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Os caminhos do dinheiro usado em iniciativas sociais
*Rita Monte, gestora de comunicação do Instituto Fonte
“Hoje a única área de financiamento do ‘Terceiro Setor’ em franca
expansão é a venda de produtos e serviços”. Se você é gestor de uma
organização ou projeto social, já deve ter pensado nessa frase. Quem a
diz é Fernando Rossetti, secretário-geral do Gife, ao falar sobre a origem
do dinheiro que financia ações do campo social – de onde vem ou de
onde deveria vir? Não sem crítica, Rossetti apresenta um cenário de
mercado para a sociedade civil e o chamado “Terceiro Setor”, ao
enxergar “um momento darwinista para o setor: as ONGs mais fortes
sobreviverão, e elas necessariamente são as profissionalizadas. Para
uma organização sem fins lucrativos sobreviver, ela é obrigada a ter um
plano de negócios, se não ela vai quebrar. A sociedade civil
transformou-se em um mercado – costumo dizer, ironicamente, que é
um mercado do bem”, completa Rossetti.
O panorama colocado carrega o desenrolar da sociedade civil organizada
no Brasil, trazendo um conceito cada vez mais presente entre dirigentes
de organizações sociais e financiadores: a auto-sustentabilidade. Em um
movimento de fragilização do modelo tradicional de financiamento do
campo social, que colocava fora da organização as principais fontes de
recursos, a criação de projetos de geração de renda parece surgir como
“a” solução para a sobrevivência das organizações sem fins lucrativos –
ou, como diz a lei civil, com fins não econômicos, como frisa Francisco
Galdino, superintendente da organização mineira Fundação Projeto
Sorria, “porque lucro temos que ter, para ser revertido para a própria
organização”.
Fazendo um paralelo com o desenvolvimento do campo social no país
desde a década de 90 – especialmente tocante às fontes de recursos –,
Galdino conta a história da Fundação Projeto Sorria, organização que
presta serviço gratuito de prevenção e ortodontia a crianças de zero a 7
anos, tendo atendido mais de 7 mil crianças e suas famílias e que, em
16 anos de existência na cidade de Ouro Preto, transformou sua visão
sobre a dependência com relação a financiadores. Galdino começa:
“O maior financiador, por anos, foi o Poder Público local, que
subvencionava a Fundação com um valor mensal destinado a cobrir não
só o custo do Projeto Sorria, mas o próprio custeio institucional – temos
a despesa mensal de R$ 60 mil para pagar o salário de 43 funcionários e
manter 8 unidades de atendimento de boa qualidade. Com o tempo,
avaliamos que a Prefeitura alterava a política de ‘doar’ de acordo com o
ponto de vista do governante: ficamos dependentes dessa situação – a
subvenção chegou a ser da ordem de 60% do nosso orçamento. E isso
não podia mais continuar.
Em 2007, começamos a mudar o pensamento: conversamos com a
Prefeitura, mostrando que a ONG presta serviço. Como a Fundação
cumpre seu dever social realizando ações para a comunidade, nada mais
justo que receber dinheiro por isso.
Então, definimos valores para essas ações (valores, claro, abaixo dos
praticados pelas iniciativas privadas) e fizemos um contrato
administrativo de prestação de serviço. Prestamos um trabalho e
recebemos por ele”, relata Galdino.
Fernando Rossetti expande esse cenário e atesta as mudanças nas
relações sociedade civil/Estado no Brasil que, atualmente, permitem
contratos desse tipo: “de 1990 para cá, essas relações se
transformaram: hoje o Estado se relaciona financeiramente com a
sociedade civil associando-se ao ‘Terceiro Setor’ na execução de
políticas públicas, como o caso do Comunidade Solidária, do Fome
Zero”, explica.
Além de ter oportunidade de mudar a qualidade da relação com seu
principal financiador – a Prefeitura de Ouro Preto –, a Fundação Projeto
Sorria investiu em um negócio próprio. Galdino continua:
“Quando detectamos que as empresas também mudaram sua política de
financiamento – passaram de doações para aproveitamento dos
incentivos fiscais destinados a projetos específicos –, ficamos alertas. No
fim de 2005 começamos a pensar em algo que a Fundação pudesse
fazer para ser auto-sustentável. Diante dessa situação de
vulnerabilidade frente aos financiadores – estávamos sempre nas mãos
de alguém para continuar nossas atividades –, fomos premiados por um
empresário local com a idéia de montar um negócio: produção e venda
de produtos de higiene pessoal e cosméticos. A idéia era boa: os
sabonetes são produto de alto valor agregado, vendem bem em uma
cidade turística, têm o potencial de levar o nome de Ouro Preto para
fora, sem falar que quando o produto é feito por uma ONG, as portas se
abrem.... Fizemos um plano de negócio que prevê tudo, até exportações
para a Europa, realizamos campanha publicitária (desenvolvemos um
selo para indivíduos e empresas consumidoras – chamamos nossos
consumidores de “parceiros”) e mostramos para o comércio e para as
indústrias locais que aquele produto não almeja o lucro para as pessoas
da Fundação, mas que reverte para o sustento da própria organização.
Na fábrica geramos 7 empregos diretos, mais 3 a 4 estágios em acordo
de cooperação técnica com Universidade Federal de Ouro Preto – alunos
e professores da faculdade de Farmácia são os responsáveis pelo
controle de qualidade de nossos produtos. Em até 4 anos, a idéia é
sermos auto-sustentáveis, embora não veja que apenas nosso projeto
de geração de renda seja o responsável por nos manter – mas ele será
a principal fonte”, finaliza Galdino.
A Fundação Projeto Sorria é um bom exemplo de organização que
almeja e caminha para um lugar de maior auto-sustentabilidade. Mas o
que implica ser uma organização auto-sustentável? Haveria sombras
nessa condição? Daniela Nascimento Fainberg, fundadora do Instituto
GerAção e coordenadora do Programa Nova Geração, voltado ao
desenvolvimento pessoal e social de jovens privilegiados, traz alguns
elementos que podem passar despercebidos no debate, e pondera:
“Não acredito que toda organização da sociedade civil deva ser autosustentável, se auto-sustentabilidade significar desnecessidade de
recursos externos. Nesse sentido de gerar os próprios recursos, acredito
que a organização deve depender de outros recursos, inclusive dos
externos: se a organização existe na sociedade, se sua causa é de fato
importante, então não só ela deve contribuir para que sua missão seja
cumprida. Cabe à organização mostrar a relevância de seu trabalho para
que a sociedade possa cobrá-la. A participação de diversos atores no
orçamento da organização, além de ser financeiramente saudável e
importante, é essencial para aproximar esses sujeitos da organização e
viabilizar a própria participação desses atores na sociedade. Além do
que, auto-sustentabilidade muitas vezes pode se tornar um isolamento.
E aí surge uma outra questão: a não-colaboração entre as organizações
sociais. Isso pode advir de uma ‘concorrência’ pelos mesmos recursos,
mas uma organização social deveria pensar em qual sua relevância para
aquilo que lhe é único, e não seguir a linha do ‘quanto mais
organizações sociais no Brasil, melhor’: uma organização pode estar
duplicando o trabalho de outra”, acredita Daniela.
Para a gestora, sustentabilidade e auto-sustentabilidade têm um
significado mais amplo que o que tende a se colocar num contexto de
mercado (concorrência por recursos, enxugamento de fontes,
desenvolvimento de negócios próprios). Para ela, “sustentabilidade não
diz respeito apenas à dimensão da sustentação financeira de uma
organização, mas também à capacidade de desenvolvimento e revisão
constante de seu projeto institucional. É uma combinação da capacidade
da organização social de obter receitas ‘próprias’ com a de acessar
fontes de financiamento públicas, privadas e não-governamentais
nacionais e internacionais. Ao falar em auto-sustentabilidade, também,
entramos em uma discussão anterior sobre qual é a função da
organização: ao identificá-la, podemos enxergar se um negócio próprio
cabe ou não”, comenta. Seguindo essa linha de raciocínio, Daniela inclui
na construção da sustentabilidade o fator da qualidade das relações com
financiadores externos e o que isso pode dizer sobre o potencial de
transformação da realidade social. E muda o lugar de onde enxerga a
sustentabilidade das organizações sociais, agora falando a partir de uma
distância, promovida por ambos os lados, entre doador e organização
beneficiária. Daniela pontua:
“Muitas vezes vejo no novo doador impaciência e até uma certa
arrogância (por estar na lógica do mercado, com muito mais
ferramentas, com modelos eficientes de gestão, querendo resultados
rápidos etc). Mas, também, vejo uma certa desconfiança legítima.
Afinal, quem acredita as organizações da sociedade civil? Há iniciativas
isoladas e louváveis, como o Mapa do Terceiro Setor do CETS, o Prêmio
Bem Eficiente, mas, em geral, falta credibilidade das ONGs frente à
população – e por quê frente ao doador isso seria diferente? Por essa
razão vejo nas organizações sociais um papel de educar esse doador,
mas parece que esse lado ainda é frágil. Ouço muito a fala ‘quero uma
relação mais duradoura com o financiador, para fazermos juntos’, mas o
que a organização faz para isso? Pede recursos, apresenta relatórios e
resultados e, de vez em quando, aparece no escritório do doador? “,
provoca Daniela. E arremata:
“Esse lado de educar o doador é muito novo. Muitas vezes o doador não
quer, mas também, muitas vezes, quem não quer esse papel é a própria
organização beneficiada. Para mim, se quisermos realmente transformar
algo, a grande chave está na relação da organização beneficiária com o
doador, e vice-versa. Do lado do doador, se só pensar em resultados a
curto prazo e quantitativos, não se muda o status quo de ninguém. E do
lado da organização social, ela deve ter essa leitura: ‘o que eu dou em
troca desse recurso? O doador faz isso porque é bonzinho?’. Se
queremos que a realidade realmente mude, devem haver esforços
conjuntos da organização com seus doadores e com outras organizações
semelhantes tanto no sentido de gerar credibilidade para o trabalho
realizado (pensando em modos de monitorar, em que tipos de
resultados querem, em como o trabalho pode ser mais bem realizado)
como no sentido de impactar melhor a realidade trabalhada. Por que se
for para manter o que temos....”, finaliza, reticente.
*Rita Monte é gestora de comunicação do Instituto Fonte.
Fonte: Site Mapa do 3º Setor
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