sábio é aquele que nunca para de aprender.
Mais do que ensinar, ele é alguém que está sempre disposto a buscar a
verdade junto com os outros.
14. 4,1-10: O homem é ser inacabado e, por isso, sua vida é busca permanente de
realização. Frequentemente ele a pede a Deus. Por que não é atendido?
Porque muitas vezes imagina a sua própria realização dentro dos esquemas
de uma sociedade idolátrica, que adora os deuses da riqueza e do poder. Ao
invés de realizar-se, a pessoa encontra-se presa da cobiça e da inveja, que
produzem todo tipo de conflitos e competições e levam até mesmo à morte.
Este é o mundo que se absolutiza e se coloca no lugar de Deus (cf. Mt 6,24).
Para chegar à sua própria realização, o homem precisa descobrir-se como
criatura e reconhecer que Deus é o único Senhor absoluto, e só a ele se deve
adorar e servir. Aí nasce o processo de conversão, pela qual o homem rompe
com o espírito do mundo, abandonando o orgulho e a ambição, para tornar-se
pequeno e submisso a Deus. E Deus, o único que pode conceder a realização,
responde ao anseio do homem, manifestando-lhe a vida e a ação do seu Filho
como o sentido e a meta da vida humana.
15. 11-12: A lei de que Tiago fala aqui é o mandamento do amor (cf. 2,8). No
relacionamento humano não cabe a nós julgar o outro, pois acabaríamos
cometendo injustiças. Só Deus pode julgar, pois só ele conhece inteiramente
o que é o homem.
16. 13-17: Tiago critica os negociantes que, na sua autossuficiência, imaginam
ter domínio total sobre as situações e até sobre a própria vida, fazendo
projetos para enriquecer e assegurar uma existência tranqüila (cf. Lc 12,1820). No entanto, só Deus é o Senhor da vida e destino humanos, só ele
conhece o amanhã. Cabe ao homem entregar-se a Deus e fazer o bem.
17. 5,1-6: Tiago critica agora os proprietários que se enriquecem à custa dos
trabalhadores. Visando unicamente ao lucro, esses latifundiários cometem
graves injustiças sociais: retenção do salário devido aos operários (cf. Dt
24,14); acumulação de riquezas que não revertem para o bem comum, mas
servem unicamente para uma vida regalada e luxuosa; opressão jurídica e
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condenações conseguidas graças ao suborno contra os pobres inocentes que
não têm meios de defesa. Fruto do roubo e da injustiça, o tesouro amontoado
pelos ricos será testemunho que os condenará na hora do julgamento.
18. 7-11: A fé cristã está permeada de esperança de grandes transformações.
Muitas vezes, depois de uma ação prolongada e constante, o cristão pode
sentir-se desanimado, ao ver que essas transformações não acontecem como
se esperava. Tiago traz o exemplo do agricultor: o grão, depois de plantado,
não dá nenhum sinal de vida. Mas o agricultor sabe que surgirá a planta e
depois os frutos. A atitude cristã deve ser a mesma: perseverante e cheia de
confiança, na certeza de que tais transformações, passo a passo, se realizarão,
manifestando a vinda do Senhor.
19. 13-18: O texto salienta a eficácia da oração, que é mencionada sete vezes.
20. 14-15: No caso de doença, Tiago exorta para que a comunidade intervenha
através dos responsáveis, aqui chamados de presbíteros. A unção do doente
com óleo, juntamente com a invocação do poder do Senhor, assegura para o
doente a salvação, isto é, o bem-estar físico (recuperação) e espiritual (o
perdão dos pecados). A fórmula «em nome do Senhor» relembra a do
batismo (cf. At 2,38). Mencionando a fé e o gesto dos presbíteros, que
impunham as mãos, Tiago mostra que a unção dos enfermos é ato
sacramental, que simboliza e transmite dom de salvação.
21. 16: O perdão dos pecados é um gesto que Jesus confiou à comunidade cristã
(cf. Mt 18,18; Jo 20,23). É a comunidade unida, e de comum acordo, que
pode libertar o fiel de tudo aquilo que o separa de Deus e dos irmãos (cf. Mt
18,19-20). A forma que o sacramento da confissão foi adquirindo através da
história depende da disciplina da Igreja.
22. 19-20: O irmão se afasta da verdade quando perde a fé em Jesus e se afasta
da comunidade. O amor fraterno e o perdão podem reconduzir os que se
afastaram (cf. Mt 18,15.21-22), e também são proveitosos para quem os
reconduziu (cf. 1Pd 4,8).
PRIMEIRA CARTA DE SÃO PEDRO
UM LAR PARA QUEM NÃO TEM CASA
Esta carta foi escrita «aos que vivem dispersos como estrangeiros» por
todas as regiões da Ásia Menor. São, portanto, migrantes que vivem fora da pátria
(1,17), seja porque partiram em busca de trabalho para sobreviverem, seja porque
eram escravos comprados que permaneciam na casa de seus senhores, longe do
local de origem. Esses cristãos tinham deixado suas raízes, os parentes e amigos e
se encontravam em situação de isolamento em regiões que não lhes davam o
aconchego e acolhida que tinham na própria terra. Sofriam humilhações, injúrias,
perseguições por serem estrangeiros e cristãos. Pedro escreve, mostrando que a
união entre eles, seja na família, seja na comunidade, há de ser tão fraterna e
acolhedora, que formem juntos a «casa de Deus». Por isso, a carta respira clima de
alegria, fraternidade e esperança. Essa união e enraizamento na fé, através de um
testemunho de vida, será a retaguarda sólida diante de uma situação hostil (3,1317; 4,4-5).
Por isso, no texto a vida cristã aparece como algo simples e imediato. Não
há diretivas complicadas de vida; unicamente o senso fundamental do amor e da
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lealdade. Ameaçados pela perseguição e na expectativa de um próximo fim do
mundo, esses cristãos não pensam em mudanças estruturais para a construção de
nova sociedade; aceitam as estruturas e condições de sua época, procurando dentro
desse contexto testemunhar a justiça, a lealdade e o sentido da responsabilidade
humana. É nesse ambiente que devemos ler as passagens sobre os escravos, as
mulheres e o poder público (2,13-3,7).
A carta foi escrita de «Babilônia», que provavelmente designa a cidade de
Roma (cf. Ap 18,2.10.21). A data provável é o período imediatamente anterior à
perseguição desencadeada por Nero no ano 64 d.C.
1. 1,1-2: Pedro se dirige a cristãos que vivem longe da pátria em terras
estrangeiras. Por escolha de Deus, eles formam o povo da nova aliança,
graças ao sangue de Jesus Cristo. A menção das três pessoas divinas mostra
que a comunidade cristã tem a sua origem na Trindade.
2. 3-5: O novo nascimento pelo batismo é participação na vida de Jesus
ressuscitado. Trata-se de nascimento para outra vida e outra história, dando
aos cristãos esperança incomparavelmente superior a qualquer outro ideal
humano. Assim como Deus havia concedido a herança da terra ao povo da
antiga aliança, também o povo da nova aliança recebe como herança a
própria vida de Deus (cf. 2Pd 1,4). O cristão vive impulsionado para a vida
plena que está sempre em via de se manifestar.
3. 6-9: A fé é compromisso permanente com Cristo, até a morte. Cristo chegou
à glória da ressurreição e da vida através de perseguições e sofrimentos. O
cristão segue o mesmo caminho: mediante o testemunho de vida em meio às
provas, pouco a pouco nele se manifesta o próprio Cristo, que comunica a
alegria da ressurreição.
4. 10-12: Aquilo que estava escondido aos profetas e anjos foi revelado aos
cristãos: Deus realizou seu plano salvador através de Jesus Cristo, que
culminou seu testemunho na morte e ressurreição. Este é o grande mistério
anunciado por aqueles que pregam o Evangelho, impulsionados pelo Espírito.
E o Espírito provoca o discernimento que nos leva a compreender o projeto
de Deus realizado em Jesus.
5. 13-21: O texto apresenta o código cristão da santidade. Pela conversão e
batismo, o cristão começa uma vida nova que, por uma série de motivos,
exige constante empenho de santificação: imitação da santidade de Deus que
o chamou à fé; perspectiva do julgamento conforme as obras de cada um; o
caro resgate realizado por Jesus Cristo. O clima da vida cristã é apresentado
aqui como permanente conversão: de escravos do mundo e das paixões, os
cristãos foram libertos por Cristo para serem filhos de Deus, que se reúnem
formando nova família. Para os que vivem num ambiente onde são
discriminados, humilhados e até perseguidos, essa é a base fundamental para
que eles se sintam em casa e possam enfrentar o clima hostil.
6. 22-2,3: A palavra viva de Deus é a fonte da vida nova. Essa palavra engloba
tanto a revelação do Antigo Testamento que culminou em Jesus, como o
anúncio do Evangelho, que sintetiza toda a revelação. O cerne do Evangelho
é a revelação do amor com que o Pai se manifesta, doando totalmente a vida
de Jesus em favor dos homens. Diante disso, ser santo é entregar-se
totalmente à vivência do amor mútuo.
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7. 2,4-10: A situação dos cristãos imigrantes em terras estrangeiras é a mesma
de Jesus, que foi descartado pelos homens como pedra inútil. Mas, como
Jesus ressuscitou e se tornou a pedra viva, do mesmo modo os cristãos
menosprezados se tornam pedras vivas que, unidas a Cristo, formam o
templo vivo, onde todos são sacerdotes, oferecendo os sacrifícios que são
agradáveis a Deus, através da própria vida. Agora, já não há outros entre
Deus e seu povo: todos participam da única mediação sacerdotal de Cristo.
Os cristãos não só têm uma casa, mas eles mesmos são essa casa; são o
verdadeiro povo que dá testemunho das obras maravilhosas de Deus.
8. 11-12: A dimensão fundamental e primeira da missão evangelizadora da
comunidade cristã é a vida prática; é o que Pedro destaca logo a seguir. Esse
testemunho prático é uma crítica manifesta às estruturas pagãs de uma
sociedade que rejeita a comunidade cristã, tachando-a de malfeitora e
subversiva. O julgamento de Deus, porém, manifesta a verdade: vendo o
testemunho da comunidade, os pagãos começam a converter-se ao Deus
verdadeiro.
9. 2,13-3,12: As exortações deste trecho têm fio condutor bem claro: no
relacionamento com as autoridades e os patrões, como também no
matrimônio, os cristãos se comportam sempre na condição de pessoas livres,
sem medo e jamais com subordinação e temor servil. Nessa liberdade de
filhos de Deus, formam uma comunidade onde estão presentes a compaixão,
o amor fraterno, a misericórdia e a humildade, e onde o mal é retribuído com
o bem. A comunidade torna-se, então, portadora de bênção.
10. 2,13-17: O texto exclui qualquer subordinação servil e acrítica: a
obediência só tem sentido quando é expressão da liberdade de filhos de
Deus, «por causa do Senhor». As autoridades também são criaturas (v. 13),
e têm a função de servir, zelando pelo bem comum; para isso devem punir
os malfeitores e louvar os que fazem o bem. A obediência cristã não é
servilismo, pois na comunidade deve existir a relação de amor; a relação
para com todos, inclusive para com a autoridade, é de respeito, mas só a
relação com Deus é definida como temor, isto é, só Deus é absoluto e só ele
deve ser temido e adorado pelo homem.
11. 18-25: O ponto importante é que os cristãos devem sempre fazer o bem (v.
20), em qualquer condição, mesmo que para isso tenham de suportar
sofrimentos. Quando nem se pensava em abolição da escravatura, esta
exortação mostra que Deus não quer a escravidão. De fato, Pedro considera
os sofrimentos como injustos (v. 19). Se na época era impensável deixar de
ser escravo, torna-se claro que essa submissão é feita por temor a Deus a
exemplo de Jesus Cristo e não como submissão servil aos patrões (no v. 18
«com todo temor» se refere a Deus). A resistência cristã numa situação sem
saída consiste em fazer o bem. Se aqui não há nenhuma referência ao
comportamento dos patrões é porque estes, provavelmente, não fazem parte
dos destinatários da carta. Já vimos (cf. Introdução) que se trata de gente fora
da pátria e em situação de oprimidos.
12. 3,1-7: Começam a romper-se as cadeias com que a sociedade patriarcal
prendia a mulher. As esposas são anunciadoras de conversão, missionárias
em relação a alguns maridos rebeldes ao Evangelho. Elas realizam essa
evangelização pela prática: caráter firme e não enfeites; estes apenas
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indicariam sujeição ao gosto do marido. Elas também não devem temer, isto
é, comportar-se como escravas.
13. O v. 7 revoluciona a concepção da família patriarcal: os maridos cristãos
devem ter compreensão e consideração com suas esposas, e isto é condição
para relacionamento íntimo com Deus na oração. A motivação é fortemente
igualitária: «por serem herdeiras como vocês do dom da vida.»
14. 8-12: Pedro se dirige agora à comunidade toda. Para que ela se torne um lar,
ele apresenta os elementos mais importantes: compaixão, que consiste em
participar da situação do outro; amor fraterno, que tem como ponto central o
serviço; misericórdia, que torna possível a convivência entre irmãos que
erram; espírito humilde, que não ambiciona o poder e não leva à rivalidade e
opressão.
15. E como comportar-se com aqueles que hostilizam a comunidade? O
princípio fundamental é pagar o mal com o bem. Isso não significa ser
passivo ou omisso. Ao contrário, agindo assim, os cristãos se tornam
abençoados e portadores da bênção; ao mesmo tempo, tornam-se
instrumentos de julgamento que desmascara e desarma os que praticam o
mal.
16. 13-17: Os sofrimentos, de que fala a carta, não são aqueles provindos de
alguma doença ou de uma perseguição programada pelo Estado. São os
sofrimentos originados da situação em que se encontram os destinatários:
imigrantes sem direitos e, além disso, cristãos com projeto de vida diverso do
ambiente em que vivem. Com certeza eles já eram vistos como subversivos e
conspiradores (cf. Is 8,12, onde Pedro se inspira). Por outro lado, tais
sofrimentos não devem ser suportados pelo sofrimento em si, mas com
finalidade bem precisa; «por causa da justiça» (v. 13; cf. também v. 17). Esse
sofrimento é uma bem-aventurança («felizes de vocês»), pois é conseqüência
do testemunho cristão (v. 15).
17. 18-22: Diante dos sofrimentos, o modelo sempre é a morte de Jesus, através
do qual se realizou o ato definitivo da salvação. Pedro compara duas
situações: o tempo de Noé e o tempo dos cristãos. No tempo de Noé, foi
salvo um pequeno grupo de justos, enquanto a maioria pereceu. Com a
descida de Jesus à mansão dos mortos, também eles tiveram que se
confrontar com o Evangelho. No tempo dos cristãos, igualmente existe um
grupo menor de batizados («salvos pela água»), e a maioria ainda não se
converteu. Agora, o testemunho dos batizados deve fazer com que os nãoconvertidos se confrontem com o Evangelho.
18. 4,1-19: Em todo o capítulo 4 transparece a mentalidade apocalíptica, isto é, a
convicção de que se aproxima o fim dos tempos (v. 7), quando se dará a luta
final entre o bem e o mal, a vitória definitiva do bem e o julgamento de Deus
sobre os homens. Essa expectativa provoca a firme resistência daqueles que
são perseguidos por não quererem se deixar levar pelo mal. Eles se engajam
na luta pelo bem, para poderem participar da vitória final e se apresentar
como testemunhas fiéis no julgamento. Para o cristão, essa última etapa da
história se iniciou com a ressurreição de Jesus Cristo.
19. 1-6: O exemplo para a resistência contra o mal é Jesus, que sofreu na carne
e por isso, ressuscitado, já participa da glória do Pai. Aquele que se
mantém na prática do bem rompe com os projetos de morte e se engaja no
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projeto de Deus. Por isso, como Jesus, sofre na carne: não é aceito por
aqueles que insistem em manter o jogo da morte nas relações humanas.
Mas a resistência continua motivada pela esperança de que o tempo é breve
e o julgamento está próximo tanto para os vivos como para os mortos. E os
justos que deram o testemunho e já morreram? Também eles serão
confrontados com o Evangelho e terão a vida de Deus.
20. 7-11: Diante da iminência do fim dos tempos, Pedro ressalta a sobriedade,
pela qual o cristão reconhece que tudo aqui é passageiro. Em seguida, mostra
que essa espera não deve levar à passividade, mas à prática do bem, ao amor
constante e intenso. A hospitalidade se apresenta como prática importante,
principalmente para quem vive em terra estrangeira. Por fim, fala dos
carismas, destacando o anúncio da palavra de Deus e o serviço.
21. 12-19: As primeiras comunidades cristãs têm que manter sérias lutas para
testemunhar o Evangelho. Nas repressões e perseguições, deve-se ter em
vista a fidelidade ao caminho de Jesus que, embora inocente, também foi
perseguido e morto pelas estruturas de uma sociedade injusta. O tempo de
provações é visto como julgamento de Deus, pois aí se manifesta a verdade,
tanto dos justos como dos injustos. Em meio à luta, os cristãos permanecem
firmes, porque confiam na justiça de Deus, que é o Senhor da história.
22. 5,1-4: O presbítero é apresentado como pastor, à imagem de Jesus, o
supremo pastor. A serviço da comunidade, o presbítero deve atender livre e
espontaneamente e não coagido, com generosidade e não como explorador,
como modelo e não como proprietário. Assim, ele não é alguém que exerce
poder sobre a comunidade, mas alguém que testemunha o Cristo que serve
(cf. Lc 22,27).
23. 5-11: Após retomar alguns conselhos anteriores (humildade, sobriedade,
prontidão), Pedro insiste que é necessário resistir ao mal (diabo). Este
procura de todos os modos provocar o desânimo e desistência na fé. A
solidariedade com outras comunidades que enfrentam as mesmas
dificuldades torna-se apoio e estímulo à perseverança na fé.
24. 12-14: Na linguagem dos cristãos desse tempo, Babilônia indica a grande
cidade de Roma, centro das religiões pagãs (cf. Ap 17).
25. Silvano ou Silas foi também companheiro de viagem de Paulo (cf. At
15,40-18,5). Marcos é provavelmente o autor do 2º Evangelho.
SEGUNDA CARTA DE SÃO PEDRO
PERSEVERAR NA ESPERANÇA
Embora se apresente como sendo de Simão Pedro (1,1; 3,1), esta segunda
carta é o último escrito do Novo Testamento, e foi provavelmente escrita no fim
do séc. I ou mesmo em meados do séc. II. Seu autor imita o gênero literário do
«testamento dos antepassados», comum naquela época: pôr conselhos e
advertências na boca dos patriarcas que estão próximos à morte.
Estamos no tempo em que a Igreja está passando da época primitiva para a
chamada era pós-apostólica. Até aí o cristianismo fora vivido como novidade
entusiasmante e esperava-se ardente e continuamente pela volta gloriosa de Jesus.
Nesse momento, porém, o tempo do Jesus terrestre começava a perder-se no
passado, e o futuro da parusia torna-se cada vez mais distante. A comunidade
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cristã vai aos poucos sofrendo influências de pensamentos e religiões diversas que
ameaçam deturpar o mistério cristão e até mesmo a consciência moral das
comunidades com uma série de idéias sem ligação com a vida.
A carta responde à situação, estimulando os desencorajados e denunciando
com veemência as doutrinas estranhas à fé. Ao mesmo tempo que anuncia a
catástrofe final do mundo, ensina também a paciência e a perseverança, o senso da
vida sob o julgamento de Deus, o progresso na fé a na graça. Por outro lado,
defende o essencial da fé e insiste na Palavra de Deus, referindo-se às cartas de
Paulo como a um conjunto literário bem conhecido de toda a Igreja. Em poucas
palavras, a carta é uma lição importante para o cristianismo, que deve aceitar ser
fermento dentro de uma longa história, embora deva recusar um estabelecimento
triunfal num momento da história.
1. 1,1-2: A graça e a paz chegam até o cristão através do conhecimento de Jesus
Cristo; este é um dos temas centrais da carta (1,2.3.8; 2,20; 3,18; cf. 1,16).
Trata-se da fé em Jesus Cristo, tal como foi transmitida pelos apóstolos e que
exige ao mesmo tempo comportamento coerente com ela. A insistência do
autor sobre esse «conhecimento» se deve ao fato de que, na época, surgem
doutrinas que deterioram o núcleo fundamental da fé cristã e que desligam da
vida prática o conhecimento religioso.
2. 3-11: Conhecer o testemunho de Jesus abre para a humanidade a
possibilidade de conversão ou mudança radical: de um lado, a ruptura com as
estruturas idolátricas da sociedade; de outro, o início de uma nova caminhada
que leva de modo crescente à participação na própria natureza de Deus,
princípio e fim da vocação humana (cf. Gn 1,26-27). Esse conhecimento
fornece também os meios para a caminhada cristã, as oito virtudes
enumeradas nos vv. 5-7, que têm como início a fé e como fim último o amor.
3. 12-18: Para falar sobre a vinda gloriosa de Jesus Cristo, os falsos mestres da
época arquitetavam teorias complicadas e sem fundamento. Os apóstolos, ao
contrário, transmitem fatos que viram com os próprios olhos. O v. 17 alude à
transfiguração de Jesus (cf. Mt 17,5).
4. 19-21: Os profetas do Antigo Testamento, que anunciavam a glória do
Messias, não se fundamentavam numa visão pessoal e subjetiva; o
testemunho deles era expressão do que Deus queria comunicar aos homens
através do Espírito. A Bíblia inteira é inspirada pelo Espírito Santo, o qual
não ditou os livros ou fez revelação particular a seus autores. Estes apenas
escreveram movidos pelo Espírito, e o fizeram com seu estilo próprio e
conforme a cultura do seu tempo. Tinham consciência de expressar a fé
genuína do seu povo, mas não necessariamente se davam conta de que
estivessem obedecendo ao Espírito Santo.
5. 2,1-22: O autor apresenta um retrato dos falsos mestres, que se dizem
cristãos, mas negam o valor salvífico dos atos de Jesus. Por amor ao dinheiro,
eles falseiam os grandes princípios do Evangelho, manipulando a fé dos
ouvintes; para eles, a salvação está no conhecimento ou «gnose», que não
tem ligação nenhuma com a vida prática. O autor os compara a Balaão,
apresentado como modelo do profeta venal e corrupto: o que eles anunciam é
uma falsa liberdade, escravidão e degeneração. A advertência dirigida a eles
é severa. O autor quer, sobretudo, advertir os fiéis a se manterem firmes
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numa fé comprometida, a fim de serem preservados no dia do julgamento,
como aconteceu com Noé e Ló.
6. 3,1-10: Duas gerações de cristãos haviam esperado a vinda eminente de
Jesus, e isso os ajudava a serem mais comprometidos na própria fé. Diante da
demora, os falsos mestres semeiam a dúvida, dizendo que tudo continua
como antes. A isso o autor responde, mostrando que Deus não mede o tempo
como nós; e, de outro lado, que o tempo se torna longo para ser como sinal
de que Deus está dando a todos oportunidade de conversão. Quanto ao fim do
mundo, ninguém sabe quando acontecerá. É preciso vigiar, pois «esse dia
chegará como um ladrão».
7. 11-16: Assim como Deus espera pacientemente que os pecadores se
convertam antes do julgamento final, do mesmo modo os que se convertem
aceleram a vinda da plenitude do Reino. Não se fala propriamente de fim do
mundo, mas de uma transformação em «novos céus e nova terra»: a
humanidade renovada, onde se realizará nova ordem com justiça.
8. 15-16: A menção às cartas de Paulo mostra que, nessa época, elas já
possuíam na Igreja a mesma autoridade que os outros livros considerados
partes da Sagrada Escritura.
A carta de Judas
O autor apresenta-se como «irmão de Tiago» (1,1), ou seja, «irmão do
Senhor» (ver Mt 13,55 par.). Hoje parece ter muito mais peso a opinião de que este
«irmão do Senhor» é distinto do Apóstolo Judas Tadeu (Mc 3,18). Com efeito, os
“irmãos do Senhor” não pertenceriam ao grupo dos Doze, pois se distanciaram de
Jesus, não crendo nele durante a sua vida terrena (Jo 7,5); ora o autor dá a entender
que não se situa entre os Apóstolos (v.17).
A brevidade desta Carta e o seu menor interesse doutrinal justificam ter sido
menos citada na antiguidade e ter havido dúvidas acerca da sua canonicidade; mas já
aparece citada em Tertuliano e no Cânon de Muratori.
A Carta não menciona os destinatários; seriam cristãos residentes fora da
Palestina, que correriam o perigo de se deixarem seduzir por vícios próprios do
paganismo. Entre esses destinatários haveria judeo-cristãos da diáspora; de outro
modo, não fariam sentido tantas alusões ao AT e à literatura apócrifa judaica: o I
Livro de Henoc, citado nos v.14-15, e a Assunção de Moisés, possivelmente no v.9.
Com uma linguagem rica e cuidada e com grande vivacidade de estilo, este
escrito é uma duríssima invectiva contra os hereges e uma vibrante exortação aos
cristãos a permanecerem firmes na fé e no amor de Deus, segundo o ensino dos
Apóstolos.
Quanto ao lugar onde foi escrita e à sua data, não podemos ir além de
conjecturas. Embora não se refira à parusia, são grandes as semelhanças com a 2.ª de
Pedro (compare-se 2 Pe 2,1-18; 3,1-3 e Jd 4-19), a qual parece depender desta, em
virtude do maior e mais ordenado desenvolvimento dos temas. Por isso, teria sido
escrita antes de 2 Pd ou nos fins da vida de Pedro, ou então, como pensam outros, já
depois da sua morte, por volta do ano 80.
A maior parte desta pequena carta dirige-se contra os falsos mestres, que se
tinham infiltrado nas comunidades. E nesta polêmica tem especial interesse a
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influência da literatura apocalíptica judaica, citando mesmo o Livro de Henoc
(v.4.6.14) e a Assunção de Moisés (v.9).
PRIMEIRA CARTA DE SÃO JOÃO
O DINAMISMO DA FÉ É O AMOR
O autor da primeira carta de João é o mesmo do quarto Evangelho, ou
talvez um discípulo dele. Escrita provavelmente no fim do séc. I, era dirigida às
comunidades cristãs da Ásia Menor, que passavam por séria crise, provocada por
um grupo de dissidentes carismáticos. Estes propunham uma doutrina gnóstica,
que afirmava que o homem se salva graças a um conhecimento religioso especial e
pessoal. Eles negavam que Jesus era o Messias e se gloriavam de conhecer a Deus,
de amá-lo e de estar em íntima união com ele; afirmavam-se iluminados, livres do
pecado e da baixeza do mundo; não davam importância ao amor ao próximo e
talvez até odiassem e hostilizassem a comunidade. O grupo fora rejeitado, mas
algumas comunidades ficaram inseguras e confusas.
A carta mostra que é vazio e sem valor qualquer espiritualismo que não se
traduz em comportamento prático. Não é possível amar a Deus sem amar ao
próximo e sem formar comunidade: se Deus é Pai, os homens são filhos e família
de Deus, e consequentemente todos devem amar-se como irmãos. Deus
manifestou o seu amor por meio de Jesus, que tornou possível o amor entre os
homens. Daí o perigo de negar que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, que viveu e
deu sua vida pelos homens. Por outro lado, somente pela fidelidade ao exemplo e
mandamento de Jesus é que o homem tem vida plenamente humana.
O centro da carta é o amor, que traduz a fé em vida concreta. Amar ao
próximo significa conhecer a Deus, viver na luz, estar unido a Deus e aos irmãos,
não pertencer ao mundo e cumprir os mandamentos. Portanto, amar a Deus é
praticar a justiça, é ser filho de Deus, obter o perdão dos pecados e libertar-se do
medo.
1. 1,1-4: Desde o início, João destaca o centro de toda a revelação de Deus: a
vida. Do Pai para o Filho, do Filho para suas testemunhas, das testemunhas
para os fiéis, ela se transmite e vai se ampliando como participação,
comunhão e alegria. A revelação, portanto, não é uma idéia abstrata; é a
manifestação de Deus no seio da história, comunicando a vida concreta,
presente em Jesus Cristo. E a verdadeira Igreja é uma comunhão voltada para
a vida; por isso, ela gera alegria e comprova a união íntima com o Pai e com
o Filho.
2. 5-7: A luz de Deus é o seu amor pelos homens (cf. Jo 3,16). A Igreja está em
comunhão com Deus quando a própria realidade do Deus revelado - seu amor
pelos homens - se expressa na vida da Igreja como amor fraterno que gera
comunhão (cf. Jo 13,34-35). Estar nas trevas é estar longe de Deus. Isso, na
prática, significa estar afastado do irmão; em outras palavras, odiá-lo (2,11).
O grande pecado é a incoerência de uma Igreja que pretendesse estar em
comunhão com Deus, mas não gerasse a comunhão entre seus membros e
grupos.
3. 1,8-2,2: A Igreja que não se reconhece pecadora vive em farisaísmo, e
conseqüentemente faz de Deus um mentiroso, tornando-o cúmplice dos
pecados dela. Com efeito, a revelação mostra que Deus perdoa o pecado. E
mais: Cristo entregou a sua própria vida para que os homens sejam libertados
13
4.
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9.
da injustiça e tenham a vida. É confessando os próprios pecados que a Igreja
declara ao mundo a inocência e a justiça do Deus vivo.
2,3-11: O conhecimento de Deus se demonstra por uma prática concreta, isto
é, quando a pessoa faz a vontade de Deus. Essa vontade foi revelada e
concretizada em Jesus e consiste no mandamento novo, como é expresso em
Jo 13,34-35. E é a prática do mandamento do amor que faz as pessoas e os
grupos sociais saírem do próprio egoísmo e do isolamento, que geram a
morte, para viverem as relações fraternas que geram a vida.
12-17: João dá as linhas gerais que compõem o retrato do cristão: este foi
perdoado (passou da morte para a vida); é alguém que conserva a memória da
salvação mediante o anúncio do Evangelho; conhece o Pai e vive a
fraternidade; e é alguém que tem força para vencer continuamente o mal
personificado pelo diabo (Maligno).
Nos vv. 15-17 João caracteriza as duas ofertas de vida: a vida que vem do
mundo (desejos desenfreados, ambição de possuir e autossuficiência da
riqueza) e a vida que vem de Deus e que é possuída pelo homem quando
este põe em prática a vontade de Deus. A vida que o mundo oferece é falsa
e, por isso, frágil e passageira; a vida que Deus oferece é a sua própria vida
e, por isso, preenche o desejo do homem e permanece para sempre. Cabe
ao homem escolher definitivamente um desses tipos de vida.
18-28: A revelação cristã mostra que a salvação é o dom da vida que o Pai
concede aos homens através de Jesus. Anticristos são aqueles que rejeitam
Jesus como Cristo, isto é, como Messias e Salvador; desse modo, rejeitam
também o Pai e, portanto, a própria vida. Cristãos verdadeiros são aqueles
que aceitam Jesus como Salvador, e assim recebem a vida que vem do Pai.
Jesus tinha anunciado que no fim dos tempos (período que vai da
ressurreição de Jesus até o final da história) apareceriam anticristos, que
procurariam desviar os fiéis (cf. Mc 13,22). Os cristãos, porém, não devem
temer, porque receberam a unção do Espírito que mantém sempre viva neles
a memória de Jesus e ensina os cristãos a encarnar Jesus Cristo em qualquer
tempo e lugar (cf. Jo 14,14-17). A comunidade cristã, portanto, é carismática:
seus membros receberam o Espírito que lhes ensina tudo sobre Jesus, e por
isso eles não precisam depender de mediadores externos.
2,29-3,2: João começa novo tema: Deus é justo. Jesus Cristo manifestou
inteiramente a Deus porque, através de sua vida, mostrou concretamente o
que é a justiça divina. Do mesmo modo, quem pratica a justiça mostra que é
filho do Deus justo, à semelhança de Jesus. Não basta ser batizado para ser
filho de Deus: é preciso praticar a justiça. Essa realidade, porém, ainda está
em crescimento, e só se realizará totalmente quando puderem contemplar
toda a glória de Jesus Cristo. O mundo não reconhece o Deus justo, porque o
princípio que rege a vida do mundo é a injustiça. Desse modo, o mundo
considera como inimigos perigosos o Deus justo e seus filhos que revelam a
justiça.
3,3-10: Praticar a justiça é amar o irmão: esta é a vida na graça de quem
conheceu a justiça de Deus - seu amor pelos homens - revelada em Jesus
Cristo. Quem não ama o irmão pratica a injustiça, isto é, está do lado do
Diabo e vive no pecado, que é odiar o irmão. Esse ódio, porém, não é apenas
sentimento interior; é princípio de vida que rege todo pensamento e ação, e se
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manifesta através de preconceitos, separatismo, exploração e opressão. Com
Jesus começou a era da justiça: o amor ao irmão leva à relação, à comunhão,
à partilha e fraternidade.
10. 11-24: O dom do Espírito produz nas pessoas a contínua memória e
compreensão sobre a pessoa de Jesus (cf. Jo 14,26). É o Espírito, portanto,
que gera a fé em Jesus e fé é compromisso que produz vida nova. Essa vida,
porém, não se traduz apenas por um conhecimento intelectual, mas pela
prática do mandamento do amor, que não significa apenas amar com
sentimento e com afeto, mas através de ações concretas que promovam a vida
e a liberdade dos irmãos. A prática do amor não tem limites, pois devemos
amar como Jesus amou: assim como ele foi até o fim dando sua vida por nós,
também nós devemos dar a vida pelos irmãos. O Evangelho não pede que
sejamos perfeitos para depois amar; pede-nos, sim, que amemos
concretamente, certos de que Deus é maior do que a nossa consciência e
compreende e perdoa todas as nossas imperfeições.
11. 4,1-6: Os cristãos se deparam continuamente com religiões, projetos
políticos, propostas sociais, sistemas de pensamento, e todos eles se
apresentam como salvadores. Como discernir o que vem de Deus e o que é
tapeação que vem do mundo? Como distinguir a verdade do erro? João nos
mostra que o critério está no projeto que Deus manifestou através de Jesus
encarnado: ele realizou uma prática que promovia a vida e a liberdade dos
homens. Todo projeto (religião, pensamento, sistema ou proposta) que não
coincida com a prática de Jesus não vem de Deus.
12. 7-21: O centro da vida é a prática do amor. Esse amor testemunha concreta e
visivelmente o conhecimento e a união que temos com Deus, com seu Filho e
com o Espírito. De fato, Deus Pai torna-se conhecido pelos homens no ato de
dar, por amor, o seu Filho ao mundo (Jo 3,16). O Filho é conhecido pela
entrega de si mesmo, no amor, até o fim (Jo 13,1). O Espírito gera a memória
do Pai e do Filho nos cristãos, isto é, a própria vida no amor. A fé na
Trindade é a teoria de uma prática que se expressa no amor concreto aos
irmãos, a quem Deus ama. A incoerência fundamental seria afirmar uma fé
na Trindade que não correspondesse à prática do amor. João deixa claro que
o julgamento de Deus será feito sobre a prática do amor vivida ou não (cf. Mt
25,31-46). Por isso, quem ama não teme o julgamento.
13. 5,1-12: Todos nós buscamos a plenitude da vida; mas, onde ela se encontra?
A Bíblia nos responde: Deus é vida plena e, graças ao seu amor por nós, ele
deu sua própria vida através de seu Filho encarnado. Os homens têm acesso à
vida através da fé. E é a fé que acolhe o dom que Deus realiza em Jesus. É
esta fé que faz experimentar desde já a vida eterna. Mas, o que é a fé? É o
compromisso com o testemunho que Jesus deu desde o batismo (água) até a
sua morte (sangue). E quem desperta esse compromisso é o Espírito, que nos
faz recordar, compreender e viver esse testemunho de Jesus, que dissipa todo
egoísmo, mentira e morte (vence o mundo).
14. 13-17: Por que às vezes rezamos, e Deus não nos responde? João nos mostra
que a oração não é meio para satisfazer nossos caprichos egoístas, e sim meio
de nos colocarmos dentro do projeto de Deus e pedirmos a realização da sua
vontade amorosa, que gera vida e liberdade. Por isso, o pedido fundamental
para nós e para os outros é sempre: «venha a nós o teu Reino».
15
15. Os cristãos pecam, porque continuam sujeitos à fraqueza humana. O
«pecado que leva à morte» é a rejeição do projeto que Deus realizou
através de Jesus Cristo, pois fora desse projeto o homem caminha para a
morte.
16. 18-21: Após um resumo da carta, João recomenda que os cristãos tenham
cuidado com os ídolos. Para ele, ídolos são as pessoas, coisas, estruturas e
projetos que produzem escravidão e morte e se apresentam como absolutos,
pretendendo substituir o projeto de vida e liberdade que Deus realizou em
Jesus Cristo.
SEGUNDA CARTA DE SÃO JOÃO
VIVER NA VERDADE
Esta carta se dirige a uma comunidade personificada como «Senhora eleita»,
repetindo frases da primeira carta de João. Trata-se de comunidade exposta à ameaça de
perder o próprio coração da fé e da vida cristã. Alguns pregadores «avançados» negam que o
homem Jesus seja o Messias enviado por Deus e deixam de lado o mandamento do amor
mútuo, rompendo consequentemente sua relação com Deus. Em poucas palavras, pregam um
conhecimento elevado que não necessita da fé em Jesus nem do seu evangelho de amor. O
Ancião é radical: proíbe que a comunidade mantenha qualquer relacionamento com esses
impostores. Trata-se sem dúvida de pessoas que pertencem ao grupo combatido pela primeira
carta de João.
O remetente assina «Ancião» (= presbítero) e os destinatários se encontram na Ásia
Menor. O autor e a época são os mesmos da primeira carta de João.
1. 1-3: A Verdade é a revelação de Deus em Jesus Cristo.
2. 4-6: O centro da vida cristã é a prática do amor, tal como é apresentado pelo
mandamento evangélico (cf. Jo 13,34-35; 1Jo 2,7-11).
3. 7-11: O nome Anticristo é usado aqui para designar aqueles que negam o projeto de
Deus em Jesus Cristo e pretendem «avançar» no caminho da espiritualidade.
TERCEIRA CARTA DE SÃO JOÃO
COOPERADORES DA VERDADE
Esta é uma carta de encorajamento, que apresenta situação e pessoas bem concretas.
O «Ancião» é certamente responsável por um grupo de comunidades, e está encontrando a
oposição de Diótrefes, o bispo de uma igreja local, a quem acusa de ser dominador e de ter
uma língua ferina. O Ancião enviou alguns missionários que se hospedaram na casa de Gaio,
mas Diótrefes não permitiu que eles tivessem acesso à comunidade local; agora torna a enviálos e pede a ajuda de Gaio. Demétrio, portador da carta, talvez seja um desses missionários.
Note-se que a crítica ao bispo Diótrefes não é a respeito de uma doutrina errada, mas de um
espírito autoritário, que toma decisões sem consultar a comunidade.
Sugestões para leitura extraclasse:
Bíblia de Jerusalém.
Teologia do Novo Testamento – UDO SCHNELLE - Paulus -2010
Introdução ao Segundo Testamento- Vários Autores – ITEBRA – Paulus
Deus: ontem e hoje – MOACYR CASAGRANDE – EPB
Cartas Católicas (todas as cartas)- JOSÉ BORTOLINI – Paulus
Escritos Joaninos e Cartas Católicas - XAVIER ALEGRE – Ave Maria
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