Jornal A Tarde, quarta-feira, 12/12/1962 Assunto: DESENVOLVIMENTO E LIBERDADE Há uma velha crença, que foi muito cara aos adeptos do liberalismo do século passado, de que a Igreja católica só é capaz de formar obscurantistas e ultramontanos, impermeáveis às idéias de liberdade e de progresso. O “progresso”, no caso, era uma teoria do aperfeiçoamento contínuo e crescente do homem que levaria todos os indivíduos e as massas a uma espontânea bemaventurança na terra sem necessidade de esforço ou de estímulos externos; era uma das maneiras pelas quais a evolução biológica conduziria o “animal pensante” às suas formas acabadas. É claro que a Igreja nunca poderia ter aceito e adotado esse mito positivista tão simplório em sua concepção quão débil em face da história. Restava a liberdade, que os liberais supunham que era uma descoberta, um achado e talvez uma invenção somente deles. Não duvido que na Igreja se criem obscurantistas e ultramontanos, como se criam noutros sistemas, inclusive no defunto liberalismo, porque os homens fazem das idéias o que pedem seus temperamentos morais e intelectuais, de maneira que tomando as idéias de liberdade, de autoridade, de ordem, são capazes de forjar as mais abstrusas combinações. O que não admito é que da doutrina cristã, sobretudo da doutrina moral e teológica do catolicismo, só se posta criar ou sempre se forme, necessária e inevitavelmente, o reacionarismo em religião, em política, em moralidade, em estética. Nem me espanto de que o medo da liberdade, - o medo do homem, afinal, gerem dentro da Igreja o conservantismo, o imobilismo, o fascismo de tantos. Mas disto não é culpada a doutrina que a Igreja ensina. Quanto a mim, se alguma coisa vale este depoimento, nunca vacilei em admitir que, unicamente por ser cristão, - um cristão imperfeito e débil, é que creio primeiro no homem, depois nas coisas que servem ao homem. Assim creio desenganadamente na aptidão humana para a liberdade em todos os planos, não a liberdade no sentido formal que nos legou o individualismo liberal e o ecletismo renascentista, mas a autonomia do único ser que pensa e ama e a sua preeminência, na ordem temporal, a tudo mais: em outros termos, a supremacia da pessoa ante o indivíduo como ante a massa. Essa distinção entre indivíduo e passoa, que distancia astronômicamente o cristão do individualista, é uma doutrina fundamentalmente cristã, que há muito está nas lições de Agostinho, de Tomás de Aquino, como estava em São Paulo e ao Evangelho, e na mais velha patrologia, e volta a estar em Guardini, em Maritain, em Sturzo. Também a diferenciação, em principio e na prática política, entre povo e massa, - um com auto-determinação, sabendo o que quer, querendo livremente sem a coação externa do medo ou de demagogia, - outra sem vontade, sem orientação própria, anestesiada pelos “slogans”, coagida pelo temor, é uma diferenciação também cristã, a que, por sinal, Pio XII deu formulação expressa num dos seus documentos contra os modernos autoritarismos de direita e de esquerda. Pois há poucos dias tive nova confirmação das minhas convicções ao participar do ato solene de conclusão de curso dos alunos de nível colegial do Colégio Antônio Vieira, um estabelecimento criado e mantido pelos jesuítas, tão acusados há um século e meio atrás, mesmo no seio da Igreja, de serem os supremos teóricos do autoritarismo e das doutrinas mais retrógradas. O que ali ouvi, com muitas centenas de pessoas que vibraram de entusiasmo, mais me segura na certeza de que para crer na liberdade, para aspirar pela justiça, para querer o bem de todos, para detestar os privilégios injustos, para lutar pelo progresso global e pelo desenvolvimento é preciso, primeiro, não se iludir de que o homem necessite menos da liberdade, da autonomia de crer, de pensar, de expressar-se em arte, em literatura, em política, do que do puro desenvolvimento econômico, do enriquecimento nacional, do fortalecimento do Estado, da ordem imposta de fora pela coação, nem de que seja capaz de um altruísmo, de uma dedicação ao bem-estar coletivo, de um desprendimento total que aquele materialismo nem pode criar nem pode sustentar nas vontades. Naquela cerimônia, que me lembrou as de anos passados sob o teto do velho colégio do Portão da Piedade, pronunciaram-se alguns discursos, dois, particularmente, que são como uma demonstração inequívoca e irretorquível de que a coragem cívica, o interesse pela causa pública, o amor intransigente e denodado da justiça social, a vibração nas campanhas populares, o nacionalismo nutrem-se realmente é da fé cristã e das lições de princípios morais, políticos, sociais que surdem do Evangelho. Mereceriam meditação as vibrantes conclamações de um dos paraninfos dos concluintes, o prof. Jaime Barros, traduzindo aquele apelo do Cristo antes à luta do que à quietude e à imobilidade dos indiferentes pela sorte humana, e a vigorosa denúncia da injustiça capitalista e da falácia comunista pelo aluno João Quadros Neto, líder secundarista de prestigio, inteligência nova e afoita, atual e adiantada. O que faz o dinamismo dessas palavras é o sopro de confiança ao homem livre, que sofre e luta por seus direitos mais elementares, pela justa distribuição da riqueza, pela participação nas decisões nacionais, por uma real soberania do país, por um teor de vida digno para todos e não apenas para uma minoria detentora do poder econômico e política, pelo acesso aos benefícios da educação e da cultura, pela liberdade que é o cimento de todas as conquistas sociais e pessoais. É por assim pensarem que esses dois moços, tão próximos nas idades, tão comprometidos com a realidade atual do Brasil, tão engajados com a ação política e social em favor do nosso povo, tão vibrantes e enérgicos, esposam os movimentos de desenvolvimento acelerado do país, de sua emancipação econômica, de um esclarecido nacionalismo, querem imediatas reformas de base e medidas corajosas de contenção da corrução administrativa, propõem providências legislativas e mudanças de costumes públicos e individuais que se vão somando e acumulando para a transformação da rotina e do atraso, da fome, do analfabetismo, da nudez, do desabrigo, da doença, da dependência, do “cabresto”, em verdadeiro bem-estar geral, sem necessidade da violência, do ódio de classes, do autoritarismo, da planificação total, até das consciências. que é o preço dos programas marxistas-leninistas de desenvolvimento, preço que, por sinal, não compensa como a própria experiência soviética demonstra na confissão dos fracassos do sistema em criar condições para a elevação das massas populares. Tudo isto me faz lembrar outros dois jovens, com quem há meses me encontrei e que havia conhecido há anos, ambos então radicais e estremados, para não dizer extremistas, em seu idealismo socialista ante os urgentes problemas brasileiros. Esse jovem casal regressou ao Brasil depois de três anos de vida atrás da cortina de ferro, em cargos que lhes permitiam contatos próximos com a administração pública, os quadros dirigentes locais, os estudantes, a gente do povo. Essa experiência na Polônia, entre uma cristandade habituada ao jugo de opressores, corajosamente fiel á sua fé e aos seus valores, não permitindo que o comunismo asfixie inteiramente a sua espontaneidade, ainda assim serviu para que esses dois jovens, regressando ao nosso meio, se espantassem com a variedade, a espontaneidade, a liberdade que caracterizam, apesar de tudo, a vida do povo brasileiro e das quais como que se haviam esquecido. E a conclusão que tiraram é que devemos preservar a todo preço, esses privilégios que o comunismo suprime e sufoca onde te implanta, mesmo onde encontra a resistência de uma tradição católica tão profundamente arraigada como entre os poloneses, uma tradição que mais cedo ou mais tarde destrói como está procurando destruir, por modos sutis ou bruscos. Por onde se comprova que, apesar da generosidade, do heroísmo, da dedicação de tantos moços atingidos por aquilo que Djacir Menezes chama de “deslumbramento marxista”, é num humanismo cristão que a justiça social se realiza completamente porque se faz na liberdade.