Curso Ciência da Lógica Aula 6 Na aula de hoje, gostaria de discutir o conceito hegeliano de essência e a compreensão dialética singular da contradição não apenas como contradição lógica, ou seja, contradição entre dois enunciados a respeito de um estado de coisas, mas como contradição real, como determinação objetiva de um estado de coisas. Esta sempre foi uma das elaborações mais polêmicas de Hegel: a noção de que a contradição é uma forma objetiva de descrição da essência do que há a conhecer. Como veremos, Hegel insiste que na efetividade não há apenas oposição real, ou seja, oposição entre dois fenômenos positivos que entram em relação de contrariedade (como um barco que anda 500 metros para o leste e 500 metros para o oeste, tendo zero como resultado do seu movimento). Há contradição real. Conceito fundamental para compreendermos como Hegel define determinações dialéticas. Por outro lado, gostaria de mostrar como tal conceito de contradição foi criticado não apenas por aqueles que viam nele uma monstruosidade lógica, como no caso de Russell e sua ideia de que o uso hegeliano da contradição baseava-se em um equívoco primário a respeito da identidade e da predicação, nem apenas por antigos marxistas com uma visão muito pouco dialética, como Lucio Colleti, que afirmava que a ciência só poderia aceitar oposições reais, não contradições, mas também por aqueles que viam no conceito hegeliano de contradição uma forma de limitar todo pensamento disposto a pensar ontologia para além da representação, como no caso de Gilles Deleuze. A aposta hegeliana de que o pensamento crítico é aquele capaz não apenas de indicar e criticar as contradições na efetividade tendo em vista sua suspensão, mas de compreender as contradições como índice de inteligibilidade adequada de fenômenos em movimento é o ponto mais dramático e passível de confusões da dialética. Para tanto, gostaria de começar apresentando o conceito hegeliano de essência para passarmos às determinações de reflexão e enfim para uma discussão sobre o problema da contradição. Considerações gerais sobre a Doutrina da Essência Antes de iniciarmos nosso comentário de texto, creio ser necessário uma contextualização a respeito do lugar da Doutrina da Essência no interior do projeto da Ciência da Lógica e a natureza de sua divisão interna. Esta é uma forma de compreender melhor o conceito hegeliano de essência. Vimos desde a primeira aula como a Ciência da Lógica visava dar conta do movimento que vai do ser ao conceito. Um movimento que, no fundo, realizava um dos motivos maiores do idealismo hegeliano: apreender a substância como sujeito e, com isto, explicitar a maneira com que tudo o que se oferece à experiência é posto pela estrutura conceitual do sujeito. Este movimento também explicava porque a Ciência da Lógica era inicialmente subdividida em “Lógica objetiva” e “Lógica subjetiva”. No entanto, vimos também que Hegel insistira na necessidade da “Lógica objetiva” ser dividida a partir das noções de ser e essência. Tal subdivisão era justificada por Hegel a partir da exigência de introduzir uma: esfera de mediação, o conceito como sistema das determinações de reflexão, ou seja, do ser que se transforma em ser em-si do conceito, que desta forma não é ainda posto como para si [tal como na lógica subjetiva], mas que está marcado ao mesmo tempo pelo ser imediato como algo que também lhe é exterior. Isto é a Doutrina da essência que está no meio entre a Doutrina do ser e do conceito1. Ou seja, a essência é, fundamentalmente, uma noção que opera a mediação entre o ser e o conceito. Daí porque talvez seja correto dizer que esta é a região central do livro, região onde os processos principais são apresentados. Mas qual a necessidade desta mediação? Grosso modo, podemos dizer que as categorias do ser (como “ser”, “nada”, “finito”, “infinito”, “um”, múltiplo”) tendem a produzir a ilusão de serem determinações isoladas e não relacionais. No conceito de ser não está imediatamente expresso que ele é impensável sem seu oposto, o nada. Decerto, vemos na Doutrina do ser uma sucessão de passagens de um conceito a outro: “Sem dúvida, nessa progressão por rupturas, as determinações finitas denunciam a sua instabilidade, mas somente sob a forma da substituição de um conteúdo por um conteúdo diferente. A necessidade é camuflada”2. Já as categorias da essência (como “identidade”, “diferença”, ‘contradição”, “fundamento”) são imediatamente categorias relacionais, onde um termo traz imediatamente o seu oposto. Com isto, o Outro perde o aspecto de um exterior indiferente para se tornar aquilo que está desde o início indissociável de seu oposto. Desta forma, a tematização da essência permite o abandono de uma noção fixa e identitária de objeto em prol de uma noção onde “objeto” nada mais é do que o nome de uma estrutura relacional. É verdade que esta noção ainda é apenas “em-si” porque falta a anulação do vocabulário da alteridade que só poderá ser realizada pela Doutrina do conceito. Mas é sempre bom lembrar que esta passagem do ser à essência é impulsionada pelo ritmo da explicitação: trata-se de explicitar uma estrutura relacional que já estava em operação, mas de maneira não-reflexiva, na compreensão das categorias do ser. Esta dinâmica da explicitação pode ser encontrada na própria organização interna da Doutrina da essência, toda ela construída através do movimento que vai da interioridade à tematização da exterioridade. Assim, partindo da reflexão da essência em si mesma (através principalmente da apresentação das determinações de reflexão) vamos em direção aos modos da Erscheinung (fenômeno/aparecer), ou seja, daquilo que aparece à consciência em sua experiência, isto até a realidade (Wirclichkeit) enquanto espaço de manifestação do absoluto em sua necessidade e em seus modos de relação. À sua maneira, este movimento da interioridade à exterioridade também é retomado pela Doutrina do conceito. Assim, se o ritmo de explicitação visa mostrar como a essência é, na verdade: “o movimento do próprio ser”3 ou como a natureza do ser é advir essência, é porque: “a passagem do ser à essência é passagem das determinações que parecem existir por si nas ‘coisas’ (o ser) à revelação de que as determinações aparentemente as mais ‘imediatas’ estão desde sempre constituídas e organizadas em um pensamento unificado (...) Uma mesma unidade pensada organiza as percepção das coisas e a compreensão de suas relações: ser e essência são uma e outra o produto do conceito”4. Este comentário é de extrema importância por evidenciar que a passagem à essência é um aprofundamento através do qual aquilo que parece existir por si nas ´coisas´ revela-se como sempre constituído e organizado em um pensamento unificado. 1 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 58 LEBRUN, A paciência do conceito, p. 324 3 HEGEL, WL II, p. 13 4 LONGUENESSE, Hegel et la critique de la métaphysique, p. 9 2 É desta maneira que devemos compreender a primeira frase da Doutrina da Essência: ‘A verdade do ser é a essência”5. Um essência que parece estar “por trás” do ser, em um Hintergrund que constitui (ausmach) o ser. Ou ainda, que parece “anterior” ao ser, em um passado que não deixa de ressoar na própria maneira com que o particípio passado do verbo ser em alemão (gewesen) contém uma referência à essência (Wesen). Um estranho passado descrito por Hegel como: “o passado, mas o ser passado desprovido de tempo (zeitlos)”6. Como uma anterioridade que nunca passa e que, por isto, modifica radicalmente nossa concepção de presente, já que: “aquilo que passou nem por isto é negado abstratamente, mas apenas superado: e por isto, ao mesmo tempo, conservado”7. No entanto, se retornarmos ao comentário de Longuenesse, veremos que entramos em uma idéia maior do livro: a essência não é da ordem de um em-si independente do pensamento. Ela é a da ordem da reflexão. Da porque a primeira parte do livro deve necessariamente chamar-se: “A essência como reflexão em si mesma”. A reflexão é a essencialidade que constitui o ser. Ou seja, ao afirmar que a verdade do ser é a essência e ao determinar a essência como reflexão, Hegel, à sua maneira, está dizendo não haver nada anterior ou mesmo exterior à reflexão. Proposição que parece a realização última do chamado “idealismo absoluto” do qual ele seria o representante. Fica claro que a verdadeira questão decisiva do livro gira em torno da compreensão do que Hegel se refere quando fala em “reflexão”. Pois costumamos compreender a reflexão como um procedimento meramente subjetivo do pensar vinculado à auto-observação de operações de nossa própria mente. Lembremos, por exemplo, do que diz Locke a respeito da reflexão: “A mente, recebendo as idéias de fora, quando volta sua visão para si mesma e observa suas ações sobre as idéias que tem, produz daí outras idéias que são tão capazes de ser objetos de sua contemplação quanto qualquer outra que ela recebe de coisas exteriores”8. Ou seja, se sensações são idéias cuja fonte são objetos externos, reflexão é: “the notice which the mind takes of its own operations” e que produz idéias a partir do sentido interno. Trago esta citação de Locke apenas para insistir na peculiaridade da noção hegeliana de reflexão. Noção que, em hipótese alguma, pode ser confundida simplesmente com esta auto-apreensão que a mente faz de suas próprias operações, como se ela estivesse diante de um espelho. Metáfora especular fundamental para a própria constituição da noção moderna de consciência. Embora Hegel conserve esta metáfora especular na compreensão da reflexão, não é difícil imaginar que Hegel não pode aceitar distinções entre sensação e reflexão tais como estas pressupostas por Locke. Pois trata-se de mostrar como: “a reflexão é o que pelo qual algo enquanto algo é”9. Ou seja, a reflexão não apenas observa as operações da mente, mas ela põe os objetos com os quais a consciência se depara. De uma certa forma, ela é o movimento das próprias “coisas”. Daí porque o que mais interessa Hegel nesta metáfora especular seja o fato do imediato se cindir e se mediatizar, colocando-se como um outro10. 5 HEGEL, WL II, p. 13 HEGEL, WL II, p. 13 7 HEGEL, Enciclopédia I, par. 112 8 LOCKE, An essay concerning human understanding, Book II, Chapter VI 9 HAAS, Bruno, Die freie Kunst, p. 53 10 Diz Hegel: “O termo ´reflexão´ é empregado inicialmente [a propósito] da luz, quando em sua propagação em linha reta encontra uma superfície especular e é por ela relançada para trás. Temos pois aqui um duplo: primeiro, um imediato, um ente; e segundo, o mesmo enquanto mediatizado ou posto. Ora, é esse exatamente o caso quando refletimos ou (como também se costuma dizer) nachdenken [refletir, considerar – colocar diante] sobre um objeto, enquanto aqui não é mesmo o objeto que conta em sua imediatez. Mas queremos conhecê-lo enquanto mediatizado” (HEGEL, Enciclopédia, par. 112) 6 No entanto, mesmo assim ainda não saímos necessariamente de uma perspectiva idealista clássica. Pois podemos dizer que a reflexão, ao apreender as operações do próprio pensar, simplesmente põe as condições de possibilidade para que um objeto seja, para que ele apareça à consciência. Como se a reflexão fosse exatamente aquilo que nos permite falar do que aparece, eleva-lo à condição de nomeável no interior de uma linguagem humana, já que a reflexão revelaria a forma do que há a ser pensado (em uma operação na qual a forma aparece no lugar da noção de essência). É assim que, por exemplo, podemos interpretar a afirmação canônica de Kant: ‘A reflexão não tem que ver com os próprios objetos, para deles receber diretamente conceitos; é o estado de espírito em que, antes de mais, nos dispomos a descobrir as condições subjetivas pela quais podemos chegar a conceitos”11. No entanto, a proposição de Hegel é mais ousada. Trata-se de dizer: a reflexão, enquanto movimento próprio da essência, não é apenas a posição das condições subjetivas para a constituição de tudo o que é determinado e condicionado por um sujeito. Ela é o movimento do que é absoluto e incondicionado. A ideia de que a reflexão subjetiva está de um lado e o mundo objetivo de outro parte do pressuposto de que a constituição da estrutura da reflexão é, de certa forma, anterior ao mundo, autônoma a ele. Como lembrou bem John McDowell, mais correto seria dizer que mundo e reflexão, de certa forma, nascem ao mesmo tempo. Não é por outra razão que a Doutrina da Essência deve caminhar para a tematização do absoluto enquanto realidade. Mas há aqui uma contradição a respeito da qual Hegel demonstrava-se cônscio ao menos desde seu Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling: O absoluto deve ser construído para a consciência, tal é a tarefa da filosofia: mas, dado que tanto o produzir como os produtos da reflexão são apenas limitações, isto é uma contradição. O absoluto deve ser refletido, posto; mas deste modo ele não é posto, mas sim suprimido (aufgehoben worden), pois, ao ser posto, tornou-se limitado. A mediação desta contradição é a reflexão filosófica. Deve-se preferencialmente mostrar em que medida a reflexão é capaz de captar o absoluto e como, no seu trabalho como especulação, suporta a necessidade e a possibilidade de ser sintetizada com a intuição absoluta, e ser para si, subjetivamente, justamente tão perfeita como o seu produto, o absoluto construído na consciência, dever ser, ao mesmo tempo, consciente e inconsciente12. Hegel chega a falar que, para superar tal contradição de só poder pensar o condicionado ao pôr uma multiplicidade infinita de condições e relações, a reflexão deve dar para si mesma a lei de seu auto-aniquilamento. Podemos dizer que a Ciência da Lógica realiza o que já estava posto neste escrito de juventude. Pois, de uma certa forma, a reflexão, para se pôr como movimento do que é absoluto e infinito, deverá aniquilar aquilo que serve como fundamento para seus modos de determinação. É exatamente isto que veremos neste capítulo fundamental dedicado às determinações de reflexão, a saber, a identidade, a diferença e a contradição. Pois modificado o sentido do que compreendemos por identidade, diferença e contradição são as bases gerais das operações de reflexão, tal como ela é compreendida pelo entendimento, que se encontrarão aniquiladas. Neste momento, aquilo que Hegel compreende por reflexão especulativa poderá se impor, o que permitirá a apreensão do absoluto sem a 11 12 KANT, Crítica da razão pura B 316 HEGEL, Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 41 necessidade do recurso a alguma forma de intuição imediata ou de posição do préreflexivo. Para o entendimento, esta reflexão especulativa própria à essência equivale à pura negatividade, pois: “a determinação da essência tem um outro caráter do que as determinidades do ser”13. Ela é pura negatividade por anular incessantemente todas as determinidades próprias ao ser. Mas esta anulação não é simplesmente a abstração de todo predicado do ser. Antes, ela é o que Hegel chama de movimento reflexivo no interior do próprio ser. É pensando nesta força de corrosão própria à essência que Hegel poderá falar da “natureza negativa da essência”14. Proposição fundamental, pois se a essência tem uma natureza negativa (o que implica dizer que ela não está simplesmente em uma situação na qual ela aparece como negativa, mas que ela é ‘negatividade em si” [Negativität an sich]15), então será um movimento de confrontação incessante do que aparece ao entendimento como determinado. O que nos explica uma afirmação como: A essência como o retorno perfeito do ser em si mesmo é inicialmente essência indeterminada; as determinidades do ser estão nela superadas; ela as contém em si, mas não como se estivessem postas16. A identidade como determinação de reflexão Como movimento de efetivação e explicitação das condições de apreensão conceitual do absoluto, a essência exige a recompreensão dos fundamentos lógicos do pensar. É aqui que Hegel apresenta uma das operações mais ousadas e arriscadas da dialética, a saber, o questionamento do princípio de identidade (A=A), do princípio de nãocontradição (A não pode ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, A e ¬A) e do princípio do terceiro excluído (algo cai sob A ou sob ¬A, não há uma terceira opção). Tais questionamentos, que visam mostrar como estas são “leis do entendimento abstrato”, têm como base a reconstrução dos conceitos de identidade, diferença e, por fim, contradição. Hegel parte de considerações sobre a identidade, já que: “a identidade consigo é a imediaticidade da reflexão”17. No entanto, Hegel não cansará de repetir a existência de diferenças maiores entre a “identidade formal” do entendimento, ou seja, identidade como exclusão da diferença, como exterioridade em relação à diferença, e a “identidade concreta” da razão especulativa. Tal diferença é para ele tão importante que não temerá afirmar: “é este o ponto em que toda má filosofia [pois aferrada ao senso comum] se distingue da que unicamente merece o nome de filosofia”18. Neste sentido, a identidade concreta será a negação absoluta como: a negação que imediatamente nega a si mesma – um não-ser e diferença que desaparece no seu surgir ou um diferenciar para o qual nada é diferenciado, mas que colapsa imediatamente em si mesmo19. 13 HEGEL, WL II, p. 15 HEGEL, WL II, p. 21 15 HEGEL, WL II, p. 22 16 HEGEL, WL II, p. 15 17 HEGEL, WL II, p. 39 18 HEGEL, Enciclopédia, § 115 19 HEGEL, WL II, p. 40 14 Por isto, Hegel dirá que: “a identidade é também em si mesma absoluta nãoidentidade”20. Podemos entender melhor este ponto se levarmos a sério as crítica que Hegel apresenta na nota 2 “Primeira lei originária do pensamento, proposição da identidade”. Aqui, Hegel apresenta três críticas distintas, porém complementares, que visam mostrar como a proposição A=A é uma tautologia vazia, desprovida de conteúdo e sem valor algum para o conhecer. Os três argumentos usados por Hegel são: toda enunciação da identidade imediata é uma contradição performativa; a experiência não fornece o fundamento da identidade não é possível definir a significação de A=A a partir da pretensa analiticidade da proposição. Primeiro, Hegel procura mostrar como sempre enunciamos a clivagem ao tentar pôr a igualdade imediata a si. Pois sendo a identidade imediata, a exclusão da essencialidade da diferença é um processo constitutivo de sua própria determinação. Mas, ao afirmar que a identidade e a diferença são diferentes: “Eles [a consciência comum] não vêem que já dizem que a identidade é algo de diverso; pois dizem que a identidade é diversa em relação à diversidade” (HEGEL, 1986b, p. 41). Com isto, produz-se uma passagem da negação exterior à negação internalizada resultante do reconhecimento da posição da diferença ser momento essencial e interno ao processo de posição da identidade. Daí porque Hegel pode dizer que a verdade é apenas a unidade da identidade e da diversidade. Notemos ainda esta estratégia, tipicamente hegeliana, de medir a verdade de proposições lógicas fazendo apelo à pragmática da fala. Ao falarmos sobre a identidade, sempre somos obrigados a pressupor a diferença como dado primeiro e definidor. Pôr a identidade exige pressupor a diferença. Ou seja, invertermos a ordem lógica e colocamos o reconhecimento da diferença como lei originária do pensar, já que “a identidade de uma entidade consiste em um conjunto de seus traços diferenciais” (ZIZEK, 1999, p. 135). Ela é momento de uma separação em relação a um processo no qual a diversidade desempenha papel fundante. Por outro lado, Hegel afirma que a identidade não é um dado de alguma forma derivado de experiência imediatamente acessível à consciência. Não há um componente factual orientando o uso de enunciados do tipo A=A. Na verdade, a experiência fornece apenas a relação da identidade do Um com a multiplicidade da diversidade. Daí porque: “o concreto e a aplicação é justamente a relação do idêntico simples a algo de variado distinto dele”21. Ou seja, a aplicação expõe o esforço do pensar em unificar o que não tem identidade imediata em si mesmo. Por isto que: “expresso como proposição, o concreto seria inicialmente uma proposição sintética”22. A posição da proposição de identidade já é, segundo Hegel, uma modificação da experiência, já que esta nos mostra, na verdade, a unidade da identidade com a diversidade. Mas podemos dizer que A=A, enquanto proposição analítica seria independente da experiência, o que sabemos, ao menos desde Quine, que não é exatamente o caso, já que sabemos que um dos dogmas fundamentais do empirismo é: “a crença em certa divisão fundamental entre verdades analíticas, ou fundadas em significados 20 HEGEL, WL II, p. 41 Isto talvez nos explique porque Hegel afirma que: “Nenhuma consciência pensa, nem tem representações, nem fala segundo essa lei [da identidade]; e nenhuma existência, seja de que espécie for, existe segundo ela. O falar conforme esssa suposta lei da verdade (um planeta é – um planeta; o magnetismo é – o magnetismo; o espírito é – um espírito) passa, com razão, por uma tolice: essa sim é uma experiência universal” (HEGEL, Enciclopédia, par. 115 22 HEGEL, WL II, p. 43 21 independemente de questões de fato, e verdades sintéticas, ou fundadas em fatos”23. Por isto, Hegel deve lembrar que mesmo a forma proposicional da proposição já diz mais do que afirma. Este é uma maneira astuta de dizer que a analiticidade de proposições do tipo A=A são um problema. Para chegar a tal compreensão especulativa da proposição, Hegel compreende toda proposição a partir de sua forma geral (S é P) que coloca as diferenças categoriais quantitativas entre a particularidade do sujeito e as predicações de universais e rompe, assim, com a sinonímia pressuposta entre sujeito e predicado24. Quando digo, por exemplo “uma rosa é uma rosa” vê-se que a expectativa aberta pela enunciação “uma rosa é ...”, na qual o sujeito aparece como forma vazia e ainda não determinada, como “algo em geral”, como “som privado de sentido”25, é invertida ao final da proposição. A rosa que aparece na posição de sujeito é um caso particular, uma determinação empírica. Rosa que, em si mesmo, é apenas negação – acontecimento contingente desprovido de sentido – enquanto que a rosa presente no predicado aparece inicialmente como “representação universal”26 abstrata que forneceria a significação (Bedeutung) do sujeito. Podemos mesmo afirmar que ela é extensão de um conjunto ainda vazio. Para Hegel, ao enunciar “uma rosa é uma rosa”, dizemos que o conjunto é idêntico a um de seus elementos, dizemos que o singular é o universal. Esta é a interpretação que podemos dar à afirmação: “Já a fórmula da proposição está em contradição com ela [a proposição A=A], pois uma proposição promete também uma diferença entre sujeito e predicado; ora, esta não fornece o que sua própria forma exige”27. Ou seja, a posição da identidade produz necessariamente uma contradição. O que nos explica por que Hegel afirma: “Se alguém abre a boca e promete indicar o que é Deus, a saber Deus é – Deus, a expectativa encontra-se enganada pois ela esperava uma determinação diferente”28. Hegel teria compreendido a existência, na forma geral da proposição, de uma cisão estrutural entre o regime geral de apresentação e a designação nominal do acontecimento particular. Pois o primeiro momento da afirmação “o singular é o universal” põe a inessencialidade do singular e a realidade do universal. Uma rosa será sempre uma rosa. É o predicado que põe o sujeito e, a partir do momento em que o sujeito (ainda indeterminado) é posto, ele se anula: o que era predicado advém sujeito. Devido à forma geral da proposição, o ato de enunciação da identidade produz sempre a posição de uma alienação. Pois: “Se dizemos também: ‘o efetivamente real é o Universal’, o efetivamente real como sujeito desaparece (Vergeht) em seu predicado”29. Pode parecer que Hegel faça aqui uma confusão entre predicação e identidade, como já dissera Russell. Ele parece negligenciar que há ao menos dois empregos diferente do termo “é”. Frege nos lembra que “é” pode ter ao menos duas funções (Cf. FREGE, Ecrits logiques et philosophiques, Paris: Seuil, 1971, p. 129) "é" pode ter a função de forma lexical de atribuição a fim de permitir a predicação de um conceito a um objeto. Assim, em ‘uma rosa é odorante’, ‘odorante’ é a predicação conceitual de 23 QUINE, Dois dogmas do empirismo, p. 231 Esta maneira de levar em consideração as diferenças categoriais quantitativas expressas na forma geral da proposição é o que faz a especificidade da teoria hegeliana do julgamento, isto a ponto de Hegel afirmar que se deve: “ver como uma falta de observação digna de surpresa que, nas lógicas, não encontramos indicado o fato de que em todo julgamento exprime-se tal proposição: ‘o singular é um universal’" (HEGEL, Encyclopédie, op. cit., par. 166). 25 HEGEL, Fenomenologia I, p. 21 26 HEGEL, Encyclopédie¸ tome 1, op.cit, p. 245. 27 HEGEL, Encyclopédie, p. 163. 28 HEGEL, WL I, p. 44. 29 HEGEL, Fenomenologia I., op.cit, p. 55 24 um nome de objeto (rosa). Mas, por outro lado, “é” pode ter a função de signo aritmético de igualdade a fim de exprimir a identidade entre dois nomes de objeto (como no caso da proposição “A estrela da manhã é Vênus”) ou a auto-igualdade de um nome de objeto a si mesmo (“Vênus é Vênus”). Nos parece que, na verdade, a dialética deve, em uma certa medida, confundir predicação e identidade. Normalmente, diríamos que algo e idêntico quando é intercambiável em qualquer condição cognitiva possível, como seriam, por exemplo, “solteiro” e “homem não casado”. Mas: “não há garantia de que a concordância extensional de ‘solteiro’ e ‘homem não casado’ se baseie no significado em vez de se basear meramente em questões de fato acidentais, como acontece com a concordância entre ‘criaturas com coração’ e ‘criaturas com rins’30. Uma relação de definição, assim como uma relação de sinonimia, pressupõe o reconhecimento anterior do uso, ou seja, um ajustamento em relação a casos empíricos convenientes. Esta passagem em direção a empiria é vista por Hegel como um caso de predicação. A diferença, entre a diversidade e a oposição Tais colocações permitem a Hegel dizer que a proposição de identidade contém mais do que ela visa, pois contém sempre a enunciação da diferença como seu pressuposto. Hegel afirma que a diferença conhece dois momentos distintos: a diversidade (Verschiedenheit) e a oposição. A diversidade é a diferença pensada a partir da reflexão exterior. Por isto: “os diversos estão em relação um com o outro não como identidade e diferença, mas apenas como diversos em geral que são indiferentes um em relação a outro e em relação à sua determinidade”. De uma certa forma, a diversidade é um gênero de retorno à imediaticidade, um momento de recaída no empirismo de quem afirma que “Todas as coisas são diversas” ou que “Não existem duas coisas que sejam iguais uma à outra”. Tais proposições não deixam de se referir ao princípio leibniziano de identidade dos indiscerníveis (se X e Y tem as mesmas propriedades, então eles são idênticos). Hoje diríamos que os termos sob a noção de diversidade estão dispostos como um multiplicidade pura, ou seja, estrutura cujos elementos não tem função subordinada, mas são estruturados por relações recíprocas que não podem ser compreendidas como relações de oposição. Hegel compreende esta determinação da diferença como pura multiplicidade uma determinação deficiente. Sua deficiência vem do fato de Hegel insistir que toda posição da diversidade, para ser minimamente estruturada, exige a ação de comparação entre termos. Tal comparação pede a presença de uma espécie de “terceiro termo” comum que permita a estruturação de relações de igualdade e desigualdade. Este terceiro termo, que permite a comparação mas está para além dos elementos comparados, acaba por nos obrigar a passarmos da diversidade à oposição. Pois a simples diversidade é indemonstrável. A afirmação de que todas as coisas são diversas é algo que a experiência não pode garantir. O que a experiência me fornece são arranjos locais de diferenciação. No entanto, segundo Hegel: “a diferença não tem de ser apreendida simplesmente como diversidade exterior e indiferente, mas como diferença em si; e que por isto compete às coisas, nelas mesmas, serem diferentes”31. Maneira de afirmar que a diferença não deve ser apenas o resultado de uma distinção entre termos e elementos, como se fosse algo produzido de forma contingente. Ela deve ser o modo de relação interna dos termos e elementos. Daí esta afirmação surpreendente de que compete à 30 31 QUINE, De um ponto de vista lógico, p. 52 HEGEL, Enciclopédia, par. 117 coisas serem, nelas mesmas, diferentes. Ou seja, a diferença deve ser uma determinação ontológica das coisas. Por isto, devemos passar da diferença à contradição, já que, para Hegel, a contradição é esta figura da diferença em si. Por outro lado, Hegel chega a pensar a possibilidade de uma multiplicidade que não seja estruturada a partir de um princípio geral de medida, mas através de algo mais próximo daquilo que Wittgenstein chamou de semelhanças de família: “porque as diversas semelhanças entre os membros de uma família, constituição, traços faciais, cor dos olhos, andar, temperamento, etc. sobrepõem-se e cruzam-se [umas às outras]”32. No entanto, isto não modifica o problema central, que consiste em afirmar que a diferença deve necessariamente resolver-se na posição da igualdade e da desigualdade. Posição que, por sua vez, transforma a diversidade em oposição33, já que no interior de uma relação de semelhança de família opera-se a partir de uma comparação opositiva entre dois elementos onde tal comparação é determinante para a posição da identidade, mesmo que apenas sob um de seus aspectos. Sobre a oposição Hegel dirá que, nela, identidade e diferença são momentos da diferença mantidos no interior dela mesma. Isto está enunciado na seguinte definição hegeliana da relação de oposição: Cada um é ele mesmo e seu outro, o que faz com que cada um tenha sua determinidade em si mesmo, e não em um outro. Cada um relaciona-se a si mesmo como se relacionando a um outro. Isto tem dois sentidos: cada um está em relação com seu não-ser como suprimindo este outro, assim seu ser-outro é apenas um momento interno ao si. Mas, por outro lado, o ser-posto se transformou em um ser, um subsistir indiferente (...) consequentemente, cada um é apenas na medida em que seu não-ser é. Esta é a maneira hegeliana de afirmar que a oposição instaura uma relação de incompatibilidade material (p/ não p) que tem a força de estruturar a extensão dos termos em relação. No entanto, tal relação não pode ser compreendida apenas como determinação exterior. Este é um ponto central que pode ser melhor compreendido se levarmos em conta a crítica hegeliana à noção kantiana de oposição real tal como Kant a desenvolveu em seu Ensaio para introduzir em filosofia a noção de grandeza negativa. Para Kant, uma oposição real indica que dois predicados de um sujeito são opostos de maneira contrária, mas sem contradição lógica. Assim: “a força motriz de um corpo que tende a um certo ponto e um esforço semelhante deste corpo para se mover em direção oposta não se contradizem, sendo ao mesmo tempo possíveis como predicados de um mesmo corpo” (KANT, 2005, p. 58). Tal oposição é descrita em linguagem matemática através dos signos + e - (+A e -A) a fim de mostrar como uma predicação pode destruir outra predicação, chegando a uma conseqüência cujo valor é zero, mas sem que seja necessário admitir um conceito que se contradiz em si mesmo (nihil negativum). Isto permitirá a Kant sublinhar que o conflito resultante de um princípio real que destrói o efeito de outro princípio no nível da intuição não pressupõe uma contradição no nível das condições transcendentais de constituição do objeto do conhecimento. Este conflito real, ou oposição real, é a boa negação; “que permite ao entendimento constituir objetos " (DAVID-MÈNARD, 1990, p. 41), já que, contrariamente à contradição lógica 32 WITTGENSTEIN, Inverstigações filosóficas, par. 67 Na verdade, não pode haver multiplicidade não-estruturada para Hegel. A simples posição de uma proposição como ”Não há duas coisas que sejam completamente idênticas’ já pressupõe um dispositivo de contagem que organiza a diversidade a partir da estrutura de uma multiplicidade numérica. 33 (pensada como objeto vazio sem conceito), esta negação deixa fora de seu julgamento a questão da existência do sujeito do julgamento. Mas se Kant afirma que os predicados opostos são contrários sem serem contraditórios, é porque eles se misturam como forças positivas determinadas no resultado de uma realidade final. Os opostos reais são, para Kant, propriedade igualmente positivas, eles correspondem a referências objetivas determinadas. Não há realidade ontológica do negativo (mesmo se há um poder negativo do transcendental na determinação do númeno como conceito vazio em relação à intuição de objetos sensíveis). A aversão e a dor são tão positivas (no sentido de se referirem a objetos positivos) quanto o prazer. Elas têm uma subsistência positiva como objetos sensíveis que não é redutível à relação de oposição. Hegel está atento à maneira com que a oposição real não modifica a noção de determinação fixa opositiva. Mesmo reconhecendo a existência de uma solidariedade entre contrários no processo de definição do sentido dos opostos (ao afirmar que : “a morte é um nascimento negativo”, Kant reconhece que o sentido da morte depende da determinação do sentido do nascimento), a noção de oposição nos impede de perguntar como a identidade dos objetos modifica-se quando o pensamento leva em conta relações de oposição34. Como nos diz Lebrun: “Que cada um dos termos só possa ter sentido ao ligar-se ao seu oposto, isto o Entendimento concede, esta situação é figurável. Mas que cada um advenha o que significa o outro, aqui começa o não-figurável” (LEBRUN, 1971, p. 292). Daí porque: “Mesmo admitindo, contra os clássicos que o positivo pode se suprimir e que o negativo possui de alguma maneira um valor de realidade, Kant jamais colocará em questão o axioma: ‘A realidade é algo, a negação não é nada’. Essa proposição é até mesmo a base do escrito sobre as grandezas negativas: ela é a condição necessária sem a qual não se poderia discernir a oposição lógica da oposição real” (LEBRUN, 2002, p. 266). Neste sentido, podemos dizer que Hegel procurar desdobrar todas as conseqüências possíveis de um pensamento da relação assentado na centralidade de negações determinadas. Pois a produção da identidade através da mediação pelo oposto, tal como vemos na oposição real, é reflexão-no-outro. Um recurso à alteridade que aparece como constitutivo da determinação da identidade que promete uma interversão (Umschlagen) da identidade na posição da diferença. Como nos dirá Henrich, o primeiro passo deste movimento dialético consiste em passar de algo que se distingue do outro enquanto seu limite para algo que é apenas limite (HENRICH, 1967, p. 112). Tal passagem advém possível porque Hegel submete a negação funcional-veritativa à noção de alteridade, seguindo aí uma tradição que remonta ao Sofista, de Platão35: "Contrariamente à negação funcional-veritativa [fundada na idéia de exclusão simples], a alteridade é uma relação entre dois termos. Faz-se necessário ao menos dois termos para que possamos dizer que algo é outro" (HENRICH, 1967, p. 133). Tal submissão da negação à alteridade nos explica porque a figura maior da negação em Hegel não é exatamente o nada ou a privação, mas a contradição Contradição que aparece quando tentamos pensar a identidade em uma gramática filosófica que submete a negação à alteridade. Nesta gramática, só há identidade quando uma relação reflexiva entre dois termos pode ser compreendida como relação simples e Ela nos impede de colocar a questão: “como os objetos são redefinidos, reconstituídos pelo fato de se inscreverem em relações? Quais transformações a noção de objeto recebe pelo fato de assim ser reconstituída pelo pensamento? (LONGUENESSE, 1981, p. 80) 35 Como vemos na afirmação: “Quando enunciamos o não-ser, não enunciamos algo contrário ao ser, mas apenas algo de outro” (PLATÃO, Sofista, 257b) 34 auto-referencial, ou seja, só há identidade lá onde há reconhecimento reflexivo da contradição.