Sonegação fiscal só se torna crime se ficar provada intenção POR FERNANDO PORFÍRIO Para que haja a fraude fiscal, é necessário configurar-se, subjetivamente, a intenção deliberada de lesar o fisco e, objetivamente, a realização de expedientes enganosos cujo propósito está em induzir o fisco a erro, para subtrair a obrigação de pagar os tributos. No caso, não se vislumbra falta de pagamento do tributo, nem mesmo uma simples omissão, ou manobra deliberadamente dirigida a esse propósito, ou destinada a sonegação de impostos. Ou seja, não apurada a sonegação, não há porque se falar em crime de sonegação fiscal. Com essa teoria, a 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, por votação unânime, concedeu Habeas Corpus para anular ação penal pública a partir de inquérito policial contra Alessandro Peres Pereira. Ele é acusado pelo delegado seccional de Sorocaba e pelo promotor de justiça Fernando Novelli Bianchini de crimes contra a ordem tributária e contra relações de consumo. Consta que a empresa Petrosul – Distribuidora, Transportadora e Comércio de Combustíveis operou de forma irregular entre 31 de maio a 20 de junho de 1998 e que teria sonegado ICMS (Imposto de Circulação de Mercadoria e Seriviços). Pereira, na época, era um dos sócios da Petrosul. De acordo com a denúncia, o acusado teria incorrido no delito de sonegação fiscal. O juiz Daniel Fabretti acolheu a denúncia apresentada pelo Ministério Público. A defesa, a cargo do advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, sustentou que seu cliente sofre constrangimento ilegal por parte do magistrado de Sorocaba. A turma julgadora entendeu que faltou até mesmo pressupostos legais para a abertura do inquérito policial, sendo ainda mais precipitado o oferecimento de denúncia e a instauração de ação penal de um fato tido como criminoso. Essa conclusão se amparou no fato de que o caso ainda depende de julgamento de pedido na esfera administrativa e, no caso de ser negado, cabe recurso junto ao Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), braço da Secretária de Estado dos Negócios da Fazenda. Para os desembargadores, só depois de decisão final na esfera administrativa sobre se há ou não crédito fiscal a favor da Fazenda é que a representação fiscal será encaminhada ao Ministério Público para apresentar denúncia de crime contra a ordem tributária. A proposta precipitada de ação penal, segundo o Tribunal de Justiça, induz ao cerceamento de defesa e ofende a garantia constitucional do devido processo legal. “É essencial que o agente se conduza deliberadamente com a dirigida intenção de iludir a administração tributária, produzindo, ou omitindo, uma falsa imagem de sua conduta tributária, mediante simulação, ocultação ou qualquer prática ardilosa, tudo com objetivo único de descumprimento da obrigação tributária”, declarou o relator, Salvador D’Andréa. O relator concluiu que provado o andamento de procedimento fiscal de impugnação de débito, não cabe ao Judiciário antecipar o julgamento da esfera administrativa, dizendo se há ou não tributo sonegado. IMPRIMIR ENVIAR FERNANDO PORFÍRIO é repórter da revista Consultor Jurídico Reitor de Marília se livra de condenação por sonegação O Superior Tribunal de Justiça concedeu Habeas Corpus que anula a condenação por sonegação fiscal do pecuarista Márcio Mesquita Serva, reitor da Universidade de Marília. Motivo: o Conselho de Contribuintes reconheceu que ele está com as contas em dia com o Fisco. O relator do caso foi o ministro Gilson Dipp. Serva foi defendido pelo advogado Alberto Zacharias Toron. O Tribunal Regional Federal da 3ª havia condenado Serva a dez anos e seis meses de prisão, em regime fechado, por sonegação de tributos estimados em R$ 47 milhões. O reitor era acusado de sonegar e de utilizar documentos falsos da Associação de Ensino de Marília, da qual é diretor-presidente, além de simular despesas pessoais e de sua empresa como se fossem da entidade, que era isenta de tributos e contribuições e é mantenedora da universidade. A condenação em primeira instância, em fevereiro de 2005, foi comemorada publicamente pela Receita Federal. “O caso é bastante significativo pelo histórico de fraudes com o uso de imunidade tributária”, disse na época o delegado da Receita Federal em Bauru, Marcos Rodrigues de Mello. HC 56.954 Inquérito para apurar sonegação gera controvérsias POR RODRIGO DALL'ACQUA E BRUNO BARUEL ROCHA Grandes dúvidas têm sido levantadas pelos contribuintes que sofreram autuações da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), principalmente quando relativas à constituição de créditos de natureza previdenciária, em razão da costumeira acusação, por parte dos agentes fiscais, de que as infrações objeto do processo administrativo constituem crime de sonegação de contribuições previdenciárias (artigo 337-A do Código Penal, com pena de dois a cinco anos de reclusão). Nesses casos, tem se tornado cada vez mais comum que o agente fiscal, ao encerrar o procedimento fiscalizatório com a lavratura de auto de infração, noticie ao Ministério Público Federal a ocorrência do suposto crime de sonegação de contribuição previdenciária, dando início à fase preparatória do eventual processo crime, antes mesmo de encerrado o processo administrativo tributário. Na prática, esse entendimento faz com que o contribuinte seja alvo de inquérito policial e, eventualmente, até mesmo de processo criminal, ao mesmo tempo em que se defende na esfera administrativa tributária. Consagra-se o absurdo de investigar, processar e punir criminalmente um cidadão por suposta sonegação de contribuição previdenciária ao mesmo tempo em que o Estado, analisando o recurso administrativo, conclui que nenhum centavo foi sonegado. Essa ilógica e injusta persecução era muito comum no Brasil até que o Supremo Tribunal Federal, em 2003, decidiu que os crimes tributários previstos na Lei 8.137/90 são crimes materiais e dependem de um resultado concreto para sua configuração. Em outras palavras, concluiu-se que não pode haver o crime de sonegação sem que exista a certeza de um tributo devido, tornando imprescindível o término do procedimento administrativo tributário. Assim, hoje é pacífico na jurisprudência o entendimento de que nenhum cidadão pode ser investigado por crime de sonegação antes que os órgãos tributários julguem todos os recursos pertinentes e concluam, com segurança, que um tributo é realmente devido. Todavia, num lamentável retrocesso, algumas vozes no Judiciário e na administração tributária classificam o crime como formal, ou seja, que não depende da ocorrência de prejuízo para sua configuração. Basta que o contribuinte, por exemplo, omita informações de folha de pagamento, deixe de lançar quantias descontadas ou não aponte remunerações para configurar a prática do crime, mesmo que dessas condutas não resulte a supressão ou redução de contribuições previdenciárias. Nessa ótica, considerando o delito como formal, o término do procedimento administrativo é tido por irrelevante e, mesmo que o julgamento final aponte que nenhuma contribuição previdenciária era devida, haverá o crime. São alguns precedentes nesse sentido que sustentam a instauração de inquéritos policiais para apurar suposta sonegação de contribuição previdenciária mesmo que esteja ainda pendente de decisão final na esfera administrativa. Não é necessário grande aprofundamento teórico para demonstrar o contrassenso dessa posição, bastando comparar o crime de sonegação de contribuição previdenciária com o delito de sonegação de impostos federais, disciplinado na Lei 8.137/90. Os dois tipos penais têm idêntica estrutura e visam punir o contribuinte que, com a prática de certas condutas, consegue “suprimir ou reduzir” valores que eram devidos. Não é juridicamente razoável interpretar diferentemente crimes criados com a mesma técnica legislativa e, não por acaso, inúmeros doutrinadores classificam os dois delitos como crimes materiais, que dependem, portanto, do término do procedimento administrativo. Enquanto a questão segue permeada de controvérsias, recomenda-se ao contribuinte autuado que, já na primeira defesa lançada contra o auto de infração, insurja-se contra a realização de representação fiscal para fins penais, demonstrando, diante dos atuais precedentes jurisprudenciais e doutrinários, que na ausência de crime o Ministério Público Federal não deve ser oficiado. Assim, evita-se que a Receita Federal venha dar causa à instauração de inquérito policial por um fato que, posteriormente, o mesmo órgão julgue como lícito. Se ainda assim a administração tributária entender por comunicar a existência de crime, é cabível o uso do Habeas Corpus para trancar o inquérito policial instaurado, uma vez que o suposto crime em apuração sequer ocorreu. Em paralelo, além da comprovação de que o procedimento administrativo ainda está pendente de julgamento, é interessante transpor para a seara criminal os mesmos argumentos da tese tributária, realizando uma pronta defesa de mérito para demonstrar a improcedência do auto de infração e, consequentemente, a ausência de intenção de sonegar. Por fim, ainda sobre o crime de sonegação de contribuição previdenciária, devemos registrar que os tribunais reconhecem, unanimemente, que o pagamento do tributo objeto do suposto crime, ainda que efetuado depois do oferecimento da denúncia, extingue a punibilidade do agente, por força do disposto no artigo 9º, parágrafo 2º, da Lei 10.684/03. O artigo foi publicado originalmente pelo jornal Estado de Minas, na segundafeira, 13 de abril.